por Luiz Fuganti
Ao primeiro sinal da palavra ética o que salta à atenção comum
do cidadão é um chamado para que ele, ao ponderar seu sentido mais freqüente e
ordinário, procure ascender a uma postura de vida e de comportamento que por
princípio o colocaria no caminho do Bem, seja de natureza espiritual, seja um
Bem para a humanidade ou, simplesmente, uma disposição por parte daquele que é
qualificado com atributos ditos éticos, a assumir um comportamento que tenderia
para o tão propalado bem comum da sociedade em que vive.
Bastaria, para
isso, apenas seguir o referencial da Lei, com o ideal de igualar-se a sua pura
forma e introjetar seu paradigma universal. Mas ao mesmo tempo em que esta
concepção do senso comum é compartilhada como sendo a que melhor conduz o
indivíduo a um modo de vida responsável e justo, concedendo-lhe o direito a
uma espécie de liberdade assistida por fora e vigiada por dentro (como num
panópticum ), relativa ao grau de liberdade que a própria sociedade
poderia suportar sem ser ameaçada em sua constituição, instaura-se, na mesma
proporção, a contraparte de um assujeitamento sutil e inaudito que submete e
desvia tanto o desejo quanto mais ele adere, na espera de recompensas
ou ganhos, ao modo moralmente útil de ser.
O modo que
agrega o indivíduo ao corpo da sociedade, através de uma relação dicotômica de
boa ou má vontade para com o corpo de leis, o qual devolve ao indivíduo o troco
em forma de recompensas ou castigos, remonta já
ao nascimento do Estado. Mas não é apenas o Estado arcaico que
cultiva este tipo de código. Pertence a própria natureza do Estado este modo de
codificar seus membros pela relação de obediência e transgressão. É
por isso que o Estado é um grande estimulador e reprodutor das paixões
tristes, como diz Espinosa. É por medo dos castigos
e esperança das recompensas que o indivíduo
submete-se a um poder que o separa da sua própria capacidade de agir e pensar
livremente, desejando sua própria servidão. Ainda que aquele modo se alimente -
por pura crença - de investimentos subjetivos de um indivíduo
habituado ao esforço cotidiano de sobrevivência, dissimulando concórdias e
inviabilizando relações reais de solidariedade ou - por pura conveniência
utilitária e objetiva - de investimentos de desejo (de poder) nem um pouco
desinteressados (ao contrário do que invoca o sujeito legislador de Kant),
desvela-se assim como seu contraponto um comportamento de um tipo de vida
inteiramente subserviente, tragado por um círculo vicioso, como num buraco
negro, sempre realimentado pela repetição da perda da capacidade de criar as
próprias condições existenciais de efetuação de suas potências. É assim que
tombamos. Por morder a isca dos "nossos" interesses, interesses de um
"Eu", caímos cativos de uma moral que impõe dever a
uma instância exterior como o Estado, o Bem, a Lei ou, em uma
palavra, a valores de uma época que, apesar de serem criados por uma
determinada sociedade historicamente formada, são publicados e estabelecidos
como universais e perenes, enfim, transcendentes ao tempo e ao espaço nos quais
emergiram.
Expressos por
discursos que pretendem representar e justificar os chamados "bons
costumes", autoqualificados de científicos, cultuados como verdades em si
ou formas puras do saber, esses valores bloqueiam e separam o indivíduo de sua
capacidade imanente de pensar e agir por ordem própria, desqualificando seus
saberes locais e singulares como meras crenças ou opiniões e destituído-os de
suas potências autônomas que criam seus próprios modos de efetuação. É dessa
maneira que indivíduos tornados fracos, por paixões de medo e esperança passam
a clamar por uma ordem heterônoma que os salvaria do caos, da impotência e da
miséria, tal como no exemplo extremo do nazismo. Como diz Wilhelm Reich, os
alemães não foram simplesmente enganados, eles desejaram o nazismo.
É de tais
valores, aos quais uma suposta vontade humana deveria se curvar, que
curiosamente se extrai uma significação intrínseca, a substância real, ao mesmo
tempo forma em si e oriente para o Homem, para falar
hegelianamente. Desenhando um plano de tal ordem transcendente à natureza
material tida como caótica, o investimento em tais valores atribui à Lei a
irônica tarefa e o crédito infinito de piedosamente salvar o
Homem, já que, sobrevoando a natureza, estaria imune também às tendências
perversas de uma natureza humana decaída, sempre em falta com o bem e a
verdade, demasiado atolada nas paixões do corpo e da alma. É, portanto, nesse
modo de instituir valores e vínculos que fundam-se dívidas infinitas
e impagáveis, onde não sobra outra alternativa aos "cidadãos" senão
rolar indefinidamente o principal da dívida e pagar interminavelmente seus juros.
Eis como uma dívida de poder, por natureza impagável, se torna dívida de
existência. Por esses bizarros caminhos é que se chega a desejar a
própria sujeição como se da liberdade se tratasse. Quando queremos formar
nossos cidadãos, investimos em assujeitamentos. Eis todo o cinismo da idéia
moderna de liberdade.
Mas é a partir
de modos de relações microfísicas de poder, imanentes ao próprio tipo de
formação social, que se mostra realmente como se instaura e triunfa esse nihilismo,
essa negação das qualidades nômades da vida, tornando as sociedades puramente
reativas e conservadoras de uma maneira baixa de existir. Assim, a constituição
da crença em formas metafísicas fechadas em si - que na verdade são geradas e
cultivadas de dentro pelo próprio tipo de formação e desenvolvimento sociais -
consolidaria um plano puramente transcendental, a partir do qual tudo o que
acontece em sociedade poderia ser julgado, resgatado ou
condenado. É sobre esse plano que geralmente a consciência ingênua é,
simultaneamente, determinada e tornada cúmplice, pois corrobora verdades que
toma como justas e neutras, eternas e externas, isto é, dotadas de uma
transcendência que justificaria lógica e moralmente sua racionalidade
legisladora. Numa espécie de coação de interesse mútuo, determinam-se as justas
formas e prescrevem-se limites normativos como modelos autenticadores de idéias
justas e de discursos unificadores, de atos equilibrados e de comportamentos
responsáveis. No entanto, talvez a transposição mais sintomática deste processo
moralizante apareça no ideal de unificação
aspirado pelo poder, que se destaca e controla uma sociedade civil submetida
aos seus interesses. Consequentemente, o poder produzirá o simulacro de uma
conciliação, de um achatamento ou dissolução das diferenças.
Naturalmente, do
ponto de vista político, a encarnação máxima da unificação se efetuaria na
figura do Estado Nacional, sendo secundário o aspecto ideológico de sua
bandeira, isto é, de quem o controla, operando invariavelmente a serviço do
interesse privado ou parcial e em nome de um simulacro de
conceito universal de coisa pública, sempre
destacada da sociedade. O mais importante seria superar o estado de natureza, o
qual, na visão de Hobbes, tende à discórdia, à dissolução e à guerra, para
substituí-lo, na prática, por forças capazes de dominar, controlar e estancar a
ferida das disputas individuais. É assim, por exemplo, que Hobbes concebe a
ficção da unidade e da paz civil a partir de uma superação do estado de direito
natural do homem, que alimentaria, na diversidade, a guerra de todos contra
todos, para um estado de direito civil, onde o indivíduo delega parte de seus
direitos naturais e recebe, em contrapartida, direitos de civilidade que lhe
garantem a segurança, o desenvolvimento e a paz. Nesse sentido, o indivíduo
submeter-se-ia a uma rede de direitos e deveres coextensivos a esta instância
unificadora da sociedade, antes dividida e agora pacificada, a que se denomina
Estado.
Para nós, toda essa visão da Lei, do Bem comum e da Obediência a um plano de
organização de direitos e deveres que normatizariam as condutas e levariam a
uma pretensa ordem universal, numa palavra, tudo o que constitui a atitude Moral
propriamente dita na relação do indivíduo com a sociedade, precisa ser
claramente distinguida de uma outra atitude, a postura a que chamamos Ética.
Contrariamente
ao modo ascético e moral de ser, o modo de vida ético instiga, não a obediência
a um conjunto de regras e valores prescritos pelo poder alheio, interiorizando
formas e incorporando atitudes vindas de fora para podermos comungar das
benesses do poder ou de vantagens que são, no final das contas, aguilhões. Não
o modo de ser dos bons sujeitos legisladores guardiões do Juízo e da Lei
abstrata, do Bem ou dos valores transcendente à vida cotidiana.
É a partir de
outro lugar que não o da dominação e da sujeição, é a partir de um topos
ocupado pela potência de afirmar as próprias diferenças constituintes
dos seres ou ponto de vista da vida em processo de diferenciação, que o modo
de vida ético se instala. O modelo da ética não é o do livre arbítrio
para o Bem a partir da livre recusa do Mal. Bem e Mal são ficções fundadas numa
mesma ilusão de consciência. E essa suposta liberdade nada mais é do que a
ignorância das causas que determinam tal escolha ou recusa. A originalidade de
Espinosa não consistiu em afirmar que o Mal, enquanto substância, não tinha
realidade, mas justamente aquilo que o Ocidente mais cultuou: o próprio Bem,
como substância do ser, também perdeu toda realidade. Mas, como diria
Nietzsche, para além do Bem e do Mal não significa para além do bom e mau.
Estes adjetivos qualificam agora não apenas atitudes e conseqüências, mas
também e sobretudo tipos ou modos de vida, maneiras de existir. Mau é tudo
aquilo que se serve das paixões tristes, da tristeza mesma para firmar e
conservar seu poder ou separar as potências da vida de suas condições de
afirmação, isto é, do que podem. Assim são maus, para Espinosa, não apenas o
tirano que só consegue reinar sobre a impotência alheia, mas também o próprio
escravo que alimenta a necessidade do tirano como seu provedor, bem como um
terceiro tipo que vive da miséria dos dois e extrai dela um poder espiritual: o
sacerdote. Eis a trindade do tirano, do escravo e do sacerdote, as três cabeças
do ressentimento que estariam na base de todo poder. Sobre essa tríade,
Epicuro, Lucrécio, Espinosa e Nietzsche dizem praticamente a mesma coisa. Denunciam
tudo o que precisa da tristeza, da impotência e da miséria alheias para
triunfar.
A ética, ao
contrário, se funda num modo de viver sinalizado pela alegria.
O problema ético parte da compreensão de que, como diria Espinosa, tudo na
natureza participa de uma ordem comum de encontros. Bons e maus encontros, eis
o objeto da problematização ética. Tudo se compõe e decompõe na natureza do
ponto de vista das partes que a constituem. Assim, para explicar a natureza do
mau, Espinosa lança mão de um modelo não moral, mas alimentar ou natural. O mau
é sempre um mau encontro que, como a ingestão de um veneno,
decompõe parcial ou totalmente os elementos que estão sob a relação
característica que constitui o nosso ser existente e diminui ou destrói nossa
potência de existir, agir e pensar, nos entristecendo ou matando. O bom seria
como um alimento que se compõe com o nosso corpo constituindo
um bom encontro, na medida que aumenta nossa potência de
existir, de agir e pensar, produzindo consequentemente afetos de alegria.
Mas, como um
alimento ou um veneno, nem tudo que é mau num momento, para um indivíduo, num
determinado lugar, o é necessariamente se um dos elementos no encontro variar,
como o lugar, o tempo, o indivíduo, corpo ou idéia. Desse modo, o que me envenena
num tempo ou lugar, pode me alimentar noutro tempo ou lugar, bem como o que é
alimento para um pode ser veneno para outro. O mau não é proibição,
a não ser para o homem prisioneiro da consciência e da imaginação. O mau
significa sempre um mau encontro que decompõe minha natureza por ignorar ou não
partilhar suas leis; não leis humanas ou divinas promulgadas por um Senhor como
palavras de ordem ou sentenças, mas leis da natureza que simplesmente nos fazem
compreender o modo como a própria natureza funciona por si, a partir de si e
para si e que nos afetam também na medida em que somos parte da própria
natureza e agimos e pensamos por estas mesmas regras.
É, portanto, a
partir de uma atitude bem diversa que se promove uma Maneira de Viver
conforme critérios de conduta imanentes ao próprio ser do desejo,
ser da vida, ser da sociedade, ser da natureza
(tudo isso é uma e a mesma coisa no ser, não obstante sua distinção modal ou
diferença de regime). Um conjunto de diferenças singulares livres não se deixa
reduzir ou atrelar em relações contratuais, legais ou
institucionais, as quais buscariam simplesmente silenciar os conflitos
sociais ou deles extrair mais valia. Por não comportar mais a
idéia de um indivíduo atomizado - cindido entre a impotência de afirmar e a
obediência redentora - ou do eu pessoal - prisioneiro de atributos
constituintes do sujeito como instância moral ou racional - o conceito de uma cidadania
liberadora é pensado a partir de uma multiplicidade de singularidades
como potências autônomas ou com tendência à autonomia. O campo social passa a
ser compreendido ou constituído por um conjunto de forças em relação e não mais
como um agregado de formas atomizadas, fechadas em limites morais e capturadas
por valores utilitários ou finalistas. A vontade social torna-se propriamente
plural, um autêntico campo de multiplicidades virtuais ou potências de
atualização (com repulsa a unificações e fechamentos totalitários), torna-se
verdadeiramente autônoma e aberta.
Como, enquanto
cidadão, tornar-se uma potência pluralista, um agenciador de relações civis
intensas e realmente solidárias ?
Tudo aquilo que
por si só ou apenas a partir de si - de modo imanente - cria e condiciona modos
de composição entre indivíduos e elementos que lhe atravessam, usando como critério
seletivo do que se passa em sociedade a capacidade de afirmação e
diferenciação, incorporada em cada acontecimento, constitui um filtro ou um
plano de composição gerador de realidades livres, constitui um campo de atração
e consistência como potência autônoma.
No mais profundo
do nosso ser e na mais superficial das nossas superfícies de ser, somos não uma
unidade ou identidade formal como um eu, mas multiplicidades
singulares sem sujeito. No entanto, quanta potência, quanta diferenciação,
quanta generosidade nesses modos próprios e singulares de ser! Os laços
que estabelecemos conosco, com outrem, com as multiplicidades sociais
que se atualizam e nos afetam, enfim com a natureza, são catalizadores de
acontecimentos, são condições de encontros e de transmissões
de realidades, são o arco para flechas que trazem o futuro, mas
que redimem o passado e fazem do presente um verdadeiro campo de experimentação
e de produção inocente de realidade.
Somos potências
individuantes que selecionam e extraem destes encontros ou
relações o que realmente comunga na pura afirmação de tudo o que
difere, criando singularidades intensificadoras da vida, como se
atingíssemos um duplo do real em cada acontecimento, um real
virtual que inflama a existência atual e acelera os processos que
precipitam a geração do novo. Somos irredutíveis a formas médias de
igualização. Participamos na afirmação, portanto, de diferenças criadoras que
propiciam a expansão da vida em sociedade, superando limites que buscamos
ultrapassar.
Chamamos ética não a um dever para com a Lei ou o Bem, nem
tampouco a um poder de segregar ou distinguir o puro do impuro, o joio do
trigo, o Bem do Mal, mas a uma capacidade da vida e do pensamento que
nos atravessa em selecionar, nos encontros que produzimos, algo
que nos faça ultrapassar as próprias condições da experiência condicionada pelo
social ou pelo poder, na direção de uma experiência liberadora,
como num aprendizado contínuo. Fazendo coexistir as diferenças, conectando-as
ao acaso dos espaços e dos tempos que as misturam e tornam seus encontros, ao
mesmo tempo, contingentes e necessários num plano comum de natureza adjacente
ao campo social, (pois a vida não existe fora dos encontros e dos
acontecimentos que lhe advém), afirmamos o que há de fatal nestes encontros, algo
como o sentido superior de tudo o que é. Pois é querendo o acontecimento no
próprio acontecimento, que liberamos algo que se distingue dos
simples fatos cotidianos.
A apropriação e
criação de regras e códigos que comandam a interpretação dos acontecimentos
pelos intérpretes do poder, seja do ponto de vista político, econômico ou
midiático, impõem o que se deve pensar, como se deve agir e em que ou quem
acreditar, sob a guilhotina dos prêmios ou dos castigos por Bem ou por Mal,
pelo útil ou nocivo, pelo legal ou ilegal, sempre conforme ao sentido dominante
dado pelo poder em questão.
A invenção dos fatos - ou do que deve ser
destacado como histórico ou possuindo sentido relevante, como o que faz a
notícia - é sempre dada no modo como o poder se apodera dos acontecimentos e
lhes confere significado, na maneira como essa verdade é produzida pelo poder,
a verdade do poder.
Encontramos algo
diferencial dos fatos nos acontecimentos
de uma sociedade e naquilo mesmo que nos acontece, pela simples razão
de vivermos em sociedade, sendo capazes de experimentar por nós mesmos
e apreender aquilo que constitui os acontecimentos, do mesmo modo que constituímos
os acontecimentos. Tornamo-nos acontecimentos! Encontramos algo
que duplica nossa experiência sensível e
casual em vivência necessária e experiência do
pensamento, isto é, algo como sentido ativo que nos
leva a contrair e antecipar o futuro, ganhando velocidade e
liberdade. Assim se constitui uma cultura nômade e uma
memória virtual do futuro que nos distancia do presente
cristalizado e faz fugir todo poder paralisador da vida. Através do sentido
vivo em devir que não se deixa fixar ou capturar quando é rebatido
sobre o plano dos fatos ou das significações dominantes do poder constituído.
Deste ponto de vista, como poder-se-ia formar autênticos agentes sociais, isto
é, verdadeiros modificadores ou criadores de novas condições sociais de
existência? Como formar cidadãos livres no pleno sentido da palavra ?
Como diria Nietzsche, sem o Não destruidor do leão, não geramos a condição para
o grande Sim criador da criança instaurar uma roda que gira por si mesma, um
novo começo, uma nova inocência. Por isso a necessidade da crítica. É preciso
começar por denunciar as armadilhas que nos reservam os valores estabelecidos
pelos poderes que se descolam e se voltam contra o campo social. Os Estados
enquanto máquinas de submeter o conjunto das relações sociais, correspondem a
investimentos que a própria sociedade faz para se manter coesa e que acabam
voltando-se contra ela mesma.
Somos capazes de
inventar outros modos de relações sociais ou estamos fadados ao tédio e à
repetição do enfadonho ? Para responder esta questão, precisamos antes
problematizar a natureza das relações que constituem o tecido atual
das nossas sociedades e o modo como são reproduzidas. Somos prisioneiros de um
"pré-conceito" ou de uma imagem que subjaz nas mais
recônditas camadas da nossa história e do inconsciente coletivo e que coexiste
no modo atual de transmitir conteúdos materiais, energéticos ou espirituais.
Somos prisioneiros do mito que reza que toda relação social pressupõe
uma troca concretizada por meio de um equivalente, isto é,
por meio de um valor abstrato capaz de axiomatizar ou igualizar qualquer
relação, destituindo-a de toda e qualquer singularidade que possa diferenciá-la
e afirmá-la como um valor autônomo insubstituível. Assim, não só os produtos
materiais transformaram-se em mercadorias. São todos os processos espirituais
de singularizações e subjetivações humanas que caem na axiomática delirante do
campo econômico - já que a axiomatização primeira é a do tempo - e que as
reduzem todas a elementos com unidades mínimas equivalentes e permutáveis entre
si. Não é o Dinheiro que constitui a forma privilegiada da mercadoria no
capitalismo. É o modo de produção de subjetividade ou dos processos de
subjetivação que constitui a condição fundamental geradora de todos os estofos
ou substratos para a existência e a reprodução bem sucedida do próprio Capital.
A subjetividade
é a mercadoria por excelência em nossas sociedades. Ela é a criação e a
reprodução, pelo poder, de um território que não pára de faltar a si mesmo,
alimentando assim a infindável insuficiência de ser: sempre preenchida
pelo "poder" de compra, sempre frustrada pela ilusão insuperável do
consumo ideal que escapa no instante mesmo em que o atingimos; sempre
reproduzida em sua falta territorial, abismal carência, impotência real de
conquista da moeda que tudo pode mas que sempre cava mais fundo, pela sua dupla
face esquizofrênica, o buraco da dívida existencial. Fenda intransponível.
Estamos em novos
ambientes. O capitalismo fabricou para si atmosferas ainda mais complexas. Como
diria Deleuze, não mais a toupeira disciplinar, mas a serpente fluida do
controle. A subjetividade já não é produzida simplesmente pelas velhas máquinas
disciplinares. As máquinas a vapor e de carbono deram lugar às máquinas de
silício, de terceira geração. O modus operandi do poder disciplinar,
fechado e segmentarizado no tempo e no espaço, como descreveu Foucault,
cedeu lugar para as cifras magnéticas que conectam ou desencaixam fluxos de
energia em espaço aberto e controle ininterrupto.
Tanto o poder
quanto a produção do seu estofo, a subjetividade, se realizam atualmente por
modulação de fluxos sob controle aberto, infinitamente permutáveis e em
comunicação permanente, como modo de produção de canais e mais valia de canais,
de fluxos e mais valia maquínica, de idéias e mais valia de saber e poder.
Controle num espaço tornado aberto simultaneamente no interior e no exterior e
em velocidade absoluta no tempo que nos constitui como cifras simultaneamente
comunicantes.
Não obstante, do
mesmo modo que o poder tornou-se mais sutil com suas novas máquinas e formas de
exercício, a vida, os devires ativos da vida também encontram ocasiões
inéditas, inauditas e poderosas para reagir, criar, fazer passar o inesperado,
o ar puro de novos devires e a potências de novas composições no seio mesmo de
suas máquinas cibernéticas de controle.
A vida em última
instância não se deixa trocar nem avaliar a partir de uma axiomatização
abstrata das transmissões de energia. Pois é ela quem avalia e faz passar no
modo da intensidade excedentes não mensuráveis, excessos pelos quais se torna
possível a constituição de novos tipos de relações. Pois, na verdade, a
natureza ou a própria vida, que é um modo de produção da natureza, é quem
produz realidade e portanto, por esta capacidade de gerar o excesso, torna ao
mesmo tempo possível e necessário novos modos de se relacionar em sociedade. Essas
novas maneiras de ser ou modos de relação se caracterizam pela capacidade de
fazer passar o excedente não codificável, as intensidades não mensuráveis, as
quantidades de energia não axiomatizáveis.
Podemos fazer de
nós mesmos um elemento sempre diferencial e diferenciante, gerador de novos
devires, um agente imperceptível porque excêntrico e em mutação constante,
senhor das modificações que fazem das relações verdadeiras alianças propulsoras
de uma vida social em plena expansão. Só pelo excesso nos tornamos aptos a dar
e ser generosos. E só nestas condições poderemos formar cidadãos aptos a
construir um campo de consistência e composição de tecidos sociais libertários.
Homens realmente livres - com força suficiente para resistir e conjurar as
ingerências de poderes alienígenas ao campo de imanência de uma sociedade civil
- livres de um modelo de acumulação e consumo de energia mortificada e de
produção de relações de troca ou de transmissão abstratas, que separam os
homens de suas próprias capacidades de agir e de pensar.
Livres por
estarem ligados a sua própria potência de produzir e afirmar seus devires
criadores. É a partir do modo como se produz e transmite energia, que não mais
parasita, mas que estabelece autênticas simbioses, que as condições de
existência da vida poderão encontrar seu meio de expansão e expressão da
alegria, efeitos do aumento da capacidade de agir e pensar da Terra, na Terra,
pela Terra.
Luiz
Fuganti
SP,09.07.01
Referências Bibliográficas
Deleuze, Gilles
- ‘Controle e Devir', in Conversações, Ed. 34, SP
Epicuro - Epicuro
e les épicuriens (textes choisis), PUF, Paris
Espinosa, Baruch
de - Tratado Teológico Político, Imprensa Nacional, Casa da Moeda,
Maia, Portugal
Espinosa, Baruch
de - L'Éthique, Gallimard, Paris.
Espinosa, Baruch
de - Tratado Político, Os Pensadores, Ed. Abril, SP
Foucault, Michel
- Microfísica do Poder, Ed. Graal, RJ
Foucault, Michel
- Vigiar e Punir, Vozes, Petrópolis.
Fuganti, Luiz - Saúde,
Desejo e Pensamento, Hucitec, SP
Hobbes, Thomas -
Leviatã, Os Pensadores, Ed. Abril, SP
Lucrécio - Lvcrecio
De rerum natura, Bosch, Barcelona.
Nietzche,
Friedrich - Além do Bem e do Mal, Cia. das Letras, SP
Nietzche,
Friedrich - Genealogia da Moral, Ed. Brasiliense, SP
Reich, Wilhelm -
Psicologia de Massas do Fascismo, Martins Fontes, SP
Breve biografia
do autor:
Luiz Fuganti é arquiteto de formação, filósofo e professor, com mestrado em Filosofia Medieval
pela Unicamp. Ministra cursos livres de Filosofia desde 1986 em diversas
entidades. Foi membro da equipe Antimanicomial da Casa de Saúde Anchieta, em
Santos (1989/92). Fundador da Escola de Filosofia AION.
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