Como de costume, também no filme 'Argo', que acaba de estrear no Brasil, os ianques pegam a maior parte dos louros pela fuga dos diplomatas durante a Revolução Iraniana. Mas enquanto foge dos fatos, também captura – de maneira revigorada e com muita veracidade – o ambiente de suspeita e voraz vingança na Teerã pós-revolucionária. A análise é de Robert Fisk, do The Independent
Robert Fisk, do The Independent
Nos meses que se seguiam a Revolução Iraniana de 1979, eu me aproximava do portão de partida do aeroporto de Teerã, Mehrabad, com medo. Eu não tinha nada a temer. Era um jornalista de boa-fé viajando para dentro e fora do Teerã. Mas as questões que faziam os capangas da segurança iraniana eram tão ameaçadoras, insinuantes, tão carregadas de suspeitas, que você percebia, se caso eles não gostassem de você, ser inocente não seria suficiente. "Por que você escreveu que o Xá era um policial americano no Golfo quando ele torturou tantos iranianos?"
Já tinham vasculhado minha mala, lido as cópias dos meus telegramas. Eu tinha usado a palavra "policial" de maneira irônica. "Por que você ficou duas semanas a mais do que dizia seu visto original?". Tinha conseguido um acréscimo autorizado pelo Ministério de Relações Internacionais. "Por que visitou Bandar Abbas mesmo quando sabia que lá tinham instalações militares importantes? Por que deixou para trás sua câmera?"
No filme indicado ao Oscar de Ben Affleck, Argo, os seguranças do aeroporto são sinistros, as questões ainda mais invasivas, e as suspeitas igualmente reais. Afinal, eles estão conversando com seis canadenses da equipe de filmagem que supostamente estão se preparando para filmar um filme de ficção científica no Irã – mas estes seis são, na verdade, diplomatas americanos que escaparam do assalto à Embaixada dos EUA depois da revolução deflagrada. Seus 52 colegas ficaram reféns durante 444 dias.
Agora, os outros seis fugitivos estão tentando escapar do país. Estão com as passagens em mãos, mas os soldados de Pasdaran [do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica] suspeitam: por que canadenses quereriam fazer um filme de ficção científica no Irã? Por que ficaram somente dois dias na República Islâmica? Por que não têm cada um seu cartão de desembarque dos dois dias aqui? Como sabemos, não existem tais cartões. Todos eles estiveram na casa do embaixador canadense se escondendo.
Estranhezas
Mas para detalhistas como eu, estou preocupado com as singularidades. Eu não me lembro dos soldados terem computador no aeroporto de Mehrabad naquele tempo. Nem também me recordo de cartões de embarque eletrônicos. No Irã daquela época, 1979, nós andávamos com tíquetes de linhas aéreas escritas à mão, cada transferência de voo era feita em cópia de carbono da versão original à mão.
Mas o problema real no filme para nós, amantes do verídico, é que não existiu nenhum problema para os seis diplomatas e o oficial da CIA que os acompanhava no aeroporto de Mehrabad. Os iranianos que meticulosamente reuniram os pedaços das fotos retalhadas dos arquivos da embaixada – coisa que de fato fizeram - nunca descobriram a identidade de nenhum deles, como se mostra no filme. Tampouco revolucionários armados estiveram no caminho até a pista do aeroporto e, em vão, perseguiram com um caminhão cheio de homens armados o avião da Swissair onde estavam fugitivos.
Ainda mais importante, a embaixada britânica no Teerã não negou socorro aos seis quando saíram da embaixada americana, como sugere o filme; e os canadenses tiveram um papel muito mais importante no resgate dos americanos que a CIA. Mas, como é comum, os ianques pegam a maior parte dos louros – como fizeram para ganhar a Primeira e Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Coreia... Bom, paremos por aqui.
Tony Mendez – que é descendente de mexicano, mas como é interpretado por Ben Affleck, isso nunca seria imaginado – é o herói e ganha a medalha de maior prestígio do serviço secreto que nunca pode ser revelada. Ele recebeu a medalha e logo teve que devolvê-la. Os iranianos devem adorar as mensagens subliminares em Argo.
Mas tenho que admitir certa simpatia por Affleck, diretor e protagonista. Ele interpretou um dos heróis na versão semificcional de Pearl Harbor, que foi produzida pouco depois de 11 de setembro como um relato romantizado sobre o ataque japonês à base naval americana. E devemos lembrar que em 1970 uma versão hollywoodiana de Pearl Harbour, Tora!Tora!Tora!, seguiu fielmente os acontecimentos históricos do ataque. Foi um desastre no cinema. Quando os espectadores vão ao cinema, querem ver cinema – não história.
Veracidade
Enquanto Argo foge dos fatos quando mostra a fuga dos diplomatas, captura – de maneira revigorada e com muita veracidade – o ambiente de suspeita e voraz vingança na Teerã pós-revolucionária. Membros suspeitos do antigo regime eram mortos nos quintais das prisões, suplicavam com sorrisos de desespero e extremo medo junto dos homens que os iriam assassinar. Homens foram executados nas ruas do Irã, com enforcamento em guindastes – embora as execuções fossem feitas nas prisões e as sentenças de enforcamentos fossem normalmente dadas aos traficantes "convictos".
Mas a neurose fundamental de um povo inteligente regido e regrado por um governo de barbárie é sustentado de maneira muito realista. A aproximação sinistra de um oficial da inteligência iraniana da empregada doméstica, também iraniana, na embaixada canadense, e o constante discurso de que ele "sabia" de sua lealdade a seus irmãos e irmãs iranianos. Isto captura precisamente a atmosfera envenenada pela lealdade e terror que a Revolução Iraniana teve o papel de provocar. Esta iraniana é a real estrela do filme.
No fim, a vemos coberta de poeira e desesperada, cruzando a fronteira com o Iraque como refugiada – Iraque de Saddam, pelo amor de Deus! – para fugir de sua cidade natal e perseguidores. Para ela, nenhum cartão de embarque de primeira classe na Swissair. Mas é um filme aperitivo que – junto com "Rendition" ("O Suspeito", no Brasil) e trechos de "Munique" – trazem a realidade do Oriente Médio um pouco mais perto das almas dos espectadores nas salas de cinema.
*Tradução: Caio Sarack
Já tinham vasculhado minha mala, lido as cópias dos meus telegramas. Eu tinha usado a palavra "policial" de maneira irônica. "Por que você ficou duas semanas a mais do que dizia seu visto original?". Tinha conseguido um acréscimo autorizado pelo Ministério de Relações Internacionais. "Por que visitou Bandar Abbas mesmo quando sabia que lá tinham instalações militares importantes? Por que deixou para trás sua câmera?"
No filme indicado ao Oscar de Ben Affleck, Argo, os seguranças do aeroporto são sinistros, as questões ainda mais invasivas, e as suspeitas igualmente reais. Afinal, eles estão conversando com seis canadenses da equipe de filmagem que supostamente estão se preparando para filmar um filme de ficção científica no Irã – mas estes seis são, na verdade, diplomatas americanos que escaparam do assalto à Embaixada dos EUA depois da revolução deflagrada. Seus 52 colegas ficaram reféns durante 444 dias.
Agora, os outros seis fugitivos estão tentando escapar do país. Estão com as passagens em mãos, mas os soldados de Pasdaran [do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica] suspeitam: por que canadenses quereriam fazer um filme de ficção científica no Irã? Por que ficaram somente dois dias na República Islâmica? Por que não têm cada um seu cartão de desembarque dos dois dias aqui? Como sabemos, não existem tais cartões. Todos eles estiveram na casa do embaixador canadense se escondendo.
Estranhezas
Mas para detalhistas como eu, estou preocupado com as singularidades. Eu não me lembro dos soldados terem computador no aeroporto de Mehrabad naquele tempo. Nem também me recordo de cartões de embarque eletrônicos. No Irã daquela época, 1979, nós andávamos com tíquetes de linhas aéreas escritas à mão, cada transferência de voo era feita em cópia de carbono da versão original à mão.
Mas o problema real no filme para nós, amantes do verídico, é que não existiu nenhum problema para os seis diplomatas e o oficial da CIA que os acompanhava no aeroporto de Mehrabad. Os iranianos que meticulosamente reuniram os pedaços das fotos retalhadas dos arquivos da embaixada – coisa que de fato fizeram - nunca descobriram a identidade de nenhum deles, como se mostra no filme. Tampouco revolucionários armados estiveram no caminho até a pista do aeroporto e, em vão, perseguiram com um caminhão cheio de homens armados o avião da Swissair onde estavam fugitivos.
Ainda mais importante, a embaixada britânica no Teerã não negou socorro aos seis quando saíram da embaixada americana, como sugere o filme; e os canadenses tiveram um papel muito mais importante no resgate dos americanos que a CIA. Mas, como é comum, os ianques pegam a maior parte dos louros – como fizeram para ganhar a Primeira e Segunda Guerra Mundial, a Guerra da Coreia... Bom, paremos por aqui.
Tony Mendez – que é descendente de mexicano, mas como é interpretado por Ben Affleck, isso nunca seria imaginado – é o herói e ganha a medalha de maior prestígio do serviço secreto que nunca pode ser revelada. Ele recebeu a medalha e logo teve que devolvê-la. Os iranianos devem adorar as mensagens subliminares em Argo.
Mas tenho que admitir certa simpatia por Affleck, diretor e protagonista. Ele interpretou um dos heróis na versão semificcional de Pearl Harbor, que foi produzida pouco depois de 11 de setembro como um relato romantizado sobre o ataque japonês à base naval americana. E devemos lembrar que em 1970 uma versão hollywoodiana de Pearl Harbour, Tora!Tora!Tora!, seguiu fielmente os acontecimentos históricos do ataque. Foi um desastre no cinema. Quando os espectadores vão ao cinema, querem ver cinema – não história.
Veracidade
Enquanto Argo foge dos fatos quando mostra a fuga dos diplomatas, captura – de maneira revigorada e com muita veracidade – o ambiente de suspeita e voraz vingança na Teerã pós-revolucionária. Membros suspeitos do antigo regime eram mortos nos quintais das prisões, suplicavam com sorrisos de desespero e extremo medo junto dos homens que os iriam assassinar. Homens foram executados nas ruas do Irã, com enforcamento em guindastes – embora as execuções fossem feitas nas prisões e as sentenças de enforcamentos fossem normalmente dadas aos traficantes "convictos".
Mas a neurose fundamental de um povo inteligente regido e regrado por um governo de barbárie é sustentado de maneira muito realista. A aproximação sinistra de um oficial da inteligência iraniana da empregada doméstica, também iraniana, na embaixada canadense, e o constante discurso de que ele "sabia" de sua lealdade a seus irmãos e irmãs iranianos. Isto captura precisamente a atmosfera envenenada pela lealdade e terror que a Revolução Iraniana teve o papel de provocar. Esta iraniana é a real estrela do filme.
No fim, a vemos coberta de poeira e desesperada, cruzando a fronteira com o Iraque como refugiada – Iraque de Saddam, pelo amor de Deus! – para fugir de sua cidade natal e perseguidores. Para ela, nenhum cartão de embarque de primeira classe na Swissair. Mas é um filme aperitivo que – junto com "Rendition" ("O Suspeito", no Brasil) e trechos de "Munique" – trazem a realidade do Oriente Médio um pouco mais perto das almas dos espectadores nas salas de cinema.
*Tradução: Caio Sarack
Nenhum comentário:
Postar um comentário