Mídia, polícia militar e governos como o do Estado de São Paulo ainda pautam combate às drogas - e ao crack - pelo viés repressor, apesar do fracasso histórico dessas políticas. Plano do governo federal lançado em 2011 destaca a dimensão relacionada à saúde, mas especialistas cobram verba maior e dizem que entes federativos ainda resistem a aderir.
Bárbara Vidal*
“Zumbis do crack invadem as capitais do Brasil”. “Zumbis se arrastam pela rua”. “São farrapos enrolando restos de humanidade”. É o que bradam colunistas dos grandes jornais brasileiros sobre os usuários da droga concentrados nas chamadas cracolândias. Estigmatizados como zumbis por uma classe média que não os quer enxergar, eles provocam cada vez mais pânico no restante da população que não sabe lidar com essa situação.
O termo “zumbi” caracteriza alguém dado como morto, que volta a viver irracionalmente, controlado por uma força maior; um ser humano que vive em estado catatônico, gerando insegurança e medo. Definir os usuários de crack como zumbis sugere que eles perderam a capacidade de escolha e discernimento sobre a própria vida, que a droga os manipula e que são, por si só, uma ameaça à sociedade.
No entanto, o crack não é o inimigo contra o qual se deve lutar. Ainda que seja uma droga mais pesada e com efeitos mais degradantes a seus usuários – se comparada ao álcool e à cocaína, por exemplo –, é apenas mais uma substância ofertada à população. Seus consumidores são vítimas de um sistema que os criminaliza. “Se essas pessoas estivessem simplesmente na rua, passando fome e frio, como sempre estiveram, independentemente de serem ou não usuários de drogas, não seriam ‘zumbis’ ou, pelo menos, não ameaçariam”, diz o antropólogo e pesquisador sobre uso de drogas Maurício Fiore.
Muitos profissionais do direito, da saúde e da assistência social que trabalham diariamente com dependentes de crack afirmam que esses usuários têm plena consciência do que estão passando. Entre eles está a defensora pública do Estado de São Paulo Daniela Skromov de Albuquerque. Para ela, “de uma hora para outra” todo mundo acordou e quer envolver a sociedade e as instituições para encontrar uma solução ao problema do crack. “Junto a este senso de urgência vem um discurso salvacionista e a concepção de que os usuários de drogas não sabem o que querem. Então, surge o crack como droga símbolo e os especialistas devem definir o que estes indivíduos devem querer”.
Sai o éter e entra o crack
O crack existe no Brasil desde o fim da década de 80 e início de 90, quando a cocaína passou a ser refinada no país. Até então, a droga entrava no Brasil já pronta para o consumo. Essa mudança se deu por uma ação da Polícia Federal que, nesta mesma época, descobriu que a cocaína distribuída no país era refinada na Colômbia e na Bolívia com insumos produzidos pela indústria brasileira, a exemplo do éter e outros solventes.
Pouco antes dessa investigação, a tendência mundial já era a intensificação do combate a essas substâncias químicas. A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, preocupou-se com o crescimento do crime organizado, de acordo com o artigo de Maurides de Melo Ribeiro e Marcelo Ribeiro Araújo, “Política mundial de drogas ilícitas: uma reflexão histórica”, publicado no livro “Panorama atual de drogas e dependências”. “Nesse sentido, a convenção chamou os países signatários a adotarem medidas de combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro. Além disso, os produtos químicos utilizados na obtenção dos princípios ativos das plantas psicoativas passaram a sofrer forte controle por parte das nações.”
Como não era possível (e ainda não é) manter um controle efetivo da fronteira para que a droga não entrasse no território nacional, a solução encontrada pela PF foi o caminho inverso: barraram a saída dos produtos usados no refino de cocaína para aqueles países. Consequentemente, os traficantes brasileiros passaram a importar a pasta base da cocaína para ser refinada no país. O crack, subproduto deste processo, também passou a ser comercializado ilegalmente.
Ao contrário do efeito da maconha, que pode tomar horas do dia de um usuário e geralmente é consumida coletivamente, e da cocaína, cuja euforia dura meia hora, em média, o crack é uma droga de uso individual, com efeito de no máximo cinco minutos. Tais diferenças alteraram significativamente o padrão do consumo de drogas no Brasil.
“Fumar uma pedra de crack é comparado a uma quantidade de neurotransmissores iguais à de um orgasmo. Com a diferença de que se pode ter um orgasmo a cada cinco minutos. Nenhum ser humano, com uma vida normal, pode isso! Essa é a grande questão: os fatores associados à rapidez com que o usuário se torna dependente químico”, explica Lucas Neiva, psicólogo e pesquisador do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-rua).
São Paulo, onde a droga chegou antes do que em qualquer outro estado do país, abriga a maior cracolândia brasileira. Ela está localizada na região central da cidade, entre as ruas Mauá e avenidas Duque de Caxias, Cásper Líbero, Ipiranga e Rio Branco. Até julho de 1999 nenhuma intervenção por parte do governo municipal ou estadual havia sido feita na região. Naquela época, por ordem do então prefeito Celso Pitta (PPB, atual PP), a Polícia Militar fez uma varredura de usuários de drogas e moradores de rua, ainda que sob protestos de setores da sociedade civil, por conta da inauguração da Sala São Paulo, no antigo edifício da Estação Ferroviária Júlio Prestes.
Enquanto a frequência de usuários de drogas só aumentou na Cracolândia, as políticas públicas continuaram as mesmas. Assim como Celso Pitta, o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) e o governador Geraldo Alckmin (PSDB), também como forma de revitalizar o centro, utilizaram-se da truculência policial, abuso de autoridade e medidas inconstitucionais, para retirar os usuários das ruas. Decisões essas que foram bastante criticadas por organizações ligadas aos Direitos Humanos, como o Centro de Convivência É de Lei, que atua na promoção da Redução de Danos à saúde associados ao uso de drogas. Essa foi a forma que o Estado em suas diferentes instâncias encontrou para eliminar os “zumbis do crack”.
O tiro saiu pela culatra
Após as festas de fim de ano, descolados do governo federal, que previa para 2012 a assinatura do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas pelos Estados, os governos estadual e municipal de São Paulo deflagraram, há um ano, a Operação Sufoco. Também conhecida por Operação Cracolândia, ela visava combater o tráfico de drogas que acontecia a qualquer hora do dia, sem qualquer controle do Estado, e retirar os usuários de drogas da região central da cidade.
Esse Plano de Enfrentamento, lançado pela presidenta Dilma Rousseff no dia 7 de dezembro de 2011, passou a tomar forma com a campanha de combate à droga, cujo slogan era “Crack, é possível vencer”. Segundo o portal da campanha, seus objetivos são: aumentar a oferta de tratamento de saúde e atenção aos usuários, enfrentar o tráfico de drogas e as organizações criminosas e ampliar atividades de prevenção por meio da educação, informação e capacitação. Ele também prevê o investimento de até R$ 4 bilhões até o final de 2014, que “serão aplicados em diversas ações de políticas públicas integradas, em diversos setores como saúde, educação, assistência social e segurança pública. A responsabilidade também será compartilhada com estados e municípios que terão o compromisso de oferecer apoio”.
Para Lucas Neiva, apesar da importância de um investimento com cifras até então inéditas na área de drogas, o plano ainda é insuficiente. “Isso porque a dimensão com que se cresce o número de dependentes químicos e da população das classes média e média alta vindo morar na rua por causa do uso de crack é enorme. Crack, hoje, é uma epidemia e a dependência química, antes de tudo, é um problema de saúde pública. Se você conseguir manter estático o nível do problema, já é uma evolução. Quantas das políticas públicas têm um núcleo direcionado para as famílias dos pacientes? Nenhuma. Então não vai dar certo nunca. O que estão dando é esmola”, critica Neiva.
Além disso, o governo federal tem conseguido muito lentamente a adesão dos Estados ao plano, e, um ano após ter sido decretado, ela ainda não foi feita por grande parte das capitais, como é o caso de São Paulo. Mesmo com esse investimento, o governo não tem como fiscalizar se o dinheiro foi aplicado equanimemente no combate ao tráfico e na criação de lugares que oferecem tratamento diversificado aos usuários. “Do total do valor gasto da política de drogas brasileira, mais de 80% vão para a repressão da oferta, investimento na Polícia Federal, armamentos, aviões, etc. Apenas 20% são gastos com usuários e, desse percentual, menos de 1% é gasto com prevenção”, declara Neiva.
Para Altieres Edemar Frei, psicólogo de um Centro de Apoio Psicossocial em Álcool e Drogas (CAPS-AD) de São Paulo e estudioso do assunto, o plano ainda estava “na gaveta” quando a Operação Cracolândia teve início. “Era uma questão muito clara dos poderes municipal e estadual: ‘Vamos fazer algo antes de o governo federal criticar a gente em época de campanha eleitoral’”.
Bombas de efeito moral, balas de borracha, gás de pimenta, cavalaria, viaturas sobre as calçadas, prisões, internações compulsórias e cassetetes foram os protagonistas durante pouco mais de um mês do filme de terror que, desta vez, não tinha os “zumbis do crack” como vilões, mas sim a Polícia Militar, na época comandada pelo Coronel Álvaro Batista Camilo.
A tão conhecida declaração do coordenador estadual de Políticas Públicas de Combate ao Álcool e Drogas, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, que o tratamento dos dependentes de crack deveria ser à base de “dor e sofrimento”, assim como a própria operação, ofendeu os princípios da Lei de Drogas (11.343/06) e da Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/01), segundo a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra o governo estadual em junho de 2012.
Foi sob esta mesma ótica que Bruno Ramos Gomes, psicólogo e membro do É de Lei, observou durante os três primeiros meses do ano as pessoas que passavam pelo centro. “Todas elas estavam muito machucadas, vagando, sem conseguir se organizar para ter um cuidado de higiene pessoal”. Segundo o psicólogo, a prefeitura ofereceu o que a maioria das pessoas na Cracolândia já experimentou: a internação em comunidade terapêutica e a entrada no sistema prisional. “Nos primeiros dias da PM no Centro muitas pessoas foram internadas voluntariamente como forma de fugir da violência, e não em busca de um tratamento. Além disso, muita gente está presa e sequer foi julgada ainda”, comenta Ramos.
O papel da PM
Durante a Operação Sufoco, o principal objetivo era quebrar a logística do tráfico –segundo declarações oficiais – e, para que ela fosse minimamente aceita pela maioria da população e pela opinião pública, traficantes deveriam ser presos. O óbvio ululante. Partindo desse princípio, as forças policiais prenderam muitos usuários como traficantes.
Isso porque, com a sanção da Lei de Drogas, a pena para tráfico foi consideravelmente endurecida e, para consumidores, amenizada. “Não há um critério objetivo para fazer essa distinção entre tráfico e uso de drogas. Então, muitas pessoas que são usuárias são condenadas como se fossem traficantes”, afirma o advogado e doutor em Direito Penal Cristiano Ávila Maronna, em artigo publicado no livro “Álcool e outras drogas”.
No caso do crack, a figura do traficante é muito menos delineada do que no de outros psicotrópicos. Principalmente na região da Cracolândia, a venda da substância é pulverizada e, majoritariamente, feita pelos próprios consumidores como forma de manter o uso. “Quando muito, teriam sido presos pequenos varejistas, os últimos e mais insignificantes elos da sólida e robusta corrente de distribuição de drogas no local”, de acordo com o documento da Ação movida pelo MP.
A defensora pública, Daniela Skromov afirma que o tráfico é um comércio lucrativo e quem o abastece e tem peso nessa rede de negociação não mora na rua, nem na Cracolândia. “A lógica da Operação foi exclusivamente policial: primeiro de combate ao tráfico para depois levar o tratamento, como se este tivesse que ser feito nos lugares de miséria e, sobretudo, onde se tem a figura do consumidor”, critica.
Segundo um oficial da PM que atua na região metropolitana de São Paulo e pediu para não ser identificado, a diferenciação entre porte de drogas e tráfico se dá pela abordagem e “feeling”. “Se eu estou numa biqueira, sei que determinada pessoa está ali sempre. A maioria das vezes, quando o cara foi abordado, ou ele acabou de dispensar a droga ou está com ela no bolso. Geralmente o que está traficando não usa ou não usa ali. E a gente sabe que o cara que está chapado não é o mesmo que está vendendo”, conta.
A sociedade imediatista, que ainda aplaude duelos de gladiadores, também dificulta a ação policial prevista na lei. A prevenção de crimes não gera notícia, não traz resultados imediatos, nem em somente quatro anos. O PM diz que na
Academia, os aspirantes a PMs aprendem toxicologia, política de redução de danos, que o problema das drogas é de saúde e tentam conviver da melhor maneira possível com a questão.
“Mas a população fala: ‘Vocês não estão vendo que ali tem droga e não vão fazer nada?’. É mais ou menos o que acontece no centro. No ‘Profissão Repórter’ o Caco Barcellos fez uma reportagem sobre isso, que a viatura passava e ele falava: ‘Nossa, o menino está cheirando cola e o policial não faz nada?’. Então chega um ponto que falamos: ‘Ah, a gente não faz nada? Então vamos fazer’. Meu maior problema hoje em dia não é o traficante e não é o ladrão. É lidar com a mídia dizendo o que eu devo fazer, se está certo ou não”, completa o policial.
*Bárbara Vidal é jornalista. Esta reportagem foi publicada na edição impressa da revista Caros Amigos e é divulgada agora pela Carta Maior em primeira mão na internet.
buscado em: http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21568&boletim_id=1514&componente_id=25804
O termo “zumbi” caracteriza alguém dado como morto, que volta a viver irracionalmente, controlado por uma força maior; um ser humano que vive em estado catatônico, gerando insegurança e medo. Definir os usuários de crack como zumbis sugere que eles perderam a capacidade de escolha e discernimento sobre a própria vida, que a droga os manipula e que são, por si só, uma ameaça à sociedade.
No entanto, o crack não é o inimigo contra o qual se deve lutar. Ainda que seja uma droga mais pesada e com efeitos mais degradantes a seus usuários – se comparada ao álcool e à cocaína, por exemplo –, é apenas mais uma substância ofertada à população. Seus consumidores são vítimas de um sistema que os criminaliza. “Se essas pessoas estivessem simplesmente na rua, passando fome e frio, como sempre estiveram, independentemente de serem ou não usuários de drogas, não seriam ‘zumbis’ ou, pelo menos, não ameaçariam”, diz o antropólogo e pesquisador sobre uso de drogas Maurício Fiore.
Muitos profissionais do direito, da saúde e da assistência social que trabalham diariamente com dependentes de crack afirmam que esses usuários têm plena consciência do que estão passando. Entre eles está a defensora pública do Estado de São Paulo Daniela Skromov de Albuquerque. Para ela, “de uma hora para outra” todo mundo acordou e quer envolver a sociedade e as instituições para encontrar uma solução ao problema do crack. “Junto a este senso de urgência vem um discurso salvacionista e a concepção de que os usuários de drogas não sabem o que querem. Então, surge o crack como droga símbolo e os especialistas devem definir o que estes indivíduos devem querer”.
Sai o éter e entra o crack
O crack existe no Brasil desde o fim da década de 80 e início de 90, quando a cocaína passou a ser refinada no país. Até então, a droga entrava no Brasil já pronta para o consumo. Essa mudança se deu por uma ação da Polícia Federal que, nesta mesma época, descobriu que a cocaína distribuída no país era refinada na Colômbia e na Bolívia com insumos produzidos pela indústria brasileira, a exemplo do éter e outros solventes.
Pouco antes dessa investigação, a tendência mundial já era a intensificação do combate a essas substâncias químicas. A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, de 1988, preocupou-se com o crescimento do crime organizado, de acordo com o artigo de Maurides de Melo Ribeiro e Marcelo Ribeiro Araújo, “Política mundial de drogas ilícitas: uma reflexão histórica”, publicado no livro “Panorama atual de drogas e dependências”. “Nesse sentido, a convenção chamou os países signatários a adotarem medidas de combate ao tráfico de drogas e à lavagem de dinheiro. Além disso, os produtos químicos utilizados na obtenção dos princípios ativos das plantas psicoativas passaram a sofrer forte controle por parte das nações.”
Como não era possível (e ainda não é) manter um controle efetivo da fronteira para que a droga não entrasse no território nacional, a solução encontrada pela PF foi o caminho inverso: barraram a saída dos produtos usados no refino de cocaína para aqueles países. Consequentemente, os traficantes brasileiros passaram a importar a pasta base da cocaína para ser refinada no país. O crack, subproduto deste processo, também passou a ser comercializado ilegalmente.
Ao contrário do efeito da maconha, que pode tomar horas do dia de um usuário e geralmente é consumida coletivamente, e da cocaína, cuja euforia dura meia hora, em média, o crack é uma droga de uso individual, com efeito de no máximo cinco minutos. Tais diferenças alteraram significativamente o padrão do consumo de drogas no Brasil.
“Fumar uma pedra de crack é comparado a uma quantidade de neurotransmissores iguais à de um orgasmo. Com a diferença de que se pode ter um orgasmo a cada cinco minutos. Nenhum ser humano, com uma vida normal, pode isso! Essa é a grande questão: os fatores associados à rapidez com que o usuário se torna dependente químico”, explica Lucas Neiva, psicólogo e pesquisador do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-rua).
São Paulo, onde a droga chegou antes do que em qualquer outro estado do país, abriga a maior cracolândia brasileira. Ela está localizada na região central da cidade, entre as ruas Mauá e avenidas Duque de Caxias, Cásper Líbero, Ipiranga e Rio Branco. Até julho de 1999 nenhuma intervenção por parte do governo municipal ou estadual havia sido feita na região. Naquela época, por ordem do então prefeito Celso Pitta (PPB, atual PP), a Polícia Militar fez uma varredura de usuários de drogas e moradores de rua, ainda que sob protestos de setores da sociedade civil, por conta da inauguração da Sala São Paulo, no antigo edifício da Estação Ferroviária Júlio Prestes.
Enquanto a frequência de usuários de drogas só aumentou na Cracolândia, as políticas públicas continuaram as mesmas. Assim como Celso Pitta, o ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) e o governador Geraldo Alckmin (PSDB), também como forma de revitalizar o centro, utilizaram-se da truculência policial, abuso de autoridade e medidas inconstitucionais, para retirar os usuários das ruas. Decisões essas que foram bastante criticadas por organizações ligadas aos Direitos Humanos, como o Centro de Convivência É de Lei, que atua na promoção da Redução de Danos à saúde associados ao uso de drogas. Essa foi a forma que o Estado em suas diferentes instâncias encontrou para eliminar os “zumbis do crack”.
O tiro saiu pela culatra
Após as festas de fim de ano, descolados do governo federal, que previa para 2012 a assinatura do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas pelos Estados, os governos estadual e municipal de São Paulo deflagraram, há um ano, a Operação Sufoco. Também conhecida por Operação Cracolândia, ela visava combater o tráfico de drogas que acontecia a qualquer hora do dia, sem qualquer controle do Estado, e retirar os usuários de drogas da região central da cidade.
Esse Plano de Enfrentamento, lançado pela presidenta Dilma Rousseff no dia 7 de dezembro de 2011, passou a tomar forma com a campanha de combate à droga, cujo slogan era “Crack, é possível vencer”. Segundo o portal da campanha, seus objetivos são: aumentar a oferta de tratamento de saúde e atenção aos usuários, enfrentar o tráfico de drogas e as organizações criminosas e ampliar atividades de prevenção por meio da educação, informação e capacitação. Ele também prevê o investimento de até R$ 4 bilhões até o final de 2014, que “serão aplicados em diversas ações de políticas públicas integradas, em diversos setores como saúde, educação, assistência social e segurança pública. A responsabilidade também será compartilhada com estados e municípios que terão o compromisso de oferecer apoio”.
Para Lucas Neiva, apesar da importância de um investimento com cifras até então inéditas na área de drogas, o plano ainda é insuficiente. “Isso porque a dimensão com que se cresce o número de dependentes químicos e da população das classes média e média alta vindo morar na rua por causa do uso de crack é enorme. Crack, hoje, é uma epidemia e a dependência química, antes de tudo, é um problema de saúde pública. Se você conseguir manter estático o nível do problema, já é uma evolução. Quantas das políticas públicas têm um núcleo direcionado para as famílias dos pacientes? Nenhuma. Então não vai dar certo nunca. O que estão dando é esmola”, critica Neiva.
Além disso, o governo federal tem conseguido muito lentamente a adesão dos Estados ao plano, e, um ano após ter sido decretado, ela ainda não foi feita por grande parte das capitais, como é o caso de São Paulo. Mesmo com esse investimento, o governo não tem como fiscalizar se o dinheiro foi aplicado equanimemente no combate ao tráfico e na criação de lugares que oferecem tratamento diversificado aos usuários. “Do total do valor gasto da política de drogas brasileira, mais de 80% vão para a repressão da oferta, investimento na Polícia Federal, armamentos, aviões, etc. Apenas 20% são gastos com usuários e, desse percentual, menos de 1% é gasto com prevenção”, declara Neiva.
Para Altieres Edemar Frei, psicólogo de um Centro de Apoio Psicossocial em Álcool e Drogas (CAPS-AD) de São Paulo e estudioso do assunto, o plano ainda estava “na gaveta” quando a Operação Cracolândia teve início. “Era uma questão muito clara dos poderes municipal e estadual: ‘Vamos fazer algo antes de o governo federal criticar a gente em época de campanha eleitoral’”.
Bombas de efeito moral, balas de borracha, gás de pimenta, cavalaria, viaturas sobre as calçadas, prisões, internações compulsórias e cassetetes foram os protagonistas durante pouco mais de um mês do filme de terror que, desta vez, não tinha os “zumbis do crack” como vilões, mas sim a Polícia Militar, na época comandada pelo Coronel Álvaro Batista Camilo.
A tão conhecida declaração do coordenador estadual de Políticas Públicas de Combate ao Álcool e Drogas, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, que o tratamento dos dependentes de crack deveria ser à base de “dor e sofrimento”, assim como a própria operação, ofendeu os princípios da Lei de Drogas (11.343/06) e da Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216/01), segundo a ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo contra o governo estadual em junho de 2012.
Foi sob esta mesma ótica que Bruno Ramos Gomes, psicólogo e membro do É de Lei, observou durante os três primeiros meses do ano as pessoas que passavam pelo centro. “Todas elas estavam muito machucadas, vagando, sem conseguir se organizar para ter um cuidado de higiene pessoal”. Segundo o psicólogo, a prefeitura ofereceu o que a maioria das pessoas na Cracolândia já experimentou: a internação em comunidade terapêutica e a entrada no sistema prisional. “Nos primeiros dias da PM no Centro muitas pessoas foram internadas voluntariamente como forma de fugir da violência, e não em busca de um tratamento. Além disso, muita gente está presa e sequer foi julgada ainda”, comenta Ramos.
O papel da PM
Durante a Operação Sufoco, o principal objetivo era quebrar a logística do tráfico –segundo declarações oficiais – e, para que ela fosse minimamente aceita pela maioria da população e pela opinião pública, traficantes deveriam ser presos. O óbvio ululante. Partindo desse princípio, as forças policiais prenderam muitos usuários como traficantes.
Isso porque, com a sanção da Lei de Drogas, a pena para tráfico foi consideravelmente endurecida e, para consumidores, amenizada. “Não há um critério objetivo para fazer essa distinção entre tráfico e uso de drogas. Então, muitas pessoas que são usuárias são condenadas como se fossem traficantes”, afirma o advogado e doutor em Direito Penal Cristiano Ávila Maronna, em artigo publicado no livro “Álcool e outras drogas”.
No caso do crack, a figura do traficante é muito menos delineada do que no de outros psicotrópicos. Principalmente na região da Cracolândia, a venda da substância é pulverizada e, majoritariamente, feita pelos próprios consumidores como forma de manter o uso. “Quando muito, teriam sido presos pequenos varejistas, os últimos e mais insignificantes elos da sólida e robusta corrente de distribuição de drogas no local”, de acordo com o documento da Ação movida pelo MP.
A defensora pública, Daniela Skromov afirma que o tráfico é um comércio lucrativo e quem o abastece e tem peso nessa rede de negociação não mora na rua, nem na Cracolândia. “A lógica da Operação foi exclusivamente policial: primeiro de combate ao tráfico para depois levar o tratamento, como se este tivesse que ser feito nos lugares de miséria e, sobretudo, onde se tem a figura do consumidor”, critica.
Segundo um oficial da PM que atua na região metropolitana de São Paulo e pediu para não ser identificado, a diferenciação entre porte de drogas e tráfico se dá pela abordagem e “feeling”. “Se eu estou numa biqueira, sei que determinada pessoa está ali sempre. A maioria das vezes, quando o cara foi abordado, ou ele acabou de dispensar a droga ou está com ela no bolso. Geralmente o que está traficando não usa ou não usa ali. E a gente sabe que o cara que está chapado não é o mesmo que está vendendo”, conta.
A sociedade imediatista, que ainda aplaude duelos de gladiadores, também dificulta a ação policial prevista na lei. A prevenção de crimes não gera notícia, não traz resultados imediatos, nem em somente quatro anos. O PM diz que na
Academia, os aspirantes a PMs aprendem toxicologia, política de redução de danos, que o problema das drogas é de saúde e tentam conviver da melhor maneira possível com a questão.
“Mas a população fala: ‘Vocês não estão vendo que ali tem droga e não vão fazer nada?’. É mais ou menos o que acontece no centro. No ‘Profissão Repórter’ o Caco Barcellos fez uma reportagem sobre isso, que a viatura passava e ele falava: ‘Nossa, o menino está cheirando cola e o policial não faz nada?’. Então chega um ponto que falamos: ‘Ah, a gente não faz nada? Então vamos fazer’. Meu maior problema hoje em dia não é o traficante e não é o ladrão. É lidar com a mídia dizendo o que eu devo fazer, se está certo ou não”, completa o policial.
*Bárbara Vidal é jornalista. Esta reportagem foi publicada na edição impressa da revista Caros Amigos e é divulgada agora pela Carta Maior em primeira mão na internet.
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