por Maurice
Blanchot
O leitor que avançar desprevenidamente nas primeiras linhas deste curto
texto de Maurice Blanchot poderá muito depressa aperceber-se do essencial. E o
essencial é: que há um mistério (não diria tanto: uma prega, uma dobra, uma
ruga, um estremecimento, uma convulsão) nesta escrita. Não se trata de coisas
escondidas, e por uma razão demasiado simples: não há onde esconder. Isto é,
aparentemente esta escrita não tem qualquer interioridade, não há nela um dentro
dela (nenhuma caverna, nenhum nicho, nenhum fundo falso, nenhuma cripta, nenhum
mapa da ilha) para ocultar seja o que for. Desenrola-se aos nossos olhos numa
transparência irrepreensível - e alguns foram ao ponto de fazer ouvir através
de um nome (Blanchot, blanche eau) a
brancura sem cor de uma água inverossimilmente pura. O mistério vem do modo
como se desenrola - demasiado claro, quase inocente, para ser verdade. Tão
claro, tão dócil, tão neutro, tão distraído de si mesmo, que por vezes nos
assusta. Não há drama nesta escrita. Ela é serena, de uma estranha serenidade,
porque parece dizer que atravessou a morte. E é talvez isso mesmo que se
inscreve no admirável título de uma das mais belas narrativas (mas: « Uma
narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais») deste século: La folie du jour. Por outras palavras, a
clareza do dia é de tal modo clara que essa claridade se aproxima, excessiva,
transbordante, imensa, da loucura. Porque esse texto começa num depois da morte
(que é também, reparem, um depois da vida):
«Não sou nem sábio nem ignorante. Conheci algumas alegrias. É muito pouco
dizer: vivo, e esta vida dá-me um grande prazer. Então, a morte? Quando morrer
(talvez daqui a nada) conhecerei um prazer imenso. Não falo do ante-gosto da
morte, que é insulso e muitas vezes desagradável. Sofrer é embrutecedor. Mas
tal é a verdade notável de que estou certo: sinto em viver um prazer sem
limites e terei ao morrer uma satisfação sem limites.» Atravessar a morte é
isto: suspender, no equilíbrio lúcido do dia, o prazer que fica, entre a morte
e a vida, no exterior impensável da sua conjunção.
É fundamentalmente daqui, deste lugar sem suporte, óbvio e desamparado,
que deriva a pregnância do enigma. Não sabemos nunca donde escreve Blanchot.
Mas rapidamente nos damos conta de que se não trata de um lugar identificável
nos atlas do conhecimento. Blanchot convoca-nos para uma pragmática insensata,
no sentido rigoroso de nos exigir aquilo que no mesmo lance nos subtrai. Isto
é, sentimos que é importante a determinação deste lugar, que é essencial
sabermos quem nele fala, em que data, circunstância, enredo histórico, e, no
entanto, apercebemo-nos de que esta importância está lá, vincada, sublinhada,
agravada, para tornar mais nítido o vazio de tais indicações, por outras
palavras, para mostrar que elas foram definitivamente rasuradas, num processo
de apagamento em que progressivamente se apagam as próprias marcas do processo.
Vejamos no concreto o funcionamento deste dispositivo (digamos que se
trata, no seu crepuscular esplendor, do «efeito Blanchot»). Neste texto,
inesperado (o silêncio de Blanchot nos últimos anos é tão espesso que dele já
só se pode esperar o inesperado), encontramos, na primeira linha, uma frase sem
verbo (o que imprime um tom, de apontamentos, restos, sinais de uma fadiga que
se opõe à elaboração de um ensaio segundo as regras do ensaísmo): «algumas
palavras pessoais». O que é fascinante
nestas breves palavras ditas pessoais é que elas introduzem um quadro em que se
traça, com uma alucinante precisão, a invisibilidade
das pessoas. Porque Blanchot, diz-nos, ficou sem relações pessoais com Michel Foucault. Mas que significa este «sem
relações pessoais»? Significa que nunca o
encontrou, excepto numa vez em que imagina tê-lo encontrado: na Sorbonne,
Maio de 68, na incerteza de Junho ou Julho (mas será isso o essencial? ou será
que o essencial é mesmo essa vacilação?). E falou-lhe, não sabemos se Blanchot
conhecia Foucault suficientemente para o reconhecer, mas podemos supor que o reconheceu num desconhecido: dizem a Blanchot que afinal Foucault
não estava na Sorbonne, estaria no estrangeiro (ou talvez mais longe, na
distância do demasiado perto: na própria estranheza de quem está exposto à
loucura do dia, excessivamente iluminado pela evidência de estar), e o próprio
Blanchot se interrogava: mas porque é que Foucault não está aqui? (ou, porque o
tempo interfere na estrutura da frase: porque é que Foucault não estava ali?). O enigma formula-se, não por uma
explicação geográfica (Foucault não está no estrangeiro), que é anulada pela
«ingénua» anotação de que «até os longínquos japoneses lá estavam»), mas por
algo que pertence a outra ordem, a ordem em que (como na escrita de Blanchot) algo se reserva na presença,
distanciando-a de si mesma, tornando-a deliberadamente imprópria, ou anónima
sob a mancha explícita dos nomes: não é Foucault que está no estrangeiro, é o estrangeiro que atravessa Foucault
(o estrangeiro - como uma falha, uma culpa, uma fragilidade íntima, uma loucura
secreta).
Algumas palavras pessoais. Não sei quem é Blanchot. Quando o comecei a
ler, já ele era, e eu começava a ser nos textos dele. O importante, contudo,
está neste «já ele ser», porque desde sempre (ou, para sermos mais
rigorosamente imprecisos: desde esse momento indeterminável em que o li pela
primeira vez), o facto de ele ser correspondia, pelo menos para mim,
a ele deixar-se ser e deixar de ser. Deixar-se ser, isto é,
deixar que alguma coisa de si exista partilhável pelos outros, mas não fazer
desta existência nenhum acto voluntário, nenhum projecto, nenhuma
intencionalidade precisa - apenas um abandono, um desapego, uma distracção
(mas: «sinto em viver um prazer sem limites»). Simultaneamente, deixar de ser,
para Blanchot, é um movimento incessante de passar para a margem da sombra, da
invisibilidade, da imensa noite do mundo, numa queda horizontal, deslizante e
serena, clandestina e desdramatizada, por uma metódica eliminação dos sinais,
cicatrizes, restos, despojos, feridas visíveis, até ficar, espectral, fosforescente,
a moldura do nada (e: «terei ao morrer uma satisfação sem limites»). Talvez o
decisivo esteja nesta indicação de «sem limites», que pode querer dizer que o
movimento se faz para além de todos os limites, mas significa também que o
movimento indiferencia os limites entre a vida e a morte, criando um espaço de
indiferenciação que (só ele) permite pensar a diferença que o ilimita. No
sentido exacto em que
Blanchot nos previne de que há coisas que só são pensáveis
através do desejo de as pensarmos.
Mas não saber quem é Blanchot começa por ser não saber que rosto assume
na claridade de cada dia. De certo modo, ninguém o viu. Os que falam dizem
apenas que o entreviram (ou, noutros casos mais repassados de intimidade,
entredizem apenas que o viram). Perguntei a Georges Mounin e ele respondeu:
tive com ele uma polémica a propósito de René Char, tentei falar-lhe, mas na Nouvelle
Revue Française explicaram que era impossível, que nunca aparecia, que
os textos se trocavam através de uma caixa de correio, abandonados
misteriosamente, recolhidos misteriosamente, num comércio quase anónimo.
Perguntei a Duras, e ela respondeu: veio a minha casa muitos anos, estávamos
juntos muitas vezes, uma vez por semana, às vezes nunca, quando não era
possível, e depois deixou de ser possível, e ele não veio mais, a última vez
que o vi foi em Maio de 68, continuava como sempre foi, «alto e magro como um
deportado». Insinuo que poderia corresponder à personagem
de Stein em Détruire, dit-elle (no cinema: Michel Lonsdale), e a resposta
é: talvez. Pergunto a Jacques Derrida, e ele responde: lembro-me vagamente de o
ter visto uma vez, e depois escrevemo-nos, mas ele escreve-me sempre como se
fosse a última vez. Donde. não se trata apenas de um rosto de que não se
conhece fotografia, mas de um rosto que não imprime mais do que a própria
pressão de uma infinita ausência.
Sei que Blanchot, historicamente, vem de um lugar preciso, assinalável
em termos de reconstituição ideológica e literária, em textos que começam em
1931 (sobre Mauriac, sobre Gandhi, sobre Daniel Rops) e se desenvolvem, numa
impressionante proliferação de intervenções, em Combat, Aux
Écoutes, Journal des débats, Le Rempart, muitas delas situáveis
na recusa do marxismo, na crítica do socialismo, na defesa de um socialismo nacional
- isto é, na extrema-direita. Sei, depois, que há toda a ficção de Blanchot,
fascinante, inacessível, inapropriável (mesmo pelos melhores, como Sartre, que
com ela se confronta). Sei que há a amizade com Bataille (e um livro que a
inscreve: L'Amitié), a definição de um grupo (Duras, Mascolo), o abandono
inexplicado desse passado político, a manutenção da mesma exigência transferida
agora para a afirmação do direito à insubmissão face a De Gaulle e à guerra da
Argélia, e mais tarde a procura de «um comunismo sem herança», «comunismo além
do comunismo», na deriva apaixonada (e, contudo, desde sempre fatigada) de Maio
de 68 (e é aí, neste desejo de comunidade, que faz sentido o cenário do
encontro falhado com Foucault, no sentido rigorosamente freudiano de «acto
falhado», isto é, aquele que se realiza ao falhar: um encontro em Maio de 68 só
se poderia realizar num espaço generalizado de anonimato, ou, se preferirem, de
clamorosa perda de todos os nomes). Sei que Blanchot domina, numa invisível
soberania, toda a cultura francesa durante os últimos cinquenta anos (criando
apenas algumas zonas de atrito ou silêncio incomodado: com Barthes, por
exemplo, com Lacan), e ainda tudo o que de despudoradamente francês avança pelo
mundo (na Itália, onde os textos sobre ele se multiplicam, nos .U.A.,
com Paul de Man, leitor atento e cúmplice, ou ainda via Derrida, na obstinação
das suas «leituras» de Blanchot - não «análises», mas «parálises», paralisias
da leitura, como se fala em «paralíticos» num filme). Sei que há hoje em
relação a ele uma espécie de impaciência, como se saíssemos de um pesadelo,
como se este lugar não fosse habitável, mas avaliando que algo de absoluto se
perde, inexorável, neste imperioso desejo de habitação. E vemos um Todorov, que
cada vez se assume mais como o simplificador que sempre foi, a insinuar que o
espaço de Blanchot é de um totalitarismo romântico que é preciso romper
(veja-se Critique de la critique). Mas vemos outros, inqualificavelmente
melhores, a dizerem algo que os mais desatentos julgarão ser o mesmo: é o caso
de Jean-Louis Scheffer, em Art
Press , n.° 103 (quererá a data inverter alguma coisa:
Maio de 86?); quando escreve: «Já não amar Blanchot não é dever trair, é já não
poder escrever seja o que for que se assemelhe a Blanchot, e reconhecermos
através de nós próprios uma parte de dívida que nunca será inteiramente paga».
Este livro de Blanchot sobre Foucault tal como ele o imagina é um
projecto estranho, que se propõe como uma espécie de comentário, sabendo nós
que Foucault os detestava, e que Blanchot os não pratica. Se quisermos
alimentar a nossa capacidade de espanto, diremos que nesta aparente digressão texto a texto falta (como a fotografia
da mãe em La
Chambre claire de Barthes) a referência ao
texto essencial: Les mots et les choses, sobre o qual Blanchot passa sem nada
dizer. Mas podemos anotar, com empenhada minúcia, o tracejado das frases mais
confidenciais: quando Blanchot nos diz «que ninguém gosta de se reconhecer,
estrangeiro, num espelho em que não avista o seu duplo, mas aquele que teria
gostado de ser»; quando define Foucault como «um homem em perigo», «solitário,
secreto», e, no final do capítulo (tão reduzido e enigmático como todos os
outros) intitulado «A íntima convicção», escreve (entre parênteses) uma verdadeira
defesa de Foucault; quando afirma que
a sua morte lhe foi «muito dolorosa»; quando assinala «uma experiência pessoal»
que terá modificado em Foucault
a sua relação com o tempo e a escrita: «um corpo sólido que o deixa de ser, uma
doença grave de que ele apenas tem o pressentimento, por fim a aproximação de
uma morte que o não conduz à angústia, mas a uma surpreendente e nova
serenidade».
Todo este livro, tão conciso nas suas impressionantes praias de
silêncio, parece rodar em torno de um segredo, que é a forma expansiva do
pensamento, entendido como a ficção de uma ficção sobre o vazio definitivo das
narrativas («Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais»), como a
ficção dessa ficção que teceu, na sua essência histórica e filosófica, todo o
trabalho de Foucault: «Nunca escrevi senão ficções e tenho disso plenamente
consciência» (confidência de Foucault a Lucette Finas). De Blanchot não temos
senão um gesto terrivelmente simples: nem o comentário de uma obra que desafia
os comentários, nem a ficção de um encontro tão somente imaginado, mas um acto
de fidelidade - menos aos textos ou aos nomes do que ao segredo que os propaga.
EDUARDO PRADO COELHO
Nota - De Maurice Blanchot foi apenas traduzido em Portugal O
livro por vir, também pela Relógio d'Água, e numa iniciativa de 4 elementos editores, o texto A
loucura do dia (sendo a tradução assinada por Silva Carvalho).
ALGUMAS PALAVRAS PESSOAIS.
Para ser exacto, devo dizer que não tive
relações pessoais com Michel Foucautl. Nunca o encontrei, excepto uma vez, no
pátio da Sorbonne durante os acontecimentos de Maio de 68, talvez em Junho ou
Julho (mas dizem-me que ele não estava lá), e dirigi-lhe então algumas
palavras, ignorando ele quem lhe estava a falar (digam o que disserem os detractores
de Maio, foi um belo momento esse, em que cada um podia falar com qualquer
outro, anónimo, impessoal, homem entre os homens, acolhido sem outra
justificação para além da de ser um outro homem). É verdade que durante esses
acontecimentos extraordinários, eu dizia muitas vezes: Mas porque é que
Foucault aqui não está? - restituindo-lhe assim o seu poder de atracção e
considerando o lugar vazio que ele deveria ter poupado. Ao que me respondiam
com uma observação que não me satisfazia: ele continua um pouco reservado; ou
então: está no estrangeiro. Mas, precisamente, muitos estrangeiros, até remotos
japoneses, estavam lá. Foi assim, talvez, que perdemos a ocasião de nos
encontrarmos.
Todavia, o seu primeiro livro, que lhe trouxe renome, fora-me dado a conhecer,
quando o texto não passava ainda de um manuscrito quase sem nome. Era Roger
Caillois quem o tinha e o propôs a alguns de nós. Recordo o papel de Caillois,
porque me parece ter permanecido ignorado. O próprio Caillois nem sempre era
bem aceite pelos especialistas oficiais. Interessava-se
por demasiadas coisas. Conservador, inovador, sempre um pouco à parte, não
entrava na sociedade dos que possuem um saber reconhecido. Por fim, forjara um
estilo belíssimo, por vezes até ao excesso, a tal ponto que se julgou destinado
a zelar - feroz zelador - pela correcção da língua francesa. O estilo de
Foucault, pelo seu esplendor e pela sua precisão, qualidades aparentemente
contraditórias, deixou-o perplexo. Não sabia se aquele grande estilo barroco
não arruinaria o saber singular cujos múltiplos caracteres, filosófico,
sociológico, histórico, o embaraçavam e exaltavam. Talvez visse em Foucault um
outro ele próprio que lhe furtaria a herança. Ninguém gosta de se reconhecer,
estranho, num espelho onde não distingue o seu duplo, mas aquele que gostaria
de ter sido.
O primeiro livro de Foucault (admitamos que se trata do primeiro)
valorizou com a literatura um tipo de relações que mais tarde seria preciso
corrigir. A palavra «loucura» foi uma fonte de equívocos. Foucault só
indirectamente tratava da loucura: ocupava-se antes de mais desse poder de
exclusão que, um belo ou triste dia, foi instaurado por um simples decreto
administrativo, decisão que, dividindo a sociedade, não em bons e maus, mas em
sensatos e insensatos, permitiu reconhecer as impurezas da razão e as relações
ambíguas que o poder - aqui, um poder soberano - iria manter com o que de mais
bem partilhado há, enquanto não deixava de dar a entender que não lhe seria tão
fácil reinar indivisamente. O importante é, com efeito, a divisão; o importante
é a exclusão - e não o que se exclui ou divide. Afinal, que estranheza a da
história, se o que a faz oscilar é um simples decreto e não grandes batalhas ou
importantes lutas de monarcas. Além disso, esta divisão que de modo algum é um
acto de maldade, destinado a punir seres perigosos porque definitivamente
associais (ociosos, pobres,
depravados, profanadores, extravagantes e, para concluir, os cabeças de vento
ou os loucos) irá, por uma ambiguidade mais temível ainda, ocupar-se deles,
prestando-lhes cuidados, alimentos, bênçãos. Impedir os doentes de morrerem na
rua, os pobres de se tornarem criminosos para sobreviverem, os depravados de
corromperem os piedosos dando-lhes o espectáculo e o gosto dos maus costumes,
tudo isto não é detestável, mas assinala um progresso, o ponto de partida de
uma mudança que os melhores mestres acharão excelente.
Assim, a partir do seu primeiro livro, Foucault trata de problemas que
desde sempre pertenceram à filosofia (razão, desrazão), mas trata-os na
perspectiva da história e da sociolo gia, privilegiando, ao mesmo tempo, na
história, uma certa descontinuidade (um pequeno acontecimento faz grande
diferença), sem fazer dessa descontinuidade uma ruptura (antes dos loucos, há
os leprosos, e é nos lugares - lugares ao mesmo tempo materiais e espirituais -
deixados vagos pelo desaparecimento dos leprosos que se instalam os refúgios de
outros excluídos, enquanto esta necessidade de excluir se reitera sob formas
surpreendentes que ora a revelam, ora a dissimulam).
UM HOMEM EM PERIGO
Talvez devêssemos perguntar porque é que a palavra «loucura», mesmo em
Foucault, conservou uma força de interrogação tão considerável. Pelo menos por
duas vezes, Foucault censurar-se-á por se ter deixado seduzir pela ideia de que
há uma profundidade da loucura, de que esta constituiria uma experiência
fundamental situada fora da história e da qual os poetas (os artistas) foram e
podem ser ainda as testemunhas, as vítimas ou os heróis. Se se tratou de um
erro, ter-lhe-á sido benéfico, na medida em que, através desse erro (e de
Nietzsche), tomou consciência do seu pouco gosto pela noção de profundidade, do
mesmo modo que desmascarará, nos discursos, os sentidos ocultos, os segredos
fascinantes, por outras palavras, os duplos e triplos fundos do sentido, os
quais, é certo, só podem ser vencidos mediante a desqualificação do próprio
sentido, bem como, nas palavras, do significado e até do significante.
Aqui,
direi que Foucault que, um dia, se proclamou por desafio um «optimista feliz»,
foi um homem em perigo e que, sem o exibir, teve um sentido agudo dos perigos a
que estamos expostos, perguntando a si próprio quais são os mais ameaçadores e
quais aqueles com que é possível contemporizar. Daí a importância que para ele
teve a noção de estratégia, e daí que se tenha confrontado com a ideia de que
teria podido, se assim tivesse decidido o acaso, vir a ser um homem de Estado
(um conselheiro político), como um escritor - termo que recusou sempre
com maior ou menor veemência e sinceridade – ou um puro filósofo, ou um
trabalhador não qualificado, podendo ser, portanto, não se sabe o quê ou não se
sabe quem.
O ADEUS AO ESTRUTURALISMO
Há pelo menos dois livros, um que
parece esotérico, o outro, brilhante, simples, arrebatador, ambos de feição
programática, que parecem abrir o futuro a um novo saber e que, na realidade,
são como testamentos onde se inscrevem promessas que não serão cumpridas, não
por negligência ou impotência, mas porque talvez não haja outra realização para
além da própria promessa, e ao formulá-la, Foucault esgote o seu interesse por
ela - é assim que geralmente ele faz os seus ajustes de contas, para se virar
depois para outros horizontes, sem com isso trair as suas exigências,
mascarando-as antes sob um aparente desdém. Foucault, na abundância da sua
escrita, é um ser silencioso - mais do que isso: fechado no silêncio quando o
interrogam, com boas ou más intenções, pedindo-lhe que se explique (há, porém,
excepções).
A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso marcam o período - o fim do período - em que Foucault ,
escritor que era, pretendeu pôr a descoberto práticas discursivas quase puras,
no sentido em que não remetiam senão para si próprias, para as suas regras de
formação, para o seu ponto de fixação, ainda que sem origem, para a sua
emergência, ainda que sem autor, para um trabalho de decifração que nada
revelaria de oculto. Testemunhas que não confessam, porque nada têm a dizer
para além do que foi dito. Escritos rebeldes a todo o comentário (ah, o horror
de Foucault pelo comentário). Domínios
autónomos, mas nem realmente independentes, nem imutáveis, uma vez que se
transformam incessantemente, como os átomos, ao mesmo tempo singulares e
múltiplos, se se quiser admitir que há multiplicidades que se não referem a
unidade alguma.
Mas, dir-se-á, Foucault, nesta aventura em que a linguística desempenha
o seu papel, não faz, com intenções que lhe são próprias, senão prolongar as
esperanças de um estruturalismo quase defunto. Seria necessário investigar (mas
eu estou em má posição para o fazer, porque me dou conta de que até aqui nunca
pronunciei, nem para o aprovar, nem para o desaprovar, o nome dessa disciplina
efémera, apesar da amizade que dedicava a alguns dos seus adeptos) porque é que
Foucault, sempre tão superior às suas próprias paixões, se encoleriza deveras
quando pretendem fazê-lo embarcar nesse barco já dirigido por capitães
ilustres. As razões são múltiplas. A mais simples (se assim podemos dizer), é
que ele pressente ainda no estruturalismo um sopro de transcendentalismo - pois
o que seriam, na realidade, essas leis formais
que regeriam toda a ciência, permanecendo alheias às vicissitudes da história
da qual, no entanto, dependem o seu aparecimento e o seu desaparecimento?
Mescla demasiado impura de a priori
histórico e de a priori formal.
Recordemos a frase vingadora de A Arqueologia do Saber, porque vale
a pena. «Nada seria, pois, mais agradável, mas nada mais inexacto, do que
conceber este a priori histórico como
um a priori formal, dotado, para
mais, de uma história: grande figura imóvel e vazia que um dia surgisse do
tempo, fizesse prevalecer sobre o pensamento dos homens uma tirania à qual
ninguém poderia escapar e depois desaparecesse de repente num eclipse que
nenhum acontecimento tivesse preludiado: transcendental sincopado, jogos de
formas intermitentes. O a priori
formal e o a priori histórico não são
nem do mesmo
nível nem da mesma natureza: se se cruzam, é porque ocupam duas dimensões
diferentes.» E recorde-se ainda o diálogo final do mesmo livro em que os dois
Michel se enfrentam num duelo de morte sem que saibamos qual receberá o golpe
mortal: «Ao longo de todo o livro, diz um deles, você tentou, o melhor que
pôde, demarcar-se do “estruturalismo”...» Resposta do outro, não sem
importância: «Não neguei a história (enquanto que o estruturalismo parece ter
como traço essencial ignorá-la), mantive
em suspenso a categoria geral e vazia da mudança para mostrar transformações de
níveis diferentes, recuso um modelo uniforme de temporalização.»
Porquê esta discussão tão áspera e talvez tão inútil (pelo menos para
aqueles que não vêem o que está em jogo)? É que o arquivista que Foucault quer
ser e o estruturalista que não quer ser aceitam um e outro (momentaneamente)
trabalhar, na aparência, apenas pela linguagem (ou discurso) de que filósofos,
linguistas, antropólogos, críticos literários pretendem extrair leis formais
(portanto, a-históricas), deixando-a encarnar um transcendentalismo vicioso que
Heidegger nos recordará em duas frases demasiado simples: a linguagem não tem que
ser fundada, porque é ela que funda.
A EXIGÊNCIA DA DESCONTINUIDADE
Ora, Foucault, quando se ocupa do discurso, não relera a história, mas
distingue nela descontinuidades, discrições, de modo nenhum universais, mas
locais, que não supõem que, subjacente, persista uma grande narrativa
silenciosa, um rumor contínuo, imenso e ilimitado que seria necessário reprimir
(ou recalcar), à maneira de um não-dito misterioso ou de não-pensado que não só
estaria à espera de se desforrar como trabalharia obscuramente o pensamento,
tornando-o eternamente duvidoso. Por outras palavras, Foucault, a quem a
psicanálise nunca apaixonou, está ainda menos disposto a considerar um grande
inconsciente colectivo, alicerce de todo o discurso e de toda a história,
espécie de «providéncia pré-discursiva» cujas instâncias soberanas, talvez
criadoras, talvez destruidoras, já só teríamos que transformar em significações
pessoais.
O certo é que Foucault, tentando afastar a interpretação («o sentido
oculto»), a originalidade (o desvelar de um começo único, a Ursprung heideggeriana) e, por fim,
aquilo a que ele próprio chama «a soberania do significante» (o imperialismo do
fonema, do som, do tom, ou mesmo do ritmo), trabalha, todavia, ainda sobre o
discurso para isolar neste uma forma a que dará o nome sem prestígio de enunciado: termo a propó-
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sito
do qual teremos que dizer que lhe é mais fácil designar o que exclui do que o
que afirma (enuncia), na sua tautologia quase heróica. Leia-se e releia-se A
Arqueologia do Saber (título já de si perigoso, porque evoca aquilo que
se deve evitar, o logos da archê ou a palavra da origem), e
ficar-se-á surpreendido ao encontrar muitas das fórmulas da teologia negativa,
aplicando Foucault todo o seu talento a descrever em frases sublimes aquilo que
rejeita: «Não é isto... também não é isto... não é, ainda, isto...», de tal
modo que não lhe fica quase nada a dizer para valorizar o que, precisamente,
recusa a ideia de «valor»: o enunciado raro, singular, que não precisa senão de
ser descrito ou simplesmente reescrito, apenas em relação com as suas condições
externas de possibilidade (o lado de
fora, a exterioridade) dando assim lugar a séries aleatórias que de tempos a
tempos acontecem.
Como estamos longe da profusão de frases do discurso corrente, frases
que não param de se engendrar, por um processo cumulativo que a contradição não
detém, mas, pelo contrário, provoca até um além vertiginoso. Naturalmente, o
enunciado enigmático, na raridade que lhe advém em parte de só poder ser
positivo, sem cogito para que remeta,
sem autor único que o autentique, livre de todo o contexto que ajudaria a
situá-lo num conjunto (de que extraísse o seu ou os seus diversos sentidos), é
já, por si próprio, múltiplo ou, mais exactamente, multiplicidade não unitária:
é serial, porque a série é o seu modo de se agrupar, tendo por essência ou
propriedade o poder repetir-se (quer dizer, segundo Sartre, a relação mais
desprovida de significação), constituindo ao mesmo tempo, com outras séries,
uma interpenetração ou um deslocamento de singularidades que, ora, quando se
imobilizam, formam quadro, ora, pelas
suas relações sucessivas de simultaneidade, se inscrevem em fragmentos ao mesmo
tempo aleatórios e necessários, comparáveis, com toda a evidência, às
tentativas perversas (diz Thomas Mann) da música serial.
SABER, PODER, VERDADE?
Do mesmo modo, quando se atribui apressadamente a Foucault uma
desconfiança quase nihilista perante aquilo a que ele chama vontade de verdade
(ou vontade de saber sério) ou ainda a recusa suspeitosa da ideia de razão
(dotada de valor universal), creio que se desconhece a complexidade das suas
preocupações. A vontade de verdade, com certeza que sim, mas qual o seu preço?
Quais as suas máscaras? Que exigências politicas se dissimulam sob esta busca
altamente respeitável? E estas perguntas impõem-se, tanto mais que Foucault,
menos por um instinto diabólico do que pelo destino dos tempos modernos (que é
também o seu próprio destino), se sente condenado a não dar atenção senão a
ciências duvidosas, ciências de que ele não gosta, suspeitas já pelo seu nome
extravagante de «ciências humanas» (é nas ciências humanas que pensa quando
anuncia, com uma espécie de malevolência jocosa, o desaparecimento próximo ou
provável do homem que tanto nos preocupa, enquanto fazemos tudo para o tornar,
a partir de hoje mesmo, póstumo, através da nossa curiosidade que o reduz a não
ser mais do que um simples objecto de
inquérito, de estatística ou até de sondagens). A verdade custa caro. Não
precisamos de lembrar Nietzsche para nos certificarmos disso. É assim que,
desde A Arqueologia do Saber, em que parecemos comprazer-nos na
ilusão da autonomia do discurso (ilusão que encantaria talvez a literatura e a
arte), se anunciam as múltiplas
relações do saber e do poder, e a obrigação de nos tornarmos conscientes dos
efeitos políticos que, neste ou naquele momento da história, produz o antigo
desejo de destrinçar o verdadeiro do falso. Saber, poder, verdade? Razão,
exclusão, repressão? É preciso conhecer Foucault muito mal para se julgar que
ele se contenta com conceitos tão simples ou ligações tão fáceis. Se dissermos
que a verdade é ela própria um poder, em nada teremos avançado, porque o poder
é um termo cómodo na polémica, mas quase inutilizável enquanto a análise não
lhe tiver retirado o seu carácter de pau para toda a obra.
Quanto à razão, não se trata de a fazer ceder o lugar à desrazão. O que
nos ameaça, tal como o que nos serve, é menos a razão do que as formas diversas
da racionalidade, uma acumulação acelerada de dispositivos racionais, uma
vertigem lógica de racionalizações que informam e são utilizadas tanto no
sistema penal como no sistema hospitalar ou no sistema de ensino. E Foucault
dá-nos, para a inscrevermos na nossa memória, esta sentença de oráculo: «A
racionalidade do abominável é um facto da história contemporânea. Mas nem por
isso o irracional adquire direitos imprescritíveis.»
DA SUJEIÇÃO AO SUJEITO
É sabido que o livro Vigiar e Punir marca a passagem do
estudo limitado às práticas discursivas ao estudo das práticas sociais que
constituem o seu pano de fundo. É a emergência da política no trabalho e na
vida de Foucault. De certo modo, as preocupações continuam a ser as mesmas. Do
grande encerramento às formas variadas da impossível prisão, vai apenas um
passo, e não é de um saltus que se
trata. Mas o encadeamento (palavra apropriada) não é o mesmo. O encerramento é
o princípio arqueológico da ciência. médica (de resto Foucault nunca perderá de
vista este saber imperfeito que o obceca, que descobrirá até entre os gregos e
que acabará por se vingar dele abandonando-o, impotente, ao seu destino). O
sistema penal que vai do segredo das torturas e do espectáculo das execuções à
utilização requintada das «prisões-modelo» onde se podem obter diplomas
universitários do mais alto grau, enquanto outros recorrerão à vida satisfeita
dos tranquilizantes, remete-nos para as exigências ambíguas e às imposições
perversas de um progressismo todavia inelutável e até benéfico. O homem que
aprende a saber de onde vem pode maravilhar-se por ser o que é, ou então,
recordando as distorções que sofreu, ceder a um desencanto que o imobilizará, a
menos que, à maneira de Nietzsche, se valha do humor genealógico ou da
desenvoltura dos jogos críticos.
Como se aprendeu a lutar contra a peste? Não apenas por meio do
isolamento dos pestíferos, mas através da delimitação estrita do espaço da
desgraça, pela invenção de uma tecnologia de ordenamento de que mais tarde a
administração das cidades beneficiará, e, finalmente, por meio de levantamentos
minuciosos, que, desaparecida a peste, servirão para impedir a vagabundagem (o
direito de ir e vir dos «pequenos») até ao ponto de suprimir o direito de
desaparecer que ainda hoje nos é recusado de uma maneira ou de outra. Se a
peste de Tebas tem por origem o incesto de Édipo, pode considerar-se que,
genealogicamente, a glória da psicanálise é apenas um efeito longínquo da peste
devastadora. Daí o dito famoso atribuído a Freud ao chegar à América, mas a
propósito do qual podemos perguntar se não significaria que, estando peste e
psicanálise originalmente e nosologicamente ligadas, podiam por isso trocar-se
simbolicamente. Em todo o caso, Foucault foi tentado a ir mais longe. Reconhece
ou julga reconhecer a origem do «estruturalismo» na necessidade, quando a peste
se difunde, de cartografar o espaço (físico e intelectual), com o fim de
determinar bem, segundo as regras de uma agrimensura rigorosa, as sinistras
regiões da doença - obrigação à qual, tanto nos campos de manobras militares
como, mais tarde, na escola ou no hospital, os corpos humanos aprendem a
sujeitar-se, tornando-se dóceis e funcionando como unidades permutáveis: «Na
disciplina, os elementos são intercambiáveis, uma vez que cada um deles se
define pelo lugar que ocupa na série, e pelo intervalo que o separa dos
outros.»
A quadrícula rigorosa que obriga o corpo a deixar-se revistar, desarticular
e, se necessário, reconstituir, terá a sua realização na utopia de Bentham, no
exemplar Panóptico, que mostra o poder absoluto de uma visibilidade total. (É
exactamente a ficção de Orwell.) Tal visibilidade (aquela a que Hugo expõe Caim
até à cova) tem a vantagem trágica de tornar inútil a violência física a que de
outro modo o corpo deveria oferecer-se. Mas há mais. A vigilância - o facto de
se estar sob vigilância - que não é apenas a que exercem os guardas, mas
que se identifica com a condição humana quando se pretende torná-la ao mesmo
tempo sensata (conforme às regras), produtiva (e, portanto, útil), vai dar
lugar a todas as formas de observação, de investigação, de experimentação sem
as quais não haveria nenhuma ciência verdadeira. Nenhum poder, também? Isso é
já menos certo, porque a sabedoria tem origens obscuras que devem ser
procuradas mais do lado do dispêndio do que do uso, para não falar de
princípios organizadores ainda mais nefastos, quando perpetuam o simbolismo do
sangue, a que o racismo de hoje continua a referir-se.
Verificado e denunciado isto, ficamos com a impressão que, de algum
modo, Foucault quase preferiria as épocas abertamente bárbaras em que os
suplícios nada dissimulam da sua atrocidade, quando os crimes, tendo atentado
contra a integridade do Soberano, estabelecem relações singulares entre o Alto
e o Baixo, de maneira que o criminoso, enquanto expia espectacularmente a
quebra do interdito, guarda consigo o esplendor de actos que o puseram à margem
da humanidade. (Assim Gilles de Rais; assim os acusados em O Processo de
Kafka.) A prova é que as execuções capitais serão não só ocasião de festas com
que todo o povo se regozija, porque simbolizam a supressão das leis e dos
hábitos (vive-se então a excepção), mas provocam por vezes revoltas, quer dizer
dão ao povo a ideia de que também ele tem o direito de romper por meio das
rebeliões as ordens que lhe impõe um rei momentaneamente diminuído. Por isso,
não é por bondade que se torna mais discreta a sorte dos condenados, como não é
também por brandura que se deixam intactos os corpos culpados, atacando agora
as «almas e os espíritos» a fim de os corrigir ou reamestrar. Sem dúvida, nem
tudo o que reforma a condição carcerária é detestável, mas a verdade é que
ameaça enganar-nos acerca das razões que tornaram desejáveis ou bem-vindos tais
melhoramentos.
O século XVIII parece dar-nos o gosto de novas liberdades – e isso é
excelente. Todavia, o fundamento dessas liberdades, o seu «subsolo» (diz
Foucault), não muda, pois continua a residir numa sociedade disciplinar cujos
poderes de controlo se dissimulam ao mesmo tempo que se multiplicam.[1]
Somos cada vez mais subjugados. Dessa sujeição,
agora, em vez de grosseira, delicada, extraímos a consequência gloriosa de
sermos sujeitos e sujeitos livres,
capazes de transformar em saberes os modos mais variados de um poder mentiroso,
na medida em que devemos esquecer doravante a sua transcendência, substituindo
à lei de origem divina as regras diversas e os procedimentos razoáveis que, quando
nos tivermos cansado deles, nos hão-de parecer resultados de uma burocracia,
sem dúvida humana, mas monstruosa (não esqueçamos que Kafka, que parece
descrever as formas mais cruéis da burocracia, se inclina também diante dela
vendo-a como a estranheza de uma força mística, só que um tanto abastarda).
A CONVICÇÃO ÍNTIMA
Se quisermos ver como, na realidade, a nossa justiça tem necessidade de
um subsolo arcaico, basta que recordemos o papel que nela desempenha a noção
quase incompreensível de «convicção íntima». A nossa interioridade não só
continua sagrada, como não deixou ainda de fazer de nós os descendentes do
Vigário saboiardo. E a análise da consciência moral (das Gewissen) em Heidegger fundamenta-se ainda nesta herança
aristocrática: no interior de nós, há uma voz que se torna sentença, afirmação
absoluta. Algo que é dito, e esse dizer primeiro, subtraído a todo o diálogo, é
palavra de justiça que ninguém tem o direito de contestar.
Que concluir daqui? Quanto à prisão, acontece a Foucault afirmar que
ela é de origem recente (mas o ergástulo não data apenas de ontem). Ou então, e
isso importa-lhe mais, observa que a reforma da prisão é tão antiga como a sua
instituição. O que, nalgum canto do seu espírito, significa a impossível
necessidade de reformar o que não é reformável. E depois (acrescento eu) a
organização monástica não mostrará a excelência do isolamento, a maravilha que
é o face a face consigo próprio (ou com Deus), o benefício superior que vem do
silêncio, meio propicio onde se formam os maiores santos e forjam os criminosos
mais empedernidos? Objecção: uns consentem, os outros sofrem. Mas será a
diferença tão grande, e não haverá ainda mais regras nos conventos do que no
espaço celular? E, finalmente,
os únicos prisioneiros para toda a vida não serão os que pronunciaram votos
perpétuos? Céu, inferno, a distância é, ora ínfima, ora infinita. O que é
certo, pelo menos, é que, tal como Foucault não põe em causa, em si própria, a
razão, mas sim o perigo de certas racionalidades ou racionalizações, também não
se interessa pelo conceito de poder em geral, mas sim pelas relações de poder,
pela sua formação, pela sua especificidade, pelo seu accionamento. Quando há
violência, tudo é claro, mas quando há adesão, talvez haja apenas o efeito de uma
violência interior que se esconde no seio do consentimento mais seguro. (Quanto
se censurou Foucault por negligenciar, nas suas análises dos poderes, a
importância de um poder central e fundamental! Daí se deduziu aquilo a que se
chama o seu «apolitismo», a sua recusa de um combate que poderia ser um dia
decisivo (a luta final), a ausência nele de todo o projecto de reforma
universal. Mas são passadas em silêncio não só as suas lutas imediatas, como a
sua decisão de não intervir em «grandes causas» que seriam apenas o álibi
cómodo da servidão quotidiana).
QUEM É EU HOJE?
A posição, no meu entender, difícil, e também privilegiada, de
Foucault, poderia definir-se assim: poderemos saber onde ele se situa, uma vez
que não se reconhece (estaria num perpétuo slalom
entre a filosofia tradicional e o abandono de todo o espírito de seriedade) nem
sociólogo, nem historiador, nem estruturalista, nem pensador ou metafísico?
Quando procede a análises minuciosas que se referem à ciência médica, à prática
penal moderna, aos usos extremamente variados dos micropoderes, ao investimento
disciplinar dos corpos ou, por fim, ao imenso domínio que vai da confissão dos
culpados à confissão dos justos ou aos monólogos sem fim da psicanálise,
perguntamo-nos se ele escolhe apenas certos factos com valor de paradigmas ou se reconstitui
continuidades históricas de onde se destacariam as variadas formas do saber
humano ou se, finalmente (como alguns o acusam de fazer) se passeia, como que
ao acaso, no campo dos acontecimentos conhecidos ou, de preferência,
desconhecidos, escolhendo-os, na realidade, habilmente, a fim de nos lembrar
que todo o conhecimento objectivo é duvidoso, do mesmo modo que seriam
ilusórias as pretensões da subjectividade. Não foi ele próprio quem confiou a
Lucette Finas: «Nunca escrevi senão ficções e estou perfeitamente consciente
disso?» Por outras palavras, sou um autor que redige fábulas das quais seria
imprudente esperar quaisquer moralidades. Mas Foucault não seria Foucault se
não corrigisse ou não
matizasse, acto contínuo: «Mas creio que é possível fazer funcionar ficções no
interior da verdade.» Assim, a noção de verdade não é de modo algum posta de
lado, como não se perde de vista a ideia de sujeito ou a interrogação acerca da
constituição do homem como sujeito. Tenho a certeza de que o notável livro de
Claude Morali: Quem é eu hoje? não o teria deixado indiferente.[2]
SOCIEDADE DE SANGUE
SOCIEDADE DE SABER
No entanto, o regresso de Foucault a certas questões tradicionais
(ainda que as suas respostas continuem a ser genealógicas) foi precipitado por
circunstâncias que não pretendo elucidar porque me parecem de ordem privada, e,
além disso, de nada serviria conhecê-las. Ele próprio se explicou, sem ser
absolutamente convincente, acerca do longo silêncio que se seguiu ao primeiro
volume da História da Sexualidade, essa Vontade de Saber que é
talvez uma das suas obras mais atraentes pelo seu fulgor, o seu estilo acerado,
as suas afirmações que transtornam as ideias comuns. Livro que está na linha
directa de Vigiar e Punir. Nunca Foucault se explicou tão claramente sobre
o Poder que não se exerce a partir de um Lugar único e soberano, mas vem de
baixo, das profundezas do corpo social, derivando de forças locais, móveis e
transitórias, por vezes minúsculas, até se ordenar em homogeneidades poderosas
que certas orientações convergentes tornam hegemónicas. Mas porquê este
regresso a uma meditação sobre o Poder, quando o novo tema das suas reflexões é
a detecção dos dispositivos da sexualidade? Por muitas razões, das quais, um
pouco arbitrariamente, só reterei duas: é que, confirmando as suas análises do
Poder, Foucault entende recusar as pretensões da Lei que, embora vigiando, ou mesmo interditando certas
manifestações sexuais, continua a afirmar-se como essencialmente constitutiva
do Desejo. É, além disso, que a sexualidade, tal como ele a entende,
ou, pelo menos, a importância esmiuçadora que hoje lhe é concedida (um hoje que
remonta longe), marca a passagem de uma sociedade de sangue, ou caracterizada
pela simbólica do sangue, a uma sociedade de saber, de norma e de disciplina.
Sociedade de sangue: o que quer dizer glorificação da guerra, soberania da
morte, apologia dos suplícios e, por fim, grandeza e honra do crime. O Poder
fala então essencialmente por meio do sangue - daí o valor das linhagens (ter
um sangue nobre e puro, não temer derramá-lo, e ao mesmo tempo interdição das
misturas aventurosas do sangue, daí as adaptações da lei do incesto ou até o
apelo ao incesto em virtude do seu próprio horror e interdição). Mas quando o
Poder renuncia a ligar-se apenas aos prestígios do sangue e da sanguinidade
(também sob a influência da Igreja, que se vai aproveitar disso, alterando as
regras da aliança - por exemplo, supressão do levirato), a «sexualidade»
assumirá uma preponderância que a associará, não já à Lei, mas à norma, não já
aos direitos dos senhores, mas ao futuro da espécie - a vida - sob o controlo
de um saber que pretende tudo determinar e tudo regulamentar.
Passagem, portanto, da «sanguinidade» à «sexualidade». De que Sade é
testemunha ambígua e demonstrador fabuloso. Só lhe importa o prazer, só contam
a ordem da fruição e os direitos ilimitados da volúpia. O sexo é o único Bem, e
o Bem recusa toda a regra, toda a norma, excepto (o que é importante) a que
aviva o prazer por meio da satisfação de a violar, ainda que ao preço da morte
dos outros ou da morte exaltante de si próprio - morte supremamente feliz, sem
remorsos nem preocupações. Foucault diz então: «O sangue absorveu o sexo.» Conclusão
que, todavia, me espanta, porque Sade, esse aristocrata que, mais ainda na obra
do que na vida, apenas tem em conta a aristocracia para dela extrair prazeres,
escarnecendo-a,
estabelece, num grau inultrapassável, a soberania do sexo. Se, nos seus sonhos
ou nos seus fantasmas, se compraz em matar e acumular as vitimas com o fim de
recusar os limites que a sociedade, ou até a natureza, imporiam aos seus
desejos, se se compraz no sangue (mas menos que no esperma, ou, como ele diz,
no «foder»), não se preocupa de maneira alguma com manter uma casta de sangue
puro ou de sangue superior. É exactamente o contrário: a Sociedade dos Amigos
do Crime não se liga pela aspiração a um eugenismo irrisório; libertar-se das
leis oficiais, e unir-se por meio de regras secretas, tal é a fria paixão que
dá a primazia ao sexo e não ao sangue. Moral que revoga, portanto, ou julga
revogar, os fantasmas do passado. De modo que se é tentado a dizer que, com
Sade, o sexo toma o Poder, o que naturalmente significa também que doravante o
Poder, e o Poder político, irão exercer-se insidiosamente, utilizando os
dispositivos da sexualidade.
O RACISMO ASSASSINO
É ao interrogar-se sobre a passagem de uma sociedade de sangue a uma
sociedade em que o sexo impõe a sua lei e a lei se serve do sexo para se impor
que Foucault se vê, uma vez mais, confrontado com o que continua a ser, na
nossa memória, a maior catástrofe e o maior horror dos tempos modernos. «O
nazismo, diz ele, foi a combinação mais ingénua e mais astuciosa - e uma coisa
porque outra - dos fantasmas do sangue com o paroxismo disciplinar.» O sangue,
sem dúvida; a superioridade através da exaltação de um sangue puro de toda a
mescla (fantasma biológico que dissimula o direito à dominação concedido a uma
hipotética sociedade indo-europeia, cuja manifestação mais alta seria a
sociedade germânica), a obrigação subsequente de salvar essa sociedade pura
suprimindo a restante humanidade e, em primeiro lugar, a herança indestrutível
do povo da Bíblia. A realização do genocidio tem necessidade do Poder sob todas
as suas formas, incluindo as novas formas de um biopoder cujas estratégias
impõem um ideal de regularidade, de método, de fria determinação. Os homens são
fracos. Só fazem o pior ignorando-o até que se lhe habituem e se achem
justificados pela «grandeza» de urna disciplina rigorosa e as ordens de um guia
incontestável. Mas, na história hitleriana, as extravagâncias sexuais
desempenham um papel menor e rapidamente suprimido. A homossexualidade,
expressão de camaradagem guerreira, apenas fornece a Hitler um pré-texto
para destruir os grupos insubmissos, que, embora ao seu serviço,
indisciplinados, viam ainda vestígios do ideal burguês na obediência ascética,
ainda que a um regime que se afirmava acima de toda a lei, porque era ele a
própria lei.
Foucault pensa que, para impedir a proliferação dos mecanismos de poder
de que o racismo assassino iria abusar monstruosamente (controlando tudo, até o
quotidiano da sexualidade), Freud pressentiu a necessidade de voltar atrás, o
que o conduziu, através de um instinto seguro que fez dele o adversário
privilegiado do fascismo, a restaurar a antiga lei da aliança, a «da
consanguinidade proibida, do Pai-Soberano»: numa palavra, dava à «Lei», em
detrimento da norma, os seus direitos anteriores, mas sem com isso sacralizar o
interdito, quer dizer, o estatuto repressivo, do qual lhe importava apenas
desmontar o mecanismo ou mostrar a origem (censura, recalcamento, super-eu,
etc.). Daí o carácter ambíguo da psicanálise: por um lado, faz-nos descobrir ou
redescobrir a importância da sexualidade e das suas «anomalias», por outro,
convoca em torno do Desejo - e para o fundar, mais ainda do que para o explicar
- toda a antiga ordem da aliança, e assim não caminha no sentido da modernidade,
constituindo até uma espécie de formidável anacronismo - aquilo a que Foucault
chamará uma «retroversão histórica», denominação cujo perigo verá, porque
parece torná-lo favorável a um progressismo histórico e até a um historicismo
de que se encontra muito longe.
A INSISTÊNCIA EM FALAR DO SEXO
Talvez seja preciso dizer agora que, nesta obra sobre a História
da Sexualidade, Foucault não dirige contra a psicanálise um combate que
seria irrisório. Mas não esconde a sua tendência a ver nela apenas o culminar
de um processo estreitamente associado à história cristã. A confissão, a
declaração de culpa, os exames de consciência, as meditações sobre os desvarios
da carne põem no centro da existência a importância do sexo e, por fim,
desenvolvem as mais estranhas tentações de uma sexualidade que se difunde por
todo o corpo humano. Encoraja-se o que se procura desencorajar. Dá-se a palavra
a tudo o que até então permanecia silencioso. Dá-se um preço único ao que se
gostaria de reprimir, tornando-o, entretanto, obsessivo. Do confessionário ao
divã, há o caminho dos séculos (porque é preciso tempo para andar alguns
passos), mas, das culpas às delícias, depois, do murmúrio secreto ao tagarelar
infinito, encontramos sempre a mesma insistência em falar do sexo, ao mesmo
tempo para nos libertarmos dele e para o perpetuarmos, como se a única ocupação
tendente a tornar-nos senhores da nossa verdade mais preciosa consistisse em
consultarmo-nos, consultando os outros acerca do domínio maldito e bendito da
sexualidade. Assinalei algumas frases em que Foucault exprime
a sua verdade e o seu humor: «Somos, afinal de contas, a única civilização em
que há especialistas retribuídos para ouvirem as confidências de cada um acerca
do seu sexo... que alugam
os seus ouvidos.» E, sobretudo, este juizo irónico sobre o tempo considerável,
passado e talvez perdido, a transformar o sexo em discurso: «Talvez um dia isto
surpreenda alguém. Compreender-se-á mal que uma civilização tão empenhada, por
outro lado, no desenvolvimento de imensos aparelhos de produção e destruição,
tenha achado o tempo e a infinita paciência necessários para se interrogar com
tanta ansiedade sobre o que se passa com o sexo, sorrir-se-á talvez ao lembrar
que estes homens que fomos acreditavam que havia nessa região uma verdade pelo
menos tão preciosa como a que já tinham pedido à terra, às estrelas e às formas
puras do pensamento; ficar-se-á surpreendido com a insistência que pusemos em
fingir arrancar à sua noite uma sexualidade que tudo - os nossos discursos, os
nossos hábitos, as nossas instituições, os nossos regulamentos, os nossos
saberes - produzia em plena luz e difundia ruidosamente...» Pequeno fragmento
de um panegírico às avessas no qual parece que Foucault, desde este primeiro
livro sobre a História da Sexualidade, quer pôr cobro a vãs preocupações a que,
todavia, se propõe consagrar um número considerável de volumes que acabará por
não escrever.
Ó MEUS AMIGOS
Ele irá procurar e descobrir uma saída (era, em suma, o meio de
continuar a ser genealogista, senão arqueólogo) afastando-se dos tempos
modernos e interrogando a Antiguidade (sobretudo a Antiguidade Grega - temos
todos a tentação de regressar a essa fonte; porque não o Judaísmo antigo, onde
a sexualidade desempenha um tão grande papel e onde a Lei descobre a sua
origem?). Com que fim? Aparentemente para passar dos tormentos da sexualidade à
simplicidade dos prazeres e para examinar a uma nova luz os problemas que no
entanto colocam, embora ocupem muito menos a atenção dos homens livres e
escapem à felicidade e ao escândalo do interdito. Mas não posso impedir-me de
pensar que, com A Vontade de Saber, com as críticas veementes que esse livro
suscitou, com a espécie de caça ao espírito (muito próxima de uma «caça ao
homem») que se lhe seguiu, e talvez uma experiência pessoal que só posso supor
tê-lo atingido enquanto ele ignorava o que ela representava (um corpo sólido
que deixa de o ser, uma doença grave de que ele mal tem o pressentimento, por
fim, a aproximação de uma morte que o abre não à angústia, mas a uma serenidade
surpreendente e nova), se modifica profundamente a sua relação com o tempo e
com a escrita. Os livros que vai redigir sobre temas que, no entanto, o tocam
de perto, são, à primeira vista, livros de historiador erudito mais do que
obras de investigação pessoal. Mesmo o estilo é diferente: calmo,
apaziguado, sem a paixão que torna escaldantes tantos outros textos seus. Ao
conversar com Hubert Dreyfus e Paul Rabinow[3], e
sendo interrogado sobre os seus projectos, exclama de súbito: «Oh, vou começar
por me ocupar de mim!» Palavras que não é fácil esclarecer, ainda que se pense
de modo um tanto apressado que, na esteira de Nietzsche, se sentiu inclinado a
procurar nos gregos menos uma moral cívica do que uma ética individual que lhe
permitisse fazer da sua existência - do que lhe restava de vida - uma obra de
arte. É assim que será tentado a pedir aos Antigos a revalorização das práticas
da amizade, as quais, sem se perderem, não voltaram a encontrar, senão em
alguns de entre nós, a sua alta virtude. A philia
que, entre os gregos e mesmo entre os romenos, é o modelo do que há de
excelente nas relações humanas (com o carácter enigmático que lhe dão as suas
exigências opostas, ao mesmo tempo reciprocidade pura e generosidade sem
contrapartida), pode ser acolhida como uma herança sempre susceptível de ser
enriquecida. A amizade foi talvez prometida a Foucault como um dom póstumo,
para além das paixões, dos problemas de pensamento, dos perigos da vida que ele
sentia mais pelos outros do que por si próprio. Dando testemunho de uma obra
que necessita de ser estudada (lida sem ideias preconcebidas) mais do que
louvada, penso permanecer fiel, ainda que desajeitadamente, à amizade
intelectual que a sua morte, para mim muito dolorosa, me permite hoje
declarar-lhe: enquanto rememoro as palavras atribuídas por Diógenes de Laércio
a Aristóteles: «Ó meus amigos, não há
amigo».
[1] «As luzes que inventaram as liberdades inventaram também a
disciplina.» Talvez seja um exagero: as disciplinas remontam aos tempos
pré-históricos, quando, por exemplo, se faz do urso, por um adestramento bem
sucedido, aquilo que será mais tarde o cão de guarda ou o polícia valoroso.)
[2] Claude Morali: Qui
est moi aujourd'hui?, prefácio de Emmanuel Lévinas (Ed. Fayard).
[3] Michel Foucault: Un
parcours philosophique (Gallimard), estudo a que muito devo.
oh bonita! que belo texto. salve foucault e seus desmiolados seguidores.
ResponderExcluirbeso