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Palestra no Posto Administrativo de Infulene, Maputo, Moçambique em agosto de 2005
Palestra de Luiz Fuganti, após abertura com uma apresentação do
Coro de Mulheres Moçambicanas (CMM):
Apresentador: Convido nossos amigos para ouvir e ver o nosso visitante que gostou da atividade que foi apresentada. É cultura moçambicana, especialmente a cultura moçambicana representada e organizada pela mulher moçambicana
Luiz Fuganti – Essa receptividade tão calorosa e alegre que faz com que fiquemos cada vez mais impressionados com esses povos que constituem essa bela nação que é Moçambique. De fato, uma característica que aproxima muito esses povos com os povos brasileiros é a alegria de viver, a alegria da dança, a alegria da música, a alegria das suas expressões que são muito espontâneas e ao mesmo tempo ligadas a culturas, a tradições, que dificilmente têm par em outros países. Ficamos realmente impressionados e alegres que isso seja tão vivo, que isso faça parte da atividade, do modo de viver de todas as pessoas. É uma coisa que alegra bastante. Eu queria, antes de prosseguir falando, saber se vocês estão me ouvindo bem. Todo mundo ouve? Lá atrás também? Então, está bem. Se vocês acharem melhor que eu fale em pé ... Posso ficar sentado mesmo?
Antes de tudo, queria dizer uma coisa: eu não sou um especialista em saúde; não sou médico, enfermeiro ou agente de saúde. Sou arquiteto de formação e filósofo de modo autodidata. Estudo há muitos anos por conta própria e venho trazer um pensamento, uma maneira de pensar e uma maneira de viver que, acredito, está intimamente ligada mais a uma postura de vida do que a uma sabedoria. A sabedoria está intimamente ligada à maneira de viver, ao modo de vida, e não a algo que esteja em algum lugar onde alguns poucos gênios possam alcançar. Considero que a sabedoria é sempre uma sabedoria de vida, uma sabedoria do acontecimento. Então, esse acontecimento que vos trago é um pensamento filosófico e não exatamente médico, mas do modo como eu entendo filosofia, acredito que a filosofia é necessariamente clínica, ela também tem um aspecto, um efeito de cura e de produção de saúde e por isso eu acho que tenho alguma coisa a dar ou a contribuir, apesar de ter recebido tanto nesses, mais ou menos, quarenta dias que me encontro aqui. Tenho recebido demais, aprendido muito com várias culturas e vários povos de Moçambique. Anteontem e ontem mesmo eu estava em Gaza, em Inhanben, visitando algumas aldeias comunais. Já fiz vários outros tipos de visitas também, conhecendo, por exemplo, tipos de autoridades tradicionais, de curandeiros, gente da Ametramo (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique), enfim, uma série de outros encontros que fazem com que eu vos fale, não apenas de modo filosófico ou abstrato como se voando e chegasse aqui de pára-quedas falar de um saber.
Na verdade, eu já falo com algum sentimento moçambicano; com aspectos que eu tive a oportunidade de receber, de absorver e, por isso, acho que já podemos falar num nível mais direto, sem que essa fala seja demasiado teórica. Assim, eu queria iniciar dizendo que a saúde do modo como eu entendo, ou como esse pensamento que nos atravessa entende, a saúde é algo integral. A saúde não é apenas a saúde de um órgão, de um olho, do ouvido, da boca, do estômago, do corpo, mas a saúde é a saúde do corpo como um todo, a saúde da alma ou da mente como um todo e a saúde das relações do corpo e alma ou que o nosso ser efetua na existência, na sociedade e com a natureza. Tudo isso é saúde. Saúde é o modo de vida que levamos. O modo de vida pode ser saudável e o modo de vida pode levar à doença. Eu acredito que há um filtro natural que nós podemos incrementar, assim como nós temos o fígado que filtra os alimentos, nós temos os rins que filtram os líquidos no nosso corpo, nós temos um pensamento que filtra os nossos encontros, que filtra as nossas relações. Então, uma maneira de viver implica necessariamente uma maneira de sentir, uma maneira de pensar, uma maneira de agir, uma maneira de reagir e por isso nós podemos nos fortalecer ou nos enfraquecer de acordo com a maneira como agimos ou como pensamos.
No Brasil existe um ditado muito popular que diz o seguinte: “O que você planta, você colhe”. Não sei se esse ditado aqui é real também, funciona. Há ainda um outro ditado: “o peixe morre pela boca”. Conhecem? Estamos então mais irmanados nesse pensamento do que eu imaginava. Mas, enfim, fica fácil a gente falar nessa linguagem.
Filosofia não é algo abstrato, genérico, teórico. Filosofia ou serve para a vida ou não serve para nada. Nós vamos passar um pensamento filosófico desse ponto de vista, do ponto de vista da vida. Eu dizia então que nós colhemos o que plantamos e nós morremos pela boca. Mas também nós podemos viver pela boca. Ou seja, o que há aqui é a idéia de uma necessidade de uma seleção, de uma capacidade seletiva nos encontros. Essa capacidade seletiva é, na verdade, a tônica da grande saúde: a saúde do corpo, a saúde da mente, a saúde das relações sociais, a saúde das relações com a natureza, a saúde das relações com o planeta, a saúde de todos os corpos vivos que se interrelacionam. Porque a vida nesse planeta e em todo o universo é uma só. A vida quer. Ela quer crescer e se multiplicar; ela quer se expandir e se fortalecer; ela quer se afirmar nas suas diferenças, nas suas singularidades, ela quer afirmar aquilo que ela é, sem pedir licença e sem reservas em relação ao que os homens muitas vezes inventam como ficção de ordem, de lei ou de confusão mental que pode fazê-los separar-se daquilo que eles mesmos podem na sua vida.
Então, nas sociedades ocidentais principalmente, há uma maneira de viver que adoece corpos e mentes. Mas essa maneira de viver que adoece corpos e mentes é tida como uma maneira saudável pelo ocidente. O ocidente criou um mito, uma ficção, melhor dizendo, de que a mente está separada do corpo e, mais do que isso, de que o homem está separado da natureza ou, ainda mais, que o homem é superior à própria natureza. Essa visão que o ocidente criou é uma visão extremamente nociva, porque põe no lugar do corpo, no lugar da vida, no lugar da natureza uma instância de julgamento exterior à própria vida que quer controlar e regular a vida. A vida, na verdade, tem uma capacidade de auto-regulação, de autocontrole, de auto-afirmação, de autodeterminação, de autonomia, numa palavra. A soberania, a liberdade, a autonomia, só se efetuam na medida em que somos capazes de respeitar as nossas próprias diferenças, de afirmar nossas próprias diferenças. E as nossas diferenças são necessariamente saudáveis, são necessariamente positivas, desde que bem relacionadas, desde que bem focadas, desde que elas encontrem uma maneira de se expressar, uma maneira de agir, uma maneira de sentir, uma maneira de pensar, não há mal nenhum no desejo, na vontade de um corpo, na vontade de um pensamento de se efetuar. Mas o ocidente criou uma ficção dizendo que no fundo do homem tem uma natureza animal e a natureza animal é inferior, segundo essa visão do ocidente, é inferior e fonte dos males, fonte das doenças, fonte das misérias, fonte das intrigas, e das guerras. E haveria uma instância em nós, uma instância racional capaz de governar e de submeter essa instância animal. Então essa filosofia ocidental, esse pensamento ocidental, que é veiculado pelas sociedades, pelos estados ocidentais, e pelas religiões ocidentais também, pressupõem que o corpo e a natureza têm uma espécie de dívida, tem uma espécie de falta, tem uma espécie de carência que, quando se efetua, se efetua por interesse próprio e, no interesse próprio, gera discórdia, gera guerra, gera as fontes de desintegração social e de adoecimento que levam os povos à extinção.
Essa ficção ocidental visa, na verdade, um domínio ou um controle dos corpos. Uma vez que eu retiro o controle ou a capacidade de autogestão da vida, porque eu digo que a vida é incapaz disso, que a vida é inferior, que ela não pode se autogerir, eu estou pondo a vida num lugar inferior e criando uma instância superior de julgamento da vida e de controle da vida. Então, essa posição é dominante no ocidente. E essa posição desqualifica a vida, a natureza, os saberes locais, os saberes tradicionais, as culturas que sempre trazem algo de essencial e de necessário e que são desqualificadas uma vez que encontram esse tipo de visão e de atitudes. A gente pensa: o que falta à cultura; o que falta à natureza; o que falta à vida; o que falta aos corpos, para que eles se autodeterminem? O poder geralmente (o poder que explora, expropria, que domina), esse tipo de poder geralmente não gosta de vida forte. Não gosta da vida livre; não gosta da vida que tenha uma capacidade própria de efetuação. Por isso, o poder introjeta medo; introjeta tristeza, daí minha alegria ao ver esse tipo de manifestação tão dinâmica e alegre e afirmativa das próprias maneiras locais de viver. Mas o poder geralmente faz o contrário: desqualifica ou transforma a própria cultura em folclore. A felicidade que eu tive ao encontrar os povos de Moçambique foi ver que aqui cultura não é folclore, aqui cultura não é um departamento, não é um ministério, cultura é algo vivo. As pessoas vivem isso, elas se organizam através disso. Elas pensam através disso, elas sentem através da cultura. Então, a cultura é uma espécie de filtro seletivo, aquilo que eu falava já de início em relação ao fígado, ao rim, a essa capacidade de seleção nos encontros que fundam a grande saúde. A cultura traz uma grande saúde e não pode ser menosprezada, desqualificada, simplesmente posta de lado, por um suposto saber científico, “mais evoluído” ou que atingiu certas capacidades de cura que, na verdade, traz junto com essa capacidade de cura um controle embutido que nós chamamos de biopoder.
O poder sobre a vida, o controle sobre a vida. Eu não sei se vocês perceberam um pouco do que eu estou falando, até onde eu quero chegar enfim. Vou tentar desdobrar um pouco mais. Eu espero que não esteja abstrato demais. Se vocês acham que está dando para acompanhar o que eu estou falando? Vocês acham que está indo assim? Se quiserem fazer alguma questão, se estiver difícil, vocês me falem. Não tem problema. Podem interromper à vontade.
Eu dizia então que os poderes estabelecidos geralmente pressupõem um povo fraco. E precisam de um povo fraco para poder controlar, dominar e se servir do povo. Em vez do estado e dos poderes servirem o povo, geralmente acontece o contrário. Felizmente Moçambique tem uma experiência de libertação junto com a Frelimo que é algo realmente exemplar. Mas sabemos também que tiveram muitos problemas aqui. A chamada “guerra civil” (entre aspas) que a gente sabe que não foi bem isso, mas uma guerra neocolonialista, incentivada pelo neocolonialismo, capturando irmãos, gente do próprio do povo, para se matarem entre si, criando discórdias, intrigas, enfim, depois as enchentes e tantos outros transtornos que esse povo já sofreu, com uma independência tão recente... Ao mesmo tempo traz isso muito vivo – os valores da independência – a capacidade produtiva, fazer a riqueza com o próprio trabalho, a vigilância sobre os inimigos, que é algo que deveria ser retomado, porque agora o inimigo se tornou mais sutil e mais invisível. Ele entra pela televisão, ele entra pela imprensa, ele entra pelas ofertas de ajuda, pelo FMI, pelo Banco Mundial, entra pelas ONGs... Existem ONGs que simplesmente oferecem ajuda para enriquecer e aumentar o seu capital. Então a gente sabe que o poder geralmente funciona dessa maneira e Moçambique está aparentemente lutando contra esse tipo de poder e, ao mesmo tempo, a gente percebe infelizmente que o poder de alguma maneira já entrou, já se apoderou de algumas atitudes da própria Frelimo. Eu não quero entrar nesse debate, porque quem sou eu, um estrangeiro, para vir falar disso para vocês. Mas, enquanto estrangeiro, eu também sinto as coisas e posso falar alguma coisa do ponto de vista que tenho e acho que vocês nem precisam levar a sério o que digo. Pode até ser que eu esteja falando bobagem e de repente isso não serve para nada. Então vocês esqueçam e não tem problema. Mas eu sinto que existe também uma certa abertura perigosa que faz com que as ajudas internacionais sejam, na verdade, aquilo que eu falava antes em relação ao anzol e ao peixe. O peixe morre pela boca e as ofertas de ajuda podem esconder um anzol de captura.
A questão essencial é essa: o que escondem essas ajudas? Se as ajudas forem realmente ajudas de aliados, de gente que realmente quer ver a vida crescer, as comunidades se expandirem com seu modo de vida próprio e não quiserem impor um modo de vida exterior e ocidental, que bom, são bem vindas. Mas geralmente isso não ocorre e aí a questão de vigilância é um valor fundamental que deveria ser resgatado, acredito eu, uma vez que faz parte do próprio movimento de independência. Uma outra questão é a questão da unidade que são valores essenciais da própria independência. Que unidade é essa? Desculpe, estou entrando um pouco nas questões políticas e econômicas porque tudo isso têm a ver com a idéia de saúde que eu quero passar. Então vou falar um pouquinho mais disso e já entro nas nossas questões mais objetivas.
A questão da unidade
Hoje se fala que é essencial ter um estado democrático e livre. A paz se tornou um valor fundamental. Vocês sabem muito bem o que é a guerra. Mas a que preço, a que custo, essa paz? É imposta ou é desejada? Outra coisa: a própria idéia de democracia a gente sabe muito bem o que o ocidente fez com a democracia e o que menos eles têm é democracia e, no entanto, eles não param de falar de democracia e do povo. Fala-se em nome do povo, da democraria e faz-se a pior coisa. Assim o próprio Bush invade o Iraque e faz isso tudo isso em nome do petróleo e não da democracia Aplausos.
A questão que se põe sempre é que “falar em nome de” não basta, não adianta eu aqui vir falar em nome da saúde, por exemplo, falar em nome da diferença, em nome da singularidade, em nome das culturas locais, em nomes dos povos. Eu posso falar à vontade, favoravelmente a vocês e ser um demagogo, simplesmente para agradar e capturar. Isso na realidade acontece direto. É uma coisa freqüente. É assim que funciona o poder. O poder funciona muito mais por sedução do que por violência. A violência do poder se apresenta depois. Ele antes seduz. Então essa idéia de falar em nome de alguma coisa, em nome de Deus, em nome da paz, em nome da democracia, em nome do bem, em nome dos povos, não é suficiente porque é aí mesmo que a gente morde o anzol. É aí mesmo que a gente morre pela boca. Então a questão é não “falar em nome de”, mas ser capaz de expressão própria, como a gente assistiu há pouco. Essa bela apresentação da OMM, Organização das Mulheres Moçambicanas.
Essa belíssima apresentação revela o quê? Expressão própria, capacidade de se efetuar, de relações diferenciadas que liberam a vida que, na verdade, são a saúde da vida, a saúde de qualquer corpo, de qualquer pensamento, de qualquer povo é sempre a capacidade de expressão, a capacidade de efetuação, a capacidade de realização. Do ponto de vista filosófico eu digo sempre: é uma potência ligada ao que ela pode. A vida é uma potência em ato que se efetua, que se atualiza, se exerce. Ou seja, que a liga ao que ela pode. O ato e a potência são um conjunto vital sem o qual a vida não é saudável, não é ativa, não é afirmativa, não é criadora. Então, afirmar a própria potência, efetuar a própria potência implica em não falar em nome de alguém, mas ser capaz de encontrar, de selecionar relações nas maneiras de viver que afirmem essa expressão, essa produção, essa criação.
Então, as relações, na verdade, são capazes de nos fortalecer, de aumentar a nossa potência, aumentar a nossa realidade, aumentar a nossa capacidade de existir, de agir, de pensar, de sentir, de criar ou, ao contrário, as relações podem ser envenenadoras, intoxicantes, malévolas, no sentido de que diminuem minha capacidade de existir, de agir, de pensar, de sentir. Então é nas relações que nos ligamos ao que podemos; a vida ligada ao que ela pode é uma vida com saúde, inteira, de corpo e mente e sociedade. E, mais ainda, corpo, mente, sociedade e natureza.
Eu quero insistir aqui é que antes de tudo nós devemos perceber que a saúde é algo por inteiro ou integral. Entretanto, nós não percebemos isso ao separarmos a mente do corpo e o homem da natureza. O ocidente não percebe isso; ou não quer perceber isso ou acha que isso é uma visão que não pode dominar. Por que não pode dominar? Porque se essa visão dominar não haveria poder estatal de expropriação, de violência que se segure, que se sustente. O que o Estado faz geralmente? O que o poder de expropriação faz, geralmente? Ele introjeta, digamos assim, uma mediação nas relações. Ou seja, um atravessador, um elemento referencial sem o qual uma ação, uma reação, um pensamento não seriam legítimos. Então o poder só se legitima, desde que a relação se remeta a ele, obedeça a ele. É a diferença aqui entre ética e moral. O poder incentiva a moral e nós estamos falando aqui do ponto de vista de uma ética. Então, eu quero fazer aqui essa distinção entre moral e ética. A moral liga a vida ao que ela deve fazer, liga a existência ao que ela deve. Deve algo, deve fazer assim, não deve fazer assado. A ética faz o contrário; ela liga a existência e a vida ao que esta pode. A vida pode, não deve. E o que a vida pode? Algo necessariamente inocente, benéfico, ativo, alegre, ela é positiva. O poder sempre passa a idéia contrária, de que os desejos individuais podem ser nocivos. Mas só é nocivo o desejo individual que está separado do que pode. Porque esse desejo vai buscar uma vantagem fora para ficar mais forte. Mas aquele que está ligado ao que pode, ele necessariamente perpetua a sua própria natureza e essa natureza não pode entrar em contradição com a outra natureza, com outro corpo, com outro indivíduo. Contra o grupo social. Porque se eu me fortaleço, eu estou fortalecendo necessariamente o outro. Se o outro se fortalece, está fortalecendo necessariamente a mim. Esse é o ponto de vista da ética. Há fortalecimento, nunca em um modo individualista, de modo egoísta. O fortalecimento é sempre coletivo. Vou dar um exemplo. Se uma cultura desaparece, não é a outra que fica mais forte, a outra ficou mais pobre. As culturas que vão desaparecendo deixam a humanidade mais pobre. Assim também nossos amigos, companheiros, irmãos que são usados simplesmente enquanto trampolim para o poder: uma vez que eles são subjugados, eles me deixam mais pobre. E eu, cego que sou, acredito que tenho mais poder, que tenho mais reconhecimento, que tenho mais capacidades às custas do outro. Essa visão, na verdade, do ponto de vista ético, não passa. Não passa, porque a ética não acredita que a vida deva alguma coisa, que a vida tenha falta de auto-organização e de autodeterminação. A vida se autodetermina e se auto-organiza. A ética, então, liga a vida ao que ela pode e não ao que ela deve.
Ligar a vida ao que ela pode faz com que a gente entre numa questão já prática do HIV-SIDA (para nós, brasileiros, Aids) que serviu, na verdade, como uma luva para o sistema capitalista. O HIV-SIDA, do mesmo modo que ocorreu com outras doenças, serve para muitos controles e para muita penetração de poder em muitos povos, em muitas sociedades. Eu digo que a questão ética vem para dar um outro horizonte em relação ao HIV-SIDA. O HIV-SIDA, como eu disse, serviu como uma luva para o capitalismo, porque ele se torna um meio de moralizar as relações entre indivíduos, de proibir relações entre indivíduos, de controlar relações. E quer coisa melhor do que exercer o controle sobre a sexualidade? Sobre o amor, que é tudo que é fundamental para a vida humana? Que é fundamental para toda vida? Relação de amor, relação sexual, é uma coisa fundamental, é uma coisa bonita, criativa, é uma coisa multiplicadora, reprodutora, expansiva, diferenciante, é bom. Mas, é nas relações sexuais e amorosas, onde reina a alegria, onde reina a capacidade de efetuação, a potência, onde reina a criação, a capacidade de multiplicar-se é bem aí que o poder tem um objeto privilegiado de controle e de captura. Eu percebo que junto com as campanhas do HIV-SIDA vem sempre uma carga moral dizendo: não faça isso, não faça aquilo. Esse tipo de relação vai dar nisso, vai dar num mal, vai dar na contração do HIV e você acaba tendo o castigo que merece em função do pecado da relação que cometeu. Eu acho que a vida não precisa desse tipo de visão que é uma visão triste. É uma visão reducionista da vida. A vida necessita de uma outra postura. Ligar-se ao que pode, mas não de qualquer maneira. Ligar-se ao que pode é ligar-se com uma capacidade seletiva. E uma capacidade seletiva; é uma capacidade de antecipar as coisas, é uma capacidade de criar o futuro. De trazer o futuro aqui no presente, de apreender, de perceber as relações até no seu fim, na sua efetuação final. Saber onde isso vai dar, o modo que isso gera, se isso vai me fortalecer, se isso vai enfraquecer, se isso vai adoecer, se isso vai me deixar mais saudável ou mais forte. Mas, para se exercer essa seleção, não é necessário a gente optar por uma relação que seria boa e excluir outra relação que seria má. Na verdade, não é disso que se trata. Em toda relação, se for relação, necessariamente existe uma parte dela que é boa. Mesmo na relação má. Qualquer tipo de relação tem uma essência necessária, tem uma comunidade necessária. O mal não me atingiria se não tivesse algo de comum comigo. Há uma comunidade. Então eu posso aproveitar do mal e posso aproveitar do bem. Eu posso aproveitar de tudo.
Ética, seleção e filtro
Onde se instala então a seleção? A seleção se instala na maneira como eu me relaciono com uma coisa e com outra coisa e não simplesmente excluindo um tipo de relação. Então não adianta moralizar. Dizer não faça assim, não faça assado. Claro que no caso do HIV, uma vez que é uma doença invisível e passa através das relações sexuais, é fundamental que se faça uso de preservativo, evidentemente que é. Agora, a questão do uso da camisinha não deve ser nunca moralizada, mas sempre vista do lado ético. Do lado fortalecedor, do lado alegre. É uma proteção necessária, é um filtro necessário. É necessário, por que? Por que eu ainda não sou capaz de combater esse inimigo invisível sem a camisinha. Ou então eu posso ter relações com uma única pessoa. Sempre se passa essa idéia e aqui o poder entra forte e certas religiões também entram forte. Tenha relação monogâmica. No ocidente isso é quase uma regra que nunca funcionou, mas digamos assim que toda sociedade sabe que é moralmente viável ter uma única relação e não ter várias relações. Aqui a gente sabe que a poligamia é praticamente uma instituição. Ou estou falando bobagem?
Resposta: Não. Está correto...
Luiz Fuganti: Então aí dizem, o HIV entra por que? Ele se abate muito mais sobre as sociedades africanas, porque a poligamia nas sociedades africanas é cultivada. Então, com o combate do HIV, vem junto a justificativa de introjetar um outro costume moralmente necessário à introjeção do capital. Porque é o capital que precisa de famílias monogâmicas. É o capital que precisa gerir a herança e a acumulação monetária. Precisa saber de quem é o filho, disso e daquilo. Há necessariamente uma fixação familiar. Agora, essas culturas, a de vocês, eu sinto isso no pouco tempo que estive aqui, tem na poligamia, ou até na poligenia, que a gente sabe que no norte funciona não a poligamia, mas a poligenia, enfim, nesses modos de relação, um filtro, uma maneira de se organizar e de se fortalecer. É uma condição de fortalecimento, é uma condição de crescimento. Por que vai se acabar com a poligamia? A não ser que vocês mesmos, ao longo dos anos, decidam por isso, segundo seus usos e costumes, sem que tenha uma interferência exterior dizendo: essa é a melhor maneira de viver, essa é a maneira verdadeira de se viver. Porque isso na verdade não há. Não há uma maneira verdadeira de viver. A maneira verdadeira de viver é sempre segundo nossas capacidades, é sempre segundo o aumento de nossa potência. É aí que mora a verdade. Então essa verdade depende do modo como eu me relaciono. Então não tem uma verdade absoluta. A verdade absoluta é sempre na relação. A verdade é sempre no acontecimento, a verdade é sempre na postura, na maneira de viver e não está lá no mundo supraceleste, ou no fundo das cavernas, onde encontraria uma sabedoria primeira ou última que deveria governar os homens. Isso é uma ficção. A sabedoria está diante do nosso nariz. Está na nossa maneira de se alimentar, de fazer sexo, das relações amorosas, das relações econômicas, das relações familiares, das relações sociais, com a natureza, com o meio ambiente, é aí que mora a sabedoria. A sabedoria mora no modo de relação. Não tem outra sabedoria. E o que é a cultura? Vocês sabem bem a relação forte com os antepassados. O quanto também os antepassados podem produzir males. Mas o que é exatamente o que produz mal? O que produz mal é uma falta de memória, uma ausência de uma maneira de viver que o antepassado criou e que nos levou até aqui.
Se estamos aqui, não foi por um ato espontâneo ou não caímos aqui de pára-quedas. Houve toda uma evolução. Há um tempo enorme, milhares, bilhares de anos fizeram com que chegássemos onde estamos. E o que são os nossos antepassados, senão criadores de maneiras de viver? O que são esses espíritos senão isso? São esses acontecimentos que fazem adoecer corpos, uma vez que os corpos, que os indivíduos, que as coletividades não observam certas conquistas, certas invenções já feitas pelos antepassados e que são filtros seletivos que defendem o corpo e o pensamento dos inimigos. Agora, a questão é só essa? Dizer que a medicina tradicional, a cultura da tradição é suficiente? Não, não é suficiente. Por que? Porque as condições sempre mudam. Mas para que sejamos dignos e estejamos à altura e honremos nossos antepassados, temos também de saber criar novas maneiras, a partir das próprias maneiras que eles já nos ofereceram como uma dádiva, ou seja, criar então novamente em cima disso. Evoluir é isso. E não evoluir em cima de modelos exteriores ocidentais que simplesmente não têm relação alguma com o modo de vida próprio de vocês. Vocês podem até dizer: ah, essa idéia é interessante. Mas essa idéia deve ser assimilada talvez com a base cultural, com os filtros próprios que vocês já têm.
Então, essa capacidade seletiva é fundamental. Eu diria então sobre a questão poligâmica que não adianta simplesmente disseminar uma prática de proibição da poligamia. Ou dizer, não faça isso, não faça aquilo. Quer coisa mais convidativa para um jovem do que proibir que ele faça alguma coisa? Ele vai ficar muito curioso e é muito provável que transgrida essa proibição. Que ele vá fazer o contrário do que dizem a ele para fazer. Isso acontece com freqüência, mas mesmo que seja em minoria, pode ser suficiente para desestabilizar e expandir a doença. A questão não é dizer não ao amor, não ao sexo, não a isso, não a aquilo... É dizer sim à vida, sim ao sexo, sim ao amor, mas com seleção, com capacidade seletiva, com uma postura que distinga em cada situação o que fortalece e o que enfraquece. Não é dizer: essa relação não. Toda relação tem algo de digno, tem algo de interessante, tem algo de necessário. Então, encontrar a necessidade, é encontrar necessariamente aquilo que compõe com meu corpo, com meu pensamento, com minha vida e que me fortalece necessariamente. É desenvolver essa capacidade seletiva; e essa capacidade seletiva tem a ver com posturas culturais, com atitudes culturais. A cultura deve ser afirmada, com todos os seus elementos.
A medicina tradicional, os curandeiros, já encontraram muita sabedoria no uso de muitas ervas, raízes, folhas, com atitudes que fazem com que as vidas floresçam, se desenvolvam de modo sadio, de modo curativo. Entretanto, existem evidentemente muitas doenças, como por exemplo o HIV, que ainda não têm cura, embora já não seja necessário morrer, ou não se deveria mais morrer, de SIDA. Por que? A humanidade já tem remédios suficientes para manter a vida dos que contraíram o HIV. Mas continua-se morrendo de HIV SIDA. Por que? Porque a atitude do Estado, a atitude das políticas públicas que, na verdade, deliberadamente, privatizam a saúde e os remédios e separam o povo da capacidade de cura, uma vez que os remédios viram propriedade privada. Os remédios do HIV SIDA, os chamados coquetéis, que mantêm a vida dos portadores, deveriam ser distribuídos gratuitamente. No Brasil existe já uma atitude como esta. Há muitos anos que no Brasil distribuem-se remédios que controlam os males do HIV. Neste ano, o Ministério da Saúde do Brasil tomou uma atitude contra o monopólio estrangeiro, e quebrou a patente de um grande produtor de medicamento necessário à manutenção da vida dos portadores do HIV SIDA. Então, as políticas públicas entram assim como algo extremamente necessário. Mas não vai haver política pública se não houver mobilização nas comunidades. É a comunidade que deve demandar isso. No Brasil, há muitos movimentos e eu vejo que aqui não é uma realidade, isso quase não existe, mas no Brasil há muitos homossexuais – tanto homens quanto mulheres – e os movimentos homossexuais inicialmente foram taxados de veiculadores de HIV.
Esses movimentos se organizaram de modo tal que construíram atitudes que mudaram a ótica do tratamento em relação ao HIV-SIDA, não só no combate ao modo de transmissão como também em relação aos preconceitos sociais. Então os preconceitos sociais foram muito trabalhados, ainda que no Brasil ainda tenha muito preconceito, mas é uma questão que se avançou bastante, à custa de muita luta, à custa de muito sofrimento. Eu dizia então que se não é mais necessário, não é mais preciso, morrer de HIV-SIDA, por que se morre então de HIV-SIDA? Os movimentos sociais devem se fortalecer nesse sentido para que exijam uma direção nas políticas públicas voltadas especificamente para esse problema. Não só em relação ao problema da cura, mas também em relação ao problema do preconceito. A gente sabe que muitos portadores do HIV-SIDA ou praticamente todos recebem um tratamento discriminatório e com preconceito da sociedade, simplesmente por estarem doentes. Essa visão preconceituosa faz com que muitos nem façam testes, muitos ainda escondam e morram sem o devido tratamento. É por isso que a desmistificação dos portadores é algo essencial, é algo fundamental porque faz com que se monte um mapa da possessão da doença, do espalhamento da rede, digamos assim, por se não houver esse mapa não tem como combater o inimigo.
São então necessários estímulos: estímulo para que se façam testes, para que se multipliquem os postos de testes ou de exames e, ao mesmo tempo, estímulo para que todas as pessoas portadoras se desestigmatizem, não abordem esse tema, esse problema, como algo ameaçador, que deva ser escondido, que deva ser camuflado, porque isso só vai piorar a situação. Hoje não me atinge, mas amanhã isso pode me atingir. Então, é capaz de atingir a todos. É fundamental, é essencial que tenhamos uma atitude, a coragem de dizer que se morre de HIV SIDA. É preciso revelar que quando alguém morre de SIDA, morreu por causa da doença. Assisti aqui, nesses poucos dias, alguns acontecimentos que diziam que fulano morreu e não se sabe bem de que... ah foi de malária, de outra doença qualquer, mas nunca de SIDA. O músico morreu, a fulana de tal morreu também, o cicrano morreu de acidente; há muitas mortes, mas nunca é por causa do HIV. Então há um problema ainda em assumir essa questão e se ela não for assumida claramente e com coragem de enfrentar a coisa de frente mesmo, só vai piorar a situação. Por isso, são necessárias campanhas, mas campanhas não moralistas. Não as que digam o que se deva fazer, mas que digam o que se possa fazer. O que se pode fazer com muita alegria, com muito humor, com muita atividade, com muito crescimento. É necessário antes de tudo que haja humor nas campanhas, mesmo que esse humor seja provocativo, seja um humor até destrutivo ou um humor que gere uma espécie de crueldade. Mas é necessário que os espíritos, que as mentes, que os corpos sejam afetados. E para que eles sejam afetados de fato, eles têm de ser afetados pelo modo como a natureza funciona e não como o homem imagina que natureza funcione. A natureza funciona sempre pela alegria, pela abertura, pela afirmação das relações e não pela proibição das relações. Então o que a gente pode fazer para se defender dos inimigos é criar uma capacidade seletiva nas relações e não proibir as relações. Não adianta proibir as relações; é o contrário. É necessário afirmar a relação sim, quanto mais relação melhor. Porque a vida cresce, porque ela se desenvolve. Mas há uma maneira, há um jeito de fazer isso. Esse jeito de fazer, essa capacidade seletiva é que é preciso ser desenvolvida. Bom, acho que já falei demais, a gente podia abrir para as questões para poder dinamizar. Tem várias questões que eu não cheguei a falar, a mencionar, eu fiz uma certa abordagem genérica de vários pontos, mas eu penso que a gente pode tocar em alguns elementos que fazem parte da problemática direta da atuação de vocês e aí desenvolver certos pontos que ainda não foram desenvolvidos. Então vamos abrir para o debate.
Palestra de Luiz Fuganti, após abertura com uma apresentação do
Coro de Mulheres Moçambicanas (CMM):
Apresentador: Convido nossos amigos para ouvir e ver o nosso visitante que gostou da atividade que foi apresentada. É cultura moçambicana, especialmente a cultura moçambicana representada e organizada pela mulher moçambicana
Luiz Fuganti – Essa receptividade tão calorosa e alegre que faz com que fiquemos cada vez mais impressionados com esses povos que constituem essa bela nação que é Moçambique. De fato, uma característica que aproxima muito esses povos com os povos brasileiros é a alegria de viver, a alegria da dança, a alegria da música, a alegria das suas expressões que são muito espontâneas e ao mesmo tempo ligadas a culturas, a tradições, que dificilmente têm par em outros países. Ficamos realmente impressionados e alegres que isso seja tão vivo, que isso faça parte da atividade, do modo de viver de todas as pessoas. É uma coisa que alegra bastante. Eu queria, antes de prosseguir falando, saber se vocês estão me ouvindo bem. Todo mundo ouve? Lá atrás também? Então, está bem. Se vocês acharem melhor que eu fale em pé ... Posso ficar sentado mesmo?
Antes de tudo, queria dizer uma coisa: eu não sou um especialista em saúde; não sou médico, enfermeiro ou agente de saúde. Sou arquiteto de formação e filósofo de modo autodidata. Estudo há muitos anos por conta própria e venho trazer um pensamento, uma maneira de pensar e uma maneira de viver que, acredito, está intimamente ligada mais a uma postura de vida do que a uma sabedoria. A sabedoria está intimamente ligada à maneira de viver, ao modo de vida, e não a algo que esteja em algum lugar onde alguns poucos gênios possam alcançar. Considero que a sabedoria é sempre uma sabedoria de vida, uma sabedoria do acontecimento. Então, esse acontecimento que vos trago é um pensamento filosófico e não exatamente médico, mas do modo como eu entendo filosofia, acredito que a filosofia é necessariamente clínica, ela também tem um aspecto, um efeito de cura e de produção de saúde e por isso eu acho que tenho alguma coisa a dar ou a contribuir, apesar de ter recebido tanto nesses, mais ou menos, quarenta dias que me encontro aqui. Tenho recebido demais, aprendido muito com várias culturas e vários povos de Moçambique. Anteontem e ontem mesmo eu estava em Gaza, em Inhanben, visitando algumas aldeias comunais. Já fiz vários outros tipos de visitas também, conhecendo, por exemplo, tipos de autoridades tradicionais, de curandeiros, gente da Ametramo (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique), enfim, uma série de outros encontros que fazem com que eu vos fale, não apenas de modo filosófico ou abstrato como se voando e chegasse aqui de pára-quedas falar de um saber.
Na verdade, eu já falo com algum sentimento moçambicano; com aspectos que eu tive a oportunidade de receber, de absorver e, por isso, acho que já podemos falar num nível mais direto, sem que essa fala seja demasiado teórica. Assim, eu queria iniciar dizendo que a saúde do modo como eu entendo, ou como esse pensamento que nos atravessa entende, a saúde é algo integral. A saúde não é apenas a saúde de um órgão, de um olho, do ouvido, da boca, do estômago, do corpo, mas a saúde é a saúde do corpo como um todo, a saúde da alma ou da mente como um todo e a saúde das relações do corpo e alma ou que o nosso ser efetua na existência, na sociedade e com a natureza. Tudo isso é saúde. Saúde é o modo de vida que levamos. O modo de vida pode ser saudável e o modo de vida pode levar à doença. Eu acredito que há um filtro natural que nós podemos incrementar, assim como nós temos o fígado que filtra os alimentos, nós temos os rins que filtram os líquidos no nosso corpo, nós temos um pensamento que filtra os nossos encontros, que filtra as nossas relações. Então, uma maneira de viver implica necessariamente uma maneira de sentir, uma maneira de pensar, uma maneira de agir, uma maneira de reagir e por isso nós podemos nos fortalecer ou nos enfraquecer de acordo com a maneira como agimos ou como pensamos.
No Brasil existe um ditado muito popular que diz o seguinte: “O que você planta, você colhe”. Não sei se esse ditado aqui é real também, funciona. Há ainda um outro ditado: “o peixe morre pela boca”. Conhecem? Estamos então mais irmanados nesse pensamento do que eu imaginava. Mas, enfim, fica fácil a gente falar nessa linguagem.
Filosofia não é algo abstrato, genérico, teórico. Filosofia ou serve para a vida ou não serve para nada. Nós vamos passar um pensamento filosófico desse ponto de vista, do ponto de vista da vida. Eu dizia então que nós colhemos o que plantamos e nós morremos pela boca. Mas também nós podemos viver pela boca. Ou seja, o que há aqui é a idéia de uma necessidade de uma seleção, de uma capacidade seletiva nos encontros. Essa capacidade seletiva é, na verdade, a tônica da grande saúde: a saúde do corpo, a saúde da mente, a saúde das relações sociais, a saúde das relações com a natureza, a saúde das relações com o planeta, a saúde de todos os corpos vivos que se interrelacionam. Porque a vida nesse planeta e em todo o universo é uma só. A vida quer. Ela quer crescer e se multiplicar; ela quer se expandir e se fortalecer; ela quer se afirmar nas suas diferenças, nas suas singularidades, ela quer afirmar aquilo que ela é, sem pedir licença e sem reservas em relação ao que os homens muitas vezes inventam como ficção de ordem, de lei ou de confusão mental que pode fazê-los separar-se daquilo que eles mesmos podem na sua vida.
Então, nas sociedades ocidentais principalmente, há uma maneira de viver que adoece corpos e mentes. Mas essa maneira de viver que adoece corpos e mentes é tida como uma maneira saudável pelo ocidente. O ocidente criou um mito, uma ficção, melhor dizendo, de que a mente está separada do corpo e, mais do que isso, de que o homem está separado da natureza ou, ainda mais, que o homem é superior à própria natureza. Essa visão que o ocidente criou é uma visão extremamente nociva, porque põe no lugar do corpo, no lugar da vida, no lugar da natureza uma instância de julgamento exterior à própria vida que quer controlar e regular a vida. A vida, na verdade, tem uma capacidade de auto-regulação, de autocontrole, de auto-afirmação, de autodeterminação, de autonomia, numa palavra. A soberania, a liberdade, a autonomia, só se efetuam na medida em que somos capazes de respeitar as nossas próprias diferenças, de afirmar nossas próprias diferenças. E as nossas diferenças são necessariamente saudáveis, são necessariamente positivas, desde que bem relacionadas, desde que bem focadas, desde que elas encontrem uma maneira de se expressar, uma maneira de agir, uma maneira de sentir, uma maneira de pensar, não há mal nenhum no desejo, na vontade de um corpo, na vontade de um pensamento de se efetuar. Mas o ocidente criou uma ficção dizendo que no fundo do homem tem uma natureza animal e a natureza animal é inferior, segundo essa visão do ocidente, é inferior e fonte dos males, fonte das doenças, fonte das misérias, fonte das intrigas, e das guerras. E haveria uma instância em nós, uma instância racional capaz de governar e de submeter essa instância animal. Então essa filosofia ocidental, esse pensamento ocidental, que é veiculado pelas sociedades, pelos estados ocidentais, e pelas religiões ocidentais também, pressupõem que o corpo e a natureza têm uma espécie de dívida, tem uma espécie de falta, tem uma espécie de carência que, quando se efetua, se efetua por interesse próprio e, no interesse próprio, gera discórdia, gera guerra, gera as fontes de desintegração social e de adoecimento que levam os povos à extinção.
Essa ficção ocidental visa, na verdade, um domínio ou um controle dos corpos. Uma vez que eu retiro o controle ou a capacidade de autogestão da vida, porque eu digo que a vida é incapaz disso, que a vida é inferior, que ela não pode se autogerir, eu estou pondo a vida num lugar inferior e criando uma instância superior de julgamento da vida e de controle da vida. Então, essa posição é dominante no ocidente. E essa posição desqualifica a vida, a natureza, os saberes locais, os saberes tradicionais, as culturas que sempre trazem algo de essencial e de necessário e que são desqualificadas uma vez que encontram esse tipo de visão e de atitudes. A gente pensa: o que falta à cultura; o que falta à natureza; o que falta à vida; o que falta aos corpos, para que eles se autodeterminem? O poder geralmente (o poder que explora, expropria, que domina), esse tipo de poder geralmente não gosta de vida forte. Não gosta da vida livre; não gosta da vida que tenha uma capacidade própria de efetuação. Por isso, o poder introjeta medo; introjeta tristeza, daí minha alegria ao ver esse tipo de manifestação tão dinâmica e alegre e afirmativa das próprias maneiras locais de viver. Mas o poder geralmente faz o contrário: desqualifica ou transforma a própria cultura em folclore. A felicidade que eu tive ao encontrar os povos de Moçambique foi ver que aqui cultura não é folclore, aqui cultura não é um departamento, não é um ministério, cultura é algo vivo. As pessoas vivem isso, elas se organizam através disso. Elas pensam através disso, elas sentem através da cultura. Então, a cultura é uma espécie de filtro seletivo, aquilo que eu falava já de início em relação ao fígado, ao rim, a essa capacidade de seleção nos encontros que fundam a grande saúde. A cultura traz uma grande saúde e não pode ser menosprezada, desqualificada, simplesmente posta de lado, por um suposto saber científico, “mais evoluído” ou que atingiu certas capacidades de cura que, na verdade, traz junto com essa capacidade de cura um controle embutido que nós chamamos de biopoder.
O poder sobre a vida, o controle sobre a vida. Eu não sei se vocês perceberam um pouco do que eu estou falando, até onde eu quero chegar enfim. Vou tentar desdobrar um pouco mais. Eu espero que não esteja abstrato demais. Se vocês acham que está dando para acompanhar o que eu estou falando? Vocês acham que está indo assim? Se quiserem fazer alguma questão, se estiver difícil, vocês me falem. Não tem problema. Podem interromper à vontade.
Eu dizia então que os poderes estabelecidos geralmente pressupõem um povo fraco. E precisam de um povo fraco para poder controlar, dominar e se servir do povo. Em vez do estado e dos poderes servirem o povo, geralmente acontece o contrário. Felizmente Moçambique tem uma experiência de libertação junto com a Frelimo que é algo realmente exemplar. Mas sabemos também que tiveram muitos problemas aqui. A chamada “guerra civil” (entre aspas) que a gente sabe que não foi bem isso, mas uma guerra neocolonialista, incentivada pelo neocolonialismo, capturando irmãos, gente do próprio do povo, para se matarem entre si, criando discórdias, intrigas, enfim, depois as enchentes e tantos outros transtornos que esse povo já sofreu, com uma independência tão recente... Ao mesmo tempo traz isso muito vivo – os valores da independência – a capacidade produtiva, fazer a riqueza com o próprio trabalho, a vigilância sobre os inimigos, que é algo que deveria ser retomado, porque agora o inimigo se tornou mais sutil e mais invisível. Ele entra pela televisão, ele entra pela imprensa, ele entra pelas ofertas de ajuda, pelo FMI, pelo Banco Mundial, entra pelas ONGs... Existem ONGs que simplesmente oferecem ajuda para enriquecer e aumentar o seu capital. Então a gente sabe que o poder geralmente funciona dessa maneira e Moçambique está aparentemente lutando contra esse tipo de poder e, ao mesmo tempo, a gente percebe infelizmente que o poder de alguma maneira já entrou, já se apoderou de algumas atitudes da própria Frelimo. Eu não quero entrar nesse debate, porque quem sou eu, um estrangeiro, para vir falar disso para vocês. Mas, enquanto estrangeiro, eu também sinto as coisas e posso falar alguma coisa do ponto de vista que tenho e acho que vocês nem precisam levar a sério o que digo. Pode até ser que eu esteja falando bobagem e de repente isso não serve para nada. Então vocês esqueçam e não tem problema. Mas eu sinto que existe também uma certa abertura perigosa que faz com que as ajudas internacionais sejam, na verdade, aquilo que eu falava antes em relação ao anzol e ao peixe. O peixe morre pela boca e as ofertas de ajuda podem esconder um anzol de captura.
A questão essencial é essa: o que escondem essas ajudas? Se as ajudas forem realmente ajudas de aliados, de gente que realmente quer ver a vida crescer, as comunidades se expandirem com seu modo de vida próprio e não quiserem impor um modo de vida exterior e ocidental, que bom, são bem vindas. Mas geralmente isso não ocorre e aí a questão de vigilância é um valor fundamental que deveria ser resgatado, acredito eu, uma vez que faz parte do próprio movimento de independência. Uma outra questão é a questão da unidade que são valores essenciais da própria independência. Que unidade é essa? Desculpe, estou entrando um pouco nas questões políticas e econômicas porque tudo isso têm a ver com a idéia de saúde que eu quero passar. Então vou falar um pouquinho mais disso e já entro nas nossas questões mais objetivas.
A questão da unidade
Hoje se fala que é essencial ter um estado democrático e livre. A paz se tornou um valor fundamental. Vocês sabem muito bem o que é a guerra. Mas a que preço, a que custo, essa paz? É imposta ou é desejada? Outra coisa: a própria idéia de democracia a gente sabe muito bem o que o ocidente fez com a democracia e o que menos eles têm é democracia e, no entanto, eles não param de falar de democracia e do povo. Fala-se em nome do povo, da democraria e faz-se a pior coisa. Assim o próprio Bush invade o Iraque e faz isso tudo isso em nome do petróleo e não da democracia Aplausos.
A questão que se põe sempre é que “falar em nome de” não basta, não adianta eu aqui vir falar em nome da saúde, por exemplo, falar em nome da diferença, em nome da singularidade, em nome das culturas locais, em nomes dos povos. Eu posso falar à vontade, favoravelmente a vocês e ser um demagogo, simplesmente para agradar e capturar. Isso na realidade acontece direto. É uma coisa freqüente. É assim que funciona o poder. O poder funciona muito mais por sedução do que por violência. A violência do poder se apresenta depois. Ele antes seduz. Então essa idéia de falar em nome de alguma coisa, em nome de Deus, em nome da paz, em nome da democracia, em nome do bem, em nome dos povos, não é suficiente porque é aí mesmo que a gente morde o anzol. É aí mesmo que a gente morre pela boca. Então a questão é não “falar em nome de”, mas ser capaz de expressão própria, como a gente assistiu há pouco. Essa bela apresentação da OMM, Organização das Mulheres Moçambicanas.
Essa belíssima apresentação revela o quê? Expressão própria, capacidade de se efetuar, de relações diferenciadas que liberam a vida que, na verdade, são a saúde da vida, a saúde de qualquer corpo, de qualquer pensamento, de qualquer povo é sempre a capacidade de expressão, a capacidade de efetuação, a capacidade de realização. Do ponto de vista filosófico eu digo sempre: é uma potência ligada ao que ela pode. A vida é uma potência em ato que se efetua, que se atualiza, se exerce. Ou seja, que a liga ao que ela pode. O ato e a potência são um conjunto vital sem o qual a vida não é saudável, não é ativa, não é afirmativa, não é criadora. Então, afirmar a própria potência, efetuar a própria potência implica em não falar em nome de alguém, mas ser capaz de encontrar, de selecionar relações nas maneiras de viver que afirmem essa expressão, essa produção, essa criação.
Então, as relações, na verdade, são capazes de nos fortalecer, de aumentar a nossa potência, aumentar a nossa realidade, aumentar a nossa capacidade de existir, de agir, de pensar, de sentir, de criar ou, ao contrário, as relações podem ser envenenadoras, intoxicantes, malévolas, no sentido de que diminuem minha capacidade de existir, de agir, de pensar, de sentir. Então é nas relações que nos ligamos ao que podemos; a vida ligada ao que ela pode é uma vida com saúde, inteira, de corpo e mente e sociedade. E, mais ainda, corpo, mente, sociedade e natureza.
Eu quero insistir aqui é que antes de tudo nós devemos perceber que a saúde é algo por inteiro ou integral. Entretanto, nós não percebemos isso ao separarmos a mente do corpo e o homem da natureza. O ocidente não percebe isso; ou não quer perceber isso ou acha que isso é uma visão que não pode dominar. Por que não pode dominar? Porque se essa visão dominar não haveria poder estatal de expropriação, de violência que se segure, que se sustente. O que o Estado faz geralmente? O que o poder de expropriação faz, geralmente? Ele introjeta, digamos assim, uma mediação nas relações. Ou seja, um atravessador, um elemento referencial sem o qual uma ação, uma reação, um pensamento não seriam legítimos. Então o poder só se legitima, desde que a relação se remeta a ele, obedeça a ele. É a diferença aqui entre ética e moral. O poder incentiva a moral e nós estamos falando aqui do ponto de vista de uma ética. Então, eu quero fazer aqui essa distinção entre moral e ética. A moral liga a vida ao que ela deve fazer, liga a existência ao que ela deve. Deve algo, deve fazer assim, não deve fazer assado. A ética faz o contrário; ela liga a existência e a vida ao que esta pode. A vida pode, não deve. E o que a vida pode? Algo necessariamente inocente, benéfico, ativo, alegre, ela é positiva. O poder sempre passa a idéia contrária, de que os desejos individuais podem ser nocivos. Mas só é nocivo o desejo individual que está separado do que pode. Porque esse desejo vai buscar uma vantagem fora para ficar mais forte. Mas aquele que está ligado ao que pode, ele necessariamente perpetua a sua própria natureza e essa natureza não pode entrar em contradição com a outra natureza, com outro corpo, com outro indivíduo. Contra o grupo social. Porque se eu me fortaleço, eu estou fortalecendo necessariamente o outro. Se o outro se fortalece, está fortalecendo necessariamente a mim. Esse é o ponto de vista da ética. Há fortalecimento, nunca em um modo individualista, de modo egoísta. O fortalecimento é sempre coletivo. Vou dar um exemplo. Se uma cultura desaparece, não é a outra que fica mais forte, a outra ficou mais pobre. As culturas que vão desaparecendo deixam a humanidade mais pobre. Assim também nossos amigos, companheiros, irmãos que são usados simplesmente enquanto trampolim para o poder: uma vez que eles são subjugados, eles me deixam mais pobre. E eu, cego que sou, acredito que tenho mais poder, que tenho mais reconhecimento, que tenho mais capacidades às custas do outro. Essa visão, na verdade, do ponto de vista ético, não passa. Não passa, porque a ética não acredita que a vida deva alguma coisa, que a vida tenha falta de auto-organização e de autodeterminação. A vida se autodetermina e se auto-organiza. A ética, então, liga a vida ao que ela pode e não ao que ela deve.
Ligar a vida ao que ela pode faz com que a gente entre numa questão já prática do HIV-SIDA (para nós, brasileiros, Aids) que serviu, na verdade, como uma luva para o sistema capitalista. O HIV-SIDA, do mesmo modo que ocorreu com outras doenças, serve para muitos controles e para muita penetração de poder em muitos povos, em muitas sociedades. Eu digo que a questão ética vem para dar um outro horizonte em relação ao HIV-SIDA. O HIV-SIDA, como eu disse, serviu como uma luva para o capitalismo, porque ele se torna um meio de moralizar as relações entre indivíduos, de proibir relações entre indivíduos, de controlar relações. E quer coisa melhor do que exercer o controle sobre a sexualidade? Sobre o amor, que é tudo que é fundamental para a vida humana? Que é fundamental para toda vida? Relação de amor, relação sexual, é uma coisa fundamental, é uma coisa bonita, criativa, é uma coisa multiplicadora, reprodutora, expansiva, diferenciante, é bom. Mas, é nas relações sexuais e amorosas, onde reina a alegria, onde reina a capacidade de efetuação, a potência, onde reina a criação, a capacidade de multiplicar-se é bem aí que o poder tem um objeto privilegiado de controle e de captura. Eu percebo que junto com as campanhas do HIV-SIDA vem sempre uma carga moral dizendo: não faça isso, não faça aquilo. Esse tipo de relação vai dar nisso, vai dar num mal, vai dar na contração do HIV e você acaba tendo o castigo que merece em função do pecado da relação que cometeu. Eu acho que a vida não precisa desse tipo de visão que é uma visão triste. É uma visão reducionista da vida. A vida necessita de uma outra postura. Ligar-se ao que pode, mas não de qualquer maneira. Ligar-se ao que pode é ligar-se com uma capacidade seletiva. E uma capacidade seletiva; é uma capacidade de antecipar as coisas, é uma capacidade de criar o futuro. De trazer o futuro aqui no presente, de apreender, de perceber as relações até no seu fim, na sua efetuação final. Saber onde isso vai dar, o modo que isso gera, se isso vai me fortalecer, se isso vai enfraquecer, se isso vai adoecer, se isso vai me deixar mais saudável ou mais forte. Mas, para se exercer essa seleção, não é necessário a gente optar por uma relação que seria boa e excluir outra relação que seria má. Na verdade, não é disso que se trata. Em toda relação, se for relação, necessariamente existe uma parte dela que é boa. Mesmo na relação má. Qualquer tipo de relação tem uma essência necessária, tem uma comunidade necessária. O mal não me atingiria se não tivesse algo de comum comigo. Há uma comunidade. Então eu posso aproveitar do mal e posso aproveitar do bem. Eu posso aproveitar de tudo.
Ética, seleção e filtro
Onde se instala então a seleção? A seleção se instala na maneira como eu me relaciono com uma coisa e com outra coisa e não simplesmente excluindo um tipo de relação. Então não adianta moralizar. Dizer não faça assim, não faça assado. Claro que no caso do HIV, uma vez que é uma doença invisível e passa através das relações sexuais, é fundamental que se faça uso de preservativo, evidentemente que é. Agora, a questão do uso da camisinha não deve ser nunca moralizada, mas sempre vista do lado ético. Do lado fortalecedor, do lado alegre. É uma proteção necessária, é um filtro necessário. É necessário, por que? Por que eu ainda não sou capaz de combater esse inimigo invisível sem a camisinha. Ou então eu posso ter relações com uma única pessoa. Sempre se passa essa idéia e aqui o poder entra forte e certas religiões também entram forte. Tenha relação monogâmica. No ocidente isso é quase uma regra que nunca funcionou, mas digamos assim que toda sociedade sabe que é moralmente viável ter uma única relação e não ter várias relações. Aqui a gente sabe que a poligamia é praticamente uma instituição. Ou estou falando bobagem?
Resposta: Não. Está correto...
Luiz Fuganti: Então aí dizem, o HIV entra por que? Ele se abate muito mais sobre as sociedades africanas, porque a poligamia nas sociedades africanas é cultivada. Então, com o combate do HIV, vem junto a justificativa de introjetar um outro costume moralmente necessário à introjeção do capital. Porque é o capital que precisa de famílias monogâmicas. É o capital que precisa gerir a herança e a acumulação monetária. Precisa saber de quem é o filho, disso e daquilo. Há necessariamente uma fixação familiar. Agora, essas culturas, a de vocês, eu sinto isso no pouco tempo que estive aqui, tem na poligamia, ou até na poligenia, que a gente sabe que no norte funciona não a poligamia, mas a poligenia, enfim, nesses modos de relação, um filtro, uma maneira de se organizar e de se fortalecer. É uma condição de fortalecimento, é uma condição de crescimento. Por que vai se acabar com a poligamia? A não ser que vocês mesmos, ao longo dos anos, decidam por isso, segundo seus usos e costumes, sem que tenha uma interferência exterior dizendo: essa é a melhor maneira de viver, essa é a maneira verdadeira de se viver. Porque isso na verdade não há. Não há uma maneira verdadeira de viver. A maneira verdadeira de viver é sempre segundo nossas capacidades, é sempre segundo o aumento de nossa potência. É aí que mora a verdade. Então essa verdade depende do modo como eu me relaciono. Então não tem uma verdade absoluta. A verdade absoluta é sempre na relação. A verdade é sempre no acontecimento, a verdade é sempre na postura, na maneira de viver e não está lá no mundo supraceleste, ou no fundo das cavernas, onde encontraria uma sabedoria primeira ou última que deveria governar os homens. Isso é uma ficção. A sabedoria está diante do nosso nariz. Está na nossa maneira de se alimentar, de fazer sexo, das relações amorosas, das relações econômicas, das relações familiares, das relações sociais, com a natureza, com o meio ambiente, é aí que mora a sabedoria. A sabedoria mora no modo de relação. Não tem outra sabedoria. E o que é a cultura? Vocês sabem bem a relação forte com os antepassados. O quanto também os antepassados podem produzir males. Mas o que é exatamente o que produz mal? O que produz mal é uma falta de memória, uma ausência de uma maneira de viver que o antepassado criou e que nos levou até aqui.
Se estamos aqui, não foi por um ato espontâneo ou não caímos aqui de pára-quedas. Houve toda uma evolução. Há um tempo enorme, milhares, bilhares de anos fizeram com que chegássemos onde estamos. E o que são os nossos antepassados, senão criadores de maneiras de viver? O que são esses espíritos senão isso? São esses acontecimentos que fazem adoecer corpos, uma vez que os corpos, que os indivíduos, que as coletividades não observam certas conquistas, certas invenções já feitas pelos antepassados e que são filtros seletivos que defendem o corpo e o pensamento dos inimigos. Agora, a questão é só essa? Dizer que a medicina tradicional, a cultura da tradição é suficiente? Não, não é suficiente. Por que? Porque as condições sempre mudam. Mas para que sejamos dignos e estejamos à altura e honremos nossos antepassados, temos também de saber criar novas maneiras, a partir das próprias maneiras que eles já nos ofereceram como uma dádiva, ou seja, criar então novamente em cima disso. Evoluir é isso. E não evoluir em cima de modelos exteriores ocidentais que simplesmente não têm relação alguma com o modo de vida próprio de vocês. Vocês podem até dizer: ah, essa idéia é interessante. Mas essa idéia deve ser assimilada talvez com a base cultural, com os filtros próprios que vocês já têm.
Então, essa capacidade seletiva é fundamental. Eu diria então sobre a questão poligâmica que não adianta simplesmente disseminar uma prática de proibição da poligamia. Ou dizer, não faça isso, não faça aquilo. Quer coisa mais convidativa para um jovem do que proibir que ele faça alguma coisa? Ele vai ficar muito curioso e é muito provável que transgrida essa proibição. Que ele vá fazer o contrário do que dizem a ele para fazer. Isso acontece com freqüência, mas mesmo que seja em minoria, pode ser suficiente para desestabilizar e expandir a doença. A questão não é dizer não ao amor, não ao sexo, não a isso, não a aquilo... É dizer sim à vida, sim ao sexo, sim ao amor, mas com seleção, com capacidade seletiva, com uma postura que distinga em cada situação o que fortalece e o que enfraquece. Não é dizer: essa relação não. Toda relação tem algo de digno, tem algo de interessante, tem algo de necessário. Então, encontrar a necessidade, é encontrar necessariamente aquilo que compõe com meu corpo, com meu pensamento, com minha vida e que me fortalece necessariamente. É desenvolver essa capacidade seletiva; e essa capacidade seletiva tem a ver com posturas culturais, com atitudes culturais. A cultura deve ser afirmada, com todos os seus elementos.
A medicina tradicional, os curandeiros, já encontraram muita sabedoria no uso de muitas ervas, raízes, folhas, com atitudes que fazem com que as vidas floresçam, se desenvolvam de modo sadio, de modo curativo. Entretanto, existem evidentemente muitas doenças, como por exemplo o HIV, que ainda não têm cura, embora já não seja necessário morrer, ou não se deveria mais morrer, de SIDA. Por que? A humanidade já tem remédios suficientes para manter a vida dos que contraíram o HIV. Mas continua-se morrendo de HIV SIDA. Por que? Porque a atitude do Estado, a atitude das políticas públicas que, na verdade, deliberadamente, privatizam a saúde e os remédios e separam o povo da capacidade de cura, uma vez que os remédios viram propriedade privada. Os remédios do HIV SIDA, os chamados coquetéis, que mantêm a vida dos portadores, deveriam ser distribuídos gratuitamente. No Brasil existe já uma atitude como esta. Há muitos anos que no Brasil distribuem-se remédios que controlam os males do HIV. Neste ano, o Ministério da Saúde do Brasil tomou uma atitude contra o monopólio estrangeiro, e quebrou a patente de um grande produtor de medicamento necessário à manutenção da vida dos portadores do HIV SIDA. Então, as políticas públicas entram assim como algo extremamente necessário. Mas não vai haver política pública se não houver mobilização nas comunidades. É a comunidade que deve demandar isso. No Brasil, há muitos movimentos e eu vejo que aqui não é uma realidade, isso quase não existe, mas no Brasil há muitos homossexuais – tanto homens quanto mulheres – e os movimentos homossexuais inicialmente foram taxados de veiculadores de HIV.
Esses movimentos se organizaram de modo tal que construíram atitudes que mudaram a ótica do tratamento em relação ao HIV-SIDA, não só no combate ao modo de transmissão como também em relação aos preconceitos sociais. Então os preconceitos sociais foram muito trabalhados, ainda que no Brasil ainda tenha muito preconceito, mas é uma questão que se avançou bastante, à custa de muita luta, à custa de muito sofrimento. Eu dizia então que se não é mais necessário, não é mais preciso, morrer de HIV-SIDA, por que se morre então de HIV-SIDA? Os movimentos sociais devem se fortalecer nesse sentido para que exijam uma direção nas políticas públicas voltadas especificamente para esse problema. Não só em relação ao problema da cura, mas também em relação ao problema do preconceito. A gente sabe que muitos portadores do HIV-SIDA ou praticamente todos recebem um tratamento discriminatório e com preconceito da sociedade, simplesmente por estarem doentes. Essa visão preconceituosa faz com que muitos nem façam testes, muitos ainda escondam e morram sem o devido tratamento. É por isso que a desmistificação dos portadores é algo essencial, é algo fundamental porque faz com que se monte um mapa da possessão da doença, do espalhamento da rede, digamos assim, por se não houver esse mapa não tem como combater o inimigo.
São então necessários estímulos: estímulo para que se façam testes, para que se multipliquem os postos de testes ou de exames e, ao mesmo tempo, estímulo para que todas as pessoas portadoras se desestigmatizem, não abordem esse tema, esse problema, como algo ameaçador, que deva ser escondido, que deva ser camuflado, porque isso só vai piorar a situação. Hoje não me atinge, mas amanhã isso pode me atingir. Então, é capaz de atingir a todos. É fundamental, é essencial que tenhamos uma atitude, a coragem de dizer que se morre de HIV SIDA. É preciso revelar que quando alguém morre de SIDA, morreu por causa da doença. Assisti aqui, nesses poucos dias, alguns acontecimentos que diziam que fulano morreu e não se sabe bem de que... ah foi de malária, de outra doença qualquer, mas nunca de SIDA. O músico morreu, a fulana de tal morreu também, o cicrano morreu de acidente; há muitas mortes, mas nunca é por causa do HIV. Então há um problema ainda em assumir essa questão e se ela não for assumida claramente e com coragem de enfrentar a coisa de frente mesmo, só vai piorar a situação. Por isso, são necessárias campanhas, mas campanhas não moralistas. Não as que digam o que se deva fazer, mas que digam o que se possa fazer. O que se pode fazer com muita alegria, com muito humor, com muita atividade, com muito crescimento. É necessário antes de tudo que haja humor nas campanhas, mesmo que esse humor seja provocativo, seja um humor até destrutivo ou um humor que gere uma espécie de crueldade. Mas é necessário que os espíritos, que as mentes, que os corpos sejam afetados. E para que eles sejam afetados de fato, eles têm de ser afetados pelo modo como a natureza funciona e não como o homem imagina que natureza funcione. A natureza funciona sempre pela alegria, pela abertura, pela afirmação das relações e não pela proibição das relações. Então o que a gente pode fazer para se defender dos inimigos é criar uma capacidade seletiva nas relações e não proibir as relações. Não adianta proibir as relações; é o contrário. É necessário afirmar a relação sim, quanto mais relação melhor. Porque a vida cresce, porque ela se desenvolve. Mas há uma maneira, há um jeito de fazer isso. Esse jeito de fazer, essa capacidade seletiva é que é preciso ser desenvolvida. Bom, acho que já falei demais, a gente podia abrir para as questões para poder dinamizar. Tem várias questões que eu não cheguei a falar, a mencionar, eu fiz uma certa abordagem genérica de vários pontos, mas eu penso que a gente pode tocar em alguns elementos que fazem parte da problemática direta da atuação de vocês e aí desenvolver certos pontos que ainda não foram desenvolvidos. Então vamos abrir para o debate.
Rafael (líder comunitário de bairro) – Eu concretamente recebi a mensagem comunicada aqui. Escutei atentamente, ouvi tudo e penso que foi útil, mas que faltaram apenas duas coisas principais que deveriam ter sido focadas pelo precursor da mensagem. Em que ano se descobriu ‘esse tipo de bicho’? E onde foi que se descobriu?
Luiz Fuganti: A gente pode brincar com alguns boatos que já circularam em relação a isso. Existe um deles, pode ser que seja muito real, que seja bem verdadeiro, não sei. Disseram que é uma doença de laboratório, criada em laboratório, nos bastidores. Mas para as populações mundiais, difundiu-se que nasceu na África. Risos É um boato. Chegou-se a aventar que era um elemento – um bicho – transmitido pelo macaco. Eu soube recentemente aqui, em outro encontro que tive, que dizem também é transmitido pelo cachorro. Isso significa o que? Que homens, mulheres, que tiveram relações sexuais com animais, seja cão, macaco ou o que for, é que trouxeram esse tipo de vírus ou retrovírus, enfim, para o homem ou para a humanidade. É evidente que essa mensagem tem uma carga moralista extremamente forte. É uma carga moral que visa dizer: Viu? Homem e mulher que se relacionam com animais têm esse castigo, produziram esse mal. É evidente que eu jamais poderia compartilhar de uma opinião dessas. Eu só estou relatando o que circula por aí. No Brasil também circula isso, nos Estados Unidos, etc. Existe uma outra versão mais real, provavelmente muito mais real que é uma invenção de laboratório. Hoje está muito em voga falar nas guerras biológicas, nas guerras bioquímicas. As guerras biológicas podem dizimar populações inteiras. Uma doença, uma bactéria, um vírus etc., produzidos em laboratório, se inoculados em populações inteiras, não poderá haver tempo de reação. Eu vou dar um exemplo de um filme, que não sei se alguém aqui viu, de um diretor norte-americano chamado Francis Ford Coppola, que se chama Rumble Fish, e que no Brasil passou com o título de O Selvagem da Motocicleta. É um filme que retrata gangs de Nova York ou movimentos de adolescentes, de jovens, que criam seus grupos que fazem guerras entre si. Uma instituição americana, instituição ligada ao controle de informação, a CIA e o FBI, simplesmente resolveram introduzir a droga para acabar com as gangs.
Com as drogas, simplesmente as gangs foram extintas. Ou seja, a gente já viu alguma coisa do que os americanos são capazes de fazer também em relação a outros países. Por exemplo, eles criam aqueles que depois vão ter de combater. O próprio Sadam Hussein é uma “cria americana”; o chamado Bin Laden também parece ser uma “cria americana” entre aspas. Porque o Bin Laden sabe muito bem o que é a “tática” norte-americana, embora não tenha a cabeça do americano. Os norte-americanos simplesmente introduzem o inimigo numa sociedade e uma vez que a sociedade está dominada, está vencida, eles têm que se ver livre do próprio inimigo que eles criaram. Assim a cocaína. Depois houve um combate incrível em cima da cocaína, porque ela se espalhou pela sociedade americana. O HIV pode ter tido a mesma origem, isso nós não sabemos. Mas o fato de não saber não impede a gente pensar que o poder age dessa maneira, quer dizer, ele se serve dessa maneira. Ele introjeta o inimigo para depois capturar.
É possível, é provável, então, que a SIDA tenha surgido em laboratório, que tenha sido uma criação de laboratório. É provável, mas e se não for? Se não for, nós teríamos o mesmo problema.. O que é relevante é que o HIV-SIDA está aí, é uma realidade que mata. É um inimigo difícil de combater. Eu acho que esse é o elemento mais relevante. Não é que não seja relevante sabermos a origem disso, onde nasceu o HIV SIDA, mas é relevante enquanto um dado do modo como os poderes que querem dominar, explorar, agem, isso sim, além da imagem preconceituosa que se passa, por exemplo, em relação aos povos. Por exemplo, essa imagem de dizer que ela nasceu aqui na África evidentemente é algo extremamente preconceituoso. Pode até ter acontecido isso, mas pode ter emergido no Brasil, na Argentina, na França, na Inglaterra, na Alemanha, não importa. Porém, como essa mensagem foi veiculada, veio carregada de preconceitos. Evidentemente que, nesse sentido, a questão é bem relevante.
Agora, em relação à data, me parece que a doença surgiu aproximadamente em 1977, 78, 79, quando foram registrados os primeiros casos. A identificação, não sei exatamente, mas, se não me engano, se dá em 78 ou 79. Eu posso dizer de um filósofo francês que morreu de HIV SIDA em 1984. Então, já na década de 80, morria-se de HIV SIDA, mas, me parece que a doença se instalou no planeta em 77 ou 78. Agora a localidade e o modo como ela apareceu é discutível e problemático e então eu não sei responder exatamente. O que sei é de muitas coisas que se veiculam com o objetivo claro de confundir e aumentar o preconceito. Então, é disso que nós precisamos aprender a nos defender. Mas não sei precisar exatamente o que se passou, o que de fato existe é que ela está aí, é uma realidade e a gente tem saber se defender. Nesse sentido, a questão está aí entrando em algo mais sutil que responde a outras posturas e também se trata sempre do seguinte: nós temos uma capacidade de defesa que não precisa acusar o outro e nem a si mesmo. Eu digo sempre: o poder geralmente só funciona onde há impotência. Ele precisa tornar os povos, as pessoas impotentes para que ele se instale. Ele funciona geralmente assim. Mas ele não se instala, se as próprias pessoas não o alimentarem, não forem cúmplices dele. Então há uma cumplicidade em nós. Vamos imaginar então que o HIV-SIDA se instale em nós, mas não se instala sem nossa cumplicidade, sem nossa atitude. É essa que é a questão. É como nós podemos combater sem acusar simplesmente. Porque evidentemente que o governo americano, que o imperialismo internacional, que o capitalismo e o neocolonialismo são inimigos terríveis. Eu tenho a seguinte postura: onde eu encontrar poder, seja de que cor for, seja de que gênero for, eu sou inimigo. Sou um combatente dele. Eu acho que o poder é uma coisa de nocivo à vida. Mas, ao mesmo tempo, sei que onde a gente encontra poder a gente encontra porque ele entra em relação conosco. E se ele entra em relação conosco é porque tem uma coisa em comum com a gente. É então o que de nós comunga com esse poder, ou seja, que alimenta esse poder. Essa comunidade é que faz com que possamos reagir e nos defender sem necessariamente pedir ajuda ou precisar que o poder se torne bom, porque isso nunca vai acontecer. O poder nunca vai ser bom. Então nós precisamos nos defender, essa é que é a questão. Eu não sei se respondi o que você me perguntou dizendo que não sei, se você quer saber mais alguma coisa que eu possa falar diferente de modo diferente.
Rafael - Eu entendi, mas também tenho, de volta, outras questões em relação ao que meu colega aqui acabou de dizer ao passar esta mensagem. Eu quero dizer mais outra coisa. Você acabou dando exemplos políticos e tudo e acabo concluindo que, afinal de contas, essa doença foi descoberta, foi produzida através do laboratório. Em volta disso, quer dizer que isso é um negócio. Palmas. Por exemplo, se através das drogas conseguimos eliminar essa passagem, a empresa promotora desse tipo de epidemia – o HIV SIDA – vai fechar as portas. Existem tantas empresas que estão produzindo agora mesmo, em que estamos aqui sentados a discutir essa situação, a produzir camisinhas. Portanto, dia após dia, nós somos capazes de meter nas nossas consciências que temos de introduzir a camisinha, mas também temos de ter muita atenção... Por que isso tudo? Há camisinhas produzidas uns anos atrás que estão fora de uso. Aparentemente tem muito óleo, lá dentro é gordura. Temos de ter cautela. Palmas e risos. Desculpe, só que é assim mesmo. Se for para utilizar tendo óleo, passado um tempo vai ter problemas, vai sentir o seu bichinho a comichar... Depois de um certo tempo vai aparecer em volta umas bolinhas que são cicatrizes... Depois vais correndo para o hospital Risos. Já estás lá afetado. Sendo mulher também... em volta daquilo ali, vais sentir arder, depois de arder, vais pensando que foi de introduzir aquele seu amigo que sempre tem andado com ele, mesmo utilizando a camisinha. Mas aquela camisinha, como está fora do tempo, passa a ser inútil. Eu posso entender dessa maneira. Portanto, há de se preferir ter o seu parceiro, a pessoa da confiança. Também não quero dizer: - Epa: eu sou sério, que não perco tempo, mas lá fora navegas... Também a minha madame dizer que é seria aqui em casa, enquanto que lá fora navega. Portanto, há reservas de dúvidas, no meio disso aí. Risos. Portanto, eu entendi isso, trata-se de um negócio. Resumindo isso mesmo, trata-se de um negócio. E fiquei pasmo quando nosso orador falou em exemplos de macacos, de cachorros. Bom, pronto. Me fez refletir um pouco na crise que aqui em Moçambique tivemos recorrendo em trinta e três andares Risos e palmas, recorrendo os trinta e três andares, na introdução dos whites que são os brancos (desculpe a expressão que estás da mesma cor, mas paciência Risos e levavam as nossas queridas irmãs e mulheres como carretes da vida em si, porque o que pode ganha o seu poder devido aos dinheiros... A título de exemplo, isso que estamos a fazer aqui é através do dinheiro. Já, portanto, a minha irmã trabalha lá, trabalha lá, e pela carência da vida em si era sujeito ela a ser levada e a ser dada a um cachorro. Depois de servir-se já tem uns bilhões... vamos vivendo aqui em casa... já entrou doente. Eu acho assim, é uma passagem que já fez-me nas noitinhas... Agora já apareceu a noitinha. Já, portanto, tenho que agradecer, a mensagem é bem cantada, é bem ouvida e de todos nós que estamos aqui vamos tornar a ser porta-voz dessa nossa mensagem para os outros que não estão aqui. Muito obrigado.
Outro participante da comunidade - Quero agradecer essa explicação que aqui estamos tendo e uma parte é esse meu agradecimento simplesmente. A outra parte é lamentável. É para colocar uma lamentação. Porque o fundador disso, o criador dessa doença foi muito grande, profundo, no seu pensamento, para acabar com o mundo, posso dizer assim. Porque ele pensou nesta doença ou nessa contração, num lugar em que ninguém consegue resistir. Portanto, uma natureza pensou criar numa natureza em que ninguém consegue resistir queira ou não queira, não consegue resistir. Portanto eu compreendi muito bem a explicação, no sentido de dizer que ninguém pode dizer que não façam. Correto. Como é que podem dizer que não façam? Porque é uma natureza. Toda a humanidade deve passar por ali. Ninguém pode dizer que não façam, mas sim a maneira de fazer. Eu simplesmente estou bem consciencializado nisso, e que de fato ninguém pode travar isso. Simplesmente a maneira como fazer. Isso é que é importante. Porque veja lá que realmente é maneira de se fazer filhos. Não é o problema da poligamia que pode acabar, mas simplesmente a maneira de fazer as coisas, o controle. Aqui há uma coisa muito perigosa que eu não sei como fazer, e, aqui, talvez, a opinião do senhor poderá dizer. Por que isso mata muita gente, por que? Está a acabar com os lares. Os lares estão a acabar. Porque com essa explicação - use preservativos - um casal não diz a ninguém. É um segredo que ninguém se atreve a dizer a sua esposa, ninguém deve dizer a sua mulher. Então vai, mas quando volta à casa, não diz que saiu. Portanto, esse lar vai acabar. Com essa vergonha, porque também tem a vergonha de chegar em casa e dizer assim: vamos usar preservativos. Vai dizer: mas por que? Por que vamos usar hoje? Por que não usavas até essa data? Então, entra aquela desconfiança de que, sim senhor, ele foi, saiu. Andou a passear. Está a ver? Mas como há essa vergonha não diz ninguém. Mas veja lá que logo o marido morre. Dentro de poucos dias, a mulher também vai embora. Portanto, eu não sei como é que se pode estudar esse assunto. É muito perigosa essa doença. Além de ser de fato o que conseguiu descobrir isso aqui, ter um comércio, fazer um comércio para acabar com o mundo. Mas como fazer para isso acabar? É essa a minha preocupação. Como acabar, como prevenir? Correto, essa coisa de preservativo previne, mas estou a ver que não dá resultado. É prevenir, prevenir do que remediar. Vale a pena isso. Mas agora eu não sei. A minha preocupação é essa. Como é que se pode prevenir, porque os lares estão a acabar. Há vergonha de viver a realidade. Dizer: eu fui, estou doente. Outros têm medo de ir, portanto, ao médico. Como é que isso pode ser transmitido a ponto de as pessoas ganharem coragem de dizer que eu fiz isso. Veja que as pessoas falam fulano morreu por malária, mas não foi malária foi SIDA. Mas tem vergonha de dizer que foi a SIDA. Portanto, a minha preocupação para se prevenir realmente como encontrar a explicação para ganharmos, tirarmos o medo dessa vergonha. Poderíamos dizer a realidade. Obrigado.
Fernando Conde, do bairro de Intaca - Boa tarde. Eu queria dizer o seguinte: primeiro, para responder um pouco a questão do meu pai aqui. Não vou responder exatamente isso, mas vou dar uns tópicos. É o seguinte: a resposta que o nosso orador deu de que essa doença do HIV-SIDA foi descoberta em África. Eu também tenho idéia, já ouvi falar sobre isso. Tem certamente certos conceitos. Isso surgiu foi nos anos sessenta. Diz-se que, talvez, foi um caçador que entrou nas matas, nesses tipos de plantões que existem ... E que o vírus do HIV-SIDA vive, para além do homem. O que quer dizer que para os outros animais, noutro tipo de sangue, esse vírus não vive. Somente vive no sangue do homem e nessas zonas daí. E foi a partir daí, que é como se diz, não tenho certeza, como se diz, e nos anos setenta só foi descobrir já em Senegal. Ou seja, muitas pessoas adoeciam, ficaram magras, então começaram a chamar a doença da magreza. Era como era chamada no Senegal. Doença da magreza. Então simplesmente morriam: emagreciam, ficavam doentes, tinham tosse e muitas outras complicações no corpo. Mas, davam exatamente esse nome: doença da magreza. Mais tarde, já nos anos oitenta, é quando já vai se notar que dá-se o nome de SIDA. A SIDA é um conjunto de várias doenças; é síndrome da imunodeficiência adquirida. O corpo, o nosso corpo, tem uma maneira de se defender de qualquer doença. Posso me cortar com uma lâmina ou com uma faca e não pôr nenhum remédio. Depois de certo tempo o ferimento volta a fechar. Aí pode-se perguntar: como é que aquela parte curou-se sozinha? Ou posso ter uma gripe. Sem tomar xarope e nem nada a gripe pode passar. Agora, como é que isso acontece? Acontece praticamente porque o nosso corpo consegue se defender de qualquer doença que praticamente me surja. Mas acontece que se esse vírus entra no nosso organismo, fica por um tempo, começa a destruir aquele sistema imunológico que nós temos. Aquela capacidade de nos defender. E praticamente nosso corpo começa a enfraquecer, por causa desse vírus. E quando enfraquece, qualquer doença que entra fica. Entra a tuberculose e já não cura. Depois entra a diarréia e já não sara. Entra a malária e já não passa. Entra a gripe e já não passa. Esse conjunto de doenças que ainda nós vamos dar o nome de SIDA praticamente e diz que só vive no sangue humano. E, conforme alguns livros dizem, vivem no sangue também dos chimpanzés, porque são os únicos animais em que esse vírus praticamente vive.
Mas também não se tem certeza exatamente. Aqui, em 92 ou 94, não me lembro exatamente, quando veio cá em Moçambique... ou melhor, praticamente pessoas de vários países vieram para cá. Nossas irmãs, menininhas, epa, eram mesmo voar para lá, alguns dólares, pra lá pra cá, alguns dólares grandes. Então praticamente dizer que não... eles disseram que trouxeram a síndrome... mas a síndrome já existia, há muito tempo em Moçambique, antes dessa gente aparecer. Enfim, podem existir muitos conceitos de como que essa SIDA surgiu. Vou dar um exemplo: se numa casa, a gente consegue ver um rastro que entrou aqui, diz que foi uma cobra. Depois, conseguimos ver o buraco. Mas a cobra entrou e não saiu. Logo o que nós vamos fazer talvez é procurar todas as formas de tapar o buraco onde a cobra entrou. Tentamos tapar o buraco ali e deixamos a cobra dentro de casa. Eu não concordo que faríamos isso. Praticamente o que faríamos era matar primeiro a cobra, depois talvez tapar o buraco por onde praticamente entrou. Agora já temos a realidade da SIDA. Quer dizer, já temos a realidade. Apesar de dizer que essa pessoa morreu assim acolá e não se diz exatamente porque, nós já sabemos que a SIDA existe. Então, se vamos ainda procurar saber: será que surgiu na Nigéria, surgiu na Holanda, onde... já estamos a morrer. Então praticamente o que temos a fazer é lutar contra ela. Eu gostei muito da questão mesmo do papai colocar sobre a existência quando e como. Nós temos que é lutar contra ela. Se aqui em Moçambique ainda existe, eu não sei, não sei se isso ainda realmente existe, porque praticamente vamos desenvolvendo, vamos crescendo, vamos sempre a ter novas idéias. Dantes, diziam, as mamães aqui, os vovôs, praticamente sabem, chaila, essa expressão em brasileiro não se diz? Chaila... Nós chamamos de tabu. É um tabu. Na nossa língua, acá, temos chaila. Aí é que tem um pequeno problema, porque isso não se pode dizer aos mais novos. Vocês não falem de sexo aos mais novos ou não falem daquilo e daquilo aos mais novos. Ou não falem aquilo ali. Aí praticamente é onde há chaila e nós praticamente os jovens perdemos, aliás, os mais velhos já não nos dizem praticamente muita coisa, cobrem....
Aparte de uma mulher: Eu gostaria de cantar uma coisa, pode? Eu vou ensinar: é uma coisa simples, muitos já sabem. Nós estamos a falar da mente, do corpo, não é? Da sociedade que somos todos nós.
‘Não posso viver sem você
Não posso viver sem você
Você faz parte de mim
Não posso viver sem você
Não posso, não posso, não posso viver sem você”.
Agora vamos todos e todos repetem
Muito obrigada. Isso é para o Luiz, para dizer obrigada por esse momento de reflexão. É um movimento de reflexão para nós, que nós somos pessoas inteiras, não é? Temos corpo e alma e também temos nossas dúvidas. Eu só queria agradecer esta coisa que me faz valorizar o trabalho que nós realizamos, o trabalho da Ametramo (Associação dos Médicos Tradicionais de Moçambique) e de todos nós, nesta luta contra o SIDA. E dizer que o Luiz nos falou aqui da importância da vigilância e também da unidade. Eu tomei isso pra mim para compreender a chamada de atenção nesta luta contra o SIDA, porque quero juntar com aquilo que o irmão falou dizendo que se é negócio, como é que nós vamos acabar. Como é que isso pode acabar? Se é negócio, as pessoas estão a trabalhar e a mandar as coisas para nós. Mas nós também sabemos que o negócio acaba, não é isso? Nós também sabemos que há empresas que fecham. Não acontece isso no nosso país? Muitas pessoas trabalham em empresas que fecharam por razões que nós nem sabemos. De preservativos, estão a produzir roupas, estão a produzir mantas, que nós precisamos nos cobrir todos os dias. Mas fecharam, porque acabou a matéria-prima. O que aconteceu? Nós não sabemos, mas fecharam. Então nós também podemos contribuir para que esses negócios fechem. Porque o Luiz dizia: nós estamos a contribuir para o negócio crescer. Porque nós temos a nossa parte e eles vão fazer a parte deles. Mas o que nós fazemos? O que cada de um de nós faz? Se a pessoa não faz abstinência ou se não combina com seu parceiro hoje para fazer o teste, para ver se os dois podem viver sem usar o preservativo ou se usa o preservativo. Nós não estamos a fazer a nossa parte. Nós não estamos a contribuir para o crescimento daquele negócio, a prejudicar a nossa vida. Então, o que entendi é nossa atitude, o nosso modo de vida, como nós estamos... para a nossa vida. Porque eu tenho ouvido até de nós que somos pessoas adultas, eu tenho 57 anos, que contraem as doenças. Como é que os jovens vão chegar vivos assim? Eu tenho ouvido essas expressões, não sei se vocês não ouvem, que é preferível morrer depois de fazer... Eu vou fazer sexo sem preservativo, ou vou fazer sexo de qualquer maneira, mas pelo menos eu terei aproveitado. Mas por que vocês não podem aproveitar durante muito tempo, até 57, até 68 até 80 anos ou mais e aproveitar isso? Em vez de aproveitar tudo hoje e acabar tudo hoje, com a morte?
Eu também tenho ouvido pessoas da minha idade dizer: eu só tenho pena dos jovens. Eu já morri, por isso posso arrebentar os meus últimos cartuchos à vontade, porque eu já morri, já vivi o suficiente. E nós estamos a dizer ao mesmo tempo. Acho que é uma contradição, porque nós dizemos que nós somos as bíblias, somos as bibliotecas para os nossos filhos, nós temos a experiência da vida para transmitir e vamos nos deixar morrer? Quem vai orientar as nossas crianças? Por que nós vamos morrer e deixar as nossas crianças. Quem vai orientá-las? Quem vai tomar conta delas? Quem vai trabalhar para elas poderem estudar? Se nós já morremos, se estamos a arrebentar os últimos cartuchos?
Como é que eu estou a viver a minha filosofia? Como é que eu faço a filosofia da minha vida? Como é? Como é que eu contribuo, como é que eu faço o meu plano? O que é que eu quero? Eu quero morrer? Deixar os meus filhos? Você quer morrer e deixar seus netos?
Resposta: não, não quero.
A mulher ri e todos repetem a canção
Não posso viver sem você
Não posso viver sem você
Você faz parte de mim
Não posso, não posso, não posso viver sem você.
Cada um de nós não pode viver sem o outro. É unidade. Se nós nos unirmos nessa luta, nós vamos vencer sim. Vamos vencer, sim senhor. Porque vão fechar as fábricas de camisinhas. Há muita coisa que nós precisamos produzir que nós precisamos para a vida. Vão fechar, não importa que fechem as fábricas das camisinhas. Vão abrir fábricas de roupas. Vão abrir fábricas de comida. Não nos preocupemos com isso. Agora, há uma coisa que eu quero dizer também sobre aquilo que as camisinhas tem aquela gordura. Aquela gordura que é para a lubrificação. Nós somos pessoas. Há pessoas que são alérgicas a produto químico e há pessoas também são alérgicas àquela lubrificação, àquela gordura, a aquele óleo, àquela substância que é colocada. Então, quando a pessoa é alérgica, vai provocar aquele comichão. É alergia, porque no preservativo vem data do fabrico e data da expiração. Então nós vamos verificar se está fora do prazo, se tem verme, aí não vamos utilizar. Se estiver dentro do prazo e provocar comichão, sou eu que sou alérgica a aquilo ali. Mas eu vou continuar a usar com a minha alergia, posso agüentar uma alergia, não faz mal, mas agüentar o HIV já não dá, não é? Então eu vou continuar a usar preservativos. Agora todos os preservativos são feitos daquele tipo de borracha látex. Todos eles. São bons, quando bem usados, quando utilizados corretamente.
E se a pessoa não utilizá-los corretamente, pode correr o risco de romper o preservativo e dizer que foi porque estava fora do tempo, quando não foi bem usado. Então são os cuidados que nós prestamos atenção por causa daqueles comichões que vem da alergia e não do tempo que passou se nós verificarmos se está dentro do prazo. Muito obrigada.
Outro participante: é muito raro ocorrer... toda vez vamos ter dificuldade assim. Por isso vamos procurar investigar mais. Não vamos falar daquilo que não sabemos. Acho que de tudo o que falamos aqui ninguém não sabe. Por isso vamos investigar mais para saber mais. Porque vale a pena investigar aqui do que investigar lá fora. Ninguém de nós vai poder responder o que está está a perguntar ao outro. Ele está aqui para isso. Obrigado.
José Carlos: Meu nome é José Carlos, sou representante do inaudível Eu só tenho a agradecer e acrescentar mais um pouco às palavras do Luiz Fuganti. Ele usou uma expressão em que ele disse que o poder é nós vivermos e não deixarmos de viver o que temos de viver. Eu gostei muito dessa expressão e é uma expressão verídica. Muito mais eu tenho aqui a agradecer e a apelar a todos nós que estamos aqui reunidos que ao falarmos de como surgiu o SIDA, de como está se expandindo, ainda que seja importante, é claro. Mas não é o suficiente. Sabemos que muitas das vezes, quando nós criamos a criança, ainda tão novinha e a gente diz: “não pegue no fogo”, a criança duvida, mas enquanto não queima, não vai deixar de pegar no fogo. Ela só prova que o fogo queima depois de ter pego. É o que acontece com muitos jovens hoje em dia. Tantos jovens ouvem as palavras dos conselheiros, dos ativistas, seja de quem lá for, que dizem que o SIDA mata. SIDA mata. Não deves usar ou passar o ato sexual sem a proteção. Mas o jovem quer provar se realmente isso existe ou não. Ele vai e faz aquilo e ainda diz. Muitos de nós dizem que: eu não posso comer as bananas com as próprias cascas. Então, é isso que nos faz ainda afundarmos muito mais nesse abismo. Então, o mais importante é que eu acho, ou que eu vejo, os jovens sejam os adultos, quando eles entram em relação, em contato com um parceiro, eu conhecia hoje antes de eu manter relações sexuais com ela, eu devo conhecer qual é o estado de saúde em que ela está. Qual é o estado de saúde em que eu estou para podermos provar isso, precisamos fazer o que? O que se diz com o teste. Depois de eu achar o teste que eu sou são e livre e ela também então nós podemos praticar o ato sexual livremente, mas juntos nos conselhos em que nós possamos ter, de nós podermos viver fiéis na fidelidade, entre nós, os dois. Caso não, nós iremos ver uma outra coisa que se eu sou soropositivo e ela não é, então temos de achar um método mais viável, mais verídico que nós temos de usar. Se eu gosto dela, tem que estar com ela, então devo usar o preservativo, para poder estar com ela.
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