terça-feira, 12 de fevereiro de 2013

entrevista de Ana Maria Preve para a Revista do Conselho Federal de Psicologia


            Ana Maria Hoepers Preve é professora no curso de Geografia da Universidade do Estado de Santa Catarina/UDESC responsável pela disciplina de Prática de Ensino de Geografia e Estágio Supervisionado e doutora em Educação pela UNICAMP.

            Dialogar com outras áreas é uma proposta da Revista Diálogos que privilegia temas atuais, favorecendo o debate e qualificando a tomada de posição dos profissionais.

            A tese de doutorado da autora, intitulada “Mapas, prisão e fugas: cartografias intensivas em educação” (orientada pelo Prof. Wenceslao Machado de Oliveira Junior) deu origem a entrevista que se segue, com a certeza de que ela apenas servirá de motivação para um contacto maior com a autora e o trabalho que vem realizando.

Resumo: A pesquisa foi desenvolvida a partir da proposição de oficinas sobre Geografia e Meio Ambiente junto aos internos do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico de Florianópolis/SC. O foco inicial das oficinas era investigar o pensamento geográfico e as articulações espaciais dos detentos com suas vidas restritas ao espaço prisional. O estudo e a produção de mapas, pelos participantes, contou com a emergência de várias outras produções gráficas dos mesmos. Tomadas, num primeiro momento, como ruído, essas produções (desenhos, relatos, fotos), de tão recorrentes, tornaram-se o foco mesmo das investigações, na medida em que problematizavam, entre outras coisas, o aprisionamento e a co-extensiva medicalização a que estavam sujeitos, gerando a noção-ferramenta de mapas intensivos. Nessa noção o conceito de intensivo tomado de Gilles Deleuze e Félix Gattari joga um papel central.           


1. O que levou uma professora de Geografia a realizar o trabalho no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP – Florianópolis/SC)?
No final dos anos 1980 passava de ônibus para ir do centro de Florianópolis à Universidade Federal de Santa Catarina, local onde estudei por um longo tempo, da graduação em Biologia ao mestrado em Educação. No percurso passava pela Trindade, bairro que liga o centro da cidade à Universidade Federal. Neste bairro situa-se, desde 1971, o Complexo Penitenciário de Florianópolis. Do interior do ônibus avistava o pátio do complexo penitenciário e alguns presos fazendo pequenos deslocamentos. Essas são minhas primeiras lembranças daquela instituição de reclusão. Havia uma vontade de saber o que se passava no presídio com as vidas ali vividas. Em 1995 conheci o presídio. Na época cursava o Mestrado, e estava vinculada a um grupo em educação chamado Núcleo de Alfabetização Técnica (NAT) da UFSC e desenvolvia oficinas sobre sexualidade com professores, alunos de escolas públicas e de universidades. O Presídio Feminino veio nesse movimento: outro lugar, outras pessoas, outras referências de mundo. Apesar das diversas tentativas de aplicar a oficina de sexualidade prevista nos roteiros tão eficientes nos grupos fora do presídio, o grupo das presas mostrou-se resistente àquela seqüência de atividades. À primeira vista, ou aos nossos olhos acostumados a enquadrar e identificar, as internas demonstravam grande dificuldade de concentração e problemas com a expressão de suas idéias. Ao invés disso, por exemplo, na atividade em que foi oferecida argila para que elas expressassem “o que é sexualidade” preferiam fazer cinzeiros, porta escovas de dente, bonecos representando os filhos, loucinhas, maricas, porta-incenso enquanto conversavam despreocupadamente e alheias à questão proposta. Demorou muito para perceber a oficina como oportunidade de aprender uma espécie de saber novo sobre sexualidade. Saber que chega inesperadamente sem encontrar correspondência na trajetória feita até então. Enquanto junto aos outros grupos conseguia apenas ativar clichês com a pergunta “o que é a sexualidade”, elas me apresentam a pergunta demolidora: “sexualidade, quem precisa disso?”. Tal pergunta não me surgiu assim formulada, mas abriu-se aí o campo em que ela pode acontecer. E vi, desde então, se perderem os contornos do trabalho que estavam programados para dar conta da questão – entender a diversidade da sexualidade a fim de tratá-la com naturalidade – e que levavam sempre a uma mesma resposta. Uma resposta já definida antes da pesquisa. Essa perda dos contornos escapava ao previsto na oficina. Oito anos após o término desse trabalho retorno ao Complexo Penitenciário para orientar estágios em Geografia no Presídio Masculino e descobri o Hospital do qual raramente se fala por ali e fora dali. Iniciei, motivada por todas as minhas incertezas em relação ao lugar, um trabalho vinculado a Projetos de Extensão com oficinas que giravam em torno de temas da Geografia e do Meio Ambiente. Era ali que poderia dar continuidade à minha experimentação como educadora interessada em criar condições para a produção de diferenças. Neste lugar o que encontro são as identidades fixas de louco, de bandido, de marginal, de preso, de vagabundo, de doente mental. Queria experimentar os espaços marginais e periféricos localizados no centro da cidade; queria estar perto de homens considerados invisíveis e de suas elaborações de pensamento espacial... queria pensar com o pensamento deles e desmanchar/ampliar um pouco dos meus; queria ver o que há para além desses identidades fixas.

2. Qual era a proposta inicial de sua pesquisa no HCTP e como e porque ela se transformou?
Não tinha inicialmente uma questão formulada, fui acompanhando de início o que interessava os internos dentro das minhas proposições sobre meio ambiente e geografia através de oficinas, e nessa condição flutuei, como diz Eduardo Viveiros de Castro, “inteiramente ao sabor da corrente de nossa interação” até formular a questão: investigar o pensamento geográfico e as articulações espaciais dos detentos com suas vidas restritas ao espaço prisional e controladas pelo uso de medicação. A proposta era constituir na interação uma questão ambiental de interesse para o estudo no grupo e trabalhar com termos da geografia para uma compreensão da questão ambiental que surgisse, nisso estariam implicados um pensamento espacial próprio. A todas as minhas proposições eles se deslocavam um pouco mais e comecei a prestar atenção nesses deslocamentos. Enfocava questões de meio ambiente e os constantes comentários sobre a prisão desestabilizavam o trabalho que então começava: “a senhora pensa que está livre? Não tem aqueles dias que o trabalho é uma prisão?” Ou quando eu pedia para que apresentassem em desenho, tipo planta baixa, do lugar deles outras respostas se faziam junto: desenhos do que chamavam de coelhos, desenhos livres a serem ofertados a um amigo, usavam o papel para fechar um cigarro ou fazer uma dobradura, ou ainda ouvia: “isso não é meu lugar, não vou desenhá-lo”. Havia as respostas que eu esperava e um conjunto de desenhos e/ou falas que não faziam coro ao meu esperado. Num primeiro momento, como fazia no presídio feminino, deixei-as de lado e à medida que o trabalho avançava elas passaram a ocupá-lo sendo detonadoras de questões fortes: o que acontece quando não se desenha o lugar solicitado; o que se faz quando não se sabe (ou não se quer) escrever; o que acontece quando não se responde a uma questão proposta conforme o solicitado.... O deslocamento de minha atenção levou a considerar a noção dos deslocamentos intensivos e a pensá-los como fugas, pois os internos, a maneira dos nômades (segundo Deleuze e Guattari), não se movem, deslocam-se sem sair do lugar, mantendo um espaço liso para si. Ou seja, viajavam sem sair do lugar. Então me interessei por estudar e deixar com que aparecessem as geografias dessas viagens. Uma questão de pesquisa se transforma quando um tipo de escuta caminha junto à pesquisa dando vitalidade a ela, ou seja, quando não tapamos os ouvidos para sons inaudíveis e incompreesíveis ao previsto em nossos roteiros. Pesquisa e vida se entrelaçam e como pesquisadores somos cartógrafos dando inteligibilidade ao que está passando a nossa volta.


3. Qual o primeiro impacto causado pelo espaço e população do Hospital?
Os primeiros dias no Hospital foram difíceis, o misto de hospital-prisão era muito mais difícil de encarar. O excesso de corredores, de portas de enfermarias (celas) e cubículos, de remédios, local escuro, não muito limpo, pátios apertados para tantos internos culmina com a expressão da situação de abandono de quem vive nessas instituições. Abandonados cumprindo medida de segurança ou fazendo tratamento. Um Hospital? Uma prisão. O primeiro encontro com o grupo foi inesperado para mim. Com poucas palavras apresentei-me aos pacientes, achando que seria fácil falar das coisas previstas para fazer com eles. Ao pronunciar as palavras iniciais de apresentação fui tomada por uma onda instantânea de não saber o que dizer, como se todas as palavras preparadas tivessem fugido de mim. Na ausência delas e na semi-gagueira provocada pela tremedeira que me tomava tive que, instantaneamente, inventar outras formas, com outras palavras e gestos que coubessem na paisagem que me olhava e esperava pelo que eu ia dizer. E tudo isso foifeito com simples movimentos para que não fossem percebidas minhas instabilidades emocionais. Afinal era começo e no começo, em certas ocasiões, não se pode falhar para não correr o risco de perder a possibilidade de ocupar um lugar. Eu me esforçava para dizer, mas tudo parecia pouco e as palavras fugiam de mim. Não é que eu não as tinha; é que elas diziam pouco. Sentia medo, mas não era medo deles e sim o medo de não saber fazer alguma coisa ali, de não dar conta do projeto que levara. Devagar fui me ajeitando com as palavras, me fazendo entender escutando os olhares que chegavam. Senti esse estranho desconforto nas palavras, como se eu não soubesse falar a língua deles e daí não pudesse fazer nada. isso mudou bastante. Dar-me conta disso no primeiro encontro foi importante. Precisava rever o que estava minimamente planejado e, sobretudo rever palavras, encontrar aquelas que pudessem fazer encontros e não desencontros como minhas primeiras. Enquanto desmanchavam-se certas seguranças iniciava um aprendizado do que é vital para fazer encontros na pesquisa.


4. O que a levou a escolher as oficinas como instrumento de trabalho?
Eu não tinha como ir por outro caminho porque as oficinas estão comigo há muito tempo e são o meio de que disponho para entender, destrinchar, montar e desmontar alguma noção e de dar conta de um problema de estudo. Então..., de um modo geral, usa-se largamente o termo oficina para designar o que difere de uma aula, sendo concebida como a estratégia prática mais atrativa, ilustrativa e participativa para explicar um tema. Mas nesse trabalho oficina é muito mais do que aquilo que possibilita explicar um tema. É uma possibilidade de encontro que, não procurando conservar os objetivos escolares, possibilita um conhecer com vontade. Oficina tem seu sentido ligado ao conjunto de estratégias educacionais livres dos “efeitos de escolarização” (imobilização do corpo e do pensamento). A gente poderia dizer que oficina é um conjunto de estratégias em educação (quaisquer estratégias, quaisquer ferramentas) que possibilita o encontro de alguém com algum tema em estudo, desde que este seja de interesse do oficineiro. Nesse sentido, ela é um dispositivo articulador de saberes e fazeres funcionando na abertura aos imprevistos que aparecem a medida que o tema em questão se movimenta. Ela não está em relação e não se interessa pelas verdades da educação, mas sim por aquilo que é importante e interessa à pesquisa e aqueles que com ela se envolvem. Nessa perspectiva a oficina não serve como medida reformadora ou substitutiva da escola, pois a compulsoriedade da educação escolar é o problema que a move. Esta concepção, fundamental para o trabalho com oficinas, é de Guilherme Corrêa e é decorrente do percurso de pesquisa que realizamos no NAT/UFSC junto com Maria Oly Pey. Para concluir, só estará acontecendo oficina quando houver a possibilidade de instauração de linhas de fuga, por isso ela não é saída para a educação escolar.


5. Gostaria que você falasse um pouco sobre os mapas intensivos. Por que fazê-los? Como funcionam? Como você trabalhou com eles?

O mapa intensivo é onde cheguei depois de um tempo com as oficinas no HCTP. No início eu apenas percebia que os mapas que estávamos confeccionando continham muito mais elementos que os mapas que eu solicitava. Pedia para que desenhassem o lugar sobre o qual se deslocavam no território do Hospital. Mas os primeiros mapas não tardaram a mostrar a distribuição dos elementos do espaço povoados dos afetos experimentados nos lugares. As grades, por exemplo, se mostravam muito mais fortes e ativas após a conversa que cada desenho-mapa gerava. Cada conversa sobre grades aumentava a densidade das linhas que no papel demarcavam portas, celas, corredores etc; cada conversa e os desenhos que se seguiam a elas faziam com que as linhas dos nossos mapas dessem visualidade às camadas que o nosso olho não enxerga. Isso está na tese. Fazer ou não os mapas intensivos não foi uma questão colocada antes, eles foram se constituindo como noção importante no próprio percurso do trabalho. Os mapas intensivos, ao contrário dos mapas que utilizamos habitualmente, não funcionam sozinhos informando a qualquer um sobre o que se referem, eles precisam estar acoplados às suas cartografias (ao movimento de traçar as linhas). Eles não fornecem dados informativos como os mapas da geografia escolar. Cada mapa intensivo vem acompanhado de seu processo, escapando sempre das representações. Um mapa intensivo não é a representação de um sintoma ou o diagnóstico de um interno, ele é um movimento do pensamento, de como cada um resolveu uma questão colocada. Posso dizer, ao final da pesquisa, que estes mapas são as geografias que uma vida, na imobilidade de uma prisão, inventa para poder se deslocar. Os mapas intensivos distribuem o visível e o invisível e nessa distribuição o que resulta não pode ser enquadrado numa identidade, por isso não servem para fins de diagnóstico e/ou de identificação. Uma vez feitos nos possibilitam expandir a noção corrente de indivíduos internados em hospitais judiciários, pois cada linha nesses mapas se move, carrega cheiros, sensações, elas “jogam no mundo alguma coisa” como, por exemplo, um alimento para o pensamento e para a sensibilidade.


6. Prisões e fugas... Que prisões são essas e como fugir?

Na prisão material em que eles se encontram, encontramos as nossas. E não são poucas. No presídio feminino me dava conta que o aprisionamento físico a que as detentas estavam submetidas, não era suficiente para aprisionar os pensamentos. Era como se elas fossem livres no pensamento e, por outro lado, os “livres” das instituições prisionais, fossem presos em pensamento. No trabalho das oficinas fora das instituições prisionais uma questão levava sempre a respostas iguais, no presídio experimentava outra coisa: uma questão levando e arrastando o pensamento, forçando a pensar sem as noções do pensamento dominante. No HCTP isso não era diferente. No momento em que conversávamos sobre noções de meio ambiente, a conversa escapava por diversos lados: — isso aqui é meio ambiente; os sentimentos fazem parte do meio ambiente?; a senhora pensa que está livre? A senhora não anda na rua (no meio ambiente) com medo de ser assaltada? Não tem medo do trânsito? A senhora trabalha? Estas perguntas obrigam a enxergar nas situações do dia a dia – a partir da noção de prisão operante nas instituições prisionais – se estas têm vocação de nos deter, de imobilizar o corpo e o pensamento. Nesse sentido qualquer instituição e/ou relação e/ou situação pode ser aprisionante e ao mesmo tempo liberadora. Digo no meu trabalho – a partir de algumas referências importantes – que ‘estamos todos presos’ fora e dentro das instituições prisionais. Fugir então, como linha de fuga que se experimenta no meio das coisas vividas. Assim como no trabalho da tese: ninguém saiu do lugar-prisão-manicômio, contudo experimentou-se um fora dali, ali mesmo, fazendo como disse um interno enquanto eu desenho as mandalas eu vou para bem longe, viro criança (desenhar para fugir), escrever para fugir... Fugir não é ignorar o que se passa, é criar uma passagem naquilo que se passa. Isso serve para todos os casos de prisão. O que importa, em muitos casos, não é sair correndo em busca de outro lugar, é antes inventar uma saída sem sair do lugar, criar algo para fugir a tudo aquilo que produz imobilidade corporal e de pensamento, que produz conformismo... O ‘como fugir’ trata de acionar nossa potência inventiva e isso é próprio de cada um. Não há receita de como se faz; como se faz (para inventar, para fugir) é o aprendizado de quem não aguenta mais alguma coisa.
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‎"Mapa para mim é orientação. Aldo fala que esta cadeia acabou com sua vida de andarilho, porque introduziu uma rotina de remédios: “Nunca mais vou poder sair 
por aí, mundo afora, sem destino, sem porto fixo. Como 
é que eu vou fazer pra pegar remédio?” Pra isso, só voltando, mas daí não se é mais andarilho. Seu mapa sem 
saída e sem entrada, todo fechado: um corredor não faz 
mais que esbarrar no outro. São partes separadas que se
tocam. Aldo passa boa parte do dia encerrado na enfermaria. Não gosta de muita conversa nem de barulho.
'Estou terminando de pagar minha pena, mas eu nunca
mais vou me ver livre disso aqui; segundo o médico, eu
tenho que tomar os comprimidos pro resto da minha
vida. Como é que eu vou fazer pra ser andarilho de novo?
Esses remédios me fazem mal, eu sinto'".
(sobre e da fala de um andarilho, na tese de doutorado de Ana Maria Preve e em sua entrevista a Revista Diálogos, do Conselho Federal de Psicologia - http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/10/Dialogos8_23outubro.pdf - p.55)

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mais informações em: http://marialuizadiellooutrascompotas.blogspot.com.br/2011/08/mapas-prisao-e-fugas-cartografias.html

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