Django, o extraordinário protagonista do filme de Quentin Tarantino, apenas consegue explodir a escravidão de suas próprias correntes, enquanto a multidão restante, sobre a qual Hollywood não projeta os holofotes, permanece desempregada em um país racista e liberal, cujas contradições ‘Django Livre’ soube tão bem criticar e reproduzir. O artigo é de Flávio Ricardo Vassoler
Flávio Ricardo Vassoler
A proximidade da dupla inusitada de cavaleiros põe a casa grande em polvorosa. Os escravos não acreditam quando veem um negro andando a cavalo ao lado de um provável senhor branco. O fazendeiro, por sua vez, toma a altivez de Django como uma afronta à sua condição de latifundiário escravocrata. É nesse preciso contexto que o mais recente filme de Quentin Tarantino, Django Livre, começa a apresentar as potencialidades e as contradições de sua crítica social.
O Dr. Schultz propõe ao fazendeiro a compra de uma de suas escravas – Brunhilde poderia ser uma delas. Mas, diante da presença de Django, o escravocrata se nega a estabelecer qualquer tipo de negociação. Vemos, então, que a assimetria fundamental da sociedade escravista impede o estabelecimento de uma relação comercial que envolva um ex-escravo – conforme o Dr. Schultz faz questão de frisar – e um fazendeiro. Ainda que Django possua o montante de dinheiro que o coloque em condições de se tornar um comprador, o desnível fundamental assentado sobre o dorso da escravidão impede que o proprietário sulista firme um contrato com um negro. A moderna instituição do contrato, vale frisar, parte do pressuposto de que há igualdade jurídica entre as partes. A prática racista do fazendeiro atesta para os devidos fins que a condição de ex-escravo não transforma Django em sujeito de direito dentro de sua propriedade. Nem mesmo a esfera do mercado, que supostamente abstrai a origem de seus agentes em função da primazia do dinheiro, consegue demover o proprietário de escravos de sua decisão final.
Mas eis que Tarantino faz intervir o Dr. Schultz: branco e doutor, honraria fundamental para uma sociedade profundamente hierarquizada e ávida por distinções. Longe de ser um ex-escravo, o ex-dentista sabe insuflar a vaidade do proprietário para jogar com sua condição dupla de fazendeiro escravocrata e homem de negócios:
− Se o senhor é de fato o homem de negócios de que ouvi falar, saiba que vou lhe dar 5.000 razões para que ouça a proposta que tenho a lhe fazer!
A priori, o negro altivo escandaliza a suscetibilidade racista do fazendeiro. No entanto, o montante irrecusável consegue embranquecer o ouro negro aos olhos contábeis do negociante. Assim, a esfera do mercado pôde apresentar um caráter democrático e potencialmente emancipatório que as relações assimétricas da sociedade escravista só faziam rechaçar. Estamos diante dos primórdios do liberalismo econômico e político que tenta estabelecer a livre iniciativa e a livre concorrência diante da sociedade tradicional calcada na naturalização das distinções étnicas. Nesse sentido, Tarantino desponta como um crítico liberal-progressista que vê a esfera do mercado como uma contrapartida democrática em relação ao racismo endêmico da sociedade norte-americana. Se considerarmos que, mesmo nos dias de hoje, ainda há sulistas encarniçados – prováveis tataranetos do fazendeiro do Tennessee – que consideram que não houve na verdade uma Guerra de Secessão a se pautar pelo fim da escravidão, mas antes uma Northern Agression, isto é, uma agressão nortista completamente injustificada, compreenderemos que Tarantino traça a genealogia da tensão entre escravismo e liberalismo para a consolidação dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos.
Na verdade, a visita do caçador de recompensas Dr. Schultz à fazenda visava capturar, vivos ou mortos, três irmãos feitores que se encontravam foragidos da justiça. Django torna-se o carrasco de seus antigos algozes e mata dois irmãos com uma dose de violência ressentida que Tarantino bem sabe explorar em suas obras. O terceiro foge a galope pelos campos de algodão. Nada que a mira certeira do Dr. Schultz não consiga enquadrar – e exterminar. Em uma tomada profundamente simbólica, o feitor despenca do cavalo e seu sangue tinge o algodão cultivado sobre a terra arada com as correntes da escravidão. Agora a dupla de caçadores já pode receber sua recompensa legítima. E assim vemos o outro lado da moeda liberal em terras norte-americanas: enquanto a Europa propugnava por um liberalismo universal que rompesse com as desigualdades aristocráticas por meio da ética do trabalho (assalariado) e da igualdade perante a lei, o liberal norte-americano encarnado na personagem europeia do Dr. Schultz amealha o pão nosso de cada dia fazendo valer a justiça como um justiceiro. Quando as ideias encontram-se fora de lugar, o lugar não deixa de dar nova coloração prática às ideias, de modo a desvelar as contradições da ideologia liberal no seio de uma sociedade profundamente autoritária.
Como Brunhilde não está na senzala do Tennessee, Django e o Dr. Schultz decidem explorar as masmorras do Velho Sul até chegarem ao estado ainda mais reacionário do Mississippi. Como costuma fazer em suas obras, Tarantino estabelece diálogos entre diferentes gêneros cinematográficos, de modo a parodiar o gênero inicial em uma nova montagem que subverta seus princípios de constituição. Assim, o gênero racista do Western, o Far West – por aqui conhecido como faroeste –, que dramatiza a marcha do holocausto indígena Velho Oeste afora pelos gatilhos ligeiros dos cowboys brancos que, de lambujem, ainda pilham e amealham boa parte do território mexicano, é transformado em uma marcha de salvação da amada Brunhilde pelo destemido Django Siegfried. Quando o Dr. Schultz soube que a esposa de Django chamava-se Brunhilde, logo quis descobrir a razão do nome germânico. Então Django lhe contou que, quando criança, Brunhilde tivera uma patroa alemã que lhe havia ensinado o idioma para ter alguém com quem conversar na língua materna. O Dr. Schultz se anima e narra a Django a lenda de Siegfried, o herói que salva a amada Brunhilde do topo de uma montanha circundada por um anel de fogo, não sem antes matar um dragão que fazia as vezes de sentinela. À contradição do liberal que faz justiça com as próprias mãos, soma-se agora a releitura da lenda alemã que reencarna Siegfried no corpo repleto de cicatrizes de um ex-escravo que buscará a amada em meio ao Mississippi em chamas.
Mas logo Django Siegfried sofreria uma nova mutação. A dupla de caçadores de recompensas descobre que Brunhilde está em Candyland, fazenda de algodão que, Django conta ao Dr. Schultz, fazia tremer todos os escravos. Conforme a aula prática de microeconomia no Tennessee já lhes ensinara, não seria nada prudente abordar o proprietário de Candyland apenas para comprar a liberdade de Brunhilde. Seria necessário um empreendimento de maior vulto. É assim que o empreendedorismo liberal do Dr. Schultz transforma Django Siegfried em um mercador de escravos, um “negro sabido” especialista em Mandingos, escravos viris com cujas lutas Monsieur Candie (Leonardo DiCaprio), o francófilo proprietário de Candyland, gasta muito dinheiro.
− Com esse disfarce, conseguiremos introduzi-lo no covil racista de Candyland, Django, pois faremos uma proposta tão ridiculamente exorbitante por um dos lutadores que Monsieur Candie não poderá recusar. Então, quando os feitores comprarem a nossa ideia, faremos uma outra proposta pela sua amada Brunhilde.
A tétrica transformação de um negro liberto em mercador de escravos – “o pior na escala da escravidão”, segundo a máxima amargurada de Django –, mais do que apresentar um mote para a constituição da narrativa, desvela uma condição estrutural para a aceitação de Django no círculo mais íntimo da casa grande de Candyland. Tarantino encontra uma das únicas veredas disponíveis para transformar o altamente improvável em socialmente possível.
Antes de apresentar o mais novo comprador liberal de Mandingos e seu mercador de escravos a Monsieur Candie, o advogado lacaio avisa ao poliglota Dr. Schultz para não falar em francês com o patrão francófilo, “já que ele pode se sentir embaraçado por não falar a língua do país que tanto aprecia”. (Machado de Assis se divertiria em encontrar as mesmas contradições que animaram a elite brasileira encarnada em Brás Cubas em um liberal norte-americano influenciado pelo verniz iluminista que relegava às sombras da senzala os corpos negros.) As tratativas se desdobram não sem tensões limítrofes por conta da presença de um negro liberto na alcova de Candyland. Mas, ao fim e ao cabo, Django e o Dr. Schultz são convidados a avaliar a qualidade do material humano que pretendem comprar.
Entra na história, então, o antípoda de Django: Stephen (Samuel L. Jackson), escravo da mais alta confiança de Monsieur Candie, cuja auréola de cabelos brancos que lhe circunda a cabeça calva mimetiza à perfeição o algodão escravista de Candyland que o submisso da casa grande não terá que colher. A antipatia que Stephen sente por Django Livre é imediata. A altivez de Django lhe devolve contra a pele toda a vida que Stephen tentou embranquecer ao se tornar uma caricatura racista dos nhonhôs.
Para comemorar o bom curso das negociações – 12.000 dólares fazem Django ser aceito à mesa de jacarandá escravo –, um jantar farto é servido. Os olhares oniscientes e onipresentes de Stephen entreveem um elo subliminar entre a mucama Brunhilde e o atrevido mercador de Mandingos. Na noite anterior, Brunhilde fora chamada ao quarto do Dr. Schultz, “pois sinto muita falta do meu idioma materno”. Siegfried e Brunhilde voltaram a se encontrar, mas ainda era preciso matar o dragão e atear o círculo de fogo ao redor de Candyland.
Eis que a irmã viúva de Monsieur Candie discorda do comentário lascivo do irmão, segundo o qual o Dr. Schultz havia ficado “preso como piche no amor da negrinha”. “Não, não, meu irmão, ela apenas parece ter olhos para Django”. O desenrolar da trama faz Stephen convocar Monsieur Candie, aos sussurros, para uma reunião de emergência na biblioteca, justamente no momento em que as tratativas sobre a possível compra de Brunhilde tinham início. Alertado por Stephen sobre a farsa da compra do Mandingo que só seria efetuada cinco dias mais tarde – “farsa que na verdade esconde o resgate da esposa, Monsieur Candie” –, o nhonhô francófilo toma as rédeas da situação e desmascara e desarma os impostores. Brunhilde tem a cabeça posta sob o golpe iminente de um martelo, “e eu vou esmagá-la neste instante se vocês não me pagarem os 12.000 dólares que eu não ia receber pelo Mandingo!”
O dinheiro é disponibilizado sem mais pelo Dr. Schultz, e então tem início a última sessão contratual do filme. Sob a mira das garruchas dos capangas de Monsieur Candie, a alforria de Brunhilde é assinada com a presteza de quem passa a ironizar ao máximo aqueles que há pouco o tentaram ludibriar. O contrato estaria selado, a transação estaria efetuada, se as teorias racistas expostas por Monsieur Candie após a descoberta da trapaça não trouxessem uma última e inesperada cláusula contratual ao Dr. Schultz.
Quando o martelo ainda pairava sobre a cabeça de Brunhilde, Monsieur Candie e seu iluminismo escravocrata esboçaram uma breve explanação sobre a pseudociência da Frenologia, segundo a qual marcas fisiológicas no crânio de negros demonstrariam a propensão à submissão. “Do contrário, como entender a disposição do falecido escravo Ben, cujo crânio repousa em minhas mãos, em fazer a barba do meu pai três vezes por semana com uma navalha afiada durante mais de cinquenta anos sem jamais esboçar sequer a menor intenção de degolá-lo?” Mas, ainda segundo Monsieur Candie, “há negros que, com o tempo, conseguirão superar a limitação fisiológica. Um a cada dez mil, negros como Django”. Se pensarmos que, desde 2008, os Estados Unidos vêm sendo governados pelo primeiro presidente negro de sua história, a barbaridade racista de Monsieur Candie ganha uma dupla conotação: por um lado, a pseudoteoria do nhonhô vê-se confirmada não em sua perspectiva fisiológica, mas na percepção crítica de boa parte dos eleitores desempregados dos Estados Unidos, em sua maioria negros e latinos que herdaram o espólio de Candyland, que acabaram por levar Barack Obama à Casa Branca; por outro, o filme de Tarantino ressoa o darwinismo social subjacente às falácias de Monsieur Candie, pois Django Obama, um entre dez mil, merece protagonizar um filme de Hollywood, ao passo que os 9.999 escravos restantes reiteram as pseudoestatísticas de Monsieur Candie como os figurantes sem voz.
Mas voltemos à última e inesperada cláusula contratual imposta por Monsieur Candie ao Dr. Schultz:
− Saiba, doutor, que nenhum contrato é selado por aqui sem um bom e velho aperto de mãos. Sendo assim, seja um bom perdedor e venha apertar a mão daquele que o superou.
A vaidade do Dr. Schultz não parece afetada pelas gozações de Monsieur Candie. Na verdade, o alemão começa a sentir vertigens ao se lembrar de que apertará a mão de um crápula que há poucas horas havia arremessado seu ex-lutador aos cães apenas porque o Mandingo não queria perfazer o total de cinco lutas pelas quais o nhonhô havia pagado; de que apertará a mão daquele que há pouco ia estraçalhar a cabeça de Brunhilde se 12.000 dólares não fossem prontamente depositados sobre sua mesa de jacarandá negro.
Mais uma vez, a cordialidade e o personalismo entravam as relações impessoais de mercado. Agora, o cumprimento cotidiano que demonstra sinal de respeito ao interlocutor é transfigurado em sinal de humilhação. Ao perceber que a vida de Brunhilde dependia daquele último suplício, o Dr. Schultz se aproxima de Monsieur Candie e, imediatamente antes de estender-lhe a mão, saca a micropistola que traz junto ao punho e dispara um tiro certeiro que, antes de perfurar o coração de Monsieur Candie, transpassa a flor de algodão que o nhonhô leva na lapela, síntese efetiva do navio negreiro atracado em Candyland.
A sequência apresenta um longo tiroteio que transforma Django no gatilho mais rápido do Velho Sul. Um a um, os cadáveres dos capangas de Candyland vão sendo empilhados, até que Django Obama, um entre dez mil, depara-se com o servil Stephen. O velho escravo coxo recebe dois tiros, um em cada joelho, para não poder fugir enquanto Django queima o pavio da dinamite que levará a casa grande pelos ares. Antes de correr para longe da explosão, Django sentencia a Stephen:
− Você é o que de pior a escravidão produziu! Por isso, não deve jamais sair de Candyland...
A dinamite Django Siegfried reitera Mississippi em chamas. Candyland, Monsieur Candie, Stephen e a senzala foram pulverizados pelo anel de fogo. Mas a pseudoteoria do iluminista escravocrata ressoa pelas metamorfoses liberais subjacentes à crítica social de Quentin Tarantino, já que o extraordinário protagonista Django Obama, um entre dez mil, apenas explode a escravidão de suas próprias correntes, enquanto a multidão restante sobre a qual Hollywood não projeta os holofotes permanece desempregada em um país racista e liberal, cujas contradições Django Livre soube tão bem criticar e reproduzir.
*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.
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