domingo, 10 de março de 2013

hypomnemata 153


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 153, fevereiro de 2013.
         O Mali está aí

         O fim do império colonial francês no norte da áfrica, na passagem dos anos 1950 para os 1960, deu espaço a mais de uma dezena de países. 
         Um deles adotou o nome de um antigo reino africano cujo apogeu se deu no século XIII: Mali
         Terra de transição entre as florestas úmidas do sul e o deserto do Saara, o reino do Mali foi por séculos rota de mercadores nômades — os tuaregues — que trouxeram e levaram pelas vastidões ouro, marfim, sal e escravos. 
         O novo e empobrecido Mali, território sem saída para o mar, passou a viver o roteiro comum à maioria dos Estados africanos: ditaduras longas, golpes militares, fome, miséria e muita riqueza apropriada pela burguesia global e pela oligarquia local procedente dos quadros burocráticos coloniais. 
         A partir de 1992 tentou-se implantar uma democracia nos moldes liberais. 
         A experiência terminou em março de 2012 com um novo golpe militar justificado pela necessidade de combater a secessão do norte do país promovida por grupos armados de tuaregues que haviam sido mercenários de Kaddafi e que voltaram ao Mali depois da morte daquele ditador. 
         De imediato, a Comunidade Econômica dos Estados da áfrica Ocidental (ECOWAS, em inglês), a União Africana, os EUA, a União Europeia e a ONU repudiaram o golpe e articularam um governo de transição. 
         Depois disso, dois outros grupos entram em cena: a Al-Qaeda do Magreb Islâmico e a Ansar Dine, lutando por uma república islâmica no Mali. 
         O governo transitório malinês solicitou à ONU apoio internacional para combater o que classificou como "terrorismo islâmico". 
         O Secretário-Geral da ONU aquiesceu e o Conselho de Segurança aprovou em dezembro de 2012 uma resolução (S/RES/ 2085/2012) autorizando a formação de uma "Missão Internacional de Apoio ao Mali" a ser liderada por africanos (a ECOWAS ou a União Africana), com "suporte" internacional. 
         A França se prontificou a ser esse "suporte", enviando uma missão militar de emergência até que os africanos pudessem se organizar...

         aí...
         Em janeiro de 2013 chegaram aviões com soldados, armas, helicópteros e tanques de guerra, vindos de outras missões e bases militares que os franceses já mantêm — e que nunca deixaram de ter — na região, incluindo as da Legião Estrangeira. 
         Os aliados da França na OTAN deram apoio logístico. 
         Soldados do Chade, também sob ocupação consentida de tropas francesas, foram mobilizados. 
         A ação militar, nomeada Opération Serval em alusão a um gato selvagem do Sahel, retomou até meados de fevereiro as cidades ocupadas pelos "islamitas". 
         Muitos dos elogios à iniciativa francesa vieram de chefes de Estado da OTAN e da América Latina (Colômbia e Chile), de Israel, do secretário geral da ONU e, até mesmo, dos tuaregues. 
         O presidente socialista francês agradeceu, justificando a urgência em evitar que um Estado islâmico como o Afeganistão dos tempos do Talibã se instalasse tão perto da Europa. 
         Muitos acadêmicos franceses também apoiaram a intervenção, tanto em termos de sua suposta importância geopolítica e de segurança contra o terrorismo, quanto em nome da defesa dos direitos humanos e da democracia no Mali. 
         Outros especialistas criticaram a operação francesa, classificando-a como colonialista e interessada em assegurar que os recursos naturais, commodities, como o gás natural e o petróleo não caiam nas mãos dos chineses, ávidos pelas matérias-primas africanas. 
         Os críticos consideram que a intervenção — "disfarçada de humanitária" — terminaria por violar os direitos humanos, reeditar a ideia de francafrique (conjunto de tratados comerciais desiguais feitos com os franceses) e impedir a verdadeira consolidação da democracia no Mali. 
         Uma enquete da TV Al-Jazeera indica que 96% dos malineses apoiam a intervenção francesa.

         aí, aqui e acolá: polícia!
         O problema Mali, no entanto, não é mero repeteco colonialista ou imperialista. 
         A ação militar colabora no novo dispositivo planetário de governo para:
                                             · conter distúrbios locais que dificultem o fluxo de produtos e capitais;
                                             · facilitar a exploração de recursos naturais evitando guerras civis, genocídios e tragédias humanitárias;
                                             · evitar que as levas de refugiados pressionem as fronteiras dos países capitalistas mais ricos.
         As operações militares são apenas um dos componentes desse dispositivo e tomam a forma de forças policiais, altamente tecnológicas, legitimadas pelo multilateralismo e legalizadas pelas organizações internacionais.


         Depois das tropas de choque militares vêm as missões autorizadas pela ONU que, diferente das "missões de paz" praticadas até os anos 1990 — que se dedicavam a fazer cessar combates numa guerra civil — agenciam organizações internacionais, ONGs humanitaristas, militares, polícias, empresas estatais, privadas e seguranças. 
         São ocupações sem prazo definido para terminar e governamentalizadas pelo elenco acima a fim de reforçar formações estatais em conjunto com a sociedade civil organizada onde supostamente não há Estado ou sociedade, ou onde eles teriam "falido". 
         Essa articulação público-privada volta-se ao recondicionamento ou modelagem de instituições políticas, forças repressivas e organizações políticas e sociais no padrão democrático-liberal. 
         Naturaliza-se a avaliação de que existam "Estados falidos" que precisam ser salvos para o capitalismo e para o agenciamento orquestrado pela "comunidade internacional". 
         O dinheiro de ONGs, Estados, bancos e agências internacionais compram e abastecem as elites tradicionais e as novas elites que se formam como lideranças comunitárias e políticas. 
         Ao mesmo tempo, militares de países vizinhos provém ordem, pacificando revoltas e contestações.

         pacificação possibilita a disseminação do trabalho de ONGs internacionais e locais, a ampliação das ações de Estado, a aplicação de investimentos que treinem capital humano e implantem infraestrutura para a dinamização capitalista, a organização de eleições democráticas com monitoramento internacional, a contenção de terrorismos e a continuidade da extração de lucratividades com os ilegalismos transterritoriais. 

         Essa é a fórmula aplicada no Haiti, desde 2004, e em países vizinhos do Mali, como o Chade, a Costa do Marfim, o Sudão e a Libéria. 
         No Mali, a "tropa de choque" é francesa e já se sinaliza que o gerenciamento posterior à pacificação será dos vizinhos da ECOWAS com a fiscalização da ONU e a supervisão – e possível nova ação militar pontual – da França. 
         Nesse emergente dispositivo ecopolítico para o governo do planeta, potências mundiais e "países emergentes" se complementam alinhados na condução de condutas e no gerenciamento de territórios, fluxos e populações com a colaboração e complementaridade de ONGs, empresas, organismos multilaterais, além da adesão ativa e participante dos que recebem as missões.

         Esse modo de pacificar e gerenciar regiões e países inteiros não é uma mera atualização do colonialismo, tampouco se resume ao intervencionismo militar imperialista. 
  Não há "centro e periferia", mas exploração com participação, colaboração e responsabilidade compartilhada que diluem as distinções entre "global" e "local".

         O Mali é o Haiti é o Sudão é a Costa do Marfim é a Libéria é o Chade é o Timor Leste é o Senegal é o Kosovo é a Mauritânia é a Somália é o Afeganistão é o Saara Ocidental.

         Cada qual considerado um empecilho para a livre circulação do capital e para a governamentalidade sobre os quais se ativam táticas desse novo dispositivo interessadas em 
                                                                                                                                  policiar pro-lon-ga-da-men-te. 
         E daí...
         A chamada intervenção no Mali é apenas um terminal desse dispositivo de governo do planeta: um dos seus momentos de exercício. 

         Sua eficácia, mais do que a pacificação local, está em reforçar, como destino final e incontornável, a democracia liberal, o Estado, a moral humanitarista, a democracia participativa, o capitalismo e a responsabilidade de proteger direitos, populações, regiões e a saúde do planeta.

         Quem transborda e não se conforma, em meio a isso tudo, resiste ao governo sobre si, fica atento ao redimensionamento das táticas de governo e nota quepacificações não operam só sobre o Mali ou o Haiti.

         Elas estão aqui e acolá, atravessando o mais ínfimo e o mais grandiloquente dos acontecimentos, pretendendo se impor a todos e a cada um.

         O dispositivo de segurança que emerge não é internacional ou doméstico: ele é planetário e transterritorial.

         E conta com a modorrenta crença cúmplice, cômoda e satisfeita no que aí está.

Nenhum comentário:

Postar um comentário