por acácio augusto (Acácio Augusto é pesquisador no Nu-Sol, doutorando em Ciências Sociais na PUC-SP e professor de Ciência Política no Curso de Relações Internacionais da FASM).
Nos dias de hoje, a escola ocupa um lugar inquestionável. Quase todas as pessoas sabem o que é uma escola, pois viveram, por um certo tempo de sua existência, uma experiência escolar. Passar pela escola é na vida de qualquer pessoa um fato quase “natural”. Contudo, vivemos atualmente uma experiência escolar estendida e contínua.
Houve um tempo em que chegava a hora de despedir-se da escola para inserir-se no mercado de trabalho, porque ocorrera um corte brusco na experiência educacional ou para adentrar à universidade. Agora, estamos endereçados à escola do nascimento à morte. Essa verdade foi construída pelo saber contemporâneo para ser consensualmente aceita e incorporada como inevitável.
A escola não é mais o lugar de uma etapa necessária ao desenvolvimento da criança e do adolescente, estabelecida pelos pais, sob o controle do Estado, para uma educação de conhecimentos regulada por pedagogos e psicólogos. Ela perdeu o status de lugar especial, de etapa a ser cumprida ou estágio a ser vencido para se atingir a vida adulta como um indivíduo preparado. Tornou-se um lugar familiar para toda a vida. Em seu interior se aprende conhecimentos e obediências, mas, também, é para lá que se dirige a vida do bairro, das redondezas, da comunidade. A escola passou a ser um lugar de convívio onde se estuda, desfruta de lazer e se decidem coisas da vida entre os habitantes do local.
A despeito de sua presença contínua, se alguém disser a qualquer jovem: “amanhã, você irá para a escola”, ele ainda responderá quase instantaneamente: “que droga!”. Porém, mesmo avesso ao complexo disciplinar, mais ou menos aberto, ele irá de qualquer maneira, porque entende o que se espera dele. Ainda desgostoso, mostra-se pronto para tornar isso menos doloroso, sem que tenha que enfrentar mais desconfortos derivados do regime disciplinar que lhe é insuportável. A escola permanece sendo um lugar inquestionável. Embora desagradável, ela se impõe, mesmo para ele, como indispensável, ou então, um mal necessário, até mesmo quando a vê, sob as novas condições, como lugar de lazer e cultura, decisões compartilhadas, ou refúgio de uma vida familiar violenta.
É extensa a produção de artigos, livros, estudos, dissertações e teses que criticam esse ou aquele modelo de ensino, sistema educacional ou estrutura escolar. Inúmeras propostas e experiências são sugeridas e criadas para tornar a escola mais humana, mais atrativa, mais eficiente. No entanto, nenhuma delas ousa tocar na continuidade da escola.1
Muito se diz e escreve sobre seus problemas, mas quase nunca se questiona sua necessidade. Ao contrário, encontram-se meios para ampliar as suas funções e atrair os alunos para seu interior: as crianças devem ser escolarizadas desde pequeninas, frequentando a variedade de escolas complementares voltadas desde a formação física até a iniciação em idiomas e artes.
O Estado não admite a educação de crianças pelos próprios pais e regulamenta o funcionamento de todas as escolas. Elas se tornaram, sob a rubrica de educação, um monopólio de Estado. Este acontecimento se justifica com base no reconhecimento das limitações da escola, necessidade de reformas, introdução de novas ideias, pedagogias e atividades, que, no entanto, não propiciam uma reflexão a respeito das suas utilidades.
A escola é uma instituição analisada e reformada sempre pelo que lhe falta, pelo que deve ser acrescido, e raramente pelo que ela produz e faz funcionar. Ao preencher lacunas, empreende-se o itinerário de reformas dos sistemas de ensino, currículos e prédios escolares.
Uma breve história do presente escolar
A escola é o lugar da disciplina. Ela serve para ensinar obedecer às regras e seguir conhecimentos determinados por padrões curriculares nacionais. Num passado não muito distante, ela não se dispensava dos castigos físicos como meio para se obter uma boa formação. A palmatória, a humilhação diante dos colegas, as separações e as demarcações claras entre bons e maus alunos no interior das salas de aulas, compunham punições normativas de toda sorte. De certa maneira, eles ainda habitam o imaginário dos adultos escolarizados e de alguns professores saudosos dos tempos passados, quando a rigidez pedagógica era sinônimo de progresso e de acesso à educação universal.
A autoridade do professor era amada e temida. Cada aluno via nele uma poderosa autoridade moral capaz de castigá-lo e, ao mesmo tempo, um benfeitor que zelava por sua boa formação.
Em meio à organização disciplinar da escola, que no Brasil data do começo do século XX e remete a uma tradição jesuítica de ensino, estabeleceu-se uma cadeia de comandos pela qual as decisões eram transmitidas da diretoria ao aluno, passando por uma escala hierárquica que atravessava inspetores, professores e a autoridade reconhecida entre os próprios alunos que zelavam pelas regras estabelecidas na escola. Essas decisões contavam com o consentimento de cada aluno uniformizado e obediente, que garantia e reproduzia o bom funcionamento escolar.
O problema aparecia quando um estudante quebrava esse circuito, desacatava o professor, ignorava o bedel, burlava a boa apresentação do uniforme ou infringia uma ou mais regras. Nesse momento, nascia o grande problema a ser equacionado pelas autoridades escolares identificado, imediatamente, como indisciplina.
Fabricava-se o problema que justificava e reiterava a necessidade da aplicação e reprodução do castigo, em favor da disciplina para àqueles que não tinham sido capazes de introjetar a conduta correspondente às regras de bom comportamento, que serviam para prepará-los para uma vida adulta de trabalhadores e cidadãos corretos e respeitosos das leis e normas da sociedade.
Esta indisciplina, que emergia como uma forma de resistência ao imperativo disciplinar, era ao mesmo tempo
seu produto direto, para o qual a escola já tinha uma resposta imediata, sob a forma de punição direcionada, cujo objetivo era o de corrigir a anormalidade ou o desvio.
Ao esgotar as aplicações de castigos físicos, broncas, advertências, suspensões e comunicações à autoridade familiar, cessava o regime disciplinar com suas previsíveis tolerâncias e a criança ou o jovem indisciplinado era expelido do prédio e da convivência escolar. Restava-lhe ser encaminhado a uma outra escola, ou ganhar, definitivamente, as ruas. Ficava disponível a outras transgressões e a se tornar o perigo que rondava a porta da escola, muitas vezes associado ao uso de drogas e outros comportamentos moralmente condenáveis, como a incitação sexual. Perambulando pelas ruas, becos e avenidas, vivenciando múltiplas condutas inquietas e muitas vezes ilegais, tornava-se suspeito até ser novamente encarcerado em outra instituição disciplinar, agora destinada aos jovens infratores.
Chegava-se, assim, ao produto direto da disciplina como maneira de produzir um bom cidadão, em que o “fracassado” escolar se juntava aos que nem à escola chegaram: os destinados desde o nascimento a compor a margem complementar do insuportável para a escola. Esses marginalizados compunham um duplo com os indisciplinados para justificar mais proibições, repressões e ampliar a rede de castigos. Aos que não atingiam o rompimento restavam-lhes o exercício regular dos castigos cotidianos e o medo, misturados com o fascínio em passar para o outro lado. Nesse circuito de violências, segundo a disciplina escolar, o desvio vinha de fora, e devia ser identificado, corrigido ou expelido.
Foi o tempo em que a violência e as drogas estavam do outro lado dos muros; eram demônios a rondar as mentes de pais, professores e funcionários, e a provocar sedutoras tentações na mente e no corpo dos alunos comportados. Eram demônios a serem expelidos para a rua: o espaço a ser desfrutado apenas como passagem e com muito cuidado, evitando a sedução dos satânicos agentes de drogas e violências.
A rua era vista como livre e perigosa por admitir os itinerários do jovem egresso da escola por comportamento indisciplinado e até mesmo o do inocente, mas suspeito, vendedor ambulante que poderia oferecer bem mais que balas ou pipocas para os indefesos alunos uniformizados. Os agressivos, indisciplinados e drogados eram identificados como perigosos e desajustados a serem afastados do convívio com os que estavam sendo preparados para serem cidadãos de bem e de bens.
Foi o tempo em que escola para todos era uma utopia liberal em vias de se efetivar num futuro o que, naquele momento, ainda estava distante. As escolas deveriam ser preservadas da sujeira, do perigo e da miséria que rondava as ruas, até chegar o momento de se abrir para acolher os pobres e melhor educá-los para o trabalho.
Antes de tudo isso, no início do século XX, as experimentações anarquistas em educação, criaram outros espaços onde os operários analfabetos e seus filhos estudavam alheios ao regime das disciplinas. Educavam-se dispensados de castigos, separações etárias ou por sexo, e divisões disciplinares de saberes. Inventavam uma maneira de existir e educar na luta contra a ordem, produzindo uma infinidade de jornais, revistas e livros, em qualquer lugar, e em função da realização de sua utopia de sociedade livre e igualitária.
A disciplina, por sua vez, deixou suas marcas nos corpos e na memória dos alunos da escola tradicional. Ainda que as novas tecnologias de ensino e aprendizagem pretendam suprimir os castigos físicos, o aspecto externo dos prédios permanece. A disposição espacial interna em salas de aulas, ainda que com carteiras móveis e não mais enfileiradas, continua semelhante à prisão, o hospital ou uma antiga fábrica, apesar das quadras, salas de projeção, auditórios coloridos, computadorizados e compartilhados.
A escola e seus problemas...
Dentre os problemas tratados como um dos mais recorrentes na vida escolar está o uso de drogas e o comportamento violento dos estudantes com autoridades de ensino e entre eles mesmos. São problemas colocados como prioritários, geralmente relacionados à violência exterior e à contemporânea difusão do uso de drogas ilícitas. Todavia, a escola fecha os olhos para o uso cotidiano de medicamentos prescritos, segundo diagnósticos feitos a partir do desempenho escolar ou com base na identificação de transtornos que interferem no rendimento do aluno ou na convivência com os outros colegas.
Ao mesmo tempo, combate a violência interna, segundo um conjunto de normas repressivas. Desta maneira,
renuncia o discurso em que a violência está fora, as drogas estão do lado de fora e a administração de medicamentos está sob responsabilidade dos pais; os entrechoques internos respondidos de acordo com os regramentos são reformulados, ainda, com base no castigo e nas normas.
Ao perguntar-se sobre o problema das drogas e da violência nas escolas hoje, é preciso estar atento à sociabilidade que ela engendra entre os estudantes, aos fluxos que atravessam a escola e a experiência escolar, à política que rege a vida dos estudantes, professores e funcionários e, por fim, o quanto dessa violência não é produzido por uma sociedade extremamente escolarizada.
A primeira evidência está na multiplicação dos programas2 paraescolares e ações chamadas extracurriculares, realizados por ONGs, institutos e fundações. Estes atuam dentro e fora das escolas, próximos das secretarias de educação e cultura, e implementam programas destinados, em grande medida, à formação complementar e contínua de alunos, professores e funcionários, não raramente preocupados com a violência e as drogas nas escolas e em seu entorno.
São problemas tratados de forma estendida e contínua, operando segundo as utopias de paz, tolerância, segurança e proteção que devem ser construídas e produzidas com o envolvimento dos pais e da comunidade em torno das escolas, num fluxo que inclui governos e sociedade civil em escolas estatais e privadas.
Entre os diversos exemplos imediatos e contemporâneos estão os programas como Escola da Família e o Sistema de Proteção Escolar, desenvolvidos pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE), da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo; o Programa Nacional de Resistência às Drogas (PROERD), realizado pelas polícias militares de quase todos os estados da federação; o Amigos da Escola, programa de voluntariado escolar, de abrangência nacional, do sistema Globo de Telecomunicações. Enfim, há uma variedade de programas que abarcam governos, empresas, mídias, fundações, institutos, corporações policiais e a comunidade para governar a salvação da escola dos males das drogas e da violência, para produzir o cidadão participativo, organizado, incluído, integrado e com compaixão cívica.3
Seus objetivos giram em torno de “promover um ambiente escolar saudável e seguro, propício à socialização dos alunos, por meio da prevenção de conflitos, da valorização do papel pedagógico da equipe escolar e do estímulo à participação dos alunos e sua integração à escola e à comunidade. (...) Reafirmando a escola como um espaço privilegiado para a construção da cidadania participativa e o pleno desenvolvimento humano”.4
Pretendem difundir práticas que celebrem esse envolvimento solenemente, certificando e criando rituais de compromisso, como na descrição da formatura dos alunos que participam do PROERD, da Polícia Militar, na qual todos recebem “um certificado de conclusão do curso, quando o aluno formando presta o compromisso diante da Família e autoridades presentes, de resistir às drogas e à violência. Celebra-se assim, a parceria entre a Escola, a Polícia Militar e a Família”.5
Esses são alguns exemplos de como os chamados problemas das drogas e da violência são tratados como
conflitos a serem equacionados, por meio do diálogo e da participação democrática. Com isso, amplia-se a variedade dos comportamentos que se tornam alvo de uma sentença, não mais restrita ao exercício da autoridade escolar, mas compartilhada pelos pedagogos, psicólogos e até juízes associados aos integrantes da comunidade escolar e do entorno do bairro.
Busca-se produzir uma “educação para o perdão”, como anunciam as notícias sobre os programas de justiça restaurativa em São Paulo e no Rio Grande do Sul.6 Os eventos que se restringiam ao ambiente escolar e eram definidos pela quebra das normas da escola, agora são passíveis de serem tratados como eventos de justiça criminal e recebem uma sentença da comunidade, acompanhada do perdão, pela qual reafirma a sua ascendência sobre as crianças e os jovens, por meio da escola.
Da mesma maneira, os casos de vínculos com o tráfico de drogas e violência contra crianças são encaminhados aos Conselhos Tutelares. Estes funcionam como delegacias para questões envolvendo crianças e jovens, sem abrir mão da intervenção da polícia repressiva e compondo, enfim, processos de judicialização que se escoram, preferencialmente, nas escolas, constituindo um tribunal da comunidade e produzindo casos para o sistema penal.
Essas práticas e programas compõem um conjunto de flexibilizações democráticas que salvam a escola da implosão da rigidez da autoridade disciplinar, ampliando suas funções e criando novas demandas de atuação. Ao mesmo tempo faz da escola um lugar querido da comunidade, que deve ser amada e respeitada por todos desde pequeninos. São maneiras, enfim, de ampliar o controle escolar e manter a escola necessária e inquestionável, não apenas como acesso aos conhecimentos universais, mas como o indispensável lugar de educação para paz, a justiça, o castigo e o perdão, como verdades do princípio de governo para cada um, a comunidade e o bairro.
Drogas e violência nas escolas de hoje
O tempo das disciplinas na escola não passou. Ele continua, mas hoje, está atravessado por vários fluxos de controles e isto também modifica a relação com as drogas e a violência.
Se antes interessava expelir os que traziam o mal para o convívio escolar, a flexibilização das práticas disciplinares austeras e a democratização do acesso ao ensino mudaram a relação da escola com as drogas e a violência. Serão outros os perigosos a serem combatidos e uma outra relação da escola com a indisciplina se estabelece.
Permanecem o castigo e a disposição disciplinar dos corpos no espaço, mas se o que estava em questão era expurgar o demônio das drogas e da violência, agora as práticas escolares voltam-se para administração dos conflitos, como prevenção à violência e uma outra relação com as drogas lícitas e ilícitas.
Hoje o indisciplinado não se resume ao desajustado que deve ser corrigido pelo castigo ou expulso em favor
da conduta correta e da observância das normas. A escola, com acesso e método democratizados, criou dispositivos de inclusão, absorvendo os antigos marginalizados.
A austeridade da autoridade escolar flexibiliza-se em favor da expansão dos controles para uma variedade de sujeitos incluídos em modulações de condutas esperadas e de rápida absorção, reguladas ao funcionamento da instituição. A professora austera cede lugar aos gentis professores que operam num regime de amabilidades floridas em que o exercício do castigo não se faz no momento decisivo de sua aplicação, mas num processo contínuo de avaliação que visa promover a adesão às condutas e a cumplicidade no exercício e produção das regras. A obtenção da obediência escolar torna-se, assim, mais eficiente ao envolver os alunos com a flexibilização da autoridade, ao mesmo tempo em que se expande a centralidade dos controles.
A separação dos alunos por sexo e faixa etária cedeu lugar à administração de competências pelos processos de avaliação contínua. O uniforme permanece como marca indispensável, mas agora é até produzido com a colaboração dos próprios alunos por meio de concursos de design e logomarcas. Aceitam-se, com maior ou menor complacência, sobre os uniformes, os adornos que localizam subgrupos e
identidades transitórias.
O bedel agora conta com uma torre de monitoramento televisivo, que atualiza sua antiga ronda de sala em sala, lembrando a todos que tudo está sendo gravado. Enfim, os alunos que antes eram divididos em obedientes e perigosos e desajustados são incluídos em sequenciamentos diferenciados, que abarcam do encrenqueiro ao portador de deficiências.
O espaço encontra-se mapeado e disponível a adaptações e acessibilidades a regras administradas por profissionais da assistência social, da psicologia e da pedagogia, como gestor escolar, sem deixar de recorrer, quando necessário, à polícia comunitária e ao Conselho Tutelar.
São novas maneiras de intervenções, negociações e tratamentos em favor da boa saúde e da boa educação para potencializar o que as teorias administrativas chamam de capital configurado na criança.7 No exato instante em que o aluno se viu mais livre dos castigos disciplinares, ele passou a introjetar que cometer uma indisciplina lhe será desfavorável, não pela punição que virá da autoridade superior, mas pela revelação de sua falha e de como isso pode lhe anunciar, no futuro próximo, a vida de perdedor.
A democratização do acesso à escola e a participação nos métodos de ensino ampliou o raio de controle para dentro e para fora. A escola se tornou o lugar de visibilidade total com a capacidade de absorver e administrar uma variada combinação de assimetrias em seu interior, na comunidade e no bairro.
A droga também está incluída num regime de sequenciamento e distribuição de usos e abusos que vão dos analgésicos auto-administrados e do álcool tolerado em festinhas colegiais à posologia de remédios prescritos para as novas doenças escolares, como dislexia e hiperatividade, e até o atravessamento do tráfico de drogas no interior da escola.
O mesmo ocorre com a violência entre alunos e seus grupos dentro da escola e, por vezes, contra os professores. Ela encontra explicações e justificativas psicológicas e sociológicas, que vão do atual bullying, o mais recente objeto de preocupação de pedagogos, psicólogos e trabalhadores da educação, até intervenção policial contra gangues, chamadas de bondes, e suas ligações e proximidades com a conduta e atuação das chamadas organizações criminosas.
Não está mais em jogo expurgar esses demônios do convívio escolar e expulsá-los da escola. Ao contrário, há uma política voltada para criar dispositivos capazes de mantê-los próximos, à vista, monitorados e, de preferência, funcionando a favor do indispensável papel da escola como espaço de convivência da comunidade. Assim, entende-se o uso, cada vez mais comum, de sistemas de aprovação continuada e convocação à participação dos alunos para a produção de regras escolares; é nesse momento que o problema individual vira a solução exemplar para todos, revelando a eficiência do castigo introjetado, democratizado e compartilhado.
A escola encontrou seu caminho seguro e tranquilo para seguir sua existência inquestionável, sua função indispensável na formação de cada cidadão. No entanto, a amável e democrática maneira de funcionar, mostra sua face macabra. A despeito de tanta compreensão, ciência, diálogo e participação, ou exatamente pela presença deles, nunca se noticiou tantos eventos de violência entre jovens escolares.
Num rápido exercício de memória recente, não será difícil recordar de alguma notícia que remeta a uma humilhação registrada por celulares e disseminada, rapidamente, em redes de relacionamentos. Pode ser a morte ou hospitalização de algum jovem escolar em meio a uma festinha colegial, por consumo excessivo de álcool ou por uma briga envolvendo parceiros sexuais, divulgada entre colegas. Pode ser a morte ou hospitalização, por linchamento ou uso de arma branca ou de fogo, de algum jovem escolar após um entrevero na porta do colégio, pelos motivos mais banais, estampada nas mídias e compartilhada entre usuários de celulares e Internet. E assim chegaremos, finalmente, à constatação que os serial killers, como os da escola de Columbine, não são uma produção exclusiva da cultura bélica estadunidense.
Diante disso, é preciso que cada um, professor ou estudante, se pergunte: como democracia, diálogo e compreensão favorecem essa incrível disseminação de condutas fascistas cotidianas?
E resta um paradoxo. Na nova escola, enquanto os alunos indisciplinados se ajustam pelo aprendizado do controle de si diante de regras produzidas conjuntamente, é o professor arrojado capaz de instigar revolta e mostrar com seus gestos os limites desta encenação democrática e participativa que se torna insuportável? E nesta hora, não há voz de aluno que sobressaia ao poder do gestor escolar que sumariamente o demite, sob o olhar conivente e aprovador dos pais.
O imperceptível e o estranho aos controles
Cabe a cada estudante entregue a essa variedade de controles e regulações, e disponível aos diversos dispositivos de participação que os convocam a ser o delator e o juiz de seu colega de sala, de seu amigo de intervalo ou de futebol, até mesmo de seu professor, perguntar-se ao que ele está sendo levado a servir. Como suportar tamanha exposição e visibilidade que redundam em violência a esse cara que está ao seu lado? Como se contentar com o desejo maluco de fazer parte do sistema escolar, apontando para um alvo que, no dia seguinte, pode ser você?
Se mesmo as ruas, que atiçavam a curiosidade ao desconhecido, estão codificadas, onde estará a possibilidade de escapar aos controles, de se educar para uma vida livre, liberada dos castigos, das acusações mútuas, das avaliações contínuas?
Notas
1 Das diversas propostas que buscam reformar e ampliar a escola como maneira de administrar indisciplinas e salvar as funções sociais da escola, a Escola da Ponte, projeto para escolas estatais do educador português José Pacheco, e a IDEC (Internacional Democratic Education Conference), que inclui, no Brasil, a escola Limiar, são as experiências que levam mais longe a democratização e a gestão compartilhada. Para uma problematização mais detalhada da escola democrática ver Edson Passetti e Acácio Augusto. Anarquismos e educação. Belo Horizonte, Autêntica, 2008, pp. 74-77.
2 A palavra programa é utilizada, para além de como eles mesmos se denominam, como traço característico das tecnologias de governo na sociedade de controle. Cf. Edson Passetti. Anarquismos e sociedade de controle. São Paulo, Cortez, 2003.
3 Refiro-me à noção encontrada em Richard Sennett. Carne pedra. Tradução de Marco Aarão Reis. Rio de Janeiro, Record, 2008, pp. 300-306.
4 Disponível em: http://www.fde.sp.gov.br/PagesPublic/InternaSupervisao.aspx?contextmenu=supprot (acesso em: 09/05/2010).
5 Retirado do PROERD. Disponível em: http://www.proerd.rn.gov.br/Aplicacao.htm (acesso em: 29/04/2010).
6 Como é possível verificar nos sites do Movimento Nossa São Paulo e no Observatório da Educação. “São Paulo quer ampliar prática de justiça restaurativa nas escolas” e “Escolas utilizam mecanismos de justiça restaurativa para resolver conflitos”. Disponível respectivamente em: http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/node/898 e http://www.observatoriodaeducacao.org.br/index.php?view=article&catid=48%3Asugestoes-de-pautas&id=306%3Aescolas-utilizammecanismo-da-justica-restaurativa-para-resolver-conflitos&option=com_content&Itemid=98 (acesso em: 05/05/2010).
7 O investimento estatal e familiar em saúde e educação como maneira de fomentar capital humano toma como ponto de partida e elemento chave o que se define como capital configurado na criança, formado por elementos da educação familiar, formal e características hereditárias: “A formação do ‘capital configurado na criança’ pelo lar, pelo marido e pela mulher começaria com a criação dos filhos e proseguiria ao longo de sua educação por todo o período da infância.” Cf. Theodore W. Schultz. O Capital humano. Investimentos em educação e pesquisa. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1973, p. 9.
Resumo
Breves anotações sobre os programas de ampliação da participação e democratização da escola. Como a flexibilização da administração e da disciplina escolar produzem violências e reiteram centralizadades de poder pela introdução de tecnologias de governo que investem na gestão compartilhada e participativa da escola envolvendo professores, estudantes e funcionários.
palavras-chaves:democracia, escola, controle
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