Em cartaz nos cinemas, o musical ‘Os Miseráveis’ sugere aos espectadores que os miseráveis de verdade são o que menos importam. Autor do romance original, Victor Hugo, grande poeta e romancista, teve o mérito de sair de sua torre de marfim e se comover com a miséria europeia do nascente capitalismo industrial. Mas sua perspectiva não se sustenta mais. O artigo é de Enio Squeff
Enio Squeff*
Com Victor Hugo, escritor francês (1802-1885), dá-se o mesmo – mas tudo com um toque de sentimentalismo de que "Os Miseráveis", musical da Broadway transformado em filme por Tom Hooper a partir da partitura composta por Claude-Michel Schönberg, é o exemplo mais recente a ser projetado nas telas dos cinemas brasileiros.
O romance de Victor Hugo se presta à feição aos bons negócios musicais da Broadway. Jean Valjean, personagem da obra, é condenado às galés, em Paris, por ter roubado um pão, que mataria a fome da família. Argumento mais comovente, impossível. Ocorre que Jean Valjean, além de miserável, e fortíssimo, no fundo, é um santo. Na contramão de seu perseguidor implacável, o inspetor Javer, Jean Valjean acumula atos de generosidade incalculáveis, no que é secundado por um bom número de personagens que o rodeiam - muitos deles os tais miseráveis do título.
Ao fato se agrega um revolucionarismo latente na França da época, recém saída da Queda da Bastilha: pronto, está feito o roteiro que, desde 1985, vem rendendo rios de dinheiros a seus produtores e, especialmente, a seu compositor, o francês Claude-Michel Schönberg. Ao que parece, a crítica não gostou – mas o público vem lotando não só o espetáculo da Broadway, numa encenação que não deve nada a outras montagens algures, mas principalmente as salas de cinema. Difícil não dizer que o sentimentalismo escancarado – que culmina, no filme, com a cena do personagem a ser levado para os céus, não seja uma fórmula válida para granjear bons dividendos.
Em seu romance, Victor Hugo parece mais convincente, como se pode imaginar. Além do valor literário, "Os Miseráveis" tem um toque épico, que se sobrepõe ao enredo folhetinesco. No filme, pelo contrário, tudo parece se encaixar na superprodução teatral. Aliás, mesmo nas cenas de rua, tudo conduz aos cenários da peça.
Com isso, resta aos espectadores a câmera que se movimenta com a proficiência da indústria americana, mas sobretudo a música de Claude-Michel Schönberg. Que, apesar de sobrenome do criador do dodecafonismo (Arnold Schönberg), parece bem longe da originalidade, mas principalmente da genialidade de seu homônimo austríaco (ele é filho de judeus húngaros).
Talvez o grande problema seja mesmo o lado insuportavelmente edulcorado da adaptação do livro de Victor Hugo. Na cena do levante frustrado dos estudantes – o momento para ser épico, ainda que fora do lugar, que aparece como fio condutor do drama individual de Jean Valjean, afora a clara montagem do cenário – a cena de rua fica restrita a uma construção teatral –, a música, a todo o momento, roça a "Internacional Comunista".
Parece uma espécie de reprise dos levantes heróicos de alguns poucos estudantes – nada diferente, enfim, da realidade que nos é tão próxima, mas que aqui e algures, nunca se fez como qualquer namorico com as bobagens sentimentalóides tão ao gosto da indústria cultural, particularmente a americana.
É um pouco frustrante, na verdade, que se compare "Os Miseráveis" na sua versão teatral e cinematográfica com outros musicais americanos, do qual o que mais vem à mente é "West Side Story", com música de Leonard Bernstein e coreografia de Jerome Robbins. Está certo: Bernstein, regente maiúsculo e compositor mais que competente, foi um dos maiores músicos norte-americanos de todos os tempos. E Jerome Robbins foi um coreógrafo que prescindia das luzes de Hollywood para ser grande.
Não é o caso nem do compositor de "Os Miseráveis, muito menos do seu diretor. A comparação, portanto, já não se sustenta na sua proposição. Mas, como filme, "Os Miseráveis" parece soar estranho aos brasileiros, para os quais o título sugere uma realidade que não tem nada de reminiscente; e que se apresenta como um desafio a ser superado. Sob este aspecto, o filme empresta um charme à questão, como se ela só se compusesse num cenário glorioso de um passado superado - até mesmo na França. O que não é verdade nem como ficção.
Com tudo isso, ao fim do filme "Os Miseráveis", o que fica para os espectadores é que os miseráveis de verdade são o que menos importam. Enquanto Jean Valjean vai para o paraíso, com um coro angelical no fundo e que celebra a sua vida de bondade infinda, os homens, mulheres e crianças que se projetam na história vão continuar na sua condição nefanda, independentemente, de sua maldade ou generosidade igualmente extremas.
Para um país que ouve diariamente o bordão do governo de que "um país rico é um país sem miséria", os miseráveis são mais um incômodo do que um motivo para meditação. Talvez o sucesso da fita se explique por aí: é bem melhor inventar miseráveis canoros, bonitos e generosos do que olhá-los à saída do cinema, como se não fosse tudo feio, maldoso e ignobilmente sujo.
Victor Hugo foi um grande poeta e romancista. Como seu colega e contemporâneo inglês, Charles Dickens, teve o mérito de sair de sua torre de marfim e de se comover com a miséria reinante numa Europa tomada pelo capitalismo selvagem dos primeiros tempos da industrialização. Sua perspectiva, porém, não se sustenta passado mais de um século de um capitalismo que parece querer voltar a suas origens sob o epíteto de "neo".
A não ser que se aceitem mentiras ou más interpretações como amortecimento para a "mauvaise consciense" de que nós, brasileiros, deveríamos estar mais que vacinados a essas alturas da nossa história. Mas há a indústria do espetáculo de que ainda não aprendemos o antídoto. A mediocridade do que se ouve nos rádios e TV é ilustração disso. Mas é também a explicação para que tanta gente se movimente para ver o filme. E para que se despendam tantas reflexões tão inúteis quanto óbvias.
*Enio Squeff é artista plástico e jornalista.
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