Coordenação Artística de Denise Stoklos
Aula Aberta – 02/09/2002
Luiz Fuganti
É com muita alegria que eu
estou aqui para fazer uma espécie de síntese desse trabalho que a gente
desenvolveu ao longo de três meses com o pessoal do “Solos do Brasil”. É um
trabalho, na verdade, diferente do que eu faço, na medida em que ele era
dirigido para uma visão ou para uma maneira de se ver, de se aprender, de se
viver a arte e um vez que as minhas falas geralmente são falas abertas e têm um
público diverso, múltiplo. Evidentemente que esse público do Solos é
absolutamente múltiplo também, radicalmente múltiplo, mas nós tínhamos uma
tarefa propriamente voltada para o problema da arte. Então a questão da arte,
que nos envolveu ao longo desse tempo, foi o nosso mote, o nosso returnelo,
aquilo que se repetia em todos os nossos encontros como uma forma não apenas de
viver ou de assistir ou de inventar certas atitudes humanas, mas como forma
radical de modificar a própria vida. Não só fazermos obras de arte, mas fazer
da nossa própria vida uma obra de arte. Então, se tratou sempre de uma questão
íntima da vida com a própria arte. A gente está habituada a ver a arte sempre
como uma maneira de ver a vida, ou a vida como algo que possa até imitar a arte.
Há quem diga que a vida imite a arte. Há quem diga que a arte imite a vida. E a
gente acha que é uma visão descolada, na verdade. Descolada do corpo, descolada
da sensibilidade, descolada da própria arte. É difícil, nos nossos tempos
atuais, a gente ainda apreender a intimidade e a imanência da própria arte em
relação a vida, em relação a uma vida livre, em relação a um pensamento livre,
em relação a um corpo intensificado, que é o que mais se escondeu, nesses
últimos tempos, nas nossas próprias dobras, que nós inventamos, que nós
investimos, porque queremos sobreviver. Então nós investimos em formas e
maneiras de ser que acabam nos separando de nós mesmos. Nós acabamos investindo
na nossa própria impotência. Nós acabamos investindo na representação como se a
representação fosse uma instância máxima, como se a representação acabasse por
nos revelar e traduzir um mundo superior em relação ao nosso próprio mundo, em
relação ao mundo do nosso corpo, em relação ao mundo do nosso pensamento
inconsciente, em relação àquilo que não é codificado por uma sociedade, por uma
economia, por uma política, por uma história, por uma religião. E a gente acaba
investindo na nossa própria repressão. É difícil afirmar algo nesse sentido
porque é um paradoxo, evidentemente, a vida investir na sua própria diminuição,
a vida investir na sua própria escravidão. Por que acontece isso?
A vida que por algum motivo
esteja separada do que pode – e nós não falamos outra coisa: na medida em que
há poder, não há poder sem vida separada do que pode. É preciso que a vida se
torne impotente para que o poder se torne poderoso. Aonde tem vida potente não
tem poder. O poder foge das vidas potentes. Não é nem necessário a vida potente
enfrentar o poder. O poder é que foge da vida potente. Da mesma forma o
pensamento. O pensamento se basta a si próprio, ele tem uma ordem imanente.
Nossa questão: encontrar a imanência do pensamento, a imanência do corpo, a
imanência da vida, em relação à própria natureza que se basta a si mesma. Não
uma natureza referenciada, remetida a algum alvo fora dela, a alguma instância
privilegiada. Mas uma natureza autoprodutora, autogerenciadora,
autodeterminante. Então o sentido da autonomia esteve sempre intimamente ligado
com a questão da imanência, o que nós chamamos de imanência ao longo desses
meses, e ficou bem marcada uma questão essencial, ou central que é a seguinte:
não haveria nenhuma possibilidade, nenhuma condição da imanência ou da vida
colada a si própria, da vida ligada ao que ela pode, sem uma superfície expressiva
que o poder sistematicamente nos rouba. Não há poder que não precise roubar a
superfície expressiva do corpo e do pensamento. A questão da arte: não há arte
sem expressão. Arte não é representação. Representar é falsificar as potências
da vida. Não há como você re-apresentar uma diferença que não precisa de
mediação, sem esmagá-la. O problema é: como reencontrar uma superfície de
expressão na sua imediaticidade, na sua relação direta com a vida. Haveria
necessidade pra vida, de um plano referencial de organização, de valores, de
órgãos, de funções, de sistemas, de representações, de julgamentos, necessários
à organização do seu próprio corpo, ou à determinação da ordem do nosso
pensamento? Haveria isso ?
A gente trabalhou com a
seguinte questão: não há nenhum sistema de representação, nenhum sistema de
julgamento, que é a mesma coisa – representação e julgamento, não há diferença
– que não implique um esmagamento das diferenças, das singularidades e um
esquadrinhamento do espaço do corpo e do tempo do pensamento. Não há como o
corpo se autodeterminar a partir de um referencial representativo ou de valores
estabelecidos. E não há como o pensamento se autodeterminar a partir de um
tempo esquadrinhado e previamente recortado segundo uma cronologia imaginária.
E nós, em função disso, sinalizamos e desenvolvemos alguns conceitos, chamando
de forma de conteúdo tudo aquilo que aprisiona ou que determina o corpo de
fora, do exterior. E forma de expressão, tudo aquilo que aprisiona ou determina
o nosso pensamento de fora. A forma de expressão e a forma de conteúdo são duas
formas heterogêneas, uma para o corpo e uma para o pensamento. E que o poder
cria uma ilusão de dizer ou de apreender como sendo a mesma. A mesma forma que
nos põe em relação de adequação entre corpo e pensamento, ou entre espírito e
matéria, ou entre tempo e espaço, como se houvesse uma única forma expressiva e
na verdade essa forma expressiva seria a forma substituidora da ordem real da
própria natureza. A ordem real do corpo - uma ordem imanente à natureza - e a
ordem real do nosso pensamento, que de forma alguma é uma lógica
representativa. O problema então seria libertar o corpo do organismo, dos
órgãos e das funções de órgãos, e libertar o pensamento da própria consciência
ou da noção de sujeito. Sujeito, eu ou consciência são os grandes aguilhões do
nosso pensamento. Não se fala em nome próprio quando se diz “eu”, não se pensa
ou não se cria nada quando se submete o nosso pensamento ao “eu”. Ao contrário,
o “eu” é uma palavra de ordem, o “eu” é o próprio nome do Estado em nós. O “eu” é não só o
representante da lei, é a própria lei. Antigamente, antes da nossa formação
capitalista, o “eu” era o representante do bem, o “eu” se identificava à lei,
ainda era uma entidade objetiva, ideal, exterior, e era um elemento delegado,
digamos assim, de uma entidade fora da própria natureza, uma entidade
transcendente à natureza, que seria a idéia de bem. A partir do século 19 a lei que era delegado do
bem vira ou inverte, há uma inversão radical. Radical no sentido de que não é
mais a lei que é representante do bem. Agora, só existe bem na medida que a lei
é primeira. A lei kantiana, a lei edipiana, a lei do sistema capitalista, a lei
da revolução francesa, a lei dos valores humanos. Na verdade, aquilo que o
Nietzsche chama de morte de Deus e nascimento do homem, nada mais é do que uma
falsa morte de Deus ou uma substituição de Deus pela forma homem, ou uma
substituição do bem por uma forma legal, uma pura forma de lei. Essa pura forma
de lei agora não está mais fora do mundo ou sobrevoando o mundo. Agora ela
sobrevoa internamente o nosso próprio corpo. Nós habitamos essa lei, nós
habitamos nosso eu, nós habitamos a nossa consciência e a partir dela, diria
Kant, a partir de uma pura forma de dever nós instituímos uma maneira de sermos
livres quando nos tornamos sujeitos legisladores. Essa forma cínica de ser
livre, ou hipócrita de ser livre, implica uma velha ficção. Como diz Nietzsche,
a mais longa história de um erro: a crença num ideal. A crença num ideal divino,
a crença num ideal humano, a crença de que é necessário ter valor ou forma que
é primeira em relação às forças, às potências, às intensidades da própria
natureza. A forma sempre seria primeira. Em função disso criou-se uma série de
desenvolvimentos, já na nossa sociedade. Claro que essa história é longa, e a
gente poderia fazer aqui uma descrição de vários regimes onde esse modo de
esmagar a vida opera, a gente pode chamar de poder de soberania referindo-se a
todas as sociedades anteriores ao sistema capitalista que precisam de um
Estado. Estado monárquico, aristocrático, democrático, Estado despótico, não
importa. Essas sociedades anteriores à sociedade capitalista que necessitam de
um Estado ou de um poder, seriam sociedades de soberania ou designariam um
poder de soberania. O sistema capitalista inventa um outro tipo de poder que é
o poder disciplinar, como bem explicou Michel Foucault. A obra inteira dele,
praticamente, é sobre a desmontagem do saber e do poder no regime capitalista.
E Foucault vai descrever regimes de luz e de dizibilidade, digamos assim.
Regimes de discurso e regimes do corpo. Os regimes do discurso é o que
inicialmente a gente chamou aqui de forma de expressão. E regimes do corpo ou
de luz seriam aqueles remetidos à forma de conteúdo. E diz Foucault: o poder
capitalista não age por repressão, e tão pouco por ideologia. O problema da
violência é secundário. O problema do poder não é reprimir. O problema dele é
seduzir. E de que modo ele seduz? Antes produzindo o que ele quer. Não o que
ele quer enquanto objeto, enquanto produto, mas o que ele quer enquanto sujeito
– os seus agentes. Ele forma os seus agentes. Ele forma os corpos dos quais ele
necessita e as almas dos quais ele necessita. Então o poder capitalista, assim
como todo poder, fabrica almas e corpos. As almas e os corpos não estão
prontos. Nada está pronto na natureza. O poder, de alguma forma, entende como
funciona, de viés claro, mas entende de alguma maneira que a natureza fabrica,
que não há nada pronto. Como diz Foucault, numa certa provocação a aqueles que
acreditam em ideologia – uma boa parte
da esquerda que acredita em ideologia, em sujeitos neutros e em ciência – ele
diz o seguinte: a direita realizou todas as suas utopias, a esquerda nenhuma. E
é uma coisa triste, um pouco lamentável, no sentido de que a esquerda sempre
esteve muito mais próxima da vida e da liberação da vida do que a própria
direita, evidentemente. Mas o que está instituído, o que está estabelecido, não
está instituído por que tomou ou acedeu a algo pronto. Na verdade, inventou-se
esse algo, e é isso que a direita e o poder sabem muito bem. O poder sabe
fabricar aquilo que ele necessita. Evidentemente que nisso se encontra a arte e
a cultura. Há uma relação direta de submissão de várias tendências ou
movimentos de arte e cultura que estariam, digamos, na cumplicidade com esse
próprio poder, numa conivência, numa retroalimentação desse próprio poder na
medida em que esse poder, ao mesmo tempo em que ele inventa o lugar do seu
reconhecimento, ele também inventa o lugar do “não” a ele mesmo. Há o lugar que
o poder designa para que se diga não a ele. Então você pode contestar o poder.
Você pode ir contra o poder. Você pode fazer uma arte dita revolucionária,
muitas vezes, pensando que é revolucionária quando, na verdade, você está
simplesmente reforçando aquilo que o poder, de alguma maneira, já havia
reservado como um “estoque alimentício”. Porque, como diz Deleuze, nenhuma
sociedade morre de contradição. O capitalismo não só não morre de contradição como
se alimenta cinicamente de qualquer contradição. A questão então não é a gente
inventar uma atitude contra o poder, mas a gente encontrar as nossas potências,
o que é bem diferente. Porque na potência o próprio poder foge. Então você não
vai contra, você não se opõe. Você cria uma maneira de liberar a vida para que
ela encontre os seus autênticos aliados. Então a vida precisa de aliados.
Aliados impessoais, aliados muitas vezes não-humanos, aliados muitas vezes
não-sociais, não-orgânicos, não estabelecidos segundo a idéia que a gente tem
de aliado. Na verdade não há aliado maior do que o nosso próprio corpo e nosso
próprio pensamento. Não porque o corpo nos pertença ou o pensamento nos
pertença de alguma maneira. Por isso não, porque quando você atinge a imanência
do corpo e do pensamento, você sabe que essa idéia, essa vaga idéia de
propriedade é de fato pura ficção. Porque o corpo e o pensamento atravessam o
meu corpo e o meu pensamento. O meu corpo e o meu pensamento nada mais são do
que dobras de tempo e de espaço. Dobras de intensidade que, apesar de se
envolverem num pólo atrativo que forma essas dobras de dentro, dentro do corpo,
dentro do pensamento, jamais se deixam aprisionar na sua essência, na sua
singularidade. Então haveriam essências, singularidades nômades no pensamento e
no corpo que independem de nós mesmos e que nos atravessam apesar de nós
mesmos. Por que, então, não desenvolver algo em nós, no nosso corpo, no nosso
próprio pensamento, para que a gente comece a ouvir, ver, apreender, sentir
faixas, freqüências, zonas inabitadas do nosso próprio corpo, do nosso próprio
pensamento? Por que não acessar essas regiões não reconhecidas na família, na
escola, no quartel, na fábrica, na empresa? Nas próprias artes? Seria um lugar
privilegiado de experimentação com o corpo, com o pensamento. A gente vê as
artes entupidas de representação, de cascas, que na verdade impedem o acesso a
essas zonas que são desconhecidas do corpo, e a esse inconsciente do nosso
pensamento livre da própria consciência. Por que não desenvolver e lapidar uma
sensibilidade? Fazer do nosso próprio corpo uma obra de arte e não simplesmente
acreditar que existe em nós uma substância original a partir da qual a gente
criaria do nada, como o deus cristão, o deus judaico, o deus islamita que criam
do nada a partir de desejos e carências. Um deus que precisa do homem, um deus
que precisa de uma natureza, um deus impotente, enfim. Nós artistas, se nós nos
colocamos na posição de artistas a partir de um substrato original, aparentemente
livre, gerando idéias novas, organizações novas, corpos novos, a partir desse
embaralhamento ou dessa complicação
subjetiva, mas que teria uma fonte original íntima e verdadeira, nós estamos na
verdade reproduzindo o mesmo processo. Porque não há nada em nós que exista em
si isoladamente, por mais que queira criar uma relação, essa relação é sempre
submetida a um eu profundo, a um centramento profundo, a uma instância que
seria a fonte da própria criação como uma inspiração que vem misteriosamente,
ou uma vocação, ou algo inato que nos atravessaria e então, nós com o nosso dom
de artistas, ou de pensadores, ou de cientistas, ou disso ou daquilo,
magicamente ou misteriosamente criaríamos relações que na verdade estariam
submetidas a um centro pobre de nós mesmos. Quanto mais nós encontramos em nós
um centro, quanto mais nós encontramos em nós um “eu”, mais pobres nós ficamos.
Porque a vida não funciona assim, a natureza de modo algum funciona assim. O
único centro que existe em nós, na verdade, é aquele aonde uma força, uma
potência assume a direção ou inventa uma direção e traz as outras todas que nos
envolvem. Sempre o nosso centro é um centro de potência, e nenhuma potência é
inteiramente dominante, a não ser nas vidas medíocres que são determinadas pelo
próprio poder exterior, e que ao falar em “eu” simplesmente representam esse
poder em si mesmo. Mas a fonte da riqueza, da diversidade, da multiplicidade,
na verdade, está na capacidade de encontrar em nós a pluralidade dessas forças
ou dessas diferenças, sem submetê-las a um centro. Mas de que modo o homem
acredita e investe em centros? De que modo o homem acredita e investe em
identidades? De que modo o homem acredita e investe em sujeitos e objetos? Ele
só investe em sujeitos e objetos, ou em identidades, ou em centros, na medida
em que ele investe figuras, na medida em que ele investe formas, na medida em
que ele investe uma forma exterior do próprio espaço e uma forma exterior do
próprio tempo, na medida em que ele perde a capacidade de gerar espaço e de
gerar tempo, na medida em que ele não se cola mais à essa superfície virtual, à
essa superfície metafísica que envolve qualquer vida, que envolve toda a
física. É uma metafísica do aqui e agora, é uma metafísica do acontecimento, na
medida em que esse acontecimento virtual nos chama, nos faz sinal o tempo
inteiro para que a gente gere formas, figuras, ou então fulgurações, ou
fabulações, e até devires e alucinações -
por que não? - a partir de uma intensidade imanente que nos atravessa no
corpo ou no nosso pensamento. Mas, uma vez que essa superfície não tem
existência, nós acreditamos que ela não tem realidade - porque ela não existe ela não é real. A gente
confunde realidade e existência. Há uma presença, há uma realidade de
inexistente, do vazio e do tempo, que são as condições do acesso à própria
expressão. A condição da expressão no corpo e da expressão no pensamento é uma
cópula com o virtual. A atualidade em nós, o que é presente em nós, o que se
manifesta em nós, apesar de a gente falar eu, apesar de a gente citar nomes,
são sempre processos, forças, diferenças, ou potências múltiplas, como um
discurso plurívoco, como uma música polifônica que se apodera de nós na mesma
medida em que nós permitimos o acesso dessas vozes, desses tons, desses elementos
imperceptíveis que geralmente a vida cotidiana nos impede o acesso.
A arte que seria uma aliada
fundamental - não só a arte, mas a ciência e o pensamento – seria uma aliada
para provocar deslocamentos do nosso corpo e do nosso pensamento acomodado,
acostumado a investir nas próprias condições de sobrevivência e reduzir a vida
a uma sobrevivência, reduzir o pensamento à própria consciência, reduzir o
corpo a esse sistema orgânico utilitário que a sociedade cria para a gente. A
arte, a ciência e o pensamento se encarregam não de provocar deslocamento, de
abrir horizontes para nós, mas elas passam a servir o próprio Estado, de modo
muito sutil, mesmo na arte dita de vanguarda, na arte popular, na arte engajada
e fundamentalmente numa outra instituição que está sempre aí pronta - foi
inventada para isso - e está sempre pronta pra julgar e acomodar certos tipos
de arte e desclassificar outros tipos de arte, como a instituição da crítica. E
a crítica geralmente tem servido para uma coisa muito mais interessante do que
formatar os espíritos e os corpos para que se adeqüem ou valorizem mais certos
tipos de arte ou destituam outros. A crítica, na verdade, tem uma função muito
mais interessante: ela faz a gente rir bastante. A gente precisa de vez em
quando rir muito, no sentido de diversão mesmo, só pra se divertir. Porque
existem aqueles risos mais assassinos, mais radicais, mais humorísticos, aquele
humor profundo que vem das nossas entranhas, que não tem, de modo algum, forma
de detê-los. Mas a crítica é uma coisa que faz a gente rir bastante no seguinte
sentido – eu não estou aqui generalizando, evidentemente, porque existem
pensadores, existem críticos que até ajudam a criar linhas de fuga, que
valorizam os aspectos aonde a vida se torna mais intensa, valorizam obras de
arte ou práticas de arte que fariam com que a vida ficasse muito mais
interessante, se tornasse não só uma espectadora de obra de arte, mas entrasse
em devires, porque é isso que interessa, entrar em devir, fazer com que aquilo
de fato mude, que algo se passe em você, e não enquanto um espectador que vai
lá consumir alguma coisa. Mas o crítico geralmente tem o dom de instigar ou de
estimular um fortalecimento dos nossos próprios aguilhões, um embotamento da
nossa sensibilidade. Então, geralmente o crítico se liga a valores,
evidentemente valores estabelecidos, valores que a nossa consciência valoriza
demais, valores que o nosso corpo orgânico cansado e impotente valoriza demais,
exatamente por causa disso, porque um corpo cansado precisa disso, um pensamento
embotado precisa disso: idéias de unidade, linearidade, encadeamento, história
– tem que ter uma história, tem que ter um enredo – personagens bem definidos,
centros de referência que façam que a gente não se perca num espetáculo que, na
verdade, é sempre a idéia do espetáculo como o modelo de representação, de
re-apresentação de um tipo de valor a ser seguido, ou de um tipo de valor a ser
execrado, não deixam de ser modelos, modelos do sim e modelos do não. A arte
rebelde, a arte transgressora ou a arte oficial, lambedora de sacos. Essas
formas de arte são erigidas pelos críticos como maneiras de elevar
culturalmente o espírito. É um culto à forma, é um culto a uma lógica
histórica, uma história com bom-senso: começo, desenvolvimento, meio e fim. “Eus”,
“tus”, “eles” muito bem identificados. Esse tipo de arte, na verdade, não
incomoda ninguém, não faz mal pra ninguém, muito pelo contrário. Aliás, esse
“ninguém” a quem ela não faz mal ou não incomoda, é o ninguém da nossa própria
morte. Nós, enquanto mortos, não nos incomodamos com isso, ao contrário,
precisamos disso. O que acontece com a função própria do crítico é simplesmente
uma desqualificação nas zonas do caos, nas zonas do limbo, nas zonas da
desordem, da porra-louquice, da inconsciência, da inconsistência, da
inconseqüência dos autênticos pensadores e dos autênticos artistas produtores
de obras de arte, não enquanto monumentos mortos, mas enquanto monumentos,
enquanto blocos de intensidade que nos modificam e modificam a todos e que
independem do próprio criador, ou do próprio espectador ou do próprio objeto
que as fez obras de arte. Os próprios objetos, os espectadores, os atores ou os
artistas, na verdade, se tornam até secundários diante dessa pluralidade, dessa
riqueza de intensidades nômades que atravessam esses corpos e esses
pensamentos, que atingem as zonas de fato da imanência da vida ou da própria
natureza. O crítico se perde, evidentemente, na medida em que ele precisa de
algum lugar no jornal, numa TV. Ou então, enquanto maldito acaba se excluindo,
porque precisa de alguma forma do reconhecimento do Estado. Quando o crítico é
um funcionário a serviço do Estado, assim como filósofos são funcionários a
serviço do Estado, assim com cientistas são funcionários a serviço do Estado. E
hoje, é claro que o Estado está a serviço do capital. Nós não estamos mais a
serviço do Estado, nós estamos a serviço do capital, na medida em que nós
servimos o Estado, porque o Estado só serve o capital, não há Estado
social-democrático, democrático, autoritário, tirano, não há forma de Estado
que não esteja até o talo comprometido com a fabricação e a expansão dos
bolsões de miséria e do acúmulo de riqueza. Não há social-democracia que nos
engane a esse respeito. Enfim, sempre que o Estado precisa gerar uma vitrine de
rebatimento como a vitrine dos críticos, ou gerar uma superfície de saber como
o saber da ciência, ou gerar uma justificativa fundamental para o seu modo de
existência como a própria filosofia ou uma religião, o Estado sempre convoca os
seus funcionários mais competentes, mais sábios, mais bem centrados, mais bem
formatados, e que são os ilustres senhores do saber, os ilustres assessores que
acessam as formas intrínsecas da modalidade humana de existir, que são na
verdade, o próprio juízo. O que nos mostra o juízo? O que significa a gente
precisar do juízo? O que significa a gente precisar de uma instância que julgue
as coisas? Que julgue a natureza, que julgue a sociedade, que julgue a nossa
própria vida, que julgue os valores, que julgue as práticas? Que diabo de
instância é essa que se põe no meio da vida, no meio da própria natureza, como
se ela fosse extremamente necessária e se põe piedosamente na prática de nos
salvar? O julgamento nos salva, seja o julgamento de Deus, seja o julgamento
dos cientistas, seja o julgamento do Estado, não importa, o julgamento nos
salva. Salva do quê? O que está implícito aí? Está implícito uma maneira de
acusar a vida, uma impostura existencial, uma impostura em relação ao corpo e
em relação ao pensamento. Que impostura é essa? O corpo, ele não tem ordem, ele
não tem seqüência lógica, ele é passional, ele é intensivo, ele é impulsivo,
ele é desequilibrado, ele é fonte de diferenciações constantes que nos conduzem
ao caos. E o caos não tem realidade, ou a realidade do caos é a realidade que
nos arrasta para baixo. Há um pressuposto de que a natureza é caótica, de que a
vida é caótica e que o pensamento sem referência também é caótico, assim como o
teatro da Denise Stoklos é caótico segundo muitos críticos. Mas isso evidentemente,
do nosso ponto de vista, é um elogio, apesar de que pouco nos importa o elogio
deles. Elogios e censuras não nos dizem nada. Na verdade, apreender o caos
enquanto falta, enquanto ausência de realidade, que necessita ser salvo de
alguma maneira por um valor, por uma forma ordenada, superior, tanto mais
superior quanto mais ela se afastar da matéria inferior, porque a matéria é uma
mistura impura, e quanto mais atingirmos a pureza da forma mais encontramos
essa realidade, porque a forma nos mantém idênticos a nós mesmos, mantém os
valores idênticos a si mesmo, mantém as coisas claras numa redoma formal. O que
implica isso tudo, na verdade, é uma visão de que a natureza, de que a vida, de
que o pensamento não se bastam a si mesmos. Eles precisam de um instrumento, um
método, um caminho para aceder à própria realidade que diria o modo como a
natureza, como a vida devem ser, devem existir, devem se expressar. A vida, a
natureza, o pensamento não podem se expressar por si próprios. Eles devem ser apresentados,
explicitados, referidos, ordenados a partir dessa instância superior. Portanto
eles devem ser re-apresentados, eles devem ser representados. Não há vida,
pensamento, natureza, mundo fora da representação que encontre a salvação,
segundo essa visão. Essa visão tem uma origem não numa postura de vida, mas
numa impostura de vida. Não há esse tipo de visão sem uma vida e um pensamento
separados do que eles podem. Você só age desse modo se você estiver separado do
que você pode. E você separado do que você pode, você é uma potência sem ato,
portanto uma potência impotente. A potência sem ato quer encontrar esse ato,
mas não sabe mais onde ele está. O ato que produz realidade em nós, o ato que
fabrica a própria realidade, o ato que fabrica a eternidade sumiu, ele está num
outro mundo, ou até no nosso mundo a partir de uma instância humana, dessa
instância formal da lei, ou da razão, ou da ciência, ou de um discurso bem
articulado, bem centrado, a partir de um “eu” que vai em direção ao objeto, um
discurso que tenha bom senso, que fixe o tempo numa única direção, na boa
direção e elimine a má direção e que crie sensos comuns, é o mesmo que sente
que pensa, que faz isso ou que faz aquilo, assim como é o mesmo objeto que tem
tais e tais afecções. Então essas ficções, essas ilusões de centros nos objetos
e nos sujeitos vem da ilusão do senso comum, e a boa ordem ou a finalidade das
coisas implica na ficção do bom senso, os dois pilares do próprio juízo ou do
sistema da própria representação.
Nietzsche diz uma coisa muito
interessante – e esse percurso a gente
fez, de alguma maneira, ao longo desses meses no “Solos do Brasil” – uma
espécie de crítica radical a todos o sistema representativo. E não se trata
simplesmente de uma situação de época, ou de uma situação histórica, ou de uma
situação de regime econômico ou de regime político. Se trata de qualquer poder
ou da própria natureza do poder. O poder não existe fora de nós, o poder existe
entre nós, o poder atravessa o nosso corpo, as nossas entranhas, as nossas
vísceras, o nosso pensamento, o nosso inconsciente. Como? Através da nossa
própria impostura. Nós separados do que podemos precisamos investir naquilo que
pode fora de nós. O que pode fora de nós é sempre uma ordem exterior a nós
mesmos fundada em nós. Assim ,
a gente fez uma crítica a partir de Nietzsche, depois a partir de Spinoza,
depois a partir dos estóicos, situando outros pensadores ligados à
transcendência, desmontando, de alguma forma, esse pensamento da transcendência
para liberar o que seria o pensamento ou a vida na imanência – a vida e o
pensamento na imanência a partir dos estóicos, a partir de Spinoza, a partir de
Nietzsche, a partir de Foucault, a partir de Deleuze, de Artaud, de Van Gogh,
dos pré-socráticos, enfim, de todos aqueles que não acreditam que a vida
precise ser julgada ou precise ser representada, desmontando essas outras
instâncias que fazem exatamente essa prática às avessas com a arma da própria
imanência, ou seja, o mal não vem por acaso, o mal não se institui de fora, não
é o poder simplesmente que é mau, e os outros são maus. Há um combate muito
mais fundamental que não é o combate “contra”, mas é o combate entre as nossas
próprias forças, e como essas nossas forças entram em combate em relação à
liberação da vida ou ao aprisionamento, o achatamento da própria vida. Então há
uma bifurcação em nós, na nossa própria superfície do ser, do ser em nós. O nosso extra-ser está
entupido de becos sem saída. Nós estamos cheios de becos sem saída no corpo e
no pensamento. E é claro que o poder está sempre pronto a nos introjetar ainda
mais medo de vasculhar esses becos sem saída na superfície do nosso corpo e do
nosso pensamento. O poder só trabalha com duas paixões fundamentais: esperança
e medo. Esperança de a gente conseguir sobreviver investindo nessas formas que
nos mantém impotentes. E medo de não sobrevivermos, de não subsistirmos, na
medida em que entramos em conflitos com essas formas ou não sabemos encontrar
essas formas. Portanto os becos sem saída, do ponto de vista do poder, são
aguilhões salvadores, formas de liberdade e de salvação. De que modo, então,
nós somos cúmplices do poder? Nessa mesma superfície em nós mesmos. Antes de a
gente virar uma altura, a altura da representação, a altura do eu, a altura da
lei, a altura de Deus, nós temos uma superfície e uma profundidade. O que é a
nossa profundidade? Não sabemos mais o que é. Qual é a profundidade do nosso
corpo? É o nosso estômago, é o nosso pulmão, as nossas orelhas, os nossos
olhos, o nosso cu, quem sabe, é o mais profundo? Mas, na verdade, quando a
gente identifica a vida aos nossos próprios órgãos, nós não sabemos o que se
passa em nós e não atingimos a nossa profundidade real. Nós inventamos uma
falsa profundidade. Quando nós organizamos o nosso corpo – a luta de Artaud era
pra acabar com o organismo nele, esse organismo fabricado e feito nele que
impedia o acesso a essas regiões. Mas essas regiões estão escondidas porque nós
alimentamos os becos sem saída do nosso corpo, assim como nós alimentamos os
becos sem saída do nosso pensamento. Mas como nós alimentamos isso? Alimentamos
isso na medida que, na bifurcação da nossa expressão, quando a nossa vida, as
intensidades que nos atravessam, o nosso próprio pensamento, quer encontrar a
expressão, a sua forma própria e singular na extremidade do ser do meu próprio
devir – e encontra-se o que lá, sinalizando? Não, essa forma é uma forma
extrema e formas extremas dão no caos, dão na morte, dão no suicídio, dão na
miséria, dão em tudo o que é negatividade. A forma extrema, seja do excesso,
seja da falta – falta ou excesso: você vai se dar mal. É preciso você encontrar
a sua forma média, uma forma mediana, nem quente nem fria, nem alta nem baixa,
tudo pela média, tudo na lei, vamos investir a lei que é mais confortável para
o corpo e para o pensamento e nos dá, além de tudo, reconhecimento. Nós somos
reconhecidos na medida em que nós somos equilibrados, bem centrados, ordenados,
temos um objetivo na vida, temos projetos e memórias. Entupimos o nosso passado
com memórias e excluímos o nosso futuro com projetos – e perdemos o devir,
perdemos o aqui e agora, perdemos o acontecimento, perdemos a própria
superfície porque na superfície só tem caos, só tem vazio, que não é nada, e só
tem um tempo, o louco (???), porque passado e futuro ao mesmo tempo é um tempo
que não é o tempo do bom senso, não é o tempo cronológico, não é o tempo dos
processos reconhecidos pela própria sociedade. Portanto nessa zona, nessa
superfície, é onde tudo se bifurca. Um dia eu chamei isso de “instante de decisão
estética”. Criam-se sempre instantes de decisão estética, não é a minha
consciência que diz sim ou não para certos processos, é a minha postura que já
é o sim ou não da coisa. É por isso que Nietzsche diz: é tão difícil a gente
atingir a afirmação. Porque a afirmação não é uma coisa de consciência, não é
uma coisa de discurso, não é uma coisa de diálogo tagarela. Na verdade, a
afirmação é um modo de viver, na postura mesmo do corpo e do pensamento você já
encontra um sim ou um não. Um sim ou não a quê? Um sim ao virtual ou um não ao
virtual. O virtual é um caos, não ao virtual. O virtual é um presente, sim ao
virtual. São duas posturas. Mas o virtual é tudo o que o poder precisa
eliminar. O poder precisa criar possível e impossível, o virtual não. O possível
sim, porque o possível é formatado, ele é cheio de formas, ele é ou memória ou
projeto, mas o virtual não é nem uma coisa nem outra. O virtual é o próprio ser
do devir, é o ser da realidade, é o modo como a realidade se produz. É o ato
perdido da nossa potência. É ali que está o próprio virtual, o ato está no
virtual. É esse ato que não só as vidas ordinárias perderam, as vidas ilustres
perderam, mas a vida dos artistas, ou a vida da arte. E é tão raro hoje em dia
ver obras e práticas de arte como a da Denise Stoklos ou algumas outras que
rompem com todos esses padrões estabelecidos e nos mostram toda a positividade
do corpo e do pensamento que jamais vai cair no caos, apesar das aparências, de
uma leitura pobre e reduzida de que aquilo é caótico, pela incapacidade de
atingir exatamente essas zonas, essas regiões desconhecidas do corpo e o
inconsciente do próprio pensamento, que nos devolvem o ar puro, que nos
devolvem caos. Mais caos, por favor, para a vida, mais ar puro! Porque o poder
preenche tudo, ele não deixa nenhum espaço para nenhum caos, para nenhum vazio,
para nenhum hiato, para nenhum silêncio, ele quer preencher tudo porque é no
ócio que as idéias ruins para o poder se localizam, nos hiatos, nos vácuos, nos
bolsões de caos. Então o poder quer preencher tudo. Essas práticas artísticas
são, na verdade, maneiras de nos devolver a ressonância, a vibração, o enlace,
a cópula com elementos em nós já de muito abandonados, no corpo e no
pensamento, porque são maneiras inteiramente imanentes ao próprio corpo e ao
próprio pensamento, e por ser imanentes elas encontram uma expressão sempre
singular. E não há expressão singular que não seja uma forma extrema. A arte,
como a vida, precisa do extremo. Ou o extremo ou a morte, não tem alternativa.
O meio termo é a pior das mortes, o meio termo é a morte em vida. Agora , a morte
de uma forma extrema é sempre o nascimento de uma outra mais potente ainda. É
aquilo que dizia Nietzsche do trágico: o trágico é alegre, desde que esse
trágico seja sempre a morte de algo que aprisiona a vida e faz com que a vida
encontre uma nova forma, uma nova expressão mais poderosa ou que envolva mais
realidade, que dobre mais foras em dentro mais potente, mais plural, mais rico
do que antes. Portanto, tem formas que necessitam morrer para que outras
emerjam. Essa forma do trágico é necessariamente alegre, é a forma da vida
alegre e criativa. É a destruição inocente de todo criador. Não há criador que
não destrua, mas a destruição é sempre secundária, é sempre relativa ao
processo criativo que é primeiro e mais importante do que aquilo que é
destruído. Na criação a vida se expande, a vida fica mais forte, e não
simplesmente aquilo que é destruído e que queria, de alguma maneira, se apegar
à existência e impor uma existência mais fraca do que essa vida mais forte que
agora passa. Então, há sempre visões misturadas nesse processo e que nos
confundem muitas vezes. Quando a gente investe na própria superfície do corpo,
na superfície física do corpo que é a sensibilidade, que é a nossa pele, na
superfície metafísica do nosso pensamento, que nada mais é do que o tempo do
acontecimento, é quando você encontra – e isso é o único sentido de encontro,
não há outro encontro – ou você encontra isso ou você não encontra nada. Aí
você procura, você busca, você acha, você troca, mas encontrar é uma coisa
muito sutil. Ou você encontra essa superfície, você encontra essa virtualidade,
e aí sim você tem a chance, a cada instante, de se ligar novamente ao que você
pode, ou de alimentar a impotência em você.
A gente viu então, com
Nietzsche e Spinoza, aonde nasce a necessidade do homem investir naquilo que o
diminui, naquilo que o esmaga de alguma maneira, naquilo que o reduz à
sobrevivência. Portanto ele abre mão da criação, da atividade, da invenção, da
ousadia, das intensidades, por covardia, por pura covardia. Mas onde nasce,
então, essa covardia? Os dois pensadores são unanimes em dizer: é na
consciência. A consciência é o lugar, em Nietzsche, de uma ficção fundamental,
o que ele chama de imagem invertida, e em Spinoza de uma ilusão, é o lugar
natural de uma ilusão. Não que necessariamente a consciência desenvolva isso,
desenvolva a ficção ou desenvolva a ilusão. Mas numa vida ameaçada, que se
sente num beco sem saída e que acaba por algum motivo investindo mais nos
efeitos do que nas causas, mais nas formas do que nas forças ou nas potências,
essa vida acaba gerando uma casca, um muro, uma representação que envolve e
isola o meu eu, envolve e isola o mundo e envolve e isola um Deus fora de mim e
fora do mundo. Criam-se cascas para os objetos, para os sujeitos e para uma
significação ideal. E nunca mais a gente atinge as próprias coisas enquanto
coisas ou as palavras enquanto palavras. A gente passa a viver uma relação com
as palavras como meros signos representativos que remetem eternamente um ao
outro. E nós, ao invés de irmos de um signo a uma intensidade, nós vamos de um
signo a outro signo e vamos formando encadeamentos do que chamamos de idéias. E
aí chamamos isso também – a partir de uma ordem entre um signo e outro que a
gente cria arbitrariamente - chamamos de uma ordem verdadeira das coisas, uma
lógica, um método, um caminho. A gente cria ficticiamente uma capa
representativa para todas as coisas que chamamos de razão. A partir do quê? Uma
ficção, uma ilusão. Nietzsche diz: na postura reativa não há nenhuma vontade.
Na reação não veja o outro como uma oposição. Na postura ativa você tem devires
ativos na medida em que o que se impõe é a própria diferença e a diferença que
é afirmada acaba, ao mesmo tempo, afirmando as outras diferenças. Então, na
relação, eu, ao afirmar a minha a diferença e não me defender da outra - que é
o caso da outra postura reativa – ao afirmar a minha diferença eu acabo
afirmando as outras todas e vendo as outras como diferenças. Mas a postura
reativa, não. Ela, ao se defender, ela vê como uma oposição a mim próprio. A
imagem invertida que se desdobra daí vai se expressar em três ficções, diz
Nietzsche: a ficção de uma força separada do que pode. Na natureza a força não
se separa do que ela pode. Aí vai estar a origem do ressentimento. Algo que me
acontece e eu preciso me defender daquele que provocou isso em mim. E eu vou me defender
de um modo negativo. Eu vou negar uma afirmação ou alguma coisa de positivo na
ação do outro e vou ver no outro uma falta. Uma falta de ter se detido. Ele que
poderia não agir, agiu. E quando agiu foi mal para mim. É imaginar uma
potência, uma força que pode não agir enquanto força, enquanto potência. Diz
Nietzsche: isso é uma ficção. A potência ou a força não se separa do que pode,
ela age, não mede conseqüências, porque a vida é totalmente inocente. Não há
como uma afirmação real de diferença atingir criminosamente o outro, isso é uma
ficção. De quem? Do ponto de vista de quem está na reação. A mesma coisa em
relação a nós mesmos. Há um momento em que esse ressentimento se espalha tanto
que a culpa não vai estar mais nos outros, porque o mundo inteiro vai começar a
ver que todo mundo é culpado, vai começar a se sentir culpado. Não, a culpa não
é do outro, a culpa está em mim. É o momento, diz Nietzsche, do sacerdote
cristão São Paulo. Ele inventou essa ficção de que Cristo morreu pelos nossos
pecados. E que, se a gente sofre, se a gente tem dor, de alguma forma isso é um
signo, é uma manifestação de algum pecado nosso e, portanto, esse pecado,
porque nós sofremos, ele acaba sendo expiado. Então, somos culpados porque
sofremos e nos salvamos porque sofremos. A máquina imunda de São Paulo. A
igreja cristã se funda nessa idéia. Não há cristianismo sem essa idéia. A não
ser que se diga então que o verdadeiro cristianismo é o de Cristo. Cristo é
mais budista. Pode se dizer que há um budismo em Cristo, porque ele não tem
ódio, não tem ressentimento, não tem má consciência. Agora, cristianismo, esse
é de São Paulo.
E aí então Nietzsche diz: essa
ficção, de uma força separada do que ela pode, que volta-se para o interior,
multiplica a dor, e ao multiplicar a dor sente isso como dívida, como falta,
como culpa, como pecado e como instrumento de expiação da culpa, pressupõe,
essa ficção e a outra, do ressentimento – a da má consciência e a do próprio
ressentimento – pressupõe a ficção do ideal asséptico. O que é a ficção do
ideal asséptico? É a crença no outro mundo. Haveria um mundo, um outro mundo
verdadeiro. Porque esse é meio falso, é meio errado. Esse não é o mundo
essencial, o mundo essencial está em outro lugar. Esse aqui é o mundo das
aparências. Esse não é o mundo da idéia plena em si mesma, esse é o mundo das
cópias ou das imagens. Esse não é o mundo da forma pura, esse é o mundo da
matéria. Esse não é o mundo das causas ordenadas, esse é o mundo das paixões.
Esse não é o mundo que não tem tempo e não tem espaço, portanto é eternamente o
mesmo, portanto real. Ao contrário, esse nosso mundo é o mundo do tempo, do
espaço, da mudança, da metamorfose, daquilo que nunca permanece o que é. É o
mundo da irrealidade. E essa realidade precisa ser resgatada de alguma maneira
por essa ficção de um valor superior. Se há um valor superior, se há um outro
mundo verdadeiro, é porque esse mundo é inferior, é porque esse mundo é uma
aparência, é porque esse mundo não tem realidade suficiente para ser mantido
por si só. Então a ficção do ideal asséptico nada mais é do que uma acusação
completa do mundo, de mim mesmo e da natureza inteira.
Em Spinoza, esse movimento se dá através da ilusão que
habita a própria consciência. Diz Spinoza: a consciência que é essencialmente
ignorante porque ela já é efeito, não há consciência que não seja efeito - em
Nietzsche é a mesma coisa, a consciência é um mero resultado – ela se põe no
lugar das coisas reais, e ao se por no lugar das coisas reais e não acessar exatamente a sua causa, ela passa a
estabelecer uma relação com o mundo, com ela mesma e com uma entidade que
envolva isso tudo e que geralmente tem o nome de Deus. Quando ela não entende o
mundo e não entende a si mesma – diz Spinoza: Deus, asilo da ignorância – aonde
ela ignora, ela chama Deus ou coloca Deus no lugar. Essa consciência ignorante,
que é puro efeito, na verdade ela emerge no encontro dos corpos e sempre que um
corpo me atinge de alguma maneira, ou uma idéia, deixa em mim um estado. Eu
passo de um estado anterior a um estado posterior que pode ser um estado de
diminuição da minha potência. Vamos supor: eu estava alegre e fiquei triste.
Por quê? Porque algo me atingiu e diminuiu a minha potência. O que faz essa
consciência? Ao invés de ela ser um sintoma, um signo de uma realidade que ela
não atinge, que precisaria de uma outra
instância para atingir, entendendo assim a natureza do corpo que me afetou ou
do pensamento que me afetou, entendendo a natureza do meu próprio corpo e do
meu próprio pensamento, entendendo a natureza das relações entre esses corpos e
esses pensamentos, ela acaba dizendo que aquele afeto que a atingiu, aquele
estado de corpo que ela obteve, é na verdade a intenção do outro em atingi-la. Então
o sentimento do estado do meu corpo depois de uma afecção exterior, passa a ser
segundo a minha consciência, a intenção que o outro corpo tinha em produzir em mim. Quando nada mais
é do que o sentimento do meu estado de corpo, mas eu projeto isso no outro.
Spinoza chama isso de ilusões das causa finais, ou a idéia de intencionalidade.
A intenção, a intencionalidade nasce aí, nessa ilusão. Isso tem um outro
desdobramento porque, em seguida, a nossa própria consciência vai organizar a
reação em função dessas próprias finalidades, e a finalidade que era do outro
vai receber um troco, que vai ser a finalidade da minha ação agora. Eu vou
organizar as minhas ações ou reações – ações e paixões – segundo esse esquema
de finalidade que me mantenha ou que me defenda de alguma maneira, e a partir
daí, desse mesmo movimento, eu me apreendo como uma causa original. Se eu tenho
uma ação final, existe o começo da ação em mim, existe uma originalidade em
mim, existe uma origem em mim, aonde eu tenho uma vontade e um entendimento. É
a origem do livre-arbítrio, a origem das decisões livres. Então a ficção do
livre-arbítrio se dá na medida em que eu acredito que isso que eu sinto de mim
mesmo, que é mero efeito, na verdade é a minha própria causa, é a minha origem.
E a minha causa, a minha origem decide em relação às respostas que ela dá para
o mundo. Diz Spinoza: segunda ilusão – a ilusão dos decretos livres da alma, ou
das decisões livres, ou do livre arbítrio. Essas duas ilusões vão organizar o
mundo objetivo e o mundo subjetivo e criar um plano transcendente de
organização social, de organização de valores, de lei, disso ou daquilo, até
aonde é possível isso se estender, nessa imaginação estudiosa. E a partir do
momento em que não se tem acesso mais a esse tipo de ordem, a consciência clama
por algo que é feito à imagem e semelhança dela. Na verdade o que é feito à
imagem e semelhança dessa consciência iludida é Deus, não é o contrário, não
somos nós que somos feitos à imagem e semelhança de Deus. É essa consciência
iludida que inventa um Deus à sua imagem e semelhança. Mas é claro, como é
Deus, ele é infinitamente sábio, ele é infinitamente poderoso, ele
infinitamente isso e aquilo, porque nós somos finitos. É apenas o modo que é
distinto. Então o modo é infinito, o modo de Deus. É o infinito da estupidez, é
o infinito da ignorância, é a idiotice elevada ao infinito que na verdade rege
o mundo de um tipo que encontra suas condições de sobrevivência na ilusão.
Agora, esta última ilusão seria a ilusão teológica ou da providência divina.
Essas três ilusões em Spinoza, assim como as três ficções em Nietzsche, na
verdade elas entram em ressonância como aquilo que nós próprios alimentamos
sempre que não encontramos a expressão em nós. Quando nós não
encontramos a expressão, nós não encontramos também o entendimento e nem a
capacidade de efetuar a nossa potência no limite do que ela pode. E qual é o
limite da minha potência? Não sei. Eu só sei no encontro. Mas encontro de quê?
De um objeto, de um mundo pronto? Jamais. Porque o encontro com o objeto ou com
o mundo pronto já é um encontro esquadrinhado segundo um campo de
possibilidades – isso é possível fazer, isso não é possível fazer. Mas a potência
ou o pensamento que está ligado à virtualidade sabe que, do ponto de vista do
poder, ela pode o impossível. O impossível se torna possível quando se atinge,
se liga novamente com a virtualidade. Porque a virtualidade nada mais é do que
toda a plenitude do real que não é existente, mas que é real. Se aquilo é real,
se aquilo é presente, por que não? Mas de que modo eu me comunico com isso?
Isso me faz sinal o tempo inteiro. Mas pela minha covardia, pelo meu medo, eu
renuncio e prefiro que o jogo esteja previamente calculado. Então eu prefiro um
cálculo, uma certa probabilidade, ou eu prefiro apostar. Como diz Nietzsche:
todo mal jogador aposta. O bom jogador sabe que todo lance que ele jogar é
necessariamente vitorioso, porque o lance é sempre fatal. Há uma fatalidade no
acaso. Há uma necessidade na contingência. Há um ser no próprio devir. Há uma
unidade em toda essa pluralidade, essa diversidade. Cada unidade, ser ou
necessidade que eu encontro nas minhas relações ao acaso ou mergulhando no
próprio caos, eu extraio daí a própria eternidade na relação do aqui e agora. A
eternidade se produz aqui e agora, em cada momento, na medida em que eu sei
afirmar o acaso. Mas eu só sei afirmar o acaso afirmando tudo o que esse
virtual tem nele mesmo sem existir. E por que não eu ser generoso, ou me tornar
generoso na medida em que o próprio virtual é extremamente generoso comigo e me
faz rir? Por que não devolver isso, estabelecer um jogo e um moto-contínuo, uma
relação absolutamente permanente com o caos, com o acaso, com os devires, com
as pluralidades não estriadas, não recortadas por um campo social ou por
valores de época? Por que não gerar um mundo próprio que não se mede mais ou
não cabe mais nos mundos permitidos por nossa sociedade? O que faz a obra de
arte? A obra de arte cava no nosso corpo, cava no nosso pensamento, espaços ou
intervalos onde esse caos, esse acaso entram. O poder faz o quê? O poder diz: o
corpo tem que se movimentar de tal e tal maneira, certos gestos se encadeiam
com tais e tais outros. Há uma seqüência gestual. Há um modo de sentar, um modo
de comer, um modo disso, um modo daquilo, segundo a visão do próprio poder,
segundo o que é esperado do nosso corpo. O nosso corpo é formatado
organicamente e ele serve a essas formas orgânicas pré-determinadas, a essa
forma espacial fora dele. O corpo nosso deve ocupar o espaço já previamente
determinado ao invés de gerar o próprio espaço, de fazer aparecer o lugar
simplesmente porque ele se manifesta. Quando ele se manifesta é que ele cria o
lugar. Não, o poder diz: não, isso não pode. O que pode? Pode você ocupar o
espaço previamente determinado. A mesma coisa o nosso pensamento: sem nenhum
intervalo, sem nenhum silêncio, vamos preencher e ordenar o tempo das idéias, o
encadeamento das idéias, o regime dos signos, o regime dos discursos e eliminar
exatamente o excesso e a falta, entrando nas formas médias e esmagando o que o
nosso pensamento pode, porque o nosso pensamento só pode no extremo. Qual é o
extremo? É o encontro com o virtual. Nosso corpo só pode no extremo. Qual é o
extremo? É o encontro com o virtual. Ora, o encontro com o virtual faz o corpo
exceder de si mesmo e faz o pensamento exceder de si mesmo. Há um excesso no
pensamento, há um excesso no corpo. Esse excesso intensivo desterritorializa o
meu corpo e os meus órgãos, e ao mesmo tempo desterritorializa o meu
pensamento. Então, na medida em que eu excedo no pensamento, em que eu excedo
no meu corpo – eu só excedo porque eu soube cavar vácuos no espaço, nesse
espaço estriado, recortado, dividido, sedentário, eu encontrei um vácuo, um
vazio, eu busco vazios, eu crio vazios – assim como no tempo eu crio
intervalos, eu crio silêncios, eu crio hiatos que fazem com que as forças do
caos habitem e excedam o próprio pensamento – quando isso acontece, eu percebo
que o caos é um cosmos, que o caos é um caosmos, que há uma ordem imanente ao
próprio caos, que não há nenhuma desordem no fundo de nenhuma natureza, de
nenhum corpo, de nenhuma vida, de nenhum pensamento. Portanto, aquele medo que
o poder nos incute de ficarmos loucos, de ficarmos isso, de ficarmos aquilo, de
ficarmos fracos, de sermos destituídos da realidade existencial e social, é
evidentemente um medo estimulador do investimento nos nossos próprios
aguilhões. Mas quando a gente encontra o virtual a gente percebe que a vida é
pura potência múltipla de criar e inventar relações. Ela não representa nada,
ela produz o tempo inteiro. A linguagem não é para representar as coisas e nem
para falar das coisas, a linguagem remete para outro lado, ela é absolutamente
esquizofrênica em relação ao corpo. A linguagem ela é um modo próprio de
expressão e de produção e não simplesmente de representação. Então representar
o pensamento, representar a vida ou as coisas, é o que a arte, o que o teatro,
o que muitas vezes o cinema, o que muitas formas de arte tem feito sempre no
palco. Estabelece-se uma ordem, se submete a potência do próprio pensamento e a
potência da própria linguagem a uma sintaxe, a uma fonética, a uma semântica, a
uma gramática oficial, a uma linguagem oficial que, na verdade, já está
submetida aos valores estabelecidos a uma forma de expressão. E nessa forma de
expressão, que encontra sujeitos de enunciado, sujeitos de enunciação, objetos
unitários, ordem lógica, seqüência, a boa seqüência, o encadeamento histórico,
personagens bem identificados, bem definidos, mensagens morais – o que ele
queria dizer com isso? – essa coisa de que a obra de arte tem que ter uma
unidade formal, uma seqüência representativa, na verdade é um mero instrumento de
poder. Porque o poder se veicula através das marcas verbais, além das próprias
marcas do corpo. Eu não tive a oportunidade de falar sobre as marcas, nem vai
dar para falar nisso hoje, mas na verdade as marcas são sempre a origem da
nossa impotência. Quando a marca é investida por nós mesmos, ela, ao mesmo
tempo, é investida pelo próprio poder. A região comum do poder e da nossa
impotência são as marcas. Então a marca é a origem do nosso desvio ou da nossa
impostura. Marca sensível no corpo, marca verbal ou lingüística, através da
máquina lingüística, que submete o pensamento. Essas marcas, na verdade, são a
base ou a matéria de ordenação de um pensamento funcionário do poder. O teatro
ou as artes que submetem a expressão do corpo, a expressão do espaço, das
cores, das luzes, dos elementos que não são significados na própria linguagem –
há uma forma da própria linguagem, há uma forma discursiva, há um texto, há uma
obra prima literária – estão submetendo a expressão do próprio corpo, estão
submetendo a própria realidade do teatro. O teatro, ou ele acede a esses
elementos, e no mesmo movimento em que ele acede a esses elementos, esses
elementos tem voz própria, falam por si próprio; ou ele é submetido a um
discurso de poder que re-apresenta cada elemento desse e põe o cenário de um
jeito, o mobiliário do cenário de outro jeito, as luzes de tal jeito, o som de
tal jeito, mas sempre do mesmo jeito, sempre do jeito submetido a essa ordem
discursiva. A ordem discursiva acaba sendo o veículo do poder na arte, no caso,
no próprio teatro. É por isso que Artaud queria tanto fazer com que o corpo sem
órgãos falasse ou se expressasse no lugar do corpo orgânico. E que o pensamento
sem juízo se expressasse na própria linguagem. E fazer com que a própria
linguagem fosse submetida ao mesmo tratamento cruel que o corpo orgânico é
submetido, que se libere no corpo orgânico as potências do próprio corpo sem
órgãos, do corpo pleno, vital ou visceral. Fazer isso também com a própria
linguagem, tornar novamente a linguagem expressiva e produtiva e eficaz. A
linguagem é ato, a linguagem não é representação. Ela pode ser representação,
mas toda vez que ela é representação – e ela sempre é representação – ela é
secundária. Tudo bem, a representação existe, a consciência existe, os efeitos
existem, mas eles são sempre secundários. Agora, você habitar o efeito, habitar
a representação antes de habitar a intensidade é trair a vida, o desejo e o
pensamento. Então exceder no corpo, exceder no pensamento, na visão de muitos
críticos é não ter ordem, é ser caótico, é não saber o que quer, é ser muito
confuso, quando a vida não precisa dessa clareza que eles nos querem dar. Não
precisamos de nenhuma clareza, de nenhum referencial exterior a nós mesmos. O
corpo que excede, ele não excede na sua desordem. O corpo que excede, ele
sempre excede na vizinhança da extremidade da intensidade. A intensidade se
expressa inteira, plena, naquela forma extrema. E naquela forma extrema, na
vizinhança extrema, no limite extremo do ser cresce algo novo, porque algo ali
se passa, algo ali acontece, e ao crescer algo novo há o rigor de encadeamento
de uma intensidade que ultrapassou o corpo em relação a essa outra intensidade
que aparece. É o rigor das intensidades, não é o rigor de uma lógica
representativa, hipócrita e redutora da vida e do pensamento. Assim como há o
rigor do pensamento que não tem nada a ver com o rigor da razão representativa,
o rigor da moral, o rigor das leis, porque esse rigor é completamente
falacioso. Artaud dizia uma coisa muito interessante em relação à crueldade: a
crueldade não é essa imagem que os hipócritas fazem de simplesmente violentar o
corpo, produzir violências e ameaças em relação à vida. A crueldade é atingir
aquele elemento necessário em cada relação. Ele é necessário, ele é fatal, ele
é aonde o real se instala. É essa a idéia de crueldade que Artaud tinha. E é
esse rigor que os críticos deveriam aceder. Eles não têm acesso a isso porque
eles são funcionários do próprio poder – geralmente, é claro, porque existem
críticos e críticos – mas, na sua maior parte, os que o ocupam os lugares
privilegiados de exposição da mídia, são os mestres da verdade e da arte, que
geram movimentos de arte, movimentos que sempre têm a sua identidade. Esses
críticos, na verdade, são no mínimo funcionários do Estado e no máximo sempre
impotentes de aceder a essas próprias regiões, a esse rigor do corpo, a esse
rigor do pensamento que não precisa de centro, que não precisa de nenhuma
subjetividade fundada no eu, que não precisa de nenhum referencial objetivo,
que não precisa dessa objetividade redutora de todas as coisas à existência.
Porque há uma objetividade outra do acontecimento que não existe e que é real e
que jamais eles tem acesso. E é essa objetividade do acontecimento imanente ao
próprio pensamento que excede nos discursos de certas práticas artísticas, como
excede no teatro da Denise Stoklos, por exemplo, já que aqui se trata muito
disso, uma vez que sem a Denise não estaríamos aqui nesse momento.
E o projeto “Solos do Brasil” é inteiramente voltado para
participação nisso que ela chama de Teatro Essencial. Então a gente tem esse
privilégio, essa alegria de poder fazer parte ou no mínimo compartilhar desse
modo feliz, alegre de liberar o corpo e de liberar o pensamento, fazendo das
crises, da histeria, da neurose, das confusões, das psicoses, do delírio, da
alucinação, meros efeitos lúdicos, na medida em que surtamos antes no palco,
surtamos antes do próprio público, simplesmente para liberar o público ou a
relação com o outro do medo que o poder sempre reitera. Então a arte, ela passa
ser uma máquina de guerra à serviço da própria vida.
A arte, ela vem como um furacão ou como uma vassoura de
bruxa liberando os fantasmas da superfície. Ou melhor, chamando os fantasmas,
chamando-os para um novo brinquedo, um novo jogo. Os fantasmas agora são
bem-vindos. Todos os medos, as angústias, as misérias, as neuroses, as
histerias, que venham, que venham
brincar no pensamento, na linguagem, no modo como o corpo solapa a linguagem,
se opõe aparentemente à linguagem ou a linguagem se opõe aparentemente ao
corpo, quando o corpo falta à linguagem ou excede a linguagem ou quando a
linguagem falta ao corpo ou excede o corpo. Essa maneira de liberar o corpo na
sua autonomia e de liberar o pensamento na sua autonomia e fazer a cópula real
entre os dois, porque não há uma dicotomia, a cópula real entre os dois está no
próprio desejo, desejo imanente, sem falta nenhuma porque o desejo não tem
objeto. Essa forma de encontrar a nossa potência em ato, na verdade, é aquilo
que a arte, que é de fato uma arte e portanto uma arte expressiva, faz em nós –
não como meros produtos para que a gente consuma – mas faz com que algo se
passe de fato. E não que se passe como devolver consciência a nós. Basta de
consciência, estamos entupidos de consciência. Quanto mais consciência temos,
mais nos atolamos nos nossos aguilhões. A arte não está aí para dar consciência
de nada. Consciência do corpo? Não! Do pensamento? Não! Dos valores sociais?
Não! Da revolução? Não! O futuro da revolução faz com que a gente perca a
revolução. Nós perdemos a revolução sempre, na medida em que temos consciência
do passado, do presente e do futuro segundo uma maneira correta, moral,
politicamente correta, ecologicamente correta, isso ou aquilo correto de ser. A
consciência, ela está aí simplesmente para obedecer, não existe consciência
criativa. A consciência é uma mera manifestação, no melhor dos casos, é uma
sinalização para uma coisa alegre da vida. Ela só sinaliza, como presença. Mas
nós reduzimos a nossa vida a essa presença consciente. É o que há de mais
anti-ético na vida ou uma impostura que levaria a vida ao seu próprio
aniquilamento. Portanto a arte não é simplesmente uma diversão, ela não está aí
para representar valores oficiais ou ir contra valores oficiais. A arte é para
que nós nos coloquemos novamente em devir. Se pôr em devir é encontrar, não objetos
no mundo que a gente percebe, não sentimentos em nós que a gente sente, mas
ultrapassar os sentimentos e a percepção. Encontrar o ser da percepção no
mundo, encontra o ser dos sentimentos em nós. O ser dos sentimentos em nós ou da percepção
no mundo são, na verdade, as próprias sensações puras independentes dos
sujeitos e dos objetos que as experimenta. Sensações puras são, na verdade, a
matéria da arte. A matéria – as pás, as picaretas – são as puras sensações - os
perceptos e os afetos, como fala Gilles Deleuze. Essas sensações puras, esses
blocos de sensações, só existem quando nós encontramos o virtual. O ato
imanente ao próprio virtual gera o ser dessas sensações. O que faz o artista? O
artista capta esse ato no virtual. Ele capta o ato no virtual muito além do
possível estabelecido a partir da sociedade. O artista ultrapassa os limites da
sua época sempre. É por isso que o artista não está fora do seu tempo, mas ele
está, geralmente, contra o seu tempo, se esse seu tempo é um tempo fundado no
poder, fundado no Estado, fundado nas leis. Geralmente ele é um artista
intempestivo, como diria Nietzsche, ele é contra o seu tempo, mas no tempo,
buscando no tempo coisas que o próprio tempo, que a própria época não percebe,
mas que o tempo está lá oferecendo generosamente. E a nossa época esmaga,
esmaga, esmaga. Então, exceder no corpo, exceder no pensamento não é
simplesmente delirar, alucinar, ser porra-louca, caótico, sem ordem, sem
centro. Na verdade, é deixar que a própria natureza expresse no corpo e no
pensamento a ordem imanente que ela tem e construa esses seres de sensação,
perceptos, afetos, aquilo que faz de nós uma obra de arte. Fazer de nós uma
obra de arte e não simplesmente fazer obras de arte. Produzir em nós a
subjetividade que nos interessa, o corpo que nos interessa, o pensamento que
nos interessa. Interessa do ponto de vista do quê? Do ponto de vista da vida,
da vida intensa, não do ponto de vista de um poder utilitário, ou do capital,
ou de um reconhecimentozinho, ou de pequenos prazeres, de pequenos desejos, mas
de fato servir a intensidade da vida. Então, a arte nesse sentido é uma máquina
de guerra da vida, mas a arte que encontra expressão. E a arte que encontra
expressão não fala de nada, não fala de ninguém, não tem que ter ordem,
centramento, seqüência, não tem que ter estória. Ela simplesmente tem que
cavalgar o ser da sensação. O ser da sensação não existe sem essa incorporação,
mas não deixa de ser real sem a incorporação. Portanto, apesar de nós, mesmo
que nós não incorporemos, mesmo que nós não entremos em devir, não modifiquemos
o nosso corpo e o nosso pensamento, o ser da sensação segue por aí, apesar de
nós. Agora, o ser da sensação espera o que de nós? O nosso diferencial, o nosso
dom, o que nós temos de singular para dar. E o que nós temos de singular para
dar nem nós sabemos, a não ser experimentando. Então, nós precisamos aprender a
experimentar. A única coisa que há para se aprender na vida é
experimentar, aprender a dizer sim. Não
a partir da nossa consciência. Aprender a dizer sim nas posturas do corpo e do
pensamento. Na sensibilidade. Lapidar a sensibilidade. Encontrar um ser
puramente receptivo em nós. Ou
seja, o virtual não está mais fora de nós, o virtual está em nós, o virtual nos
atravessa também. O virtual é esse ser puramente receptivo, que recebe, é capaz
de receber toda a realidade, não há nenhuma realidade fora dele. E, no entanto,
essa presença do virtual não tem existência sem o encontro com nós mesmos.
Então, experimentar é encontrar a si mesmo no devir, é afirmar a diferença que
te constitui no próprio devir e se diferenciar de si mesmo, se distanciar de si
mesmo. A obra de arte não faz outra coisa senão isso. Não pode fazer outra
coisa senão isso. A obra de arte é elevação, criação de monumentos de sensação.
E as sensações não são pessoais, não são psicológicas, não são orgânicas, não
são de uma sociedade, não são de uma realidade engajada como o realismo
socialista, como o teatro de Brecht, ou como o teatro de vanguarda, ou como o
chamado surrealismo. A questão essencial sempre é encontrar o ser da sensação,
aquilo que fabrica a sensação. Portanto, fabricar a sensação é fabricar novos
horizontes para a vida. Não horizontes relativos – ah, eu mudei de ângulo e aí
o meu horizonte é diferente – não é isso. São horizontes absolutos. É encontrar
a expressão na superfície, na extremidade do ser de cada intensidade. Isso é um
horizonte absoluto. No horizonte absoluto eu tenho o ato eterno de qualquer
sensação. A eternidade está aí, em qualquer horizonte absoluto. E horizonte
absoluto está na superfície das coisas, físicas ou metafísicas. Se encontra
horizontes, encontra paisagens e não mais coisas e mundos e objetos como no
palco, você também encontra em você, não simplesmente sentimentos e conflitos
psicológicos, ou um organismo entupido de utilidades e funções, mas você
encontra afetos, ou seja, passagens de uma realidade à outra em você. Essas passagens
independem de você. Elas continuam passando apesar de você. Se você nascer ou
morrer, vão continuar passando. Se você vivê-las, melhor para você. Acessar
essas passagens, essas puras passagens, esses puros afetos é entrar em devir, é
modificar-se, é aumentar ao máximo a potência de ser modificado. Quanto mais eu
sou modificado, mais eu posso modificar. Quanto mais eu sou afetado, mais eu
posso afetar, e quanto mais eu faço isso mais eu me torno causa de mim mesmo,
causa dos meus próprios afetos, e aumento a potência de existir, de agir, de
pensar. A potência sempre é potência de se compor, de se aliar, de gerar novas
potências, de gerar vida. A vida precisa disso. A vida não precisa de uma
ecologia moral, a vida precisa de uma ecologia das superfícies em todos os sentidos.
Encontrar a superfície do corpo, encontrar a superfície do pensamento,
encontrar a superfície da sociedade, porque a superfície é o ser de qualquer
relação que se basta a si mesmo, sem referencial, sem juízo, sem julgamento
nenhum. A arte faz isso o tempo inteiro. O poder diz: ah, é artista, pode. Vai
ver na realidade se pode. Se pode até em relação à arte. Quando pode, lá vem os
críticos dizer: é arte delirante, sem ordem, confusa. Mas essa vida, nesse
estágio, jamais se espelha no que é falado, no que é dito, seja elogiosamente
ou seja por censura. Elogio e censura só afetam quem está, de alguma forma,
enfraquecido ou necessita de certos argumentos desse tipo. O artista livre
acaba encontrando um jeito de existir, até sem público. Porque o público é
sempre o que falta para o artista. O público não existe, é necessário inventar
a relação com o público, essa relação não existe. E essa relação, ou ela é
eficaz, ou ela é fatal, ou ela é necessária, ou então é melhor que não tenha
público nenhum. Ou há necessidade ou não se faz nada. Mas sempre, como diz
Nietzsche, existem aqueles que gostam de escrever por desfastio, fazer arte por
desfastio, sempre fazer algo porque precisam mudar a rotina. Mas encontrar o
que é necessário é mais difícil mas é tudo o que importa, ou só o que importa,
não há outra maneira de se viver intensamente.
Situando um pouco, então, o que a gente fez nesses três
meses com o pessoal do “Solos do Brasil”, a gente fez uma viagem crítica
através do pensamento ocidental, na medida do tempo que a gente tinha e da
intensidade que a gente atingia na relação. Tivemos a felicidade e a alegria de
ter um conjunto de pessoas maravilhosas, totalmente afirmativas, onde a negação
não tinha espaço para se instalar, um ambiente virtual pleno, com pura
receptividade. Então foi, acredito eu, um trabalho muito belo e muito gostoso
de se fazer. E mesmo nessa nossa visão crítica, nunca foi uma visão que gerasse
ou estimulasse algum ressentimento mesmo contra os nossos inimigos. Porque não
se trata disso. Na verdade, se trata inclusive de fazer do inimigo um aliado.
Então a questão não é aniquilar, eliminar ou cuspir justiça contra o mundo.
Porque a justiça é imanente, não precisamos de nenhuma instância julgadora. O
que a gente fez nesses meses foi mais ou menos isso. É dizer aonde que esse ser
justiceiro ou esse juiz emerge em nós
com a nossa cumplicidade. Por que é que nós alimentamos isso?
E quando a gente faz isso, a gente já perde a capacidade
expressiva e a gente precisa da representação, a gente precisa de um texto, a
gente de uma memória, a gente precisa se guiar, a gente precisa ter
referenciais. Por quê? Porque a gente investe nesse tipo de coisa. Então, essa
passagem crítica a gente fez ao mesmo tempo em que liberávamos as potências do
corpo e do pensamento que são, de alguma maneira, esmagadas pelo organismo e
pela consciência. E aí, os nossos percursos envolveram, além de filósofos e
pensadores, artistas também, obras de arte e visões de nós mesmos e do próprio
grupo fazendo esse tipo de incursão.
A questão das formas de poder fez com que nós víssemos ou
recenseássemos uma maneira do poder operar através do que nós chamamos de forma
de expressão e forma de conteúdo, ou então o regime do discurso ou do
pensamento e o regime do corpo, o regime da luz, o regime do gesto. E ver como
isso também opera na arte, como há uma heterogeneidade fundamental entre essas
duas formas, ao mesmo tempo em que há uma intromissão e uma cópula recíproca.
Mas ao mesmo tempo em que isso se dá, há a afirmação radical das suas
diferenças que ressoam na intensidade que habita simultaneamente os dois
regimes, o regime do corpo e o regime do pensamento. No caso da arte ou da vida
livre, as formas de expressão e de conteúdo se liberam ou são dissolvidas por
uma pura expressão e um puro conteúdo aonde se atingiria então a matéria da
própria obra de arte como matéria expressiva. Toda matéria se torna expressiva.
Assim você tem um sorriso de aço, ou de barro, um gesto de pedra. E você tem o
corpo do ator, ou do performer, como diz a Denise, que tem a matéria das
sensações, das suas tensões, dos seus tensores, das suas vozes, ou seja, os
elementos que o constituem como sensação. Essa matéria se confunde com todo o
corpo e se expressa inteiramente no corpo. Então, o próprio corpo se torna um
elemento que gera essa ordem imanente, essa expressão imanente e essa forma
extrema que cola matéria, vida e pensamento num único ato, numa única coisa.
Então, o que você tem sempre são feixes luminosos, feixes afetivos, raios de
pensamento, velocidades, lentidões, nos gestos e nas idéias e nos
acontecimentos que acontecem em qualquer relação, mas nesse caso, na relação do
artista no palco. Esse artista não precisa de roteiro, não precisa de história
pronta. Ele se serve de roteiro, claro, ele se serve de história pronta, se
serve até das obras-primas, porque não? Se serve de personagens, se serve de
cenário, mas como álibi, como uma mera ocasião, uma mera oportunidade para que
o cenário, os personagens, as obras-primas entrem em devir e deixem se
manifestar apenas o que é necessário neles. E o que é necessário neles é sempre
o ser da sensação, o afeto que faz com que eles entrem em metamorfose, e os
perceptos que abrem novos horizontes e novas paisagens. Afetos, perceptos,
blocos de sensação. É o que se manifesta aí.
Eu acredito que a gente tenha avançado bastante nas nossas
exposições, nos nossos encontros, nesse sentido, para - se restava alguma coisa nesse sentido ainda
– destituir inteiramente os fantasmas do medo da expressão. Porque a expressão
– não é que ela exija coragem, ela exige uma .... é uma opção mas não é uma
opção consciente, é uma postura, é um modo de viver e de pensar – é isso que
exige-se do corpo e do pensamento para reencontrar a expressão. E quem
reencontra a expressão encontra o ato que atualiza a sua própria potência,
encontra a imanência e não precisa de referência, nem de Estado, nem de Deus,
nem de nada. Se quiser chamar isso de Deus, também chama, mas aí os nomes
agora, eles acabam perdendo esse referencial instituído que eles tem, e a
própria linguagem também entra em devir.
Então eu acho que a gente fez isso de alguma maneira.
Agora se vocês quiserem falar ou perguntar alguma coisa.
(Pergunta - Quando você fala em estado retroativo, ou de
morte, você não pode estar, por exemplo, sempre que você quiser entrar num
estado de superfície, você estar vivendo um pouco este estado retroativo, o
sentimento desses poderes todos para poder ter um pouco a morte e nela
construir um estado de superfície? Porque o que eu sinto dificuldade é de como
conseguir ver, porque tem uma forma de você enxergar isso, não? Toda essa
superfície sem também estar nesse contexto....)
Existe uma coisa que é a seguinte: todo problema, na
verdade, envolve um presente. Não há problema real – existem os falsos
problemas – mas não há problema real que não tenha um dom e uma positividade
muito mais forte do que a aparente negação que ele traz. Então, geralmente, o
problema é o problema da expressão, não há outro. O problema é o problema da
vida passar. Ou algo se passa ou não se passa. O que não se passa? O que
bloqueia? Gera o problema. A postura do problema, na verdade, ou a apreensão
dele é uma ocasião de lapidar buracos, intervalos e atos – passagens – para que
a expressão apareça antes ou depois dos aguilhões do próprio poder. Então, ou
você é mais lento ou mais veloz do que o poder, mas nunca você está no lugar do
poder. E sempre você é mais lento e mais veloz do que ele, ao mesmo tempo, na
medida em que você não está investindo formas. Você investe nas próprias
intensidades. Investir as intensidades, se você não encontra expressão para
elas, exige um cozimento, um trato, um aprendizado, uma certa preparação. Exige
que você dê certas voltas, invente certos caminhos tortuosos, labirintos.
Então, valorizar o labirinto, valorizar até a idiotia em nós, porque não. É
mais ou menos a idéia do clown. O clown encontra aquilo que o destitui do
reconhecimento, ele encontra exatamente essa fragilidade, essa quase falta
infinita de ser como deve ser. Mas você pode encontrar aí, exatamente, a
ocasião, a oportunidade de gerar uma maneira autêntica de ser e não dizer ou
responder ao que de fora te demanda – a sociedade, o poder, seja lá o que for.
Então, esse fora, que exige uma resposta pronta para você num certo tempo e num
certo espaço, e que não obtém essa resposta, gera a imagem em você de que
aquilo que se passa em você é um processo de morte, de angústia, que exige
Prozac, amortecimentos. Amorteça para não surtar. Na verdade, essa matéria é
uma matéria em ebulição, extremamente rica e que esconde nela mesma um presente
que deve ser lapidado e expressado. Então, qual é o papel da vida e do
pensamento aí? Lapidar a maneira desse ser ser, a maneira desse ser aparecer, a
maneira desse ser se efetuar. É isso que é o papel. Agora, o tempo que isso
leva não importa, desde que não se ligue a esse problema uma negação que, na
verdade, aniquilaria a nossa própria vida, poderia levar até ao suicídio. Mas o
que leva, de fato, ao suicídio, ou que leva a uma negação de si mesmo, mesmo
que seja uma parte de si, o que é que leva à depressão? O que leva à depressão
é algo que não está em nós, que não é nosso e que deve, de fato, ser expurgado.
Porque a morte sempre vem de fora. Isso é regra absoluta, isso é uma verdade de
natureza. Não há morte que venha de dentro. Portanto o suicida é sempre um
suicidado. Não existe suicida num um ato voluntário. Então, é algo que se
apodera de mim e que toma a minha atenção. Agora, isso pode envolver ou trazer
uma coisa muito interessante, porque, na verdade, não há nada na natureza que
me afete, mesmo para o mal, mesmo para a morte, que não tenha algo de comum
comigo. Se não tivesse esse algo de comum, nem entraria em contato comigo.
Então, até na morte tem uma positividade. Aliás, principalmente na morte é
necessário encontrar o modelo, não da aniquilação, mas da passagem. A passagem
é o próprio ser do devir, e esse ser é o ser da eternidade, não tem nada a ver
com aniquilação. Então, isso que às vezes leva para essa suposta morte interna,
que a gente sofre, acaba entrando em depressão, na verdade, tem algo ali
envolvido que pode ser transmutado. É necessário fazer uma transmutação do que
nos envenena. Porque no fundo só se trata de alimento e veneno. E os alimentos
e os venenos não são morais, não são bem e mal segundo o modo moral, são
aliados ou inimigos. Então, fazer do inimigo um aliado é a arte do artista, do
pensador, do vivo, o vivo cria. O vivo cria sempre técnicas de expressão. Por
exemplo, esses dias eu estava vendo um documentário, acho que era da BBC, de
uma árvore que inventa folhas enferrujadas e carcomidas por lagartos, mas
aquelas folhas são saudáveis. Mas ela para defender uma certa quantidade ou uma
certa extensão de folhas para que efetuem a fotossíntese, ela cria esse tipo de
folha que as lagartas não vão atacar. E a vida faz isso o tempo inteiro. É como
diz Nietzsche: a vida é a mais alta potência do falso, não tem verdade em nada. Ou então, isso é a
verdade. A verdade é pura simulação, é pura fabulação, a vida fabula o tempo
inteiro. Então, encontrar a fabulação é liberar a vida de qualquer culpa. A
vida não tem culpa de nada, não tem falta de nada, a vida é sempre plena em
qualquer ato dela, desde que seja inteira. Não é: viva a diferença e qualquer
diferença. É a diferença inteira, sempre a diferença inteira, esse é o único
critério, não tem outro. Esse critério não é o critério do julgamento, não é do
juízo. Não é alguém que seleciona: ah, você não está inteiro então você está
fora, você está inteiro, você está dentro. Não é alguém que seleciona, é a
própria natureza que funciona assim, é o eterno retorno de Nietzsche. O eterno
retorno de Nietzsche é seletivo, só passa ou volta no eterno retorno aquilo que
afirma plenamente. Então, você encontra o sim, encontra a afirmação ou então
você precisa do juízo, do julgamento, precisa de Deus, precisa da lei, precisa
disso, precisa daquilo, para inventar critérios de seleção e identidades de
movimentos – movimento negro, movimento gay, movimento feminista – a
identidade. O que é o movimento negro? O que é o movimento gay? A questão da
identidade é a morte do movimento, é a morte do próprio devir do movimento. É
como o movimento nômade dos judeus. O Estado de Israel perde o movimento
nômade. Os palestinos, os beduínos, seja lá quem for. Todo povo, todo movimento
que precisa de uma identidade ele já perdeu o movimento, ele já perdeu o devir.
E precisa de uma instancia fora dele para existir, reconhecer, se debater, se
orientar. Então, na verdade, a vida é totalmente positiva. É só a gente encontrar
um jeito. É sempre o nosso mal jeito que faz a nossas infelicidades. Ninguém é
culpado, nem nós mesmos, é o nosso mau jeito, isso sim, é o mal jeito de tudo.
Ou o bom jeito, tem o bom e o mau jeito. Não é o bem e o mal moral, é o bom e o
mau jeito, é a boa e a má maneira de ser. Há sempre uma maneira de ser. A
maneira de ser que expressa inteiramente a minha diferença ou aquela maneira de
ser que esmaga a minha diferença, que regula a minha diferença, que impede que
a minha diferença se expresse inteiramente. Aquela que é assim é sempre a forma
da lei, a forma da obediência, a forma da consciência, a forma das marcas. E a
maneira de ser que expressa a minha diferença é sempre uma “roupa justa”, uma
forma única para cada relação. Não há modelo. O único modelo é afirmar a
intensidade no máximo que ela pode, porque a intensidade sempre encontra um
modelo para ela em qualquer relação. Toda relação é inédita. O que se repete na
relação não é a forma dela, é a intensidade dela. É por isso que se pode até revisitar
as obras-primas, o velho teatro, as velhas formas de se fazer arte,
revitalizá-las, não simplesmente para dar um ar de dignidade a elas e dizer:
olha, elas devem ser lembradas! Não, porque a potência está nelas mesmas, é a
potência de repetição na própria obra. A obra independe do próprio artista, do
próprio criador. O artista, o criador soube encontrar a maneira daquela
sensação se por de pé e ficar de pé por si só. E é isso que a gente deve fazer
sempre na nossa vida. Encontrar maneiras de se relacionar aonde as próprias
sensações que emergem ali se tornem eternas, se ponham de pé sozinhas, se
mantenham sozinhas, independente de nós mesmos. Então, é o desapego de nós
mesmos, o desapego dos objetos e fundamentalmente o desapego do reconhecimento,
não esperar reconhecimento. É a primeira condição da liberdade real: aquele que
acredita que no reconhecimento existe uma passagem para a liberdade ou para a
alegria, já fracassou de saída. Porque, na verdade, como diz o Borges, fracasso
e sucesso são dois embusteiros.
(Pergunta – Esse entrar em devir que você fala, essa
plenitude.... A pessoa sai com essa informação toda que a gente recebe,
informação de mídia, de jornal. Você tem que buscar a informação dentro do seu
ponto de vista?)
Na verdade, não é nem de informação que se trata. É uma
desformação. É um sem-forma. A
informação, ou a forma, ou a formatação, você pode usar como álibi, com
ocasião, como brinquedo, como excitante.
(Pergunta - Devir é o estar vivo?)
Não há dúvida, a vida e o devir são a mesma coisa. Mas a
vida vital, não a vida submetida. A vida submetida é um devir reativo. A vida
intensa é um devir sempre ativo. Então, devir ativo e vide é o quê? Não é um
vir a ser, vir a ser outra coisa. Devir é se tornar sempre algo diferente do
que você é. Mas esse algo, na verdade, é aquilo que fabula na superfície do seu
próprio ser. Você, enquanto potência, enquanto essência é sempre o mesmo. A
essência é a mesma. A potência é a mesma, que se diferencia na relação. Mas ela
é sempre diferente porque não existe potência em si, a potência é sempre na
relação. E não há relação idêntica a uma outra relação. Um amigo para você é
sempre diferente do que aquele mesmo elemento para outro. Não tem como ter a
mesma relação. As relações são sempre singulares. Então, o devir ativo é o
devir que investe, exatamente, o inédito e a singularidade de cada expressão. O
devir reativo, não. O devir reativo precisa da repetição das formas. Ele
precisa repetir certas regras e certas relações. Por exemplo, ele tem experiências - ah, certas experiências eu não quero
repetir! - mas a repetição é sempre a da forma. Mas essa não deve ser repetida
nunca, mesmo que seja a melhor possível. Não é na forma que se repete as
coisas, é na intensidade. É diferente. Então, a intensidade, sempre quanto ela
retorna – mesmo que você acredite que
seja a mesma relação, e aí a forma serve como um simulacro, um excitante – se
você está inteiro nela, ela já é outra. Por mínima que seja a diferença. Então,
estar em devir é estar sempre exercendo ao máximo a potência de ser modificado
e modificar as coisas, de afetar e ser afetado. Estar gerando afetos e
perceptos além dos nossos sentimentos e das nossas percepções. Não reduzir a
vida a percepções e a sentimentos, mas entrar no ser deles mesmos – o que gera
o sentimento, o que gera a percepção – o percepto, o afeto, a sensação. Há um
ato e uma potência que nos atravessam, sempre múltiplos, independente de nós
mesmos. Ou a gente se cola neles e a gente apreende daí o que nós somos, nós
somos efeitos disso, e nos colamos à causa disso, e aí nós até podemos dizer
que somos Deus, ou, naquele enunciado de Nietzsche: se Deus existisse, como eu
suportaria não sê-lo? Então, é exatamente esse ponto aonde você toca o ser de
Deus e o teu é o mesmo, não há distância. A imanência da vida e do pensamento é
isso. Por isso que tudo é perfeito. E o mal é sempre o mau jeito. O mal se
origina num mau encontro de superfície. É por isso que precisamos investir no
poder, na sobrevivência que a gente teme, que a gente espera. É por isso que a
gente tem essas paixões tristes em nós. Somos entupidos de paixões tristes. Porque a
gente acredita que o mal é uma entidade, mas o mal é só o mau jeito.
(Pergunta - Qualquer indivíduo é capaz de se desvencilhar
desse mal jeito? Ou tem aqueles que estão fadados a essa ignorância,
prepotência, às trevas? )
Qualquer. Até Hitler poderia. Não há um ser na natureza
que traga uma falta existencial originária. A idéia de falta, de pecado, a
idéia de caos, a idéia de aparência, a imposição a uma essência fora desse
mundo, são idéias vindas já de uma vida encurralada ou separada do que ela
pode. Mas a vida encurralada ou separada do que ela pode, ela está apenas num
estado, não significa que o estado dela é a própria essência dela. A essência está
reduzida àquele estado, mas a essência reduzida àquele estado não é toda a
essência. A essência é uma potência. Ela precisa reencontrar o ato.
(Pergunta - Mas qualquer pessoa é capaz de perceber isso
nela?)
É, mas não a partir de uma consciência ou de alguma coisa
fora dela que a instruiria. Não há instrução possível. Existe provocação,
existe vibração, existe ressonância, existe modificação, algo se passa ou não
se passa. É por isso que não adianta nada entender se não se passa algo. Diz
Spinoza: uma idéia sem afeto não é nada. O afeto é a potência da idéia. Então,
ou se passa algo - e aí se passa algo
com a potência, porque é só aí que se passa algo – ou não se passa nada. Então
a relação para se liberar tem que ser uma relação de afeto. Você quer deixar de
fumar porque te faz mal? Você precisa de um afeto mais forte, não de uma idéia
consciente de que o cigarro faz mal.
(Pergunta – Desejo também?)
Desejo e potência são a mesma coisa. A potência, o desejo
ou a essência. Aqui a gente fala do ponto de vista spinozista. Spinoza diz que
desejo, essência e potência são a mesma coisa. E não são formas, são
intensidades, não tem forma. Portanto se você atinge a intensidade, se você
mobiliza a intensidade, é a própria vida em você que encontra um jeito de se
liberar. O que deve ser liberado em nós são as nossas intensidades. Não nos
dêem direção, não nos dêem finalidade! Não é por aí que você deve ir, ou por
aqui. Não temos método, nesse sentido, esse tipo de método é um aprisionamento,
na verdade. O método, ele só é necessário na medida em que ele leva à liberação
de intensidades em nós. E
a intensidade sabe. Toda intensidade é luminosa, é sábia, sabe aonde ela quer
chegar. Ela sempre quer chegar na efetuação. E a efetuação não tem finalidade.
Portanto ela não quer chegar a nenhum fim, ela simplesmente quer se efetuar.
Esse é o único querer. Então, desejar o acontecimento é desejar que a nossa
potência se efetue no máximo de modificação que ela contém em si mesma. Mas só
que na modificação ela se transmuta e avança. Não é uma modificação pronta, que
eu já tenho como um campo de possibilidade e que eu posso esgotar. Vamos supor,
eu tenho 60 modificações em mim, eu esgotando as 60 acabou, posso morrer. Na
verdade, a intensidade é inesgotável. Sempre que ela estabelece uma relação,
ela não se esvazia ou não se esgota naquela relação. Ela foi inteira ali, se
mostrou inteira ali. Matéria e expressão são uma coisa só ali. Mas, é porque
matéria e expressão são uma coisa só ali, que ela retorna inteira e ainda mais potente
para se lançar novamente numa outra jogada. Jamais se esgota.
(Pergunta - Mas isso acaba se tornando um método também?)
Sem dúvida, é um método. É por isso que as palavras, os
significados das palavras são sempre plurívocos. Há sempre uma pluralidade de
vozes numa única palavra, há sempre vários sentidos. Então, o que importa é o
sentido, que é o próprio pensamento, e não a palavra em si. A palavra é o veículo,
você pode usar uma palavra para dizer isso. Então, método, por exemplo, se você
entender nesse sentido, você pode usar a palavra método. Quer dizer, se te
servir. As palavras, elas devem servir ao pensamento e não ao contrário. A
gente não pode fazer com que o pensamento seja enganado por significados
prévios. Então, a hora em que a gente se serve delas, portanto, ao se servir
delas não pode estar reduzido a elas, a gente tem que estar no pensamento. É
por isso que a linguagem, aí ela ganha a ordem que tem a ordem do pensamento.
(Pergunta - Para sair desse mundo de ilusão que nós
estamos vivendo e romper esse apego ao sofrimento, essa corrente de negação,
você acha que existe somente essa forma caótica de se mergulhar dentro dessas
circunstâncias?....)
Você não tem outra maneira de se relacionar com a
diversidade da vida a não ser desejando que essa diversidade seja mais
brilhante, que ela brilhe. E para que ela brilhe a gente tem que cessar de
intermediar o seu brilho. Ela brilha por si só e diz por si só. Ninguém fala em
nome de outro, a não ser para fazer alguma sacanagem, alguma coisa de poder. A
vida, ela tem potência própria de expressão e ela não pede para ser
interpretada, reconhecida, traduzida. Quando ela é traduzida, reconhecida ou
interpretada, já é uma nova direção. Que bom que tenham infinitas
interpretações de tudo, mas como criações.
(Pergunta – Com essa idéia do devir, do essencial, da
potência, o metafísico como é que fica? Ele existe mesmo ou é uma idéia criada?
Como é que é isso?)
O metafísico ganha um outro sentido também. O metafísico,
na verdade, é o virtual. O virtual não existe. Se você diz que a existência é
física, o virtual não existe, porque ele não é físico. Mas, no entanto, ele é
real, ele é uma presença não física. Ele é o tempo puro, como passado e futuro
porque, se ele não existe, ele não é presente. Então é passado e futuro ao
mesmo tempo. E como vazio, o vazio é real e não existe. O vazio não é o nada, o
vazio é real. Sem vazio e sem tempo, não tem modificação possível, não tem
relação possível, não tem devir possível. Então, sem o metafísico não tem o
físico e sem o físico não tem o metafísico. Há uma relação de pressuposição
recíproca. É como a relação, já num plano outro, entre pensamento e corpo.
Porque o pensamento é virtual. Aquele que diz que pensa e pensa por imagens,
não pensa, imagina. Porque a imagens já é um existente, já é um atual. O
pensamento não pensa a imagem. Ainda que ele se sirva da imagem como matéria
também. Mas não é princípio de pensamento a imagem. É apenas um elemento lúdico
de fabulação do próprio pensamento. A imaginação, sim, a imaginação tem que
imaginar. A potência da imaginação é imaginar. A potência do pensamento é
pensar. Então, cada coisa fazendo a sua parte. O problema é que o homem colocou
a imaginação no lugar do pensamento. A consciência, no lugar do inconsciente e
do pensamento. E os órgãos e as funções de órgãos e a utilidade, no lugar do
corpo. Esse é o problema. Aí, nenhuma radicalidade é demais para estabelecer um
combate contra isso. E um combate contra é, na verdade, um combate em nós
porque isso só existe com a nossa cumplicidade. Nós que alimentamos isso, nós
que alimentamos o poder. O poder não é uma coisa fora, o poder é uma coisa
entre, nas nossas relações. É por isso que precisamos ter essa ética e esse
critério de combate pessoal conosco mesmos. Então, sermos críticos em relação a
nós mesmos não é dizermos assim: nós somos uma merda, nós somos isso – fazer um
deboche e uma depreciação de nós mesmos. Mas é encontrar exatamente aquele
elemento que deve ser destruído para liberar as forças em nós. Nietzsche diz
uma coisa muito interessante que foi muito mal interpretada sempre: o homem
deve morrer em prol do super-homem. O que ele quer dizer com isso? Ele quer
simplesmente dizer que a forma homem é uma forma fracassada e deve ser
destruída em nós, para liberar não outra forma, mas as forças humanas que
encontrem outros devires e criem novas maneiras de ser. É só isso que ele quer
dizer. Mas aí vem já a idiotia toda estabelecida que interpreta sempre de uma
forma baixa. Aliás, a questão do jeito, do bom e do mal jeito sempre de ver as
coisas. Sempre existe uma maneira nobre de existir, uma maneira altiva ou
elevada, como diria Nietzsche, ou uma maneira baixa, mesquinha, negativa. A
maneira nobre é encontrar em cada coisa, em cada relação, mesmo que seja a pior
possível, mesmo que seja a relação com o seu pior inimigo, encontrar aquilo
através do qual aquela relação, aquele elemento, alguma coisa ali pode ser
afirmada. Encontrar alguma coisa de afirmação naquilo. Tudo, em qualquer coisa
tem isso. Não há relação que não tenha isso, mesmo a pior possível. Então, é
assim que a gente pode falar e criticar uma obra de arte. Aí sim, o crítico
ganha outro sentido, a gente pode falar de um crítico ativo, de um crítico
afirmativo. Porque o crítico, ele vai ver o modo pelo qual aquela obra é o que
é e pode ir ainda mais longe. Aí a função do crítico. O crítico pode dizer: eu
vi isso que poucos viram, e mais um pouco. Então, aí você encontra o jeito
aonde a coisa se torna mais plena.
(Pergunta)
É a realidade do real, digamos assim, numa conversa (????) tautológica. Esse afirmativo é o que
põe uma realidade nova, seja enquanto realidade virtual, seja enquanto
realidade atual. Seja no plano da existência ou não.... Por exemplo, uma obra
de arte que se assemelha a desenhos infantis. Você tem Klee, Miro, e você tem
desenhos infantis. Você pode dizer que é a mesma coisa, mas aí você começa a
olhar muito tempo, muito tempo e aquilo não resiste ao olhar. Aquilo
simplesmente se desmancha como obra. Não tinha uma realidade. É como a arte feita
por intermédio das drogas. A não ser que você entre num devir com as drogas, o
que é diferente. Mas precisar da droga para fazer a obra de arte, você faz
aquilo, o efeito passa e você não vê mais nada. E ninguém vê também,
desapareceu. Então, o que põe algo por si só? É essa realidade, é esse ato real
que está não no sujeito nem no próprio objeto, está no encontro. É como uma
fotografia que você bate. Existe o turista que vai lá e bate indistintamente e
existe o artista que vai lá e diz: é aqui. É aquele ato que capta uma sensação
que se mantém por si só.
(Pergunta - A fotografia. ela não expressa uma realidade.
Na verdade, você vê através da fotografia a idéia de um momento que passou, mas
aquilo não é mais real.....)
Não é a realidade existente.
(Pergunta - Você não pode pegar a fotografia e dizer
assim: nossa, como nós somos bonito ou como nós éramos bonitos. Você pode pegar
todas as pessoas de uma fotografia, no mesmo lugar da fotografia, montar tudo
de novo, com todo mundo exatamente na mesma posição, você só vê uma segunda
fotografia..... porque é a lembrança da realidade que não existe mais.... Você
não pode dizer que aquele momento é mais real....)
No entanto, o único real que importa é esse real que
aqueles que reduzem a realidade à existência dizem que não é real. E esse real
não é uma lembrança.
(Pergunta – Existem bons e maus, boas e más relações e
existem pessoas que impõe verdadeiros modelos..... Você tem que viver a sua
situação, independente, não esperar das outras pessoas. Eu trabalho com música,
com um regente importante, eu perguntei para ele: quando você vai escolher um
repertório, qual o objetivo? Ele disse: depende se é o que vai te satisfazer ou
o que você quer que as pessoas se sintam satisfeitas. Se você for fazer uma
peça que todo mundo vai ouvir na platéia e vai entender, e mesmo se não
entender, mas vai gostar do que vai ouvir. Ou você pode escolher assim o que
você gosta de ouvir e talvez você não tenha esta questão do público. O medo de
olhar e ver que metade das pessoas foram embora, porque elas não queriam ver
aquilo que você escolheu para fazer e que é aquilo que te satisfaz.)
Será que isso seria suficiente? Porque nós mesmos estamos
entupidos de um monte de sensações que já são pré-concebidas. Então, às vezes,
atender demais os nossos gostos, aquilo que a gente chama de opinião. Não há
matéria mais fértil para alimentar o juízo do que a opinião. Não há juízo que
não seja uma opinião. E opinião não é pensamento e nem arte. Então, a gente tem
que se lapidar também. Combater aquilo que em nós gera as opiniões, aquilo que
em nós gera o juízo. Porque o juízo está tão entranhado em nós que ele é o
nosso próprio organismo. O nosso cú julga, o estômago julga, o ouvido julga, o
olho julga, o nariz julga, as nossas sensações já estão inteiramente
codificadas. Então, é preciso desterritorializar as sensações em nós. E , aí sim – isso que
se passa em nós de dizer: ah, isso eu gosto realmente – Aí não é nem o que eu
gosto, é o que gosta em mim, o que se apodera de mim. Aí você acaba encontrando
algo que até independe de você e que se passa em você. É por isso que tem que
ter um desprendimento nesse sentido.
(Pergunta – O fato então da realização da potência ou da
potencialização, de ser afirmativo seria: acontecer, assumindo que acontecer
seria transformar enquanto se é transformado....)
Você diz que o ideal da relação seria, ao mesmo tempo em
que você é transformado, você transformar?
(Pergunta – E essa coisa do julgar também, como te
distancia do resto das coisas. Para julgar você tem que estar olhando, você tem
que estar de fora e não está transformando. E se tudo um força de conexão, a
medida que você julga, você se distancia de si mesmo. E isso te afasta da
potência, ou não?)
Na verdade é um maneira de focar a atenção em você. A própria atenção
foca, a própria presença sua ou ela se instala na consciência, ou na forma do
outro, ou na forma que está te modificando, ou na passagem. O problema é: como
eu me instalo na passagem. Ser da passagem, é isso tudo o que importa. Porque
na passagem você encontra as referências para tudo, a organização para tudo. Há
uma ordem imanente na própria passagem. Então, se você se instala na passagem,
se a sua presença é um ser em devir, ao mesmo tempo em que você é modificado,
você modifica, evidentemente. Mas há um tempo para que isso se passe. Às vezes
você se torna inteiramente receptivo e essa recepção é, no fundo é uma
potencialização, ela modifica, lapida, mas nunca sem a tua diferenciação, nunca
sem a tua intensidade. Então a tua intensidade na modificação já é criação. Mas
é criação quando se expressa. Então, a intensidade com aquilo que te modifica,
se você sabe encontrar o sim para aquilo, a afirmação para aqueles elementos
modificados, você imprime uma distância, uma diferença, um tempo, uma intensidade
próprios daqueles processos. Isso já forma um bloco de sensação.
(Pergunta – Seria então reconhecer o momento e aceitá-lo
para a atuação criativa.....)
Sem dúvida. Não é se resignar a um momento que te impõe
certas condições, mas é recebe-lo enquanto virtualidade. É bem diferente da
resignação. É uma fatalidade sem ser resignado. Jamais. É o contrário da
resignação.
(Pergunta – Não no sentido de resignação, mas de torná-lo
produtivo, ou seja, casar com ele para que haja um acontecimento...)
Perfeito. Spinoza dizia algo interessante – a comunidade
de homens livres. A comunidade de homens livres não implica nunca um Estado ou
uma sociedade. Isso pode ser um bando, ou pode ser você com os animais e as
plantas. A questão não é nem de forma humana ou de relações humanas, mas
evidentemente que é possível você criar relações afirmativas e lapidar isso.
Mesmo aqui e agora, em qualquer lugar, no meio da merda que é a sociedade tem
um jeito muito interessante de dançar e até fazer algumas conspirações,
livremente. Conspirar a favor da vida. Apesar de certas práticas nossas
cotidianas – você tem que comer, trabalhar, fazer isso, fazer aquilo – você
pode, sutilmente, nas tuas próprias relações mais ordinárias, mais cotidianas,
ir introduzindo um jeito de ser criativo, de ser afirmativo, de gerar aliados
nas próprias relações. Mesmo nas relações ruins que às vezes se impõem, você
pode encontrar um jeito de extrair delas a única coisa que elas têm de
interessante para te passar que é uma espécie de um duplo.
(Pergunta)
É uma espécie de sintonia, não é nunca uma troca, é uma
espécie de roubo e dom, ou de dom e contra-dom, porque não há uma equivalência.
Essa sintonia não pode ter um equivalente. Porque o que se passa numa relação é
sempre o diferencial, e o diferencial nunca se equivale, nem pode. É que nem a
relação entre a aranha, a teia e a mosca, ou a abelha e a orquídea. Há uma
espécie de dupla captura, com diz Deleuze, é uma espécie de dom e contra-dom,
que encontra uma superfície comum, mas jamais o que é comum se impõe à
diferença. Na verdade é a ocasião para que a diferença gere, na própria
superfície comum, uma expressão única.
(Pergunta - O que é comum não é igual...)
O que é comum não é igual, exatamente, não é equivalente.
Há um campo comum, há uma zona de indicernibilidade, e essa zona é onde se faz
a diferença, mas a diferença é feita com essa condição de comunidade na
relação, mas não de igualdade de relação, como você mesmo disse.
(Pergunta - Isso seria a necessidade do extremo?)
Sem dúvida. Você encontra um ambiente próprio para a
afirmação, e a afirmação é sempre um extremo. Se é afirmação, é um extremo. Não
existe afirmação “meio-afirmação”.
(Pergunta)
São as marcas sensíveis. Por exemplo, eu olho esse copo,
eu fecho o olho, eu tenho uma imagem do copo. Isso é uma marca sensível,
visual. Eu ouço um som, ele cessa e fica uma marca. E assim com o olfato e tudo
o que é sensível. Então, existem em nós forças que investem isso, e isso é
interessante, é uma coisa boa. Mas existem forças em nós que também investem a
excitação disso. O que foi a coisa que me afetou do copo, que gerou a imagem de
copo? Isso é excitação. Cézanne diz uma coisa: não o colorido, mas o colorante.
Os estóicos dizem: não o verde, mas o verdejar. Então, há um nível de realidade
que não é a realidade das imagens últimas que chegam a nós, ou das marcas
últimas. E existem forças em nós que investem isso, que investem o verdejar,
que investem esse colorar, que investem isso que é expresso por ações verbais,
por verbos infinitivos. Então existem forças em nós que investem isso. Essas
forças investem, portanto, as excitações. O Nietzsche diz: isso que é a
consciência original em nós. A
consciência é uma consciência da excitação, ela investe em excitação. Isso
deve estar o tempo inteiro presente e consciente. É a consciência da passagem.
E a marca deve ser recalcada, ela deve ficar inconsciente. Ela não deve voltar
à superfície. Eu olho esse copo, fecho o olho. Agora eu vou olhar o copo de
novo. Aí eu olho o copo já com a imagem que eu tinha anteriormente. É isso que
o Nietzsche diz quando ele fala: as marcas invadem a consciência. Então, quando
as marcas invadem a consciência, o novo se torna impossível, tudo é velho, tudo
já é vivido e revivido e sempre você recodifica a partir das marcas que você já
tem. E geralmente as marcas vêm de uma impotência, portanto de um
ressentimento. Você não reage mais, você ressente uma marca e ela ocupa o lugar
da excitação. Então, ao invés de você se relacionar com a excitação e com o
devir, você se liga com marcas que codificam o devir. A mesma coisa em relação
à palavra ou a linguagem. Os significados, os significantes, os designados, os
designantes, os manifestados e os manifestantes. São signos que remetem ao
objeto. O designado é o objeto, o signo que remete a ele é o designante. O
manifestado é o que se manifesta em mim, e eu mesmo sou o manifestante. O
significado é o significado entre um sujeito e um objeto, ou entre dois
significantes. Isso tudo são marcas verbais. A gramática é um conjunto de
marcas verbais, são palavras de ordem, na verdade. Nós falamos já submetidos a
essas palavras de ordem. Existem atos lingüísticos anteriores a isso, e esses
atos lingüísticos são o que nós enquanto prisioneiros de traços verbais não
aprendemos. E aí, sim, a linguagem tem a função de representar. Mas a linguagem
enquanto representação perde exatamente essa potência de fazer transformações
incorporais. A linguagem é uma potência de transformações incorporais.
(Pergunta – Eu ia perguntar o que você acha de a ..... apoiar o Lula, mas na verdade eu
queria saber que é: você não acha que os artistas tem que ter essa consciência
que você está colocando aí, de realmente se envolver e viver? Você não acha que
a gente acabou liberando um monte de espaço para o poder de fora? Aí lá vão os
artistas novamente dizer: não, vamos preparar um estado de esquerda, como se a
esquerda fosse solucionar..... )
Eu acho que o problema é sempre o mesmo. O problema é
quando o movimento deixa de ser movimento. O PT enquanto movimento é muito
importante e muito interessante. É notável e deve ser estimulado. O PT enquanto
partido que julga ou seleciona ou identifica e redireciona os movimentos é um
estado que deve ser combatido. Então, a relação de aliança ou de inimizade não
é uma coisa em bloco. É como as nossas relações pessoais. Em cada pessoais, em
cada pessoa tem uma pluralidade de afetos, às vezes se manifestam mais certas
coisas ou certas outras, a gente deixa de lados algumas e se relaciona mais com
outras. A coisa nunca é pessoal, ou nunca é partidária, ou nunca é
institucional, nunca é em bloco, é sempre os afetos que interessam à vida.
Então, se afetos que interessam à vida atravessam o PT, ótimo, e se isso for
mais forte que os afetos de morte que também atravessam o PT, então é
interessante apoiar o PT em certos momentos e em certas atividades. Por
exemplo, eu odiei a aliança que o PT fez com o PL e, no entanto, eu não sei se
talvez seja motivo suficiente para dizer assim (apesar de que o voto é o que
menos importa, não é a questão do voto, é a questão da atitude) então eu não
sei se isso seria suficiente para dizer assim: a minha atitude é anti-petista.
Então, esse tipo de coisa é o modo como os afetos passam. Não dá para a gente
dizer fulano ou sicrano, ou o partido tal. Mas geralmente se manifestam mais
forças da vida, numa organização como a do PT, do que forças de morte como nos
outros partidos onde acontece exatamente o contrário. Isso eu não tenho
dúvidas. Acho que de fato é muito mais interessante. É o único partido que
funciona enquanto partido, se quiser se falar do ponto de vista institucional.
Mas, na verdade, o que é sempre mais importante é nunca perder o devir. Então,
se você dentro do PT é levado a perder o devir, é melhor..... Eu acho que o
único critério é esse, não existe outro. O devir é a relação com a superfície
ou com a potência própria de criar as maneiras de ser.
(Pergunta – Essa potência convive com o poder que ao mesmo
tempo escraviza essa potência? Ou tem uma intenção de ter só uma potência e não
ter o poder que escraviza a potência?)
Essa potência ela necessariamente convive. A gente vive
num sistema capitalista, a gente vive nessas relações. Mas existe um jeito de
tocar o poder, ou tocar essas relações que diminuem ou que escravizam a vida. E
esse jeito é sempre aonde o poder não consegue te tocar. É o modo imperceptível
de ser. Devir imperceptível. É se tornar intenso. O poder, ele só toca a
intensidade com uma forma de captura, ele precisa da forma. Mas a intensidade
que permanece na intensidade jamais é capturada. O que o poder pega? Ele pega
uma figura, uma casca, um corpo, uma capsula. Ele diz: é bom que essa realidade
que está aí fique aí. Mas se você não está mais aí, o que de fato ele pegou?
Ele pegou uma casca sem vida. E é isso que nós podemos ser. Ser homem-bomba de
fato talvez seja isso, não é se explodir, mas é habitar as intensidades e não
se deixar capturar, ao contrário, gerar um campo intensivo tão forte em volta
que o próprio poder nem se aproxima. Aí sim gerar uma comunidade de homens
livres. É gerar campos de potências ou de intensidades que não dêem espaço para
as formas sutis de organizar essa comunidade e se apoderar dela. Como por
exemplos os índios guaiaquis naquele discurso do Pierre Clastres quando ele
fala que as sociedades selvagens não são sociedades sem estado, sem história,
sem mercado, sem propriedade privada. São sociedades contra o estado, contra a
propriedade, elas inventam dispositivos de esconjuramento do poder. Você
esconjura o poder. Como? Na intensidade. Assim o chefe, por exemplo, o chefe de
guerra. Ele é chefe na guerra. Acabou a guerra, ele tem a função de falar muito
na tribo e ninguém ouve ou tem a obrigação de ouvir. Então ele fala, fala, fala
– toda a paranóia dele, a vontade de falar, ele fala mesmo, esgota-se ali. E
tem que dar muitos presentes, ele não pode se apropriar de nada. São mecanismos
de esconjuração do estado. Então, a vida inventa, a vida cria.
(Pergunta – A ética da alegria seria então talvez o
remédio que impulsionasse, empurrasse, provocasse no homem uma espécie de
trampolim para o seu próprio devir? Nesse sentido, a ética da alegria talvez
até como uma estratégia construtivista do ser, uma forma de aprender a
desaprender, aprender a aprender novamente?)
É junto, é simultâneo, não tem uma coisa que você se
instala uma ética da alegria e depois entrar em devir. A ética
necessariamente é da alegria, uma ética que não for da alegria é uma moral. A
ética ensina a afirmar a potência e a moral ensina a obediência da potência.
Então ela necessariamente é alegre porque se ela afirma a potência, ela afirma
a composição e aumento de potência e aumento de potência é a própria expressão
da alegria. Então, é uma coisa só. E não há expansão de potência sem esse
critério da reafirmação da sua própria potência.. É isso mesmo, é sempre uma
ética da alegria, uma ética da afirmação, uma ética da potência.
(Pergunta – O problema é que, se a gente for cogitar que
ética não se ensina e se mostra, qual seria então a forma de fazer com que as
pessoas conseguissem ler essa ética?)
A questão do ensino como você põe é como se se ensinasse
uma forma de ser, e isso de fato não existe. A questão não é o ensino, a
questão é a ressonância. A ressonância que modifica algo em você e que por sua
vez cria a forma de ser. Você mesmo inventa a matéria, não se ensina nada nesse
sentido. Se provoca, se modifica, se faz com que algo se passe. É por isso que
as significações não servem para nada. “Há, não entendi nada!” – que bom, não
interessa entender, não é para entender nada mesmo. Ou se passa algo, se
modifica algo, algo te intensifica, e com isso você cria alguma coisa, ou você
só se entupiu de novos aguilhões.
(Pergunta – Então qual é o verdadeiro médico que nós
podemos nos ... ?)
Você já tem elementos para isso. Se você quer que eu
insista, eu posso falar de novo: lapidar a sensibilidade, criar tempos,
espaços, blocos de espaço-tempo não reconhecíveis. Sair das estrias espaciais
desse espaço sedentário. Sair desse tempo do relógio, desse tempo exterior aos
processos da nossa vida. Ouvir mais não aos nossos sentimentos e segredinhos
sujos e coisinhas psicológicas e conflitos, não isso. Ouvir mais o clamor da
vida, a urgência da vida em nós.
(Pergunta - De que forma prática, um ser que está em fase
de crescimento, a criança, a gente consegue evitar essas formas, essas capas
que impedem a potencialidade pura?)
Educação cruel, não educação piedosa. A crueldade não é um
terror contra a vida, ao contrário, a crueldade lapida as forças da vida que
são acomodadas e que investem a sobrevivência. E libera as forças ativas da
vida. Então as forças reativas não ocupam o lugar das forças ativas, porque
elas são adestradas. É necessário adestrar as nossas forças reativas, porque
nós temos forças reativas que são muito interessantes e necessárias. O que faz
a força reativa? Ela mantém o corpo, ela conserva, ela regula, ela limita, ela
retarda, enfim, ela é uma função de sobrevivência, ela mantém o que já foi
criado, mas ela não manteria se a coisa não tivesse sido criada. Portanto o mais
importante é a criação, a criação das forças ativas. Então, as forças ativas
têm que ser dominantes em relação às forças reativas. E é isso que é a educação
cruel desde a infância. Adestrar as forças reativas, para que as forças ativas
da vida se liberem. E não essa educação piedosa que nós temos que é aquela
educação que diz assim: oh, coitadinho, você é um ser impulsivo, você é
passional, desequilibrado, vamos te formatar, vamos te resgatar, porque te
formatando, te resgatando, você não vai sofrer. Aí fora você vai ser
reconhecido. Você vai ser bem sucedido, você vai ter um cargo, vai ter um
poder, vai ter isso, vai ter aquilo, você vai ser enfim salvo do caos. Essa é a
educação piedosa que nós recebemos. Ensina-se a obedecer as formas que te
salvam, é isso que a educação faz. Agora, educar para a vida e para a liberdade
é agir sobre as forças reativas que liberam a criação em nós, ou geram a
condição de liberação da própria criação em nós, ou seja, liberam a atividade
livre das próprias forças ativas. Assim, por exemplo, as questão das marcas.
Uma superfície marcada é uma força reativa não adestrada. Essa marca que tinha
que estar no inconsciente para que a superfície ficasse lisa e no liso da
superfície o virtual se conecte diretamente com a minha potência, no lugar
disso a marca invade o campo das excitações, essa superfície lisa, invade o
virtual e ao invadir o virtual ela impede exatamente que a minha vida entre em
devir, em devir ativo, em devir criativo. Então é a marca no lugar da potência,
é a marca no lugar da expressão.
(Pergunta - Essa crueldade não corre o risco de
embrutecimento?)
Ao contrário. A palavra não importa muito, se é crueldade,
se é rigor, se é necessidade, se é urgência da vida, mas é um jeito tal de se
relacionar que extrai da vida o que é necessário. Esse jeito faz com que a vida
sempre se expresse plenamente. Ao se expressar plenamente, não há lugar para
pena, ou para dor como um sentido íntimo. A dor é sempre o prazer de alguém, é
sempre a alegria de alguém. Assim, você pega uma tribo, por exemplo, que vai
fazer um ritual de crueldade com um elemento que se torna um guerreiro, um
ritual de passagem para que ele vire guerreiro implica uma certa crueldade, uma
bela crueldade em relação ao corpo para que esse corpo seja um corpo forte e
que não se submeta às dores, porque a dor é secundária. A dor e o prazer são
secundários no corpo. Há uma coisa que é muito mais profunda que é a alegria e
a própria tristeza que é a expressão direta do desejo. A dor é um mero elemento
que localiza certas atividades. Agora, a vida que precisa de anestésicos
inteiramente, que é incapaz de suportar a dor, é uma vida totalmente fraca,
fraca no sentido de que ela vai trair, na primeira oportunidade, alguém que se
utilize dessa dor que ela não suporta, para que ela aponte um caminho que era
um segredo. Assim você faz uma certa tortura com algum guerreiro fraco
aprisionado, ele revela todo o segredo da tribo, por causa da dor, que é uma
coisa secundária. Então há um embrutecimento aí? Há uma lapidação de viver a
dor na sua plenitude, no que a dor tem de interessante. Não simplesmente
esquecer a dor, amortecer a dor como uma coisa indigna da vida. Porque sempre
foi através da dor e do sofrimento que se acusou a vida. A vida não é digna,
não está a altura, porque existe sofrimento na existência. A existência tem
alguma culpa, tem alguma coisa errada com a existência porque a gente sofre.
Sempre se usou desse argumento baixo para acusar a vida. Porque tem sofrimento
e dor. A dor e o sofrimento são sempre a alegria de alguém, a gargalhada de
alguém, assim que a gente tem que pensar. Alguém está rindo e se divertindo
muito e alguma vida está expandindo legal com as nossas dores. E a gente tem
que saber rir de nós mesmos, senão nós sempre vamos investir na educação piedosa.
Nós temos que ser cruéis com nós mesmos.
(Pergunta - Numa cultura como a indígena que pega, num
ritual de passagem, uma criança e pinta ela de mel, joga ela num formigueiro,
ela é devorada, e antes dela morrer tira do formigueiro. Bom agora você já
virou um adolescente......)
A questão da forma é secundária, ou a coisa é eficaz na
relação ou a forma é terrorista, aí não serve para a vida. A vida precisa
inventar algo que a lapide.
(Pergunta - Você pode, por exemplo, valorizar o afeto, num
tempo contemporâneo, levar a criança acampar, montar uma fogueira....)
Perfeito, pode, exatamente. Aliás, a doçura é a melhor
forma de ser cruel. Mas isso já é uma elevação. Eu estou falando que a
crueldade sempre está presente, mesmo no ato mais meigo.
(Pergunta - Não precisa ser criança, necessariamente, para
você ter a reeducação. Eu vivi isso há poucos anos atrás, esse sentimento, que
eu talvez até agradeceria se tivesse tido mais cedo, pelo conhecimento que você
tem e você conseguir suportar a vida, transmutar ela de forma contínua)
(Pergunta - Em relação às marcas, você deu o exemplo do
copo, você tentar apagar o copo e quanto você vê o copo ele sempre vai ser um
novo copo, mil vezes......)
Nietzsche diz: não existe devir ativo sem a potência do
esquecimento. Esquecimento é uma potência.
(Pergunta - E a gente pode usar ela. Se você treina você
usa ela?)
Esquecer é uma capacidade. Dizem sempre: ah, você não tem
memória suficiente, fosfato nele. Geralmente a memória é o nosso veneno, porque
a memória nossa é a memória de marcas sensíveis e memórias verbais, são
lembranças, são reminiscências, mesmo a memória involuntária. É o que nos trai.
E o esquecimento nada mais é do que a potência de alisar a superfície, deixar
que hajam vazios e hiatos. Bem-vindos vazios e bem-vindo hiato, bem-vindo o
silêncio. Porque é aí que a vida se tece, ele só se tece aí. Tem que ter vácuo,
vazio e intervalos.
(Pergunta - É o poder de apagar as marcas...)
É uma potência de não deixar com que o cheio, o atual, a
forma, a figura ocupem os espaços todos da vida. A vida fica asfixiada, ela
precisa de ar exterior, de ar puro. Ela começa a se asfixiar em circularidades,
ela se entope de uma circularidade e vira um beco sem saída. Então é isso, é a
faculdade do esquecimento, fundamental. É uma capacidade. E é um valor
destituído na nossa sociedade. A gente tem que inverter.
(Pergunta – Existem
técnicas para isso?)
Existem. Você não buscar justificativas, não ouvir
justificativas. Alguém justifica alguma coisa para você e você já está noutra.
São coisas mais ou menos assim. Porque ninguém é culpado, a vida não é culpada,
não há culpa de nada. E cada um faz o que pode naquele momento, de alguma
maneira, mesmo lá atrelado ao poder. Então, já eliminando o julgamento,
eliminando referências, uma memória que justifique certos hábitos. Ou então
ficar na expectativa de fazer uma pegadinha: ah, ele se contradisse aqui! Isso
é uma impostura moral obscena.
(Pergunta – ...eu já pedi muitas desculpas na minha vida e
adotei a seguinte postura: eu não peço e eu aceito, não desculpo. Porque se
você faz uma coisa, mesmo que você falou que não ia fazer e aí no dia seguinte
você chega e fala: você me desculpa, eu não queria isso, eu gosto muito de
você, a minha intenção não era essa..... A sua intenção era sim, você queria
fazer sim, foi prazeroso.... O fato de você verbalizar e pedir desculpa não vai
consertar o que está feito...)
Tem alguma coisa mais sutil, eu acho, no seguinte sentido:
aquele que está pedindo desculpa já é uma outra força que está ali, ainda que
ela esteja formatada no eu. A questão de pedir ou não desculpas é um falso
problema.
(Pergunta)
O Nietzsche diz: os nossos melhores amigos são também os
nossos melhores inimigos. É uma coisa importante cultivar inimigos como amigos.
É um exercício. Existe um outro pensador que é um índio mexicano que está nas
obras do Castañeda, ele diz assim: é uma sorte quando você encontra um tirano,
é uma sorte quando você encontra uma coisa que você possa exercitar a sua
potência, a sua disciplina. Porque hoje em dia a gente não encontra mais nada,
a gente não encontra nem piquititos tiranitos. Só se encontra essa coisa
piedosa que desculpa mas desculpa por piedade, para não ofender, para não
machucar, porque dói muito. Então isso é bobo, é inéscio.
(Pergunta – Queria se você acha que o acontecimento Bin
Laden, ou seja lá quem causou, você acha que isso, de alguma maneira, limpou a
superfície?)
Eles se merecem, digamos assim. Tudo tem o que merece. O
Bin Laden merece o Bush, o Bush merece o Bin Laden, é uma relação dialética. Eu
acho que limpou a superfície, sem dúvida. Mas limpou para outros que não
aqueles movimentos islâmicos radicais religiosos. Na verdade, a atitude do Bin
Laden e a atitude do Bush têm a mesma natureza. Então é tirano e escravo ou
escravo e tirano, se a coisa se inverte. O que acontece, ou que seria muito
interessante é que, se de fato aquele lugar aonde essa relação se desenvolve
fosse eliminado. Ai sim, aí eu diria que Bin Laden estaria - eu acho que Bin
Laden é um momento muito interessante do niilismo, eu acho algo muito
divertido, é interessante existir Bin Laden, eu acho legal.
(Pergunta - Quando
a gente estava falando de extremos. Você estava falando da busca pela
afirmação. E esse caminho pela afirmação, nós não estamos virando, indo contra,
não estamos negando...?)
Não é uma busca da afirmação. É a afirmação que te
encontra, ou você se encontra com a afirmação. A afirmação, ela não é uma
entidade fora, nem uma entidade sua ou ato da sua consciência que encontra -
buscou, buscou, encontrou, achou – aí começa a afirmar, dizer sim ou não. A
questão da afirmação é uma atitude, é uma postura do corpo e do pensamento que
diz sim de modo mudo, sem falar e sem imaginar, sem consciência, simplesmente
já na maneira de se relacionar com o mundo e com as coisas. É uma maneira que
deixa entrar tudo sem julgar. Ao mesmo tempo, ao deixar entrar, simplesmente,
não é passivo, ao contrário, é uma potência de receber, é uma pura
receptividade, mas isso não é uma passividade. No que a coisa traz, a maneira
como aquilo entra, essa maneira já é a própria afirmação. E essa maneira não
está em você e nem na coisa, a maneira está na passagem, te atravessa. É essa
passagem que se instala em
você. Então , algo pensa em você, algo age ou reage em você, e
é esse o critério. O que você cria? A partir de onde? O que se passa no seu
corpo ou no seu pensamento? É exatamente essa afirmação que traz a entidade
nômade, independente de você. Os afetos são nômades, a gente é apenas uma
ocasião, um instrumento, um meio. É por isso que o desprendimento é, não um ato
moral de budista, mas é um ato real de limpeza de superfície. Não é nunca um
ato asséptico. Fala-se assim: “ah, eu me desprendo, porque o corpo, muitas
misturas de corpo me deixam... não!”.
Quanto mais mistura melhor. Ser puro na mistura. Os estóicos ensinam:
desejar o acontecimento, querer o acontecimento. O que é querer o
acontecimento? É se misturar. E na mistura você encontra a realidade pura de
cada coisa. Na própria mistura. Quanto mais mistura, mais lapidados nós nos
tornamos. Desde que essa mistura esteja presente naquilo que está se passando,
se cole. A sua presença e o que se passa se tornam a mesma coisa. É isso que é
entrar em devir.
(Pergunta - Você deve saber que o diamante, quanto mais
lapidado ele for, se você jogá-lo na água, ele some. É tudo isso que você está
falando. Essa mistura toda, quanto mais você está aí se lapidando, deixando os
pensamentos, você vai entrando num.....)
Devir imperceptível.
(Pergunta - Eu queria saber a relação do esquecimento com
a técnica. Na área da arte, por exemplo. A técnica, de certa forma, ela cria
uma relação com o apego....)
A técnica é o modo pelo qual eu invisto numa repetição e
gero uma consistência. O que é uma consistência? Uma consistência é uma
realidade diferente que se instala em mim, que faz parte de mim. Isso por quê?
Porque eu entrei numa relação tal que aquilo se dobrou e se incorporou. Aquilo
se torna um aliado. A técnica é um modo de repetir aquela postura. É uma
postura, não que encontra a mesma forma, mas é uma postura que encontra a mesma
disposição. É diferente, não é a mesma forma, é a mesma disposição. Então você
pode inventar técnicas do corpo, técnicas de voz e estar sempre em devir com
sua a voz e com o seu corpo. Porque existe uma má maneira de se relacionar com
a técnica que é aquela coisa obsessiva de repetir um exercício na sua forma
como se ele te desse, por repetição, o jeito sempre de entrar naquela relação.
Mas aí o jeito que você entra naquela relação é sempre o mesmo na forma. E o
mesmo na forma perde a potência do próprio devir. O que é a potência do devir?
É a potência de retornar e criar. Mas você retorna e se submete à forma, aí
essa técnica não é boa. É como, mais ou menos, a obsessão por aeróbica, ou
corrida. Sempre tem um jeito de submeter o corpo para que o corpo adquira um
movimento mecânico, por exemplo. Nunca se trata de mecânica quando se trata de
vida, ou então a mecânica deve se tornar viva.
(Pergunta)
Essa coisa mais moderna de segmentar as artes? É como o
que se passa com o ensino na universidade. Todos nós sabemos que a universidade
é o lugar do não-pensamento, é onde se proíbe o pensamento. Assim é nas artes
fragmentadas, é o lugar aonde se representa a arte para melhor se controlar a
arte. Na verdade, o artista, ele sempre tem uma relação íntima com a
intensidade e a intensidade ela cria as formas que ela encontra na ocasião
melhor para se expressar inteira. Então se você encontra a cerâmica, se você
encontra o óleo, o pastel, se você encontra o carvão, se você encontra o
cinema, se você encontra a literatura, a arquitetura, não importa o modo de
expressão da arte, o que importa é o ser da própria arte. E o ser da arte
ressoa em qualquer uma. E ressoa na vida. Vida e arte, e as várias artes são
uma e a mesma coisa. Então, fragmentar artes e dizer que uma é melhor que a
outra é o que o poder faz.
(Pergunta - Essa coisa da importância do que não se vê e o
que não existe. Parece que ficou provado que a maior parte do Universo é
constituída de matéria escura e que essa é uma matéria que não pode ser medida,
nem vista, mas que pelo movimento do Universo, é inegável que ela é no mínimo
dez vezes mais pesada do que se vê, ou o que se pode pesar, e é a parte que
mais constitui tudo. E eu vejo, no meu olho metafórico, que seria essa potência
mesmo, seria o que realmente existe e que move as coisas.)
Há na verdade aí é exatamente a potência do vácuo. A
ausência de luz, o escuro, ou o que se chama de buraco negro, como uma espécie
que a gente pode até mitificar e cultuar. Legal esse mito. Dizer, olha, vamos
criar buracos negros, criar superfícies lisas. No seguinte sentido: porque o
poder cria um monte de buracos negros pra gente e muros intransponíveis. Os
buracos são as nossas subjetividades, a nossa falsa profundidade. Buracos que o
tempo inteiro atraem as relações para esse mesmo centro, e devolvem as relações
de acordo com esse mesmo centro. Então esse escuro, na verdade, ele é um
luminoso da lei, ele não tem nada de escuro. Ele é uma forma que gera uma espécie
de uma espécie de âncora em nós mesmos e a gravidade nos puxa. É o nosso
macaco, diria Nietzsche, é o espírito de gravidade, a gravidade nos arrasta, é
o nosso buraco negro negativo. E haveria uma espécie de muro branco, ou muro da
representação que nos salvaria desse buraco, que é uma altura, é um teto que a
gente se pendura. A gente se pendura nos valores estabelecidos. Isso, na
verdade, é uma maneira de falsificar os verdadeiros buracos negros e as
superfícies lisas.
(Pergunta – Era um buraco, mas era como que uma matéria
invisível que na verdade moveria o Universo. Eu vejo isso como se fosse uma
potência....)
Não há vazio que não seja um campo atrativo de
velocidades, lentidões, paradas, repousos, movimentos, processos. E não há
intervalos de tempo, ou hiatos, que não façam emergir uma pluralidade de outros
processos ou tempos próprios que não cabiam naquela série. É claro que isso
sempre é preenchido. É por isso que o vazio e o intervalo são condições de
entrar em devir com intensidades, processos, movimentos. Aquilo é cheio de
atrações e de realidades potentes. Então não é um vazio enquanto vazio. Não é o
nada. É o vazio como potência de fazer com que as intensidades entrem em
relação.
(Pergunta)
O motor imóvel da nossa vida é exatamente esse virtual.
Porque o virtual tem toda a realidade contida sem estar atualizado. Ele tem o
máximo de potência com o mínimo de ato. Mas a nossa vida, que é uma potência em
ato, portanto uma potência em relação, ela só se move e só é potência porque
está em relação. E
só está em relação porque há esse campo virtual. Esse campo virtual é o que nos
puxa, o que nos chama. Não é a gente que espera algo. É aquele algo que nos
espera. É o contrário, esse algo que nos espera é o que nos move. Então, é mais
ou menos como diz Spinoza para falar da questão do bom e do mau. Ele diz assim:
eu não busco ou eu não encontro uma coisa porque ela é boa, a coisa é boa
porque eu a encontro. É ao contrário. Não tem um juízo de sabedoria da minha
consciência – eu escolho a coisa boa e aí eu vou me encontrar com a coisa boa –
se houve encontro é porque a coisa era boa. Isso é o que nos move. O que nos
move é esse encontro virtual no meio das coisas, no meio das nossas relações.
Tudo em nós clama pelo encontro. É isso.
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