terça-feira, 26 de março de 2013

FOUCAULT COMO O IMAGINO


por Maurice Blanchot
   
O leitor que avançar desprevenidamente nas primeiras linhas deste curto texto de Maurice Blanchot poderá muito depressa aperceber-se do essencial. E o essencial é: que há um mistério (não diria tanto: uma prega, uma dobra, uma ruga, um estremecimento, uma convulsão) nesta escrita. Não se trata de coisas escondidas, e por uma razão demasiado simples: não há onde esconder. Isto é, aparentemente esta escrita não tem qualquer interioridade, não há nela um dentro dela (nenhuma caverna, nenhum nicho, nenhum fundo falso, nenhuma cripta, nenhum mapa da ilha) para ocultar seja o que for. Desenrola-se aos nossos olhos numa transparência irrepreensível - e alguns foram ao ponto de fazer ouvir através de um nome (Blanchot, blanche eau) a brancura sem cor de uma água inverossimilmente pura. O mistério vem do modo como se desenrola - demasiado claro, quase inocente, para ser verdade. Tão claro, tão dócil, tão neutro, tão distraído de si mesmo, que por vezes nos assusta. Não há drama nesta escrita. Ela é serena, de uma estranha serenidade, porque parece dizer que atravessou a morte. E é talvez isso mesmo que se inscreve no admirável título de uma das mais belas narrativas (mas: « Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais») deste século: La folie du jour. Por outras palavras, a clareza do dia é de tal modo clara que essa claridade se aproxima, excessiva, transbordante, imensa, da loucura. Porque esse texto começa num depois da morte (que é também, reparem, um depois da vida): «Não sou nem sábio nem ignorante. Conheci algumas alegrias. É muito pouco dizer: vivo, e esta vida dá-me um grande prazer. Então, a morte? Quando morrer (talvez daqui a nada) conhecerei um prazer imenso. Não falo do ante-gosto da morte, que é insulso e muitas vezes desagradável. Sofrer é embrutecedor. Mas tal é a verdade notável de que estou certo: sinto em viver um prazer sem limites e terei ao morrer uma satisfação sem limites.» Atravessar a morte é isto: suspender, no equilíbrio lúcido do dia, o prazer que fica, entre a morte e a vida, no exterior impensável da sua conjunção.

É fundamentalmente daqui, deste lugar sem suporte, óbvio e desamparado, que deriva a pregnância do enigma. Não sabemos nunca donde escreve Blanchot. Mas rapidamente nos damos conta de que se não trata de um lugar identificável nos atlas do conhecimento. Blanchot convoca-nos para uma pragmática insensata, no sentido rigoroso de nos exigir aquilo que no mesmo lance nos subtrai. Isto é, sentimos que é importante a determinação deste lugar, que é essencial sabermos quem nele fala, em que data, circunstância, enredo histórico, e, no entanto, apercebemo-nos de que esta importância está lá, vincada, sublinhada, agravada, para tornar mais nítido o vazio de tais indicações, por outras palavras, para mostrar que elas foram definitivamente rasuradas, num processo de apagamento em que progressivamente se apagam as próprias marcas do processo. 
Vejamos no concreto o funcionamento deste dispositivo (digamos que se trata, no seu crepuscular esplendor, do «efeito Blanchot»). Neste texto, inesperado (o silêncio de Blanchot nos últimos anos é tão espesso que dele já só se pode esperar o inesperado), encontramos, na primeira linha, uma frase sem verbo (o que imprime um tom, de apontamentos, restos, sinais de uma fadiga que se opõe à elaboração de um ensaio segundo as regras do ensaísmo): «algumas palavras pessoais». O que é fascinante nestas breves palavras ditas pessoais é que elas introduzem um quadro em que se traça, com uma alucinante precisão, a invisibilidade das pessoas. Porque Blanchot, diz-nos, ficou sem relações pessoais com Michel Foucault. Mas que significa este «sem relações pessoais»? Significa que nunca o encontrou, excepto numa vez em que imagina tê-lo encontrado: na Sorbonne, Maio de 68, na incerteza de Junho ou Julho (mas será isso o essencial? ou será que o essencial é mesmo essa vacilação?). E falou-lhe, não sabemos se Blanchot conhecia Foucault suficientemente para o reconhecer, mas podemos supor que o reconheceu num desconhecido: dizem a Blanchot que afinal Foucault não estava na Sorbonne, estaria no estrangeiro (ou talvez mais longe, na distância do demasiado perto: na própria estranheza de quem está exposto à loucura do dia, excessivamente iluminado pela evidência de estar), e o próprio Blanchot se interrogava: mas porque é que Foucault não está aqui? (ou, porque o tempo interfere na estrutura da frase: porque é que Foucault não estava ali?). O enigma formula-se, não por uma explicação geográfica (Foucault não está no estrangeiro), que é anulada pela «ingénua» anotação de que «até os longínquos japoneses lá estavam»), mas por algo que pertence a outra ordem, a ordem em que (como na escrita de Blanchot) algo se reserva na presença, distanciando-a de si mesma, tornando-a deliberadamente imprópria, ou anónima sob a mancha explícita dos nomes: não é Foucault que está no estrangeiro, é o estrangeiro que atravessa Foucault (o estrangeiro - como uma falha, uma culpa, uma fragilidade íntima, uma loucura secreta). 
Algumas palavras pessoais. Não sei quem é Blanchot. Quando o comecei a ler, já ele era, e eu começava a ser nos textos dele. O importante, contudo, está neste «já ele ser», porque desde sempre (ou, para sermos mais rigorosamente imprecisos: desde esse momento indeterminável em que o li pela primeira vez), o facto de ele ser correspondia, pelo menos para mim, a ele deixar-se ser e deixar de ser. Deixar-se ser, isto é, deixar que alguma coisa de si exista partilhável pelos outros, mas não fazer desta existência nenhum acto voluntário, nenhum projecto, nenhuma intencionalidade precisa - apenas um abandono, um desapego, uma distracção (mas: «sinto em viver um prazer sem limites»). Simultaneamente, deixar de ser, para Blanchot, é um movimento incessante de passar para a margem da sombra, da invisibilidade, da imensa noite do mundo, numa queda horizontal, deslizante e serena, clandestina e desdramatizada, por uma metódica eliminação dos sinais, cicatrizes, restos, despojos, feridas visíveis, até ficar, espectral, fosforescente, a moldura do nada (e: «terei ao morrer uma satisfação sem limites»). Talvez o decisivo esteja nesta indicação de «sem limites», que pode querer dizer que o movimento se faz para além de todos os limites, mas significa também que o movimento indiferencia os limites entre a vida e a morte, criando um espaço de indiferenciação que (só ele) permite pensar a diferença que o ilimita. No sentido exacto em que Blanchot nos previne de que há coisas que só são pensáveis através do desejo de as pensarmos.
Mas não saber quem é Blanchot começa por ser não saber que rosto assume na claridade de cada dia. De certo modo, ninguém o viu. Os que falam dizem apenas que o entreviram (ou, noutros casos mais repassados de intimidade, entredizem apenas que o viram). Perguntei a Georges Mounin e ele respondeu: tive com ele uma polémica a propósito de René Char, tentei falar-lhe, mas na Nouvelle Revue Française explicaram que era impossível, que nunca aparecia, que os textos se trocavam através de uma caixa de correio, abandonados misteriosamente, recolhidos misteriosamente, num comércio quase anónimo. Perguntei a Duras, e ela respondeu: veio a minha casa muitos anos, estávamos juntos muitas vezes, uma vez por semana, às vezes nunca, quando não era possível, e depois deixou de ser possível, e ele não veio mais, a última vez que o vi foi em Maio de 68, continuava como sempre foi, «alto e magro como um deportado». Insinuo que poderia corresponder à personagem de Stein em Détruire, dit-elle (no cinema: Michel Lonsdale), e a resposta é: talvez. Pergunto a Jacques Derrida, e ele responde: lembro-me vagamente de o ter visto uma vez, e depois escrevemo-nos, mas ele escreve-me sempre como se fosse a última vez. Donde. não se trata apenas de um rosto de que não se conhece fotografia, mas de um rosto que não imprime mais do que a própria pressão de uma infinita ausência.
Sei que Blanchot, historicamente, vem de um lugar preciso, assinalável em termos de reconstituição ideológica e literária, em textos que começam em 1931 (sobre Mauriac, sobre Gandhi, sobre Daniel Rops) e se desenvolvem, numa impressionante proliferação de intervenções, em Combat, Aux Écoutes, Journal des débats, Le Rempart, muitas delas situáveis na recusa do marxismo, na crítica do socialismo, na defesa de um socialismo nacional - isto é, na extrema-direita. Sei, depois, que há toda a ficção de Blanchot, fascinante, inacessível, inapropriável (mesmo pelos melhores, como Sartre, que com ela se confronta). Sei que há a amizade com Bataille (e um livro que a inscreve: L'Amitié), a definição de um grupo (Duras, Mascolo), o abandono inexplicado desse passado político, a manutenção da mesma exigência transferida agora para a afirmação do direito à insubmissão face a De Gaulle e à guerra da Argélia, e mais tarde a procura de «um comunismo sem herança», «comunismo além do comunismo», na deriva apaixonada (e, contudo, desde sempre fatigada) de Maio de 68 (e é aí, neste desejo de comunidade, que faz sentido o cenário do encontro falhado com Foucault, no sentido rigorosamente freudiano de «acto falhado», isto é, aquele que se realiza ao falhar: um encontro em Maio de 68 só se poderia realizar num espaço generalizado de anonimato, ou, se preferirem, de clamorosa perda de todos os nomes). Sei que Blanchot domina, numa invisível soberania, toda a cultura francesa durante os últimos cinquenta anos (criando apenas algumas zonas de atrito ou silêncio incomodado: com Barthes, por exemplo, com Lacan), e ainda tudo o que de despudoradamente francês avança pelo mundo (na Itália, onde os textos sobre ele se multiplicam, nos .U.A., com Paul de Man, leitor atento e cúmplice, ou ainda via Derrida, na obstinação das suas «leituras» de Blanchot - não «análises», mas «parálises», paralisias da leitura, como se fala em «paralíticos» num filme). Sei que há hoje em relação a ele uma espécie de impaciência, como se saíssemos de um pesadelo, como se este lugar não fosse habitável, mas avaliando que algo de absoluto se perde, inexorável, neste imperioso desejo de habitação. E vemos um Todorov, que cada vez se assume mais como o simplificador que sempre foi, a insinuar que o espaço de Blanchot é de um totalitarismo romântico que é preciso romper (veja-se Critique de la critique). Mas vemos outros, inqualificavelmente melhores, a dizerem algo que os mais desatentos julgarão ser o mesmo: é o caso de Jean-Louis Scheffer, em Art Press, n.° 103 (quererá a data inverter alguma coisa: Maio de 86?); quando escreve: «Já não amar Blanchot não é dever trair, é já não poder escrever seja o que for que se assemelhe a Blanchot, e reconhecermos através de nós próprios uma parte de dívida que nunca será inteiramente paga».
Este livro de Blanchot sobre Foucault tal como ele o imagina é um projecto estranho, que se propõe como uma espécie de comentário, sabendo nós que Foucault os detestava, e que Blanchot os não pratica. Se quisermos alimentar a nossa capacidade de espanto, diremos que nesta aparente digressão texto a texto falta (como a fotografia da mãe em La Chambre claire de Barthes) a referência ao texto essencial: Les mots et les choses, sobre o qual Blanchot passa sem nada dizer. Mas podemos anotar, com empenhada minúcia, o tracejado das frases mais confidenciais: quando Blanchot nos diz «que ninguém gosta de se reconhecer, estrangeiro, num espelho em que não avista o seu duplo, mas aquele que teria gostado de ser»; quando define Foucault como «um homem em perigo», «solitário, secreto», e, no final do capítulo (tão reduzido e enigmático como todos os outros) intitulado «A íntima convicção», escreve (entre parênteses) uma verdadeira defesa de Foucault; quando afirma que a sua morte lhe foi «muito dolorosa»; quando assinala «uma experiência pessoal» que terá modificado em Foucault a sua relação com o tempo e a escrita: «um corpo sólido que o deixa de ser, uma doença grave de que ele apenas tem o pressentimento, por fim a aproximação de uma morte que o não conduz à angústia, mas a uma surpreendente e nova serenidade».
Todo este livro, tão conciso nas suas impressionantes praias de silêncio, parece rodar em torno de um segredo, que é a forma expansiva do pensamento, entendido como a ficção de uma ficção sobre o vazio definitivo das narrativas («Uma narrativa? Não, nada de narrativas, nunca mais»), como a ficção dessa ficção que teceu, na sua essência histórica e filosófica, todo o trabalho de Foucault: «Nunca escrevi senão ficções e tenho disso plenamente consciência» (confidência de Foucault a Lucette Finas). De Blanchot não temos senão um gesto terrivelmente simples: nem o comentário de uma obra que desafia os comentários, nem a ficção de um encontro tão somente imaginado, mas um acto de fidelidade - menos aos textos ou aos nomes do que ao segredo que os propaga.
EDUARDO PRADO COELHO 
Nota - De Maurice Blanchot foi apenas traduzido em Portugal O livro por vir, também pela Relógio d'Água, e numa iniciativa de 4 elementos editores, o texto A loucura do dia (sendo a tradução assinada por Silva Carvalho).
ALGUMAS PALAVRAS PESSOAIS.
Para ser exacto, devo dizer que não tive relações pessoais com Michel Foucautl. Nunca o encontrei, excepto uma vez, no pátio da Sorbonne durante os acontecimentos de Maio de 68, talvez em Junho ou Julho (mas dizem-me que ele não estava lá), e dirigi-lhe então algumas palavras, ignorando ele quem lhe estava a falar (digam o que disserem os detractores de Maio, foi um belo momento esse, em que cada um podia falar com qualquer outro, anónimo, impessoal, homem entre os homens, acolhido sem outra justificação para além da de ser um outro homem). É verdade que durante esses acontecimentos extraordinários, eu dizia muitas vezes: Mas porque é que Foucault aqui não está? - restituindo-lhe assim o seu poder de atracção e considerando o lugar vazio que ele deveria ter poupado. Ao que me respondiam com uma observação que não me satisfazia: ele continua um pouco reservado; ou então: está no estrangeiro. Mas, precisamente, muitos estrangeiros, até remotos japoneses, estavam lá. Foi assim, talvez, que perdemos a ocasião de nos encontrarmos.
Todavia, o seu primeiro livro, que lhe trouxe renome, fora-me dado a conhecer, quando o texto não passava ainda de um manuscrito quase sem nome. Era Roger Caillois quem o tinha e o propôs a alguns de nós. Recordo o papel de Caillois, porque me parece ter permanecido ignorado. O próprio Caillois nem sempre era bem aceite pelos especialistas oficiais. Interessava-se por demasiadas coisas. Conservador, inovador, sempre um pouco à parte, não entrava na sociedade dos que possuem um saber reconhecido. Por fim, forjara um estilo belíssimo, por vezes até ao excesso, a tal ponto que se julgou destinado a zelar - feroz zelador - pela correcção da língua francesa. O estilo de Foucault, pelo seu esplendor e pela sua precisão, qualidades aparentemente contraditórias, deixou-o perplexo. Não sabia se aquele grande estilo barroco não arruinaria o saber singular cujos múltiplos caracteres, filosófico, sociológico, histórico, o embaraçavam e exaltavam. Talvez visse em Foucault um outro ele próprio que lhe furtaria a herança. Ninguém gosta de se reconhecer, estranho, num espelho onde não distingue o seu duplo, mas aquele que gostaria de ter sido. 
O primeiro livro de Foucault (admitamos que se trata do primeiro) valorizou com a literatura um tipo de relações que mais tarde seria preciso corrigir. A palavra «loucura» foi uma fonte de equívocos. Foucault só indirectamente tratava da loucura: ocupava-se antes de mais desse poder de exclusão que, um belo ou triste dia, foi instaurado por um simples decreto administrativo, decisão que, dividindo a sociedade, não em bons e maus, mas em sensatos e insensatos, permitiu reconhecer as impurezas da razão e as relações ambíguas que o poder - aqui, um poder soberano - iria manter com o que de mais bem partilhado há, enquanto não deixava de dar a entender que não lhe seria tão fácil reinar indivisamente. O importante é, com efeito, a divisão; o importante é a exclusão - e não o que se exclui ou divide. Afinal, que estranheza a da história, se o que a faz oscilar é um simples decreto e não grandes batalhas ou importantes lutas de monarcas. Além disso, esta divisão que de modo algum é um acto de maldade, destinado a punir seres perigosos porque definitivamente associais (ociosos, pobres, depravados, profanadores, extravagantes e, para concluir, os cabeças de vento ou os loucos) irá, por uma ambiguidade mais temível ainda, ocupar-se deles, prestando-lhes cuidados, alimentos, bênçãos. Impedir os doentes de morrerem na rua, os pobres de se tornarem criminosos para sobreviverem, os depravados de corromperem os piedosos dando-lhes o espectáculo e o gosto dos maus costumes, tudo isto não é detestável, mas assinala um progresso, o ponto de partida de uma mudança que os melhores mestres acharão excelente.
Assim, a partir do seu primeiro livro, Foucault trata de problemas que desde sempre pertenceram à filosofia (razão, desrazão), mas trata-os na perspectiva da história e da sociolo gia, privilegiando, ao mesmo tempo, na história, uma certa descontinuidade (um pequeno acontecimento faz grande diferença), sem fazer dessa descontinuidade uma ruptura (antes dos loucos, há os leprosos, e é nos lugares - lugares ao mesmo tempo materiais e espirituais - deixados vagos pelo desaparecimento dos leprosos que se instalam os refúgios de outros excluídos, enquanto esta necessidade de excluir se reitera sob formas surpreendentes que ora a revelam, ora a dissimulam). 
UM HOMEM EM PERIGO 
Talvez devêssemos perguntar porque é que a palavra «loucura», mesmo em Foucault, conservou uma força de interrogação tão considerável. Pelo menos por duas vezes, Foucault censurar-se-á por se ter deixado seduzir pela ideia de que há uma profundidade da loucura, de que esta constituiria uma experiência fundamental situada fora da história e da qual os poetas (os artistas) foram e podem ser ainda as testemunhas, as vítimas ou os heróis. Se se tratou de um erro, ter-lhe-á sido benéfico, na medida em que, através desse erro (e de Nietzsche), tomou consciência do seu pouco gosto pela noção de profundidade, do mesmo modo que desmascarará, nos discursos, os sentidos ocultos, os segredos fascinantes, por outras palavras, os duplos e triplos fundos do sentido, os quais, é certo, só podem ser vencidos mediante a desqualificação do próprio sentido, bem como, nas palavras, do significado e até do significante.
Aqui, direi que Foucault que, um dia, se proclamou por desafio um «optimista feliz», foi um homem em perigo e que, sem o exibir, teve um sentido agudo dos perigos a que estamos expostos, perguntando a si próprio quais são os mais ameaçadores e quais aqueles com que é possível contemporizar. Daí a importância que para ele teve a noção de estratégia, e daí que se tenha confrontado com a ideia de que teria podido, se assim tivesse decidido o acaso, vir a ser um homem de Estado (um conselheiro político), como um escritor - termo que recusou sempre com maior ou menor veemência e sinceridade – ou um puro filósofo, ou um trabalhador não qualificado, podendo ser, portanto, não se sabe o quê ou não se sabe quem.
             Em todo o caso, um homem a caminho, solitário, secreto e que, por isso, desconfia dos prestígios da interioridade, recusa as armadilhas da subjectividade, procurando onde e como é possível um discurso de superfície, cintilante, mas sem miragens, não alheio, como se julgou, à busca da verdade, mas dando a ver (depois de muitos outros) os perigos dessa demanda, bem como as relações ambíguas desta com os diversos dispositivos do poder. 
O ADEUS AO ESTRUTURALISMO 
            Há pelo menos dois livros, um que parece esotérico, o outro, brilhante, simples, arrebatador, ambos de feição programática, que parecem abrir o futuro a um novo saber e que, na realidade, são como testamentos onde se inscrevem promessas que não serão cumpridas, não por negligência ou impotência, mas porque talvez não haja outra realização para além da própria promessa, e ao formulá-la, Foucault esgote o seu interesse por ela - é assim que geralmente ele faz os seus ajustes de contas, para se virar depois para outros horizontes, sem com isso trair as suas exigências, mascarando-as antes sob um aparente desdém. Foucault, na abundância da sua escrita, é um ser silencioso - mais do que isso: fechado no silêncio quando o interrogam, com boas ou más intenções, pedindo-lhe que se explique (há, porém, excepções).
A Arqueologia do Saber e A Ordem do Discurso marcam o período - o fim do período - em que Foucault, escritor que era, pretendeu pôr a descoberto práticas discursivas quase puras, no sentido em que não remetiam senão para si próprias, para as suas regras de formação, para o seu ponto de fixação, ainda que sem origem, para a sua emergência, ainda que sem autor, para um trabalho de decifração que nada revelaria de oculto. Testemunhas que não confessam, porque nada têm a dizer para além do que foi dito. Escritos rebeldes a todo o comentário (ah, o horror de Foucault pelo comentário). Domínios autónomos, mas nem realmente independentes, nem imutáveis, uma vez que se transformam incessantemente, como os átomos, ao mesmo tempo singulares e múltiplos, se se quiser admitir que há multiplicidades que se não referem a unidade alguma. 
Mas, dir-se-á, Foucault, nesta aventura em que a linguística desempenha o seu papel, não faz, com intenções que lhe são próprias, senão prolongar as esperanças de um estruturalismo quase defunto. Seria necessário investigar (mas eu estou em má posição para o fazer, porque me dou conta de que até aqui nunca pronunciei, nem para o aprovar, nem para o desaprovar, o nome dessa disciplina efémera, apesar da amizade que dedicava a alguns dos seus adeptos) porque é que Foucault, sempre tão superior às suas próprias paixões, se encoleriza deveras quando pretendem fazê-lo embarcar nesse barco já dirigido por capitães ilustres. As razões são múltiplas. A mais simples (se assim podemos dizer), é que ele pressente ainda no estruturalismo um sopro de transcendentalismo - pois o que seriam, na realidade, essas leis formais que regeriam toda a ciência, permanecendo alheias às vicissitudes da história da qual, no entanto, dependem o seu aparecimento e o seu desaparecimento? Mescla demasiado impura de a priori histórico e de a priori formal. Recordemos a frase vingadora de A Arqueologia do Saber, porque vale a pena. «Nada seria, pois, mais agradável, mas nada mais inexacto, do que conceber este a priori histórico como um a priori formal, dotado, para mais, de uma história: grande figura imóvel e vazia que um dia surgisse do tempo, fizesse prevalecer sobre o pensamento dos homens uma tirania à qual ninguém poderia escapar e depois desaparecesse de repente num eclipse que nenhum acontecimento tivesse preludiado: transcendental sincopado, jogos de formas intermitentes. O a priori formal e o a priori histórico não são nem do mesmo nível nem da mesma natureza: se se cruzam, é porque ocupam duas dimensões diferentes.» E recorde-se ainda o diálogo final do mesmo livro em que os dois Michel se enfrentam num duelo de morte sem que saibamos qual receberá o golpe mortal: «Ao longo de todo o livro, diz um deles, você tentou, o melhor que pôde, demarcar-se do “estruturalismo”...» Resposta do outro, não sem importância: «Não neguei a história (enquanto que o estruturalismo parece ter como traço essencial ignorá-la), mantive em suspenso a categoria geral e vazia da mudança para mostrar transformações de níveis diferentes, recuso um modelo uniforme de temporalização.»
Porquê esta discussão tão áspera e talvez tão inútil (pelo menos para aqueles que não vêem o que está em jogo)? É que o arquivista que Foucault quer ser e o estruturalista que não quer ser aceitam um e outro (momentaneamente) trabalhar, na aparência, apenas pela linguagem (ou discurso) de que filósofos, linguistas, antropólogos, críticos literários pretendem extrair leis formais (portanto, a-históricas), deixando-a encarnar um transcendentalismo vicioso que Heidegger nos recordará em duas frases demasiado simples: a linguagem não tem que ser fundada, porque é ela que funda. 
A EXIGÊNCIA DA DESCONTINUIDADE 
Ora, Foucault, quando se ocupa do discurso, não relera a história, mas distingue nela descontinuidades, discrições, de modo nenhum universais, mas locais, que não supõem que, subjacente, persista uma grande narrativa silenciosa, um rumor contínuo, imenso e ilimitado que seria necessário reprimir (ou recalcar), à maneira de um não-dito misterioso ou de não-pensado que não só estaria à espera de se desforrar como trabalharia obscuramente o pensamento, tornando-o eternamente duvidoso. Por outras palavras, Foucault, a quem a psicanálise nunca apaixonou, está ainda menos disposto a considerar um grande inconsciente colectivo, alicerce de todo o discurso e de toda a história, espécie de «providéncia pré-discursiva» cujas instâncias soberanas, talvez criadoras, talvez destruidoras, já só teríamos que transformar em significações pessoais. 
O certo é que Foucault, tentando afastar a interpretação («o sentido oculto»), a originalidade (o desvelar de um começo único, a Ursprung heideggeriana) e, por fim, aquilo a que ele próprio chama «a soberania do significante» (o imperialismo do fonema, do som, do tom, ou mesmo do ritmo), trabalha, todavia, ainda sobre o discurso para isolar neste uma forma a que dará o nome sem prestígio de enunciado: termo a propó-
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sito do qual teremos que dizer que lhe é mais fácil designar o que exclui do que o que afirma (enuncia), na sua tautologia quase heróica. Leia-se e releia-se A Arqueologia do Saber (título já de si perigoso, porque evoca aquilo que se deve evitar, o logos da archê ou a palavra da origem), e ficar-se-á surpreendido ao encontrar muitas das fórmulas da teologia negativa, aplicando Foucault todo o seu talento a descrever em frases sublimes aquilo que rejeita: «Não é isto... também não é isto... não é, ainda, isto...», de tal modo que não lhe fica quase nada a dizer para valorizar o que, precisamente, recusa a ideia de «valor»: o enunciado raro, singular, que não precisa senão de ser descrito ou simplesmente reescrito, apenas em relação com as suas condições externas de possibilidade (o lado de fora, a exterioridade) dando assim lugar a séries aleatórias que de tempos a tempos acontecem.
Como estamos longe da profusão de frases do discurso corrente, frases que não param de se engendrar, por um processo cumulativo que a contradição não detém, mas, pelo contrário, provoca até um além vertiginoso. Naturalmente, o enunciado enigmático, na raridade que lhe advém em parte de só poder ser positivo, sem cogito para que remeta, sem autor único que o autentique, livre de todo o contexto que ajudaria a situá-lo num conjunto (de que extraísse o seu ou os seus diversos sentidos), é já, por si próprio, múltiplo ou, mais exactamente, multiplicidade não unitária: é serial, porque a série é o seu modo de se agrupar, tendo por essência ou propriedade o poder repetir-se (quer dizer, segundo Sartre, a relação mais desprovida de significação), constituindo ao mesmo tempo, com outras séries, uma interpenetração ou um deslocamento de singularidades que, ora, quando se imobilizam, formam quadro, ora, pelas suas relações sucessivas de simultaneidade, se inscrevem em fragmentos ao mesmo tempo aleatórios e necessários, comparáveis, com toda a evidência, às tentativas perversas (diz Thomas Mann) da música serial.
Em A Ordem do Discurso, lição inaugural do Collège de France (na qual, em princípio, se diz o que se vai fazer nas lições seguintes mas que se considerará dispensável fazer uma vez que é o que acaba de ser dito e tal dizer não suporta ser desenvolvido), Foucault enumera, mais claramente e talvez menos estritamente (seria necessário averiguar se esta perda de rigor se deve apenas às exigências de um discurso magistral ou antes a um princípio de desinteresse pela própria arqueologia), as noções que deverão servir para uma nova análise. Assim, propondo o acontecimento, a série, a regularidade e a condição de possibilidade, servir-se-á deles para os opor termo a termo aos princípios que, no seu entender, dominaram a história tradicional das ideias, opondo deste modo o acontecimento à criação, a série à unidade, a regularidade à originalidade e a condição de possibilidade à significação - ao tesouro enterrado das significações ocultas. Tudo isto é bem claro. Mas não se atribuirá assim Foucault adversários ultrapassados? E os seus próprios princípios não serão mais complexos do que o seu discurso oficial, com as suas formas impressivas, dá a pensar? Por exemplo, considera-se adquirido que Foucault, adoptando uma certa concepção da produção literária, se desembaraça pura e simplesmente da noção de sujeito: já não há obra, já não há autor, já não há unidade criadora. Mas as coisas não são tão simples. O sujeito não desaparece: é a sua unidade, excessivamente determinada, que constitui problema, porque o que suscita o interesse e a investigação é o desaparecimento do sujeito (quer dizer, essa nova maneira de ser que é o desaparecimento) ou ainda a dispersão que não o aniquila, mas só nos oferece dele uma pluralidade de posições e uma descontinuidade de funções (tornamos aqui a encontrar o sistema de descontinuidades que, bem ou mal, pareceu durante algum tempo característico da música serial). 
SABER, PODER, VERDADE?
Do mesmo modo, quando se atribui apressadamente a Foucault uma desconfiança quase nihilista perante aquilo a que ele chama vontade de verdade (ou vontade de saber sério) ou ainda a recusa suspeitosa da ideia de razão (dotada de valor universal), creio que se desconhece a complexidade das suas preocupações. A vontade de verdade, com certeza que sim, mas qual o seu preço? Quais as suas máscaras? Que exigências politicas se dissimulam sob esta busca altamente respeitável? E estas perguntas impõem-se, tanto mais que Foucault, menos por um instinto diabólico do que pelo destino dos tempos modernos (que é também o seu próprio destino), se sente condenado a não dar atenção senão a ciências duvidosas, ciências de que ele não gosta, suspeitas já pelo seu nome extravagante de «ciências humanas» (é nas ciências humanas que pensa quando anuncia, com uma espécie de malevolência jocosa, o desaparecimento próximo ou provável do homem que tanto nos preocupa, enquanto fazemos tudo para o tornar, a partir de hoje mesmo, póstumo, através da nossa curiosidade que o reduz a não ser mais do que um simples objecto de inquérito, de estatística ou até de sondagens). A verdade custa caro. Não precisamos de lembrar Nietzsche para nos certificarmos disso. É assim que, desde A Arqueologia do Saber, em que parecemos comprazer-nos na ilusão da autonomia do discurso (ilusão que encantaria talvez a literatura e a arte), se anunciam as múltiplas relações do saber e do poder, e a obrigação de nos tornarmos conscientes dos efeitos políticos que, neste ou naquele momento da história, produz o antigo desejo de destrinçar o verdadeiro do falso. Saber, poder, verdade? Razão, exclusão, repressão? É preciso conhecer Foucault muito mal para se julgar que ele se contenta com conceitos tão simples ou ligações tão fáceis. Se dissermos que a verdade é ela própria um poder, em nada teremos avançado, porque o poder é um termo cómodo na polémica, mas quase inutilizável enquanto a análise não lhe tiver retirado o seu carácter de pau para toda a obra.
Quanto à razão, não se trata de a fazer ceder o lugar à desrazão. O que nos ameaça, tal como o que nos serve, é menos a razão do que as formas diversas da racionalidade, uma acumulação acelerada de dispositivos racionais, uma vertigem lógica de racionalizações que informam e são utilizadas tanto no sistema penal como no sistema hospitalar ou no sistema de ensino. E Foucault dá-nos, para a inscrevermos na nossa memória, esta sentença de oráculo: «A racionalidade do abominável é um facto da história contemporânea. Mas nem por isso o irracional adquire direitos imprescritíveis.» 
DA SUJEIÇÃO AO SUJEITO 
É sabido que o livro Vigiar e Punir marca a passagem do estudo limitado às práticas discursivas ao estudo das práticas sociais que constituem o seu pano de fundo. É a emergência da política no trabalho e na vida de Foucault. De certo modo, as preocupações continuam a ser as mesmas. Do grande encerramento às formas variadas da impossível prisão, vai apenas um passo, e não é de um saltus que se trata. Mas o encadeamento (palavra apropriada) não é o mesmo. O encerramento é o princípio arqueológico da ciência. médica (de resto Foucault nunca perderá de vista este saber imperfeito que o obceca, que descobrirá até entre os gregos e que acabará por se vingar dele abandonando-o, impotente, ao seu destino). O sistema penal que vai do segredo das torturas e do espectáculo das execuções à utilização requintada das «prisões-modelo» onde se podem obter diplomas universitários do mais alto grau, enquanto outros recorrerão à vida satisfeita dos tranquilizantes, remete-nos para as exigências ambíguas e às imposições perversas de um progressismo todavia inelutável e até benéfico. O homem que aprende a saber de onde vem pode maravilhar-se por ser o que é, ou então, recordando as distorções que sofreu, ceder a um desencanto que o imobilizará, a menos que, à maneira de Nietzsche, se valha do humor genealógico ou da desenvoltura dos jogos críticos.
Como se aprendeu a lutar contra a peste? Não apenas por meio do isolamento dos pestíferos, mas através da delimitação estrita do espaço da desgraça, pela invenção de uma tecnologia de ordenamento de que mais tarde a administração das cidades beneficiará, e, finalmente, por meio de levantamentos minuciosos, que, desaparecida a peste, servirão para impedir a vagabundagem (o direito de ir e vir dos «pequenos») até ao ponto de suprimir o direito de desaparecer que ainda hoje nos é recusado de uma maneira ou de outra. Se a peste de Tebas tem por origem o incesto de Édipo, pode considerar-se que, genealogicamente, a glória da psicanálise é apenas um efeito longínquo da peste devastadora. Daí o dito famoso atribuído a Freud ao chegar à América, mas a propósito do qual podemos perguntar se não significaria que, estando peste e psicanálise originalmente e nosologicamente ligadas, podiam por isso trocar-se simbolicamente. Em todo o caso, Foucault foi tentado a ir mais longe. Reconhece ou julga reconhecer a origem do «estruturalismo» na necessidade, quando a peste se difunde, de cartografar o espaço (físico e intelectual), com o fim de determinar bem, segundo as regras de uma agrimensura rigorosa, as sinistras regiões da doença - obrigação à qual, tanto nos campos de manobras militares como, mais tarde, na escola ou no hospital, os corpos humanos aprendem a sujeitar-se, tornando-se dóceis e funcionando como unidades permutáveis: «Na disciplina, os elementos são intercambiáveis, uma vez que cada um deles se define pelo lugar que ocupa na série, e pelo intervalo que o separa dos outros.»
A quadrícula rigorosa que obriga o corpo a deixar-se revistar, desarticular e, se necessário, reconstituir, terá a sua realização na utopia de Bentham, no exemplar Panóptico, que mostra o poder absoluto de uma visibilidade total. (É exactamente a ficção de Orwell.) Tal visibilidade (aquela a que Hugo expõe Caim até à cova) tem a vantagem trágica de tornar inútil a violência física a que de outro modo o corpo deveria oferecer-se. Mas há mais. A vigilância - o facto de se estar sob vigilância - que não é apenas a que exercem os guardas, mas que se identifica com a condição humana quando se pretende torná-la ao mesmo tempo sensata (conforme às regras), produtiva (e, portanto, útil), vai dar lugar a todas as formas de observação, de investigação, de experimentação sem as quais não haveria nenhuma ciência verdadeira. Nenhum poder, também? Isso é já menos certo, porque a sabedoria tem origens obscuras que devem ser procuradas mais do lado do dispêndio do que do uso, para não falar de princípios organizadores ainda mais nefastos, quando perpetuam o simbolismo do sangue, a que o racismo de hoje continua a referir-se. 
Verificado e denunciado isto, ficamos com a impressão que, de algum modo, Foucault quase preferiria as épocas abertamente bárbaras em que os suplícios nada dissimulam da sua atrocidade, quando os crimes, tendo atentado contra a integridade do Soberano, estabelecem relações singulares entre o Alto e o Baixo, de maneira que o criminoso, enquanto expia espectacularmente a quebra do interdito, guarda consigo o esplendor de actos que o puseram à margem da humanidade. (Assim Gilles de Rais; assim os acusados em O Processo de Kafka.) A prova é que as execuções capitais serão não só ocasião de festas com que todo o povo se regozija, porque simbolizam a supressão das leis e dos hábitos (vive-se então a excepção), mas provocam por vezes revoltas, quer dizer dão ao povo a ideia de que também ele tem o direito de romper por meio das rebeliões as ordens que lhe impõe um rei momentaneamente diminuído. Por isso, não é por bondade que se torna mais discreta a sorte dos condenados, como não é também por brandura que se deixam intactos os corpos culpados, atacando agora as «almas e os espíritos» a fim de os corrigir ou reamestrar. Sem dúvida, nem tudo o que reforma a condição carcerária é detestável, mas a verdade é que ameaça enganar-nos acerca das razões que tornaram desejáveis ou bem-vindos tais melhoramentos.
O século XVIII parece dar-nos o gosto de novas liberdades – e isso é excelente. Todavia, o fundamento dessas liberdades, o seu «subsolo» (diz Foucault), não muda, pois continua a residir numa sociedade disciplinar cujos poderes de controlo se dissimulam ao mesmo tempo que se multiplicam.[1] Somos cada vez mais subjugados. Dessa sujeição, agora, em vez de grosseira, delicada, extraímos a consequência gloriosa de sermos sujeitos e sujeitos livres, capazes de transformar em saberes os modos mais variados de um poder mentiroso, na medida em que devemos esquecer doravante a sua transcendência, substituindo à lei de origem divina as regras diversas e os procedimentos razoáveis que, quando nos tivermos cansado deles, nos hão-de parecer resultados de uma burocracia, sem dúvida humana, mas monstruosa (não esqueçamos que Kafka, que parece descrever as formas mais cruéis da burocracia, se inclina também diante dela vendo-a como a estranheza de uma força mística, só que um tanto abastarda).
A CONVICÇÃO ÍNTIMA 
Se quisermos ver como, na realidade, a nossa justiça tem necessidade de um subsolo arcaico, basta que recordemos o papel que nela desempenha a noção quase incompreensível de «convicção íntima». A nossa interioridade não só continua sagrada, como não deixou ainda de fazer de nós os descendentes do Vigário saboiardo. E a análise da consciência moral (das Gewissen) em Heidegger fundamenta-se ainda nesta herança aristocrática: no interior de nós, há uma voz que se torna sentença, afirmação absoluta. Algo que é dito, e esse dizer primeiro, subtraído a todo o diálogo, é palavra de justiça que ninguém tem o direito de contestar.
Que concluir daqui? Quanto à prisão, acontece a Foucault afirmar que ela é de origem recente (mas o ergástulo não data apenas de ontem). Ou então, e isso importa-lhe mais, observa que a reforma da prisão é tão antiga como a sua instituição. O que, nalgum canto do seu espírito, significa a impossível necessidade de reformar o que não é reformável. E depois (acrescento eu) a organização monástica não mostrará a excelência do isolamento, a maravilha que é o face a face consigo próprio (ou com Deus), o benefício superior que vem do silêncio, meio propicio onde se formam os maiores santos e forjam os criminosos mais empedernidos? Objecção: uns consentem, os outros sofrem. Mas será a diferença tão grande, e não haverá ainda mais regras nos conventos do que no espaço celular? E, finalmente, os únicos prisioneiros para toda a vida não serão os que pronunciaram votos perpétuos? Céu, inferno, a distância é, ora ínfima, ora infinita. O que é certo, pelo menos, é que, tal como Foucault não põe em causa, em si própria, a razão, mas sim o perigo de certas racionalidades ou racionalizações, também não se interessa pelo conceito de poder em geral, mas sim pelas relações de poder, pela sua formação, pela sua especificidade, pelo seu accionamento. Quando há violência, tudo é claro, mas quando há adesão, talvez haja apenas o efeito de uma violência interior que se esconde no seio do consentimento mais seguro. (Quanto se censurou Foucault por negligenciar, nas suas análises dos poderes, a importância de um poder central e fundamental! Daí se deduziu aquilo a que se chama o seu «apolitismo», a sua recusa de um combate que poderia ser um dia decisivo (a luta final), a ausência nele de todo o projecto de reforma universal. Mas são passadas em silêncio não só as suas lutas imediatas, como a sua decisão de não intervir em «grandes causas» que seriam apenas o álibi cómodo da servidão quotidiana). 
QUEM É EU HOJE? 
A posição, no meu entender, difícil, e também privilegiada, de Foucault, poderia definir-se assim: poderemos saber onde ele se situa, uma vez que não se reconhece (estaria num perpétuo slalom entre a filosofia tradicional e o abandono de todo o espírito de seriedade) nem sociólogo, nem historiador, nem estruturalista, nem pensador ou metafísico? Quando procede a análises minuciosas que se referem à ciência médica, à prática penal moderna, aos usos extremamente variados dos micropoderes, ao investimento disciplinar dos corpos ou, por fim, ao imenso domínio que vai da confissão dos culpados à confissão dos justos ou aos monólogos sem fim da psicanálise, perguntamo-nos se ele escolhe apenas certos factos com valor de paradigmas ou se reconstitui continuidades históricas de onde se destacariam as variadas formas do saber humano ou se, finalmente (como alguns o acusam de fazer) se passeia, como que ao acaso, no campo dos acontecimentos conhecidos ou, de preferência, desconhecidos, escolhendo-os, na realidade, habilmente, a fim de nos lembrar que todo o conhecimento objectivo é duvidoso, do mesmo modo que seriam ilusórias as pretensões da subjectividade. Não foi ele próprio quem confiou a Lucette Finas: «Nunca escrevi senão ficções e estou perfeitamente consciente disso?» Por outras palavras, sou um autor que redige fábulas das quais seria imprudente esperar quaisquer moralidades. Mas Foucault não seria Foucault se não corrigisse ou não matizasse, acto contínuo: «Mas creio que é possível fazer funcionar ficções no interior da verdade.» Assim, a noção de verdade não é de modo algum posta de lado, como não se perde de vista a ideia de sujeito ou a interrogação acerca da constituição do homem como sujeito. Tenho a certeza de que o notável livro de Claude Morali: Quem é eu hoje? não o teria deixado indiferente.[2] 
SOCIEDADE DE SANGUE
SOCIEDADE DE SABER 
No entanto, o regresso de Foucault a certas questões tradicionais (ainda que as suas respostas continuem a ser genealógicas) foi precipitado por circunstâncias que não pretendo elucidar porque me parecem de ordem privada, e, além disso, de nada serviria conhecê-las. Ele próprio se explicou, sem ser absolutamente convincente, acerca do longo silêncio que se seguiu ao primeiro volume da História da Sexualidade, essa Vontade de Saber que é talvez uma das suas obras mais atraentes pelo seu fulgor, o seu estilo acerado, as suas afirmações que transtornam as ideias comuns. Livro que está na linha directa de Vigiar e Punir. Nunca Foucault se explicou tão claramente sobre o Poder que não se exerce a partir de um Lugar único e soberano, mas vem de baixo, das profundezas do corpo social, derivando de forças locais, móveis e transitórias, por vezes minúsculas, até se ordenar em homogeneidades poderosas que certas orientações convergentes tornam hegemónicas. Mas porquê este regresso a uma meditação sobre o Poder, quando o novo tema das suas reflexões é a detecção dos dispositivos da sexualidade? Por muitas razões, das quais, um pouco arbitrariamente, só reterei duas: é que, confirmando as suas análises do Poder, Foucault entende recusar as pretensões da Lei que, embora vigiando, ou mesmo interditando certas manifestações sexuais, continua a afirmar-se como essencialmente constitutiva do Desejo. É, além disso, que a sexualidade, tal como ele a entende, ou, pelo menos, a importância esmiuçadora que hoje lhe é concedida (um hoje que remonta longe), marca a passagem de uma sociedade de sangue, ou caracterizada pela simbólica do sangue, a uma sociedade de saber, de norma e de disciplina. Sociedade de sangue: o que quer dizer glorificação da guerra, soberania da morte, apologia dos suplícios e, por fim, grandeza e honra do crime. O Poder fala então essencialmente por meio do sangue - daí o valor das linhagens (ter um sangue nobre e puro, não temer derramá-lo, e ao mesmo tempo interdição das misturas aventurosas do sangue, daí as adaptações da lei do incesto ou até o apelo ao incesto em virtude do seu próprio horror e interdição). Mas quando o Poder renuncia a ligar-se apenas aos prestígios do sangue e da sanguinidade (também sob a influência da Igreja, que se vai aproveitar disso, alterando as regras da aliança - por exemplo, supressão do levirato), a «sexualidade» assumirá uma preponderância que a associará, não já à Lei, mas à norma, não já aos direitos dos senhores, mas ao futuro da espécie - a vida - sob o controlo de um saber que pretende tudo determinar e tudo regulamentar. 
Passagem, portanto, da «sanguinidade» à «sexualidade». De que Sade é testemunha ambígua e demonstrador fabuloso. Só lhe importa o prazer, só contam a ordem da fruição e os direitos ilimitados da volúpia. O sexo é o único Bem, e o Bem recusa toda a regra, toda a norma, excepto (o que é importante) a que aviva o prazer por meio da satisfação de a violar, ainda que ao preço da morte dos outros ou da morte exaltante de si próprio - morte supremamente feliz, sem remorsos nem preocupações. Foucault diz então: «O sangue absorveu o sexo.» Conclusão que, todavia, me espanta, porque Sade, esse aristocrata que, mais ainda na obra do que na vida, apenas tem em conta a aristocracia para dela extrair prazeres, escarnecendo-a, estabelece, num grau inultrapassável, a soberania do sexo. Se, nos seus sonhos ou nos seus fantasmas, se compraz em matar e acumular as vitimas com o fim de recusar os limites que a sociedade, ou até a natureza, imporiam aos seus desejos, se se compraz no sangue (mas menos que no esperma, ou, como ele diz, no «foder»), não se preocupa de maneira alguma com manter uma casta de sangue puro ou de sangue superior. É exactamente o contrário: a Sociedade dos Amigos do Crime não se liga pela aspiração a um eugenismo irrisório; libertar-se das leis oficiais, e unir-se por meio de regras secretas, tal é a fria paixão que dá a primazia ao sexo e não ao sangue. Moral que revoga, portanto, ou julga revogar, os fantasmas do passado. De modo que se é tentado a dizer que, com Sade, o sexo toma o Poder, o que naturalmente significa também que doravante o Poder, e o Poder político, irão exercer-se insidiosamente, utilizando os dispositivos da sexualidade. 
O RACISMO ASSASSINO 
É ao interrogar-se sobre a passagem de uma sociedade de sangue a uma sociedade em que o sexo impõe a sua lei e a lei se serve do sexo para se impor que Foucault se vê, uma vez mais, confrontado com o que continua a ser, na nossa memória, a maior catástrofe e o maior horror dos tempos modernos. «O nazismo, diz ele, foi a combinação mais ingénua e mais astuciosa - e uma coisa porque outra - dos fantasmas do sangue com o paroxismo disciplinar.» O sangue, sem dúvida; a superioridade através da exaltação de um sangue puro de toda a mescla (fantasma biológico que dissimula o direito à dominação concedido a uma hipotética sociedade indo-europeia, cuja manifestação mais alta seria a sociedade germânica), a obrigação subsequente de salvar essa sociedade pura suprimindo a restante humanidade e, em primeiro lugar, a herança indestrutível do povo da Bíblia. A realização do genocidio tem necessidade do Poder sob todas as suas formas, incluindo as novas formas de um biopoder cujas estratégias impõem um ideal de regularidade, de método, de fria determinação. Os homens são fracos. Só fazem o pior ignorando-o até que se lhe habituem e se achem justificados pela «grandeza» de urna disciplina rigorosa e as ordens de um guia incontestável. Mas, na história hitleriana, as extravagâncias sexuais desempenham um papel menor e rapidamente suprimido. A homossexualidade, expressão de camaradagem guerreira, apenas fornece a Hitler um pré-texto para destruir os grupos insubmissos, que, embora ao seu serviço, indisciplinados, viam ainda vestígios do ideal burguês na obediência ascética, ainda que a um regime que se afirmava acima de toda a lei, porque era ele a própria lei. 
Foucault pensa que, para impedir a proliferação dos mecanismos de poder de que o racismo assassino iria abusar monstruosamente (controlando tudo, até o quotidiano da sexualidade), Freud pressentiu a necessidade de voltar atrás, o que o conduziu, através de um instinto seguro que fez dele o adversário privilegiado do fascismo, a restaurar a antiga lei da aliança, a «da consanguinidade proibida, do Pai-Soberano»: numa palavra, dava à «Lei», em detrimento da norma, os seus direitos anteriores, mas sem com isso sacralizar o interdito, quer dizer, o estatuto repressivo, do qual lhe importava apenas desmontar o mecanismo ou mostrar a origem (censura, recalcamento, super-eu, etc.). Daí o carácter ambíguo da psicanálise: por um lado, faz-nos descobrir ou redescobrir a importância da sexualidade e das suas «anomalias», por outro, convoca em torno do Desejo - e para o fundar, mais ainda do que para o explicar - toda a antiga ordem da aliança, e assim não caminha no sentido da modernidade, constituindo até uma espécie de formidável anacronismo - aquilo a que Foucault chamará uma «retroversão histórica», denominação cujo perigo verá, porque parece torná-lo favorável a um progressismo histórico e até a um historicismo de que se encontra muito longe. 
A INSISTÊNCIA EM FALAR DO SEXO 
Talvez seja preciso dizer agora que, nesta obra sobre a História da Sexualidade, Foucault não dirige contra a psicanálise um combate que seria irrisório. Mas não esconde a sua tendência a ver nela apenas o culminar de um processo estreitamente associado à história cristã. A confissão, a declaração de culpa, os exames de consciência, as meditações sobre os desvarios da carne põem no centro da existência a importância do sexo e, por fim, desenvolvem as mais estranhas tentações de uma sexualidade que se difunde por todo o corpo humano. Encoraja-se o que se procura desencorajar. Dá-se a palavra a tudo o que até então permanecia silencioso. Dá-se um preço único ao que se gostaria de reprimir, tornando-o, entretanto, obsessivo. Do confessionário ao divã, há o caminho dos séculos (porque é preciso tempo para andar alguns passos), mas, das culpas às delícias, depois, do murmúrio secreto ao tagarelar infinito, encontramos sempre a mesma insistência em falar do sexo, ao mesmo tempo para nos libertarmos dele e para o perpetuarmos, como se a única ocupação tendente a tornar-nos senhores da nossa verdade mais preciosa consistisse em consultarmo-nos, consultando os outros acerca do domínio maldito e bendito da sexualidade. Assinalei algumas frases em que Foucault exprime a sua verdade e o seu humor: «Somos, afinal de contas, a única civilização em que há especialistas retribuídos para ouvirem as confidências de cada um acerca do seu sexo... que alugam os seus ouvidos.» E, sobretudo, este juizo irónico sobre o tempo considerável, passado e talvez perdido, a transformar o sexo em discurso: «Talvez um dia isto surpreenda alguém. Compreender-se-á mal que uma civilização tão empenhada, por outro lado, no desenvolvimento de imensos aparelhos de produção e destruição, tenha achado o tempo e a infinita paciência necessários para se interrogar com tanta ansiedade sobre o que se passa com o sexo, sorrir-se-á talvez ao lembrar que estes homens que fomos acreditavam que havia nessa região uma verdade pelo menos tão preciosa como a que já tinham pedido à terra, às estrelas e às formas puras do pensamento; ficar-se-á surpreendido com a insistência que pusemos em fingir arrancar à sua noite uma sexualidade que tudo - os nossos discursos, os nossos hábitos, as nossas instituições, os nossos regulamentos, os nossos saberes - produzia em plena luz e difundia ruidosamente...» Pequeno fragmento de um panegírico às avessas no qual parece que Foucault, desde este primeiro livro sobre a História da Sexualidade, quer pôr cobro a vãs preocupações a que, todavia, se propõe consagrar um número considerável de volumes que acabará por não escrever.
Ó MEUS AMIGOS 
Ele irá procurar e descobrir uma saída (era, em suma, o meio de continuar a ser genealogista, senão arqueólogo) afastando-se dos tempos modernos e interrogando a Antiguidade (sobretudo a Antiguidade Grega - temos todos a tentação de regressar a essa fonte; porque não o Judaísmo antigo, onde a sexualidade desempenha um tão grande papel e onde a Lei descobre a sua origem?). Com que fim? Aparentemente para passar dos tormentos da sexualidade à simplicidade dos prazeres e para examinar a uma nova luz os problemas que no entanto colocam, embora ocupem muito menos a atenção dos homens livres e escapem à felicidade e ao escândalo do interdito. Mas não posso impedir-me de pensar que, com A Vontade de Saber, com as críticas veementes que esse livro suscitou, com a espécie de caça ao espírito (muito próxima de uma «caça ao homem») que se lhe seguiu, e talvez uma experiência pessoal que só posso supor tê-lo atingido enquanto ele ignorava o que ela representava (um corpo sólido que deixa de o ser, uma doença grave de que ele mal tem o pressentimento, por fim, a aproximação de uma morte que o abre não à angústia, mas a uma serenidade surpreendente e nova), se modifica profundamente a sua relação com o tempo e com a escrita. Os livros que vai redigir sobre temas que, no entanto, o tocam de perto, são, à primeira vista, livros de historiador erudito mais do que obras de investigação pessoal. Mesmo o estilo é diferente: calmo, apaziguado, sem a paixão que torna escaldantes tantos outros textos seus. Ao conversar com Hubert Dreyfus e Paul Rabinow[3], e sendo interrogado sobre os seus projectos, exclama de súbito: «Oh, vou começar por me ocupar de mim!» Palavras que não é fácil esclarecer, ainda que se pense de modo um tanto apressado que, na esteira de Nietzsche, se sentiu inclinado a procurar nos gregos menos uma moral cívica do que uma ética individual que lhe permitisse fazer da sua existência - do que lhe restava de vida - uma obra de arte. É assim que será tentado a pedir aos Antigos a revalorização das práticas da amizade, as quais, sem se perderem, não voltaram a encontrar, senão em alguns de entre nós, a sua alta virtude. A philia que, entre os gregos e mesmo entre os romenos, é o modelo do que há de excelente nas relações humanas (com o carácter enigmático que lhe dão as suas exigências opostas, ao mesmo tempo reciprocidade pura e generosidade sem contrapartida), pode ser acolhida como uma herança sempre susceptível de ser enriquecida. A amizade foi talvez prometida a Foucault como um dom póstumo, para além das paixões, dos problemas de pensamento, dos perigos da vida que ele sentia mais pelos outros do que por si próprio. Dando testemunho de uma obra que necessita de ser estudada (lida sem ideias preconcebidas) mais do que louvada, penso permanecer fiel, ainda que desajeitadamente, à amizade intelectual que a sua morte, para mim muito dolorosa, me permite hoje declarar-lhe: enquanto rememoro as palavras atribuídas por Diógenes de Laércio a Aristóteles: «Ó meus amigos, não há amigo».

[1] «As luzes que inventaram as liberdades inventaram também a disciplina.» Talvez seja um exagero: as disciplinas remontam aos tempos pré-históricos, quando, por exemplo, se faz do urso, por um adestramento bem sucedido, aquilo que será mais tarde o cão de guarda ou o polícia valoroso.)
[2] Claude Morali: Qui est moi aujourd'hui?, prefácio de Emmanuel Lévinas (Ed. Fayard).
[3] Michel Foucault: Un parcours philosophique (Gallimard), estudo a que muito devo.

Um comentário:

  1. oh bonita! que belo texto. salve foucault e seus desmiolados seguidores.
    beso

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