Como avançam, em todo mundo, novas políticas não-punitivas para drogas. Por que opinião pública muda. Até quando Brasil rejeitará mudança?
Por Gabriela Leite
Realizado todos os anos, o encontro da Comissão sobre Drogas Narcóticas da ONU (CND, em inglês) é, há mais de cinco décadas, uma reunião sem surpresas. Representantes de dezenas de países assumem rotineiramente o compromisso de manter proibida uma longa lista de substâncias psicoativas consideradas “ilícitas” — e de reprimir com dureza seu consumo e comércio. Porém, nesta semana, quando a comissão realizou, em Viena, seu 56º encontro, o script foi quebrado. O secretário da Presidência do Uruguai, Diego Cánepa, defendeu a legalização e regulamentação do uso da maconha, previstos por um projeto de lei que tramita em seu país.
Pouco usual nas sessões da CND, a fala de Cánepa reflete, contudo, um movimento que se espalha e pode tornar-se irreversível em breve. Na América do Sul, Europa e Estados Unidos, um vasto conjunto de iniciativas está questionando o proibicionismo — política que sugere o banimento absoluto de drogas como a maconha, a cocaína, o haxixe e o ópio, e até mesmo das plantas de que são derivadas. Não se trata de protestos de pequenos grupos, mas de uma mudança rápida na opinião das sociedades sobre o tema e também no comportamento dos governos e legisladores. Consenso até há bem pouco, o proibicionismo tornou-se um barco com o casco cheio de buracos e remendos. Nos próprios anos e décadas, será provavelmente substituído por novas políticas — ainda que a mudança seja lenta e penosa.
Para que um novo paradigma em relação às drogas se estabeleça e consolide, será preciso rever uma decisão da própria ONU, adotada mais de meio século atrás. Em 1961, quando a Convenção Única Sobre Drogas Narcóticas foi elaborada, na cidade de Nova York, não havia dúvidas de que o melhor jeito de acabar com os riscos implicados no consumo de drogas era proibi-las, para serem banidas do mundo. O acordo foi firmado por 184 países. Anos depois, em 1998, a ONU realizou um evento chamado “Um mundo sem drogas: nós podemos fazê-lo”, onde estabeleceu-se a meta delirante de acabar completamente com o uso de drogas em uma década.
Rapidamente ficou claro que este não é o caminho. Desde então, o uso da maconha e cocaína aumentaram em 50%, segundo matéria recente de The Economist. Já o consumo dos derivadas do ópio triplicou, e novas drogas sintéticas, particularmente perigosas, continuam a surgir. O comércio ilegal superlota centros de detenção e cadeias, onde os presos estão sujeitos a punições violentas e, em alguns países, à forca, fuzilamento ou decapitação. Outras centenas são torturadas para obtenção de informações e muitas outras são impedidas de receber tratamento e remédios que salvariam suas vidas.
A indústria ilegal de drogas, causadora de todas essas vítimas, tira enorme proveito do proibicionismo. Esta política oferece aos grandes cartéis do crime organizado uma receita de cerca de 300 bilhões de dólares por ano. As populações padecem. As guerras organizadas entre as próprias quadrilhas, ou entre elas e a polícia, matam milhares de pessoas. Entre os oito países mais violentos do mundo, sete estão na rota de tráfico de cocaína. Só no México, a chamada “guerra contra as drogas” provocou 70 mil assassinatos nos últimos 5 anos. Em Honduras, onde a população é de 8 milhões de habitantes, 7 mil são mortos por ano.
O Uruguai não é o único a país a questionar as políticas proibicionistas da ONU. Os casos mais recentes de legalização da maconha são os Estados norte-americanos de Washington e Colorado. Em plebiscitos realizados paralelamente às eleições presidenciais do ano passado, cidadãos decidiram, por maioria, legalizar a droga não apenas como tratamento medicinal (como já acontece em outros estados dos EUA), mas também para uso recreativo. Ao que parece, o país está lentamente se dando conta de que a legalização e regulamentação do uso da cannabis não aumenta o número de viciados. Hoje, cerca de 50% da população norte-americana apoia a mudança de paradigma.
Mas o problema persiste em outras partes do continente. Na Guatemala, em uma região chamada San Marcos, o governo cuidou de limpar as plantações de ópio, mas as viu sendo plantadas novamente por cinco vezes. É por isso que governos estão percebendo que se é impossível vencer as drogas, é necessário tomar o controle delas para evitar os terríveis resultados do narcotráfico. Na América do Sul, além do presidente uruguaio, José Mujica, seu colega boliviano, Evo Morales é um grande defensor da descriminalização da folha de coca, cultivada na Bolívia para uso de chás e rituais religiosos. Alguns outros presidentes, como Juan Manuel Santos, da Colômbia e Fellipe Calderón, do México, já sinalizaram que são a favor de novas alternativas.
Na Europa, a liberdade do consumo também está aumentando. Além da Holanda, que já é famosa e atrai turistas atrás da maconha legalizada, Portugal também é um grande exemplo. A droga foi descriminalizada no país em 2000, e ao invés de tratar a questão com medo e estigma, os usuários são acompanhados para que não convertam o consumo em vício. Para os consumidores compulsivos, painéis médicos prescrevem tratamentos. Além disso, experiências com clubes sociais de compartilhamento da erva vêm crescendo em países como a Espanha, França, Bélgica, Itália e Alemanha, onde a venda é proibida, mas o uso não é crime.
Em todo o mundo, as sociedades estão percebendo que promover uma “guerra” contra as drogas levará a derrotas seguidas. Novas políticas são testadas, muitas vezes com sucesso. Os tabus que envenenavam o debate entre a opinião pública caem. As legislações são alteradas. Um país parece distante deste debate. No Brasil, a luta pela legalização é travada de forma valorosa, porém ainda solitária, por grupos de jovens que organizam as Marchas da Maconha. O governo federal, a quem cabe tratar do tema, permanece aferrado ao proibicionismo. São raríssimos os políticos que ousam defender posições mais abertas. Até quando?
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