sábado, 9 de março de 2013

Saúde integral da mulher: quo vadis 30 anos depois?


Saúde integral da mulher: quo vadis 30 anos depois?
Por Ana Maria Costa

Há 30 anos a política de saúde para as mulheres tenta se livrar das limitadas concepções do programa materno infantil que, em meados do século passado, inaugurou a visão restrita de saúde para a população feminina valorizando o “binômio mãe-filho” e reconhecendo apenas a gravidez, o parto e o puerpério como momentos de vulnerabilidade para a população feminina.
Esta saga começa em 1983, quando o Ministério da Saúde foi instado a dar respostas ao debate sobre crescimento populacional e planejamento familiar que ocorria no país e que foi objeto de uma comissão parlamentar do Congresso Nacional, criada para examinar o risco de “explosão demográfica”.
Foi então que o Ministério, sob a influência do movimento da reforma sanitária e de concepções feministas, formulou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher, o PAISM. Importante lembrar que o PAISM rompe com os programas verticais convencionais ao ser apresentado sob a forma de diretrizes dispostas nas “Bases para Ação Programática”, ajustáveis às realidades epidemiológicas e respectivas demandas e necessidades locais.
O PAISM modernizou o discurso oficial da saúde diagnosticando a realidade complexa da saúde das mulheres e alargando a oferta de ações de assistência com avançados princípios da autonomia decisória das mulheres e dos casais sobre sexualidade e maternidade. Para isso, incentivou as práticas educativas que passaram a integrar o elenco das ações oferecidas como rotina do cuidado à saúde com o objetivo de garantir maior participação das mulheres nas decisões e condutas diagnosticas e terapêuticas, além de incidir sobre as relações assimétricas de poder existentes entre profissionais de saúde e mulheres.
Embora o PAISM tenha como seu maior saldo a construção de uma referência política para os direitos e a saúde das mulheres que passam a ser adotados pelos setores mais engajados e progressistas da sociedade, a sua implementação plena e nem a sua radicalidade foram efetivadas na prática. Na verdade, as concepções do PAISM ocasionaram incômodos aos saberes e poderes instituídos na área da saúde da mulher, particularmente setores da corporação dos profissionais ginecologistas e a Igreja Católica. A Igreja, tão logo teve oportunidade, assumiu o comando do programa e, em aliança com entidades dos profissionais médicos, atuou retrocedendo as ousadas bases programáticas do PAISM.
A criação do Sistema Único de Saúde em 1989, cuja presença deveria constituir fator positivo para a consolidação do PAISM, não foi incluída na pauta de ativismo dos movimentos de mulheres que, como de resto ainda acontece com a maior parte dos movimentos de usuários ou portadores de patologias, prefere optar pela defesa dos interesses específicos particulares dos seus grupos de ativismo como se as melhorias para estes grupos sociais não dependessem da condição precípua da saúde efetivar-se como um direito universal com a responsabilização do poder público.
O cenário de implantação do SUS desde os anos noventa vai se tornando cada vez mais complexo com o recuo dos sucessivos governos que resultam na gradativa retirada do estado de suas obrigações constantes da Constituição Brasileira de 1989. Simultaneamente, observa-se o avanço dos interesses de mercado que, sem regulação eficiente, concentra a incorporação de tecnologia em saúde e ganha espaço na mercantilização dos planos de saúde desde então.
No final dos anos noventa, a saúde da mulher se transforma em filão de campanhas políticas e o Ministério da Saúde não hesita em realizar uma questionável campanha de diagnostico de câncer cervico uterino com serias e dolorosas implicações éticas, já que não garantiram tratamento às mulheres que apresentaram resultados de exames papanicolau positivos.
É nesse período também que o PAISM, concebido como política única e integral para as mulheres, passa a ser fragmentado em programas com recursos, objetivos e estratégias paralelas aos moldes dos programas verticais, que visavam o pré-natal humanizado, ou o abortamento legal - ou mesmo os cânceres sucumbidos pela tendência das múltiplas fontes de financiamento adotadas pelo SUS como forma de repasse dos recursos da saúde.
Este retorno da ação vertical é inspirado nos antigos e ineficientes programas ministeriais questionados e combatidos pelo movimento sanitário pelo distanciamento das realidades locais concretas e por constranger os estados e os municípios a assumirem metas e estratégias predefinidas de forma centralizada. O caminho adotado reafirma a dificuldade das instituições do SUS, em especial o Ministério da Saúde, em operar de forma matricial, compondo, assim, uma harmonia articulada e integrada a partir de suas diversas áreas e missões.
No ano de 2003, o governo parece voltado a retomar a abordagem da integralidade nas políticas para a saúde para as mulheres e, demonstra isso na formulação da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Mulheres, a PNAISM, com forte inspiração nos conceitos e princípios do PAISM e expande significativamente a oferta de ações a partir do diagnóstico dos determinantes sociais e culturais que incidem sobre os distintos grupos sociais que compõe a população feminina. Os novos tempos anunciados nesse período político nacional levou a acreditar na força desta política que chegou a ser exaltada, de forma equivocada, como “política de estado”.  
Ao tempo que a PNAISM era celebrada como um real avanço na orientação para que o SUS oferecesse melhor atenção às mulheres, outra vez é retomada a saga circular da fragmentação programática verticalista como no caso dos cânceres, direitos sexuais e reprodutivos, violência e mortalidade materna que passam a constituir políticas específicas ou problemas e metas sanitárias, com maior ou menor prioridade, organizados em intervenções e estratégias verticais isoladas.
As Políticas criadas pelo Ministério da Saúde na ultima década que são designadas como de “promoção da equidade” para grupos sociais específicos- negros, LGBT, população do campo, e outras-todas elas de cunho transversal e dependentes de um modo matricial de funcionamento das instituições do SUS sobrevivem hoje como letras frágeis entre fontes orçamentárias, estratégias, redes e outros projetos específicos que impedem atingir a integralidade como eixo da assistência a saúde. Estas estratégias isoladas e fragmentadas ainda hoje estão presentes no Ministério da Saúde como propostas para o SUS.
Estas políticas de promoção da equidade, se adotadas em estratégia matricial, têm potencial de intervir sobre o processo de determinação da saúde destes grupos em situação de desigualdade persistente. Aliás, deve ser dito que o projeto de Redes de Atenção à Saúde proposto pelo Ministério em 2009 tinha potencial de recuperar sentidos para a integralidade como eixo da política para as mulheres. Nos tempos atuais, isso se transformou em Rede Cegonha, proposta que dispensa comentários pelo retrocesso que representa no cenário da saúde das mulheres e da saúde pública nacional.
Com estas breves apreciações, faz-se necessário, então, interrogar se as inegáveis conquistas que as mulheres brasileiras galgaram alcançar nos últimos 30 anos - entre as quais devem ser incluídas, dentre outras tantas, a Lei do Planejamento Familiar, a Lei Maria da Penha ou a ampliação dos permissivos dos casos de abortos previstos na Lei -, puderam, de fato, traduzir mudanças reais na vida cotidiana e na saúde das mulheres.
Assim, cumpre analisar a situação da saúde das mulheres no contexto dos avanços e das fragilidades identificadas no SUS. A notória expansão da cobertura proporcionada pela estratégia da saúde da família nos últimos anos ampliou as coberturas na atenção pré-natal, ao planejamento familiar no tangente à contracepção ou mesmo no diagnostico do câncer cervico uterino. O perfil do uso de métodos contraceptivos entre as mulheres não mudou e ainda é polarizado entre hormonais- orais e injetáveis e a laqueadura de trompas.
Retomando a responsabilidade que os serviços de saúde devem assumir sobre as condições das desigualdades sociais, incluindo as de gênero, deve ser considerada a inclusão na pauta de trabalho das equipes de saúde da família de contribuição para promover mudanças sobre o papel social das mulheres.
Outra interrogação necessária para um governo que pretenda transformações nas relações de gênero acerca da atenção básica é se o foco na saúde da família permite a desconstrução dos papéis de gênero desfavoráveis às mulheres. Por fim, é necessário conhecer se a prática da educação em saúde realizada nesse tipo de atenção básica tem sido ferramenta efetiva no empoderamento e no apoio à cidadania feminina.
As mulheres tem dificuldade de acesso aos serviços especializados ambulatoriais ou hospitalares, sejam as gestantes quando precisam da maternidade ou qualquer outra mulher em situação de necessidade de retaguarda diagnóstica ou terapêutica. É esta dificuldade que conduz as mulheres - e suas famílias - à compra de planos privados de saúde hoje oferecidos a baixo preço com um pobre e restrito cardápio de serviços que, na maioria das vezes, as leva a recorrer ao SUS. Esta situação configura uma urgência para a intervenção reguladora do Estado, protegendo, tanto as mulheres consumidoras de planos privados quanto o SUS deste golpe duplo.
O tema da mortalidade materna merece ser ressaltado por vincular-se diretamente à qualidade da assistência prestada a gestantes, parturientes e puérperas e também por constituir meta não atingida entre os Objetivos do Milênio. Iatrogenia, medicalização, abuso de cesáreas e negligência são algumas variáveis que ainda persistem e transformam a maternidade em risco de vida para nossas mulheres. O pacto tem que ser reavaliado e reconstruído em outras bases éticas e políticas. E essencialmente transparentes.
Incide sobre a taxa de mortalidade materna as mortes por abortamento que ainda ocorrem no país devido à condição da precariedade da sua prática clandestina pela ilegalidade do aborto no país. O governo atual deixou de lado o debate e negociações que conduziriam à legalização do aborto em obediência ao obscurantismo de setores de sua base parlamentar. Com isso, o Brasil retrocedeu muito enquanto países do nosso continente como o Uruguai e a Argentina enfrentaram as forças conservadoras ao apostar no significado que a legalização do aborto confere às democracias nacionais.
As violências, em todas as suas formas e naturezas, devem ser abordadas por meio de políticas públicas e iniciativas intersetoriais, articuladas. O setor saúde tem papel fundamental tanto na prevenção e detecção precoce quanto no tratamento das suas consequências. Contudo, na prática, ainda prevalece a omissão por parte dos serviços de saúde cujos profissionais colocam seus valores e moralidades a serviço da defesa da vida familiar e do casal, mesmo que esta modalidade de vida represente riscos à integridade e à saúde das mulheres.  
As violências contra as mulheres devem constar da pauta do que fazer na saúde, desde as equipes de atenção básica aos hospitais mais especializados. A intervenção da saúde sobre a situação da violência não pode ser isolada e depende diretamente do compromisso do sistema de atenção com a integralidade. É preciso criar uma cultura de compromissos da saúde com a erradicação das violências sexual e doméstica. Redes de atenção à violência que repetem o verticalismo e o isolamento institucional e não se comprometem com as necessidades integrais das mulheres são contraindicadas e não fornecem garantias de sustentabilidade.
Desde muito acumulam evidências acerca das desigualdades de gênero quando se trata de saúde mental e, mesmo que o assunto tenha sido sobejamente discutido, ainda não existem atitudes do Ministério da Saúde e do SUS que promovam um olhar particular sobre a saúde mental e as mulheres. Por onde começar? Pelos grupos de mulheres na atenção básica? Como evitar a medicalização de mulheres entristecidas que recebem como consolo único uma receita mensal de ansiolítico ou antidepressivo?
Para finalizar, é necessário comentar sobre a presença das mulheres no cenário da saúde, em todos os lugares e papéis, ou seja, como profissionais de saúde, como usuárias dos serviços ou como conselheiras dos conselhos de saúde e delegadas nas conferências. A condição de predominância da presença feminina nestes espaços deveria ser positivamente capitalizada em prol de mais e melhor saúde para as mulheres.
Mas essa mobilização não pode descolar da luta pela garantia do direito à saúde, em defesa do SUS. A demanda pela integralidade da atenção à saúde das mulheres jovens, adultas ou idosas, brancas, negras, pobres ou não, lésbicas, heterossexuais, transgênero, transexuais, do campo ou das cidades, religiosas ou não, somente poderá ter perspectiva de ser efetivada com o fortalecimento da participação do Estado no financiamento público para a consolidação do SUS. E nesta luta pelos direitos sociais e de saúde devemos estar todas juntas.

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