Zygmunt
Bauman
COMUNIDADE
A busca
por segurança no mundo atual
Tradução: Plínio Dentzien
Jorge Zahar Editor
Rio de Janeiro
Título original:
Community (Seeking
Safety in an Insecure World)
Tradução autorizada da
primeira edição inglesa
publicada em 2001 por Polity Press, em
associação com
Blackwell
Publishing Ltd., de Oxford, Inglaterra
Copyright
© 2001, Zigmunt Bauman
Copyright © 2003 da
edição brasileira:
Jorge Zahar Editor Ltda.
rua México 31 sobreloja
20031-144 Rio de Janeiro, RJ
tel.: (21) 2240-0226 / fax:
(21) 2262-5123
e-mail: jze@zahar.com.br
site: www.zahar.com.br
Todos os direitos
reservados.
A reprodução não-autorizada desta publicação,
no todo ou
em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)
Capa:
Sérgio Campante
CIP-Brasil.
Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
Bauman, Zygmunt, 1925-
B341c Comunidade: a
busca por segurança no mundo atual / Zygmunt Bauman; tradução Plínio Dentzien. — Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003
Tradução de: Community: seeking safety in an insecure
world
ISBN 85-7110-699-1
1. Comunidade. 2.
Individualismo. 3. Segurança pública. 4. Civilização moderna — Século XX. 5. Sociologia urbana. I. Título.
CDD
307.76
03-0065 CDU 316.334.56
03-0065 CDU 316.334.56
• SUMÁRIO •
Uma introdução, ou bem-vindos
à esquiva comunidade • 7
1. A agonia de Tântalo • 13
2. A reinserção dos desenraizados • 25
3. Tempos de desengajamento,
ou a grande transformação, segundo tempo • 40
4. A secessão dos bem-sucedidos • 49
5. Duas fontes do comunitarismo • 56
6. Direito ao reconhecimento, direito à redistribuição • 69
7. Da igualdade ao multiculturalismo • 82
8. O nível mais baixo: o gueto • 100
9. Muitas culturas, uma humanidade? • 112
Posfácio • 129
Notas • 135
Uma
introdução
ou
bem-vindos à esquiva comunidade
As palavras têm significado: algumas delas, porém, guardam
sensações. A palavra “comunidade” é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que
quer que “comunidade” signifique, é bom “ter uma comunidade,” “estar numa
comunidade”. Se alguém se afasta do caminho certo, freqüentemente explicamos
sua conduta reprovável dizendo que “anda em má companhia”. Se alguém se
sente miserável, sofre muito e se vê persistentemente privado de uma vida
digna, logo acusamos a sociedade — o modo como está organizada e como
funciona. As companhias ou a sociedade podem ser más; mas não a comunidade. Comunidade,
sentimos, é sempre uma coisa boa.
Os significados e sensações que as palavras carregam não
são, é claro, independentes. “Comunidade” produz uma sensação boa por causa dos
significados que a palavra “comunidade” carrega — todos eles prometendo
prazeres e, no mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de
experimentar mas que não alcança mais.
Para começar, a comunidade é um lugar “cálido”, um lugar
confortável e aconchegante. É como um teto sob o qual nos abrigamos da chuva
pesada, como uma lareira diante da qual esquentamos as mãos num dia gelado. Lá
fora, na rua, toda sorte de perigo está à espreita; temos que estar alertas quando saímos, prestar atenção
com quem falamos e a quem
nos fala, estar de prontidão a cada minuto. Aqui, na comunidade, podemos
relaxar — estamos seguros, não há perigos ocultos em cantos escuros
7
8
(com
certeza, dificilmente um “canto” aqui é “escuro”). Numa comunidade, todos nos
entendemos bem, podemos confiar no que ouvimos, estamos seguros a maior parte
do tempo e raramente ficamos desconcertados ou somos surpreendidos. Nunca somos
estranhos entre nós. Podemos discutir — mas são discussões amigáveis, pois
todos estamos tentando tornar nosso estar juntos ainda melhor e mais agradável
do que até aqui e, embora levados pela mesma vontade de melhorar nossa vida em
comum, podemos discordar sobre como fazê-lo. Mas nunca desejamos má sorte uns
aos outros, e podemos estar certos de que os outros à nossa volta nos querem bem.
E ainda: numa comunidade podemos contar com a boa vontade
dos outros. Se tropeçarmos e cairmos, os outros nos ajudarão a ficar de pé
outra vez. Ninguém vai rir de nós, nem ridicularizar nossa falta de jeito e
alegrar-se com nossa desgraça. Se dermos um mau passo, ainda podemos nos
confessar, dar explicações e pedir desculpas, arrepender-nos se necessário; as
pessoas ouvirão com simpatia e nos perdoarão, de modo que ninguém fique
ressentido para sempre. E sempre haverá alguém para nos dar a mão em momentos
de tristeza. Quando passarmos por momentos difíceis e por necessidades sérias,
as pessoas não pedirão fiança antes de decidirem se nos ajudarão; não
perguntarão como e quando retribuiremos, mas sim do que precisamos. E raramente
dirão que não é seu dever ajudar-nos nem recusarão seu apoio só porque não há
um contrato entre nós que as obrigue a fazê-lo, ou porque tenhamos deixado de
1er as entrelinhas. Nosso dever, pura e simplesmente, é ajudar uns aos outros
e, assim, temos pura e simplesmente o direito de esperar obter a ajuda de que
precisamos.
E assim é fácil ver por que a palavra “comunidade” sugere
coisa boa. Quem não gostaria de viver entre pessoas amigáveis e bem intencionadas
nas quais pudesse confiar e de cujas palavras e atos pudesse se apoiar? Para
nós em particular — que vivemos em tempos implacáveis, tempos de competição e
de desprezo pelos mais fracos, quando as pessoas em volta escondem o jogo e
poucos se interessam em ajudar-nos, quando em resposta a nossos pedidos de
ajuda ouvimos advertências para que fiquemos
9
por nossa
própria conta, quando só os bancos ansiosos por hipotecar nossas posses sorriem
desejando dizer “sim”, e mesmo eles apenas nos comerciais e nunca em seus
escritórios — a palavra “comunidade” soa como música aos nossos ouvidos. O que
essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para
viver seguros e confiantes.
Em suma, “comunidade” é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente,
a nosso alcance — mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir. Raymond Williams, atento analista de nossa
condição comum, observou de modo cáustico que o que é notável sobre a
comunidade é que “ela sempre foi”. Podemos acrescentar: que ela sempre esteve
no futuro. “Comunidade” é nos dias de hoje outro nome do paraíso perdido — mas
a que esperamos ansiosamente retornar, e assim buscamos febrilmente os caminhos
que podem levar-nos até lá.
Paraíso perdido ou paraíso ainda esperado; de uma maneira
ou de outra, não se trata de um paraíso que habitemos e nem de um paraíso que
conheçamos a partir de nossa própria experiência. Talvez seja um paraíso
precisamente por essa razão. A imaginação, diferente das duras realidades da
vida, é produto da liberdade desenfreada. Podemos “soltar” a imaginação, e o
fazemos com total impunidade — porque não teremos grandes chances de submeter o
que imaginamos ao teste da realidade.
Não é só a “dura realidade”, a realidade declaradamente
“não comunitária” ou até mesmo hostil à comunidade, que difere daquela comunidade imaginária que produz
uma “sensação de aconchego”. Essa diferença apenas estimula a nossa imaginação
a andar mais rápido e torna a comunidade imaginada ainda mais atraente. A
comunidade imaginada (postulada, sonhada) se alimenta dessa diferença e nela
viceja. O que cria um problema para essa clara imagem é outra diferença: a
diferença que existe entre a comunidade de nossos sonhos e a “comunidade realmente existente”: uma
coletividade que pretende ser a comunidade encarnada, o sonho realizado, e (em
nome de todo o bem que se supõe que essa comunidade oferece) exige lealdade
incondicional e trata tudo o que ficar aquém de tal lealdade como um ato de
imperdoável traição. A “comunidade realmente existente”, se nos achas-
10
semos a seu alcance, exigiria rigorosa obediência em troca
dos serviços que presta ou promete prestar. Você quer segurança? Abra mão de
sua liberdade, ou pelo menos de boa parte dela. Você quer poder confiar? Não
confie em ninguém de fora da comunidade. Você quer entendimento mútuo? Não fale
com estranhos, nem fale línguas estrangeiras. Você quer essa sensação
aconchegante de lar? Ponha alarmes em sua porta e cameras de tevê no acesso.
Você quer proteção? Não acolha estranhos e abstenha-se de agir de modo
esquisito ou de ter pensamentos bizarros. Você quer aconchego? Não chegue perto
da janela, e jamais a abra. O nó da questão é que se você seguir esse conselho
e mantiver as janelas fechadas, o ambiente logo ficará abafado e, no limite,
opressivo.
Há um preço a pagar pelo privilégio de
“viver em comunidade” — e ele é pequeno e até invisível só enquanto a
comunidade for um sonho. O preço é pago em forma de liberdade, também chamada
“autonomia”, “direito à auto-afirmação”
e “à identidade”.
Qualquer que seja a escolha, ganha-se alguma coisa e perde-se outra. Não ter
comunidade significa não ter proteção; alcançar a comunidade, se isto ocorrer,
poderá em breve significar perder a liberdade. A segurança e a liberdade são dois valores igualmente
preciosos e desejados que podem ser bem ou mal equilibrados, mas nunca
inteiramente ajustados e sem atrito. De qualquer modo, nenhuma receita foi
inventada até hoje para esse ajuste. O problema é que a receita a partir da
qual as “comunidades realmente existentes” foram feitas torna a contradição
entre segurança e liberdade mais visível e mais difícil de consertar.
Dados os atributos desagradáveis com que a
liberdade sem segurança é sobrecarregada, tanto quanto a segurança sem
liberdade, parece que nunca deixaremos de sonhar com a comunidade, mas também
jamais encontraremos em qualquer comunidade autoproclamada os prazeres que
imaginamos em nossos sonhos. A tensão entre a segurança e a liberdade e,
portanto, entre a comunidade e a individualidade, provavelmente nunca será resolvida e assim
continuará por muito tempo; não achar a solução correta e ficar frustrado com a
solução adotada não nos levará a
11
abandonar a busca — mas a continuar tentando. Sendo
humanos, não podemos realizar a esperança, nem deixar de tê-la.
Pouco resta fazer para fugir ao dilema — podemos negá-lo
por nossa conta e risco. Uma boa coisa a fazer, contudo, é avaliar as chances e
perigos das soluções já propostas e tentadas. Armados de tal conhecimento,
estaremos aptos ao menos a evitar a repetição de erros do passado; ou mesmo
tentar evitar ir muito longe por caminhos que podem ser percebidos por
antecipação como sem saída. Uma avaliação desse tipo — provisória e incompleta
— é o que tentei neste livro. (Notar o uso abusivo do verbo poder...)
Não seremos humanos sem segurança ou sem liberdade; mas não
podemos ter as duas ao mesmo tempo e ambas na quantidade que quisermos. Isso
não é razão para que deixemos de tentar (não deixaríamos nem se fosse uma boa
razão). Mas serve para lembrar que nunca devemos acreditar que qualquer das
sucessivas soluções transitórias não mereceria mais ponderação nem se
beneficiaria de alguma outra correção. O melhor pode ser inimigo do bom, mas
certamente o “perfeito” é um inimigo mortal dos dois.
Março
de 2000
• 1 •
A agonia de Tântalo
Segundo a mitologia grega, Tântalo, filho de Zeus
e de Plutó, tinha
excelentes relações com os deuses que freqüentemente o convidavam a beber e
comer em companhia deles nas festas do Olimpo. Sua vida transcorria, pelos
padrões normais, sem problemas, alegre e feliz — até que ele cometeu um crime
que os deuses não quiseram (não poderiam?) perdoar. Quanto à natureza do crime, os vários narradores da
história discordam. Alguns dizem que ele abusou da confiança divina e revelou
aos outros homens mistérios que deviam permanecer ocultos dos mortais. Outros
dizem que ele foi arrogante a ponto de se acreditar mais sábio do que os
deuses, tendo decidido testar os divinos poderes de observação. Outros
narradores ainda acusam Tântalo de roubo de néctar e ambrósia que nunca
deveriam ser provados pelos mortais. Os atos imputados a Tântalo são, como
vemos, diferentes, mas a razão por que foram considerados criminosos é a mesma
nos três casos: Tântalo foi culpado de adquirir e compartilhar um conhecimento
a que nem ele nem os mortais como ele deveriam ter acesso. Ou, melhor ainda:
Tântalo não se contentou em partilhar a dádiva divina — por presunção e
arrogância desejou fazer por si mesmo o que só poderia ser desfrutado como
dádiva.
A punição foi imediata; foi também tão
cruel que só poderia ter sido inventada por deuses ofendidos e vingativos. Dada
a natureza do crime de Tântalo, foi uma lição. Tântalo foi mergulhado até o
pescoço num regato — mas quando abaixava a cabeça
13
14
tentando saciar a sede, a água desaparecia. Sobre sua
cabeça estava pendurado um belo ramo de frutas — mas quando ele estendia a mão
tentando saciar a fome, um repentino golpe de vento carregava o alimento para
longe. (Daí que, quando as coisas desaparecem no momento em que nos parecia que
as tínhamos, afinal, ao alcance, nos lamentamos por termos sido “tantalizados”
por sua “tantalizante” proximidade.)
Os mitos não são histórias divertidas. Seu
objetivo é ensinar por meio da reiteração sem fim de sua mensagem: um tipo de
mensagem que os ouvintes só podem esquecer ou negligenciar se quiserem. A
mensagem do mito de Tântalo é de que você só pode continuar feliz, ou pelo
menos continuar numa felicidade abençoada e despreocupada, enquanto mantiver
sua inocência: enquanto desfrutar de sua alegria ignorando a natureza das
coisas que o fazem feliz sem tentar mexer com elas, e muito menos “tomá-las em
suas próprias mãos”. E que se você se atrever a tomar os problemas em suas
próprias mãos você nunca poderá reviver a dádiva que só pôde aproveitar no
estado de inocência. Aquele objetivo escapará para sempre ao seu alcance.
Outros povos além dos gregos também devem ter chegado a
acreditar na eterna verdade dessa mensagem a partir de sua própria experiência;
os gregos não foram os únicos a incluí-la entre as histórias que contavam para
ensinar e que ouviam para aprender. Uma mensagem muito semelhante deriva da
história de Adão e Eva, cujo castigo por terem comido o fruto da Árvore do
Conhecimento foi a expulsão do paraíso; e o paraíso era um paraíso porque lá
eles podiam viver sem problemas: eles não tinham que fazer as escolhas das
quais dependia sua felicidade (ou infelicidade). O Deus judeu podia em certas
ocasiões ser tão cruel e impiedoso em sua ira quanto os moradores do Olimpo, e
o castigo que destinou à ofensa
de Adão e Eva não foi menos doloroso do que o imposto a Tântalo — era apenas,
por assim dizer, mais refinado e exigia maior capacidade de interpretação:
“Precisarás trabalhar para comer... Ganharás o pão com o suor de teu rosto.” Ao
anunciar esse veredicto, Deus enfurecido postou “a leste do Jardim do Éden”, “o
querubim com a espada flamejante para proteger o acesso à árvore da vida” — para advertir Adão e
15
Eva e sua descendência de que nenhuma quantidade de trabalho ou de suor seria suficiente para trazer de volta
a serena alegria despreocupada da ignorância paradisíaca; aquela felicidade
primitiva irremediavelmente perdida uma vez perdida a inocência.
A memória dessa felicidade viria a assombrar os
descendentes de Adão e Eva, mantendo-os à espera, contra toda a esperança, da descoberta do caminho de
volta. Isso, porém, jamais acontecerá; sobre esse ponto não há desacordo entre
Atenas e Jerusalém. A perda da inocência é um ponto sem volta. Só se pode ser
verdadeiramente feliz enquanto não se sabe quão feliz se é. Tendo aprendido o
significado da felicidade com sua perda, os filhos de Adão e Eva teriam que
aprender pela via mais difícil a sabedoria que foi oferecida a Tântalo numa
bandeja. O propósito sempre lhes escaparia, por mais próximo (tantalizantemente próximo)
que lhes pudesse parecer.
No livro que (intencionalmente ou não) convidava a
“comunidade” (Gemeinschaft) a
voltar do exílio a que tinha sido condenada durante a cruzada moderna contra les pouvoirs
intermédiaires (acusados
de paroquialismo, estreiteza de horizontes e fomento à superstição) Ferdinand Tönnies1 sugere que o que
distinguia a comunidade antiga da (moderna) sociedade em ascensão (Gesellschaft) em cujo
nome a cruzada fora feita, era um entendimento compartilhado por todos os
seus membros. Não um consenso. Vejam bem: o consenso não é mais do que
um acordo alcançado por
pessoas com opiniões essencialmente diferentes, um produto de negociações e
compromissos difíceis, de muita disputa e contrariedade, e murros ocasionais. O
entendimento ao estilo comunitário, casual (zuhanden, como diria Martin Heidegger), não precisa ser procurado, e muito menos construído:
esse entendimento já “está lá”, completo e pronto para ser usado — de tal
modo que nos entendemos “sem palavras” e nunca precisamos perguntar, com
apreensão, “o que você quer dizer?”. O tipo de entendimento em que a comunidade
se baseia precede todos os acordos e desacordos. Tal entendimento não é
uma linha de chegada, mas o ponto de partida de toda união. É um
“sentimento recíproco e vinculante” — “a vontade real e própria daqueles que se
unem”; e é graças a esse
entendimento, e somente a esse enten-
16
dimento, que na comunidade as pessoas “permanecem
essencialmente unidas a despeito de todos os fatores que as separam”.
Muitos anos depois que Tönnies identificou
o “entendimento comum” que “fluía naturalmente” como a característica que
separa a comunidade de um mundo de amargos desentendimentos, violenta
competição, trocas e conchavos, Góran Rosenberg, o sagaz estudioso sueco,
cunhou o conceito do “círculo aconchegante” (num ensaio publicado em 2000 em La Nouvelle Lettre Internationale) para captar o mesmo tipo de
imersão ingênua na união humana — outrora, quem sabe, uma condição humana
comum, mas hoje somente possível, e cada vez mais, em sonhos. As lealdades
humanas, oferecidas e normalmente esperadas dentro do “círculo aconchegante”,
“não derivam de uma lógica social externa ou de qualquer análise econômica de
custo-benefício”. Isso é precisamente o que torna esse círculo “aconchegante”:
não há espaço para o cálculo frio que qualquer sociedade em volta poderia
apresentar, de modo impessoal e sem humor, como “impondo-se à razão”. E essa é a razão por que as
pessoas afetadas por essa frialdade sonham com esse círculo mágico e gostariam
de adaptar aquele mundo frio a seu tamanho e medida. Dentro do “círculo
aconchegante” elas não precisam provar nada e podem, o que quer que tenham
feito, esperar simpatia e ajuda.
Por ser tão evidente e “natural”, o entendimento
compartilhado que cria a comunidade (ou o “círculo aconchegante”) passa
despercebido (raras vezes notamos o ar que respiramos, a menos que seja o ar
viciado e mal cheiroso de uma peça abafada); ele é, como dizia Tönnies,
“tácito” (ou “intuitivo”, nos termos de Rosenberg). É claro que um entendimento
elaborado e de alguma forma alcançado também pode ser tácito, ou
tornar-se uma espécie de intuição construída e internalizada. Uma negociação
prolongada pode resultar em um acordo que, se obedecido diariamente, pode, por
sua vez, tornar-se um hábito que não precisa mais ser repensado, e muito menos
monitorado ou controlado. Mas, diferentemente desses sedimentos de tentativas e
tribulações passadas, o entendimento que é característico de uma comunidade é tácito
“por sua própria natureza”:
17
Isso
é assim porque o conteúdo do entendimento mútuo não pode ser expresso,
determinado e compreendido... O acordo real não pode ser artificialmente
produzido.
Como “comunidade” significa entendimento
compartilhado do tipo “natural” e “tácito”, ela não pode sobreviver ao momento
em que o entendimento se torna autoconsciente, estridente e vociférante; quando, para usar mais uma vez a
terminologia de Heidegger, o entendimento passa do estado de zuhanden para o de vorhanden
e se torna objeto de contemplação e exame. A comunidade só pode estar
dormente — ou morta. Quando começa a versar sobre seu valor singular, a
derramar-se lírica sobre sua beleza original e a afixar nos muros próximos loquazes
manifestos conclamando seus membros a apreciarem suas virtudes e os outros a
admirá-los ou calar-se — podemos estar certos de que a comunidade não existe
mais (ou ainda, se for o caso). A comunidade “falada” (mais exatamente: a
comunidade que fala de si mesma) é uma contradição em termos.
Não que a comunidade real, aquela que não foi “produzida
artificialmente” ou meramente imaginada, tivesse muita chance de cair nessa
contradição. Robert Redfield2 concordaria com Tönnies que numa
verdadeira comunidade não há motivação para a reflexão, a crítica ou a
experimentação; mas apressar-se-ia a explicar que isso acontece porque a
comunidade é fiel à sua natureza (ou
a seu modelo ideal) apenas na medida em que ela é distinta de outros
agrupamentos humanos (é visível “onde a comunidade começa e onde ela termina”),
pequena (a ponto de estar à vista de todos seus membros) e auto-suficiente (de modo
que, como insiste Redfield, “oferece todas as atividades e atende a todas as
necessidades das pessoas que fazem parte dela. A pequena comunidade é um arranjo
do berço ao túmulo”).
A escolha dos atributos feita por Redfield não é aleatória.
Distinção” significa: a divisão entre “nós” e “eles” é tanto exaustiva quanto
disjuntiva, não há casos “intermediários” a excluir, é claro como a água quem é
“um de nós” e quem não é, não há problema nem motivo para confusão — nenhuma
ambigüidade cognitiva e, portanto, nenhuma ambivalência comportamental.
18
“Pequenez” significa: a comunicação entre os de dentro é
densa e alcança tudo, e assim coloca os sinais que esporadicamente chegam de
fora em desvantagem, em razão de sua relativa raridade, superficialidade e
transitoriedade. E “auto-suficiência” significa: o isolamento em relação a
“eles” é quase completo, as ocasiões para rompê-lo são poucas e espaçadas. As
três características se unem na efetiva proteção dos membros da comunidade em
relação às ameaças a seus modos habituais. Enquanto cada um do trio estiver
intacto, é muito pouco provável que a motivação para a reflexão, a crítica e a experimentação possam surgir.
Enquanto... De fato, a remota unidade da “pequena
comunidade” de Redfield depende do bloqueio dos canais de comunicação com o
resto do mundo habitado. A unidade da comunidade, como diria Redfield, ou a
“naturalidade” do entendimento comunitário, como preferiria Tönnies, são feitas
do mesmo estofo: de homogeneidade, de mesmidade.
Essa mesmidade encontra dificuldades no momento em que suas
condições começam a desabar: quando o equilíbrio entre a comunicação “de
dentro” e “de fora”, antes inclinado para o interior, começa a mudar, embaçando
a distinção entre “nós” e “eles”. A mesmidade se evapora quando a comunicação
entre os de dentro e o mundo exterior se intensifica e passa a ter mais peso
que as trocas mútuas internas.
Exatamente essa fissura nos muros de proteção da comunidade
se torna trivial com o aparecimento dos meios mecânicos de transporte;
portadores de informação alternativa (ou pessoas cuja estranheza mesma é
informação diferente e conflitante com o conhecimento internamente disponível)
já podem em princípio viajar tão rápido, ou mais, que as mensagens orais
originárias do círculo da mobilidade humana “natural”. A distância, outrora a
mais formidável das defesas da comunidade, perdeu muito de sua significação. O
golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido,
porém, pelo advento da informática: a emancipação do fluxo de informação
proveniente do transporte dos corpos. A partir do momento em que a informação
passa a viajar independente de seus portadores, e numa velocidade muito além da
capacidade dos meios mais avançados de
19
transporte (como no tipo de sociedade que todos habitamos nos dias de hoje), a fronteira entre o
“dentro” e o “fora” não pode mais ser estabelecida e muito menos mantida.
De agora em diante, toda homogeneidade
deve ser “pinçada” de uma massa confusa e variada por via de seleção, separação
e exclusão; toda unidade precisa ser construída; o acordo
“artificialmente produzido” é a única forma disponível de unidade. O
entendimento comum só pode ser uma realização, alcançada (se for) ao fim
de longa e tortuosa argumentação e persuasão, e em competição com um número
indefinido de outras potencialidades — todas atraindo a atenção e cada uma
delas prometendo uma variedade melhor (mais correta, mais eficaz ou mais
agradável) de tarefas e soluções para os problemas da vida. E, se alcançado, o
acordo comum nunca estará livre da memória dessas lutas passadas e das escolhas
feitas no curso delas. Por mais firme que seja estabelecido, portanto, nenhum
acordo parecerá tão “natural” e “evidente” como nas comunidades de Tönnies e
Redfield, por mais que seus porta-vozes ou promotores façam por retratá-lo como
tal. Nunca será imune à reflexão,
contestação e discussão; quando muito atingirá o status de um “contrato preliminar”, um acordo que
precisa ser periodicamente renovado, sem que qualquer renovação garanta a
renovação seguinte.
A comunidade de entendimento comum, mesmo se alcançada,
permanecerá portanto frágil e vulnerável, precisando para sempre de vigilância,
reforço e defesa. Pessoas que sonham com a comunidade na esperança de encontrar
a segurança de longo prazo que tão dolorosa falta lhes faz em suas atividades
cotidianas, e de libertar-se da enfadonha tarefa de escolhas sempre novas e
arriscadas, serão desapontadas. A paz de espírito, se a alcançarem, será do
tipo “até segunda ordem”. Mais do que com uma ilha de “entendimento natural”,
ou um “círculo aconchegante” onde se pode depor as armas e parar de lutar, a
comunidade realmente existente se parece com uma fortaleza sitiada,
continuamente bombardeada por inimigos (muitas vezes invisíveis) de fora e
freqüentemente assolada pela discórdia interna; trincheiras e baluartes são os
lugares onde os que procuram o aconchego, a simplicidade e a tranqüilidade
comunitárias terão que passar a maior parte de seu tempo.
20
Esta parece uma observação que chega às
raias da trivialidade: uma vez “desfeita”, uma comunidade, ao contrário da
fênix com sua capacidade mágica de renascer das cinzas, não pode ser
recomposta. E se isso acontecer, não será da forma preservada na memória (mais
exatamente, invocada por uma imaginação cotidianamente assolada pela
insegurança perpétua) — única forma que a faz parecer tão desejável como uma
solução melhor do que qualquer outra para todos os problemas terrenos. Isso
parece óbvio, mas a lógica e os sonhos humanos dificilmente andam juntos. E há
boas razões, como veremos adiante, para que seus caminhos não sejam
convergentes de forma duradoura.
Como observou recentemente Eric Hobsbawm, “a palavra ‘comunidade’ nunca foi
utilizada de modo mais indiscriminado e vazio do que nas décadas em que as
comunidades no sentido sociológico passaram a ser difíceis de encontrar na vida
real”;3 e comentou que “homens e mulheres procuram por grupos a que
poderiam pertencer, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo se move e
se desloca, em que nada é certo”.4 Jock Young faz uma glosa sucinta
e pungente da observação e comentário de Hobsbawm: “precisamente quando a
comunidade entra em colapso, a identidade é inventada”.5
“Identidade”, a palavra do dia e o jogo mais comum da
cidade, deve a atenção que atrai e as paixões que desperta ao fato de que é a substituta da comunidade: do “lar supostamente natural” ou do
círculo que permanece aconchegante por mais frios que sejam os ventos lá fora.
Nenhuma das duas está à disposição
em nosso mundo rapidamente privatizado e individualizado, que se globaliza
velozmente, e por isso cada uma delas pode ser livremente imaginada, sem medo
do teste da prática, como abrigo de segurança e confiança e, por essa razão,
desejada com ardor. O paradoxo, contudo, é que para oferecer um mínimo de
segurança e assim desempenhar uma espécie de papel tranqüilizante e consolador,
a identidade deve trair sua origem; deve negar ser “apenas um substituto” — ela
precisa invocar o fantasma da mesmíssima comunidade a que deve substituir. A
identidade brota entre os túmulos das comunidades, mas floresce graças à promessa da ressurreição dos mortos.
21
Uma vida dedicada à procura da identidade é cheia de som e de
fúria. “Identidade” significa aparecer: ser diferente e, por essa diferença,
singular — e assim a procura da identidade não pode deixar de dividir e
separar. E no entanto a vulnerabilidade das identidades individuais e a precariedade da solitária construção da
identidade levam os construtores da identidade a procurar cabides em que
possam, em conjunto, pendurar seus medos e ansiedades individualmente
experimentados e, depois disso, realizar os ritos de exorcismo em companhia de
outros indivíduos também assustados e ansiosos. É discutível se essas
“comunidades-cabide” oferecem o que se espera que ofereçam — um seguro coletivo
contra incertezas individualmente enfrentadas; mas sem dúvida marchar ombro a
ombro ao longo de uma ou duas ruas, montar barricadas na companhia de outros ou
roçar os cotovelos em trincheiras lotadas, isso pode fornecer um momento de
alívio da solidão. Com resultados bons ou maus, ou sem eles, alguma coisa pelo
menos foi feita; podemos obter algum consolo de ter recusado servir de alvo
imóvel e de ter levantado a mão contra os golpes. Não é de surpreender, pois,
que — como nos adverte Jonathan Friedman
— em nosso mundo que rapidamente se globaliza “uma coisa que não está
acontecendo é o desaparecimento das fronteiras. Ao contrário, elas parecem ser
erguidas em cada nova esquina de cada bairro decadente de nosso mundo.”6
A despeito do que dizem os guardas de fronteira, as
fronteiras que eles protegem não foram traçadas para defender a singularidade
das identidades já existentes. Como explicou o grande antropólogo norueguês Frederick
Barth, o oposto é a regra:
as identidades “comunitárias” ostensivamente compartilhadas são subprodutos ou
conseqüências do infindável (e por essa razão tanto mais febril e feroz)
processo de estabelecimento de fronteiras. Só depois que os marcos de fronteira
são cravados e as armas estão apontadas contra os intrusos é que os mitos sobre
a antigüidade das fronteiras são inventados e as recentes origens culturais e
políticas da identidade são cuidadosamente encobertas por “narrativas da
gênese”. Esses estratagemas tentam contornar o fato de que (para citar Stuart
Hall)7 uma coisa que a idéia de identidade não indica é um
“núcleo estável do eu, desenrolando-
22
se do começo ao fim através de todas as vicissitudes
de uma história sem mudança”.
Os contemporâneos em busca da comunidade estão condenados à sina de Tan talo; seu objetivo tende a
escapar-lhes, e é seu
esforço sério e dedicado que faz com que lhes escape. A esperança de alívio e
tranqüilidade que torna a comunidade com que sonham tão atraente será
impulsionada cada vez que acreditam, ou lhes é dito, que o lar comum que
procuravam foi encontrado. Às agonias de Tântalo se juntam, tornando-as ainda
mais sofridas, as de Sísifo. “A comunidade realmente existente” será diferente
da de seus sonhos — mais semelhante a seu contrário: aumentará seus temores e
insegurança em vez de diluí-los ou deixá-los de lado. Exigirá vigilância vinte
e quatro horas por dia e a afiação diária das espadas, para a luta, dia sim,
dia não, para manter os estranhos fora dos muros e para caçar os vira-casacas
em seu próprio meio. E, num toque final de ironia, é só por essa belicosidade,
gritaria e brandir de espadas que o sentimento de estar em uma comunidade,
de ser uma comunidade pode ser mantido e impedido de desaparecer. O
aconchego do lar deve ser buscado, cotidianamente, na linha de frente.
É como se a espada colocada a Leste do
Éden ainda estivesse lá, movendo-se de maneira sinistra. Você ganhará o pão de
cada dia com o suor de seu rosto — mas não há suor que faça reabrir o portão
fechado que levaria à inocência
comunitária, à multiplicação
fundadora do mesmo e à tranqüilidade.
Não é que paremos de bater naquele portão,
na esperança de abri-lo à força. Não enquanto estivermos como hoje estamos e enquanto o
mundo que habitamos for como é hoje.
Usando o desenho de Klee como inspiração, Walter Benjamin faz
e seguinte descrição do “Anjo da História”:
sua
face se volta para o passado. Onde percebemos uma seqüência de eventos, ele vê
uma única catástrofe que empilha destroços sobre destroços e os lança a seus
pés. O anjo gostaria de ficar, acordar os mortos e reconstituir o que foi
destruído. Mas do Paraíso sopra a tempestade; ela tomou suas asas com tal
violência que o anjo já não as pode fechar. Essa tempestade o empurra
irresistível-
23
mente para o futuro para o qual suas costas
estão voltadas, enquanto a pilha de escombros à sua frente
sobe até o céu.8
O Anjo da História se movimenta com as
costas voltadas para o futuro e com os olhos postos no passado. Movimenta-se
porque desde que deixou o Paraíso não pode parar — ainda não viu nada
suficientemente agradável que o faça querer parar e admirar com tranqüilidade.
O que o mantém em movimento é o desgosto e a repulsa pelo que vê: os visíveis
horrores do passado e não a atração de um futuro que ele não pode ver com
clareza nem apreciar de forma plena. O progresso, Benjamin dá a entender, não é a perseguição de
pássaros no céu, mas uma urgência frenética de voar para longe dos cadáveres espalhados
pelos campos de batalha do passado.
Se a leitura que Benjamin faz do significado do “progresso” é
correta, como acredito que seja, então — no que diz respeito à felicidade humana — a história não é uma
linha reta nem um processo cumulativo, como a célebre “versão progressista”
gostaria que acreditássemos. Como a repulsa e não a atração é o principal motor
da história, a mudança histórica acontece porque os humanos estão mortificados
e irritados pelo que acham doloroso e desagradável em sua condição, porque não
querem que essas condições persistam e porque procuram uma maneira de aliviar e
reverter seu sofrimento. Livrar-nos do que, momentaneamente, mais nos aflige
traz alívio — mas um alívio em geral transitório, uma vez que a “nova e
melhorada” condição rapidamente revela seus aspectos desagradáveis, previamente
invisíveis e imprevistos, e traz com ela novas razões de preocupação. Além
disso, o alimento de uns é o veneno de outros, e as pessoas em fuga quase nunca
encontram a unanimidade na seleção das realidades que precisam de atenção e
reforma. Cada passo que nos afasta do presente será visto por alguns com
entusiasmo e por outros com apreensão. “Progresso” é um membro importante da
família dos “conceitos vivamente contestados”. O balanço do passado, a
avaliação do presente e a previsão
dos futuros são atravessados pelo conflito e eivados de ambivalência.
24
Há boas razões para conceber o curso da
história como pendular, mesmo que em relação a certos aspectos pudesse ser
retratado como linear: a liberdade e a segurança, ambas igualmente urgentes e indispensáveis, são
difíceis de conciliar sem atrito — e atrito considerável na maior parte do
tempo. Estas duas qualidades são, ao mesmo tempo, complementares e
incompatíveis; a chance de que entrem em conflito sempre foi e sempre será tão
grande quanto a necessidade de sua conciliação. Embora muitas formas de união
humana tenham sido tentadas no curso da história, nenhuma logrou encontrar
solução perfeita para uma tarefa do tipo da “quadratura do círculo”.
A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da
liberdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. Mas segurança sem
liberdade eqüivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade,
acaba por ser afinal um tipo muito inseguro de segurança); e a liberdade sem segurança eqüivale a estar
perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de segurança, acaba por ser
uma liberdade muito pouco livre). Essa circunstância provoca nos filósofos uma
dor de cabeça sem cura conhecida. Ela também torna a vida em comum um conflito
sem fim, pois a segurança sacrificada em nome da liberdade tende a ser a
segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade
dos outros.
• 2 •
A
reinserção dos desenraizados
Pico della Mirandola pôs no papel o texto de uma fala que
nem Deus, que falava, nem Adão, seu interlocutor, registraram. É mais ou menos
assim: “As outras criaturas têm uma natureza definida que foi prescrita por
mim. Você pode determinar seus próprios limites de acordo com sua vontade...
Como um artífice livre e soberano, você pode construir sua própria forma a
partir de sua própria substância.” A mensagem desta fala não registrada
constituiu uma novidade muito positiva para os homens de substância, mas nem
tão positiva para todo o resto, que não tinha substância suficiente a partir da
qual “construir sua própria forma” livremente e “de acordo com sua própria
vontade”. Era o ano de 1486, na Itália que enviava seus navios para os recantos
mais longínquos do mundo para que os donos dos navios, os cortesãos e os
passageiros (mas não os marinheiros, nem os estivadores) pudessem enriquecer e
considerar o mundo como sua ostra. A individualidade moderna do cânone
eclesiástico: o Deus da Bíblia significava uma sentença de existência livre e
solta como retribuição e punição. O Deus renascentista que falava através de
Pico retratava essa sentença como recompensa e Ato de Graça. Se o texto bíblico
não passava de uma meia verdade, sua correção renascentista não era melhor.
Em seu estudo da nova era de desigualdades, Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon refletem
sobre a “ambivalência do individualismo moderno”:
Ele
é, ao mesmo tempo, um vetor da emancipação dos indivíduos, que estimula sua
autonomia e os torna portadores de direitos, e
25
26
um
fator de insegurança crescente, fazendo com que todos sejam responsáveis pelo
futuro e obrigados a dar à vida um sentido não mais predeterminado
a partir de fora.9
Fitoussi e Rosanvallon não foram os
primeiros a notar a face de Jano da individualização que viria a se tornar a
marca registrada da modernidade (pelo menos a européia), mas expressaram o
conflito interior de que ela é portadora de modo mais cortante que a maioria
dos escritores. Como os outros pontos de partida reunidos sob a rubrica do
“processo civilizador”, a individualização foi, no que diz respeito aos valores
humanos, uma troca. Os bens trocados no curso da individualização eram a
segurança e a liberdade: a
liberdade era oferecida em troca da segurança — embora não parecesse assim
desde o começo e certamente não fosse assim percebida por Pico della Mirandola
e outros, que observavam e falavam do ponto de vista de elevadas torres de
observação que os murmúrios audíveis “lá de baixo” não conseguiam atingir.
Dados seus novos recursos e, portanto, sua autoconfiança, a liberdade parecia
aos grandes e poderosos a melhor garantia imaginável da segurança; nem é
preciso dizer que a receita para liberdade e segurança simultâneas era
romper as últimas amarras. A liberdade não parece oferecer riscos enquanto as
coisas obedientemente seguem o caminho que desejamos. Afinal, a liberdade é a
capacidade de fazer com que as coisas sejam realizadas do modo como queremos,
sem que ninguém seja capaz de resistir ao resultado, e muito menos desfazê-lo.
O concubinato entre liberdade e segurança é visto de modo
diferente quando olhado do ponto de vista dos muitos que se encontram na
situação de compartilhar o destino dos escravos hebreus no Egito, a quem o
faraó dizia que deviam continuar a produzir tijolos enquanto lhes negava a
palha de que precisavam para que os fizessem; homens e mulheres que achavam
inúteis os direitos que supostamente tinham quando se tratava de obter o
sustento. A individualização podia ser pródiga e generosamente indiscriminada
ao conceder o dom da liberdade pessoal a qualquer mão que se estendesse — mas o
pacote de liberdade cum segurança (ou, melhor, segurança através da
liberdade) não esta-
27
va em geral incluído. Só estava disponível
para um grupo seleto de fregueses. A chance de desfrutar da liberdade sem pagar
o duro e proibitivo preço da insegurança (ou pelo menos sem que os credores
exigissem o pagamento no ato) era um privilégio para poucos; mas esses poucos
deram o tom da idéia de emancipação para os séculos ainda por vir. Esse tom só
começou a mudar de modo perceptível depois que um longo período de
“aburguesamento” genuíno ou suposto do proletariado se deteve e começou a dar
para trás, no momento em que o gradual mas incessante processo de “proletarização
da burguesia”, como sugere Richard Rorty, começava a acontecer.
Isso não significa que os poucos
privilegiados que podiam desfrutar simultaneamente da liberdade pessoal e da
segurança existencial (luxo negado ao resto) não tivessem razões para descontentamento.
A longa série de estudos de caso de Sigmund Freud pode ser lida como “livro de reclamações”
dos ricos e poderosos que, tendo conquistado o mundo exterior, achavam mais
odiosas e insuportáveis as duras, insistentes e repetidas resistências dentro
de suas próprias casas (e particularmente em seus quartos de dormir). O mal-estar da civilização resume
suas reclamações: para desfrutar dos dons gêmeos da liberdade social e da
segurança pessoal, é preciso jogar o jogo da sociabilidade segundo regras que
negam livre curso à luxúria
e às paixões. Na “política-vida” dos pacientes de Freud (como Sigmund Freud diria, se os termos de Anthony Giddens estivessem disponíveis naquela época) o
conflito épico entre a liberdade e a segurança aflora acima de tudo, e talvez exclusivamente, como
repressão sexual. Apresentando os limites socialmente impostos ao desejo sexual
como a última trincheira contra a liberdade, o Freud de O
mal-estar afirma sua inevitabilidade. Identificados
e nomeados, poderiam ser facilmente reformulados como itens adicionais do
“inacabado projeto da modernidade”. As fortificações defensivas, ostensivamente
necessárias, da vida civilizada logo se tornaram o próximo alvo estratégico das
lutas pela emancipação; novos obstáculos a serem removidos do caminho do
progresso inevitável da liberdade.
28
Pouco tempo antes de escrever O
mal-estar da civilização, Freud mandou para impressão outra grande síntese: O futuro de uma
ilusão. Em conjunto, os dois livros marcam uma mudança nos interesses de Freud. Como ele mesmo admite, depois de um longo
desvio psicoterapêutico, armado com os insights acumulados no correr da
prática psicanalítica, ele volta aos problemas culturais que o fascinavam de há
muito. Diferente de O mal-estar., que é uma tentativa de articular o
choque entre a liberdade e a segurança sedimentado nas neuroses dos pacientes da psicoterapia, O
futuro de uma ilusão lança uma rede mais ampla. Mais exatamente, tenta
desenvolver um argumento para a inevitabilidade dos limites sociais à liberdade humana, baseado na “análise
objetiva” da condição de todos aqueles que nunca visitariam as clínicas de
psicanálise. Freud não
tinha experiência clínica dos tipos de pessoas que, em seu argumento, tornariam
as limitações inevitáveis; mas pela natureza do argumento desenvolvido em O futuro
de uma ilusão essa experiência não era necessária. O foco do interesse de Freud aqui era o que mais tarde Talcott Parsons chamaria
de “pré-requisitos funcionais” do sistema — e, assim, Freud podia, como fez, deixar de lado as notas
das sessões psicanalíticas e basear-se diretamente na velha e venerável
tradição pós-hobbesiana da “opinião esclarecida” (mais precisamente, folclore
intelectual) que era unânime em sua convicção de que, embora alguns espécimes
seletos da humanidade pudessem dominar a arte do autocontrôlé, todos os demais, e isso quer dizer a vasta
maioria, precisavam da coerção para continuar vivos e permitir que os outros
vivessem.
O futuro de uma ilusão10 segue a mesma suposição que alguns meses depois serviria como
ponto de partida de O mal-estar: “toda
civilização deve ser construída sobre a coerção e a renúncia ao instinto”. Freud toma cuidado, porém, “em distinguir entre
privações que afetam a todos e privações que não afetam a todos mas apenas a
grupos, classes e mesmo indivíduos singulares”. Ele coloca na primeira
categoria os tipos de sofrimentos que mais tarde apresentará de maneira mais
completa em O mal-estar—tribulações
entrevistas durante sessões psicanalíticas com a seleta clientela vienense, mas
de qualquer maneira consi-
29
deradas como não dependentes de classe e, portanto,
compartilhadas por todos. As privações, amarga e, às vezes, violentamente
ressentidas do segundo tipo (não universais, dependentes de classe) derivam do
fato de que numa dada cultura “a satisfação de uma porção de seus participantes
depende da supressão de outra porção, talvez maior”. Sem as privações do
primeiro tipo, a civilização parecia a Freud logicamente incoerente e, portanto, inconcebível. Mas ele
parecia também não ter esperança de que alguma civilização pudesse deixar de
recorrer à coerção do segundo
tipo; isso porque, na opinião que Freud compartilhava com os fundadores e gerentes da ordem moderna,
as
massas são preguiçosas e pouco inteligentes; não têm amor pela renúncia aos
instintos, e não podem ser convencidas pelo argumento de sua inevitabilidade; e
os indivíduos que as compõem se apóiam mutuamente e dão livre curso à sua indisciplina...
Em
suma, há duas características humanas generalizadas que são responsáveis pelo
fato de que as regras da civilização só podem ser mantidas por certo grau de
coerção — que os homens não têm uma inclinação espontânea para o trabalho e que
os argumentos de nada valem contra suas paixões.
São, como se diz, “dois pesos e duas
medidas”; no caso das “massas”, naturalmente preguiçosas e surdas à voz da razão, a recusa a dar livre curso a
suas inclinações naturais é uma bênção. No que lhes diz respeito, a sabedoria
herdada dos tempos modernos ensaiada em O futuro de uma ilusão não
contempla a renegociação da porção de liberdade permitida. A rebelião das
massas não é como as neuroses individuais sofridas em solidão pelos clientes
sexualmente reprimidos das clínicas psicanalíticas. Não é caso para
psicoterapia, mas para a lei e a ordem; não é tarefa de psicanalistas, mas de
polícia.
O moderno arranjo — capitalista — do convívio humano tinha
uma forma de Jano: uma face era emancipatória, a outra coercitiva, cada uma
voltada para um setor diferente da sociedade. Para os companheiros de Pico della
Mirandola, a civilização era o toque de clarim para que cada um “fizesse de si
o que desejasse”, e impor limites a essa liberdade de auto-afirmação
30
seria talvez uma obrigação inevitável e lamentável da ordem
civilizada, mas um preço que valia a pena pagar. Para as “massas preguiçosas e
tomadas pelas paixões” a civilização significava, antes e acima de tudo, o
controle das predileções mórbidas que se supunha que tivessem e que, se
liberadas, acabariam com a ordeira coabitação. Para os dois setores da sociedade
moderna, a auto-afirmação oferecida e a disciplina demandada vinham misturadas em proporções marcadamente
diferentes.
Para dizê-lo de maneira curta e grossa: a
emancipação de alguns exigia a supressão de outros. E foi isso exatamente o que
aconteceu: esse acontecimento entrou para a história com o nome um tanto
eufemístico de “revolução industrial”. As “massas” tiradas da velha e rígida
rotina (a rede da interação comunitária governada pelo hábito) para serem
espremidas na nova e rígida rotina (o chão da fábrica governado pelo desempenho
de tarefas), quando sua supressão serviria melhor à causa da emancipação dos supressores. As
velhas rotinas não serviam para esse objetivo — eram autônomas demais,
governadas por sua própria lógica tácita e não negociável, e por demais
resistentes à manipulação
e à mudança, dado que
excessivos laços de interação humana se entreteciam em toda ação de tal modo
que para puxar um deles seria preciso mudar ou romper muitos outros. O problema
não era tanto levar os que não gostavam de trabalhar a habituar-se com o
trabalho (ninguém precisava ensinar às futuras mãos da fábrica que a vida
significava uma sentença de trabalho duro), mas como torná-los aptos a
trabalhar num ambiente novo em folha, pouco familiar e repressivo.
Para que se adaptassem aos novos trajes, os futuros
trabalhadores tinham que ser antes transformados numa “massa:” despidos da
antiga roupagem dos hábitos comunitariamente sustentados. A guerra contra a
comunidade foi declarada em nome da libertação do indivíduo da inércia da
massa. Mas o verdadeiro resultado — ainda que não dito — dessa guerra foi o
oposto do objetivo declarado: a destruição dos poderes de fixar padrões e
papéis da comunidade de tal forma que as unidades humanas privadas de sua
individualidade pudessem ser condensadas na massa trabalhadora. A “preguiça”
inata das “massas” não passou
31
de uma (débil) desculpa. Conforme argumentei em Work,
Consumerism and New Poor [Trabalho, consumismo e novos pobres] (1998),
a “ética do trabalho” do início da era industrial foi uma tentativa desesperada
de reconstituir, no ambiente frio e impessoal da fábrica, através do regime de
comando, vigilância e punição, a mesma habilidade no trabalho que na densa rede
de interação comunitária era alcançada de modo “natural” pelos artesãos e
outros trabalhadores.
O século XIX, dos grandes deslocamentos,
desencaixes e desenraizamentos (e também de tentativas desesperadas de
reencaixar e reenraizar) chegava a seu fim quando Thorstein Veblen11
falou em defesa do “instinto do trabalho bem-feito” aparentemente extinto, que
“está presente em todos os homens” e “se afirma nas situações mais adversas”,
para tentar reparar o dano. “Instinto de trabalho bem-feito” foi o termo que
Veblen escolheu para um “gosto natural pelo trabalho efetivo e um desapreço
pelo esforço fútil”, em sua opinião presente em todos os humanos. Longe de ser
naturalmente preguiçosas e avessas ao trabalho, como insistia Freud em uníssono
com uma longa série de críticos e resmungões, as pessoas tinham, muito antes
que começassem as reprovações e a pregação,
um
senso do mérito da utilidade e da eficiência e do demérito da futilidade,
desperdício e incapacidade... O instinto do trabalho bem-feito se expressa não
tanto na insistência sobre a utilidade substancial quanto na rejeição à impossibilidade estética do que é obviamente fútil.
Se todos nos orgulhamos de um trabalho
bem-feito, também temos, é o que sugere Veblen, uma repulsa inata pela labuta
sem propósito, pelo esforço fútil, pela azáfama sem sentido. Isso era também a
verdade das “massas”, acusadas desde o advento da moderna indústria
(capitalista) do pecado mortal da indolência. Se Veblen está certo e a relutância em trabalhar viola os instintos
humanos, então algo foi feito, de modo resoluto e forçado, para que a conduta
“real” das “massas” desse credibilidade à acusação de indolência. Esse “algo” foi o lento mas inexorável
desmantela-
32
mento/desmoronamento da comunidade, aquela intrincada teia
de interações humanas que dotava o trabalho de sentido, fazendo do mero empenho
um trabalho significativo, uma ação com objetivo, aquela teia
que constituía a diferença, como diria Veblen, entre o “esforço” (ligado aos
“conceitos de dignidade, mérito e honra”) e a “labuta” (não ligada a qualquer
daqueles valores e portanto percebida como fútil).
Segundo Max Weber, o ato constitutivo do capitalismo
moderno foi a separação entre os negócios e o lar — o que significou ao mesmo
tempo a separação entre os produtores e as fontes de sua sobrevivência (como
acrescentou Karl Polanyi, invocando o insight de Karl Marx). Esse duplo ato libertou as ações voltadas
para o lucro, e também aquelas voltadas para a sobrevivência, da teia dos laços
morais e emocionais, da família e da vizinhança — simultaneamente esvaziando
tais ações de todo o sentido de que eram, antes, portadoras. O que costumava
ser um “esforço” nos termos de Veblen virou “labuta”. Já não era claro para os
artífices e artesãos de ontem o sentido do “trabalho bem-feito”, e não havia
mais “dignidade, mérito e honra” que decorressem dele. Seguir a rotina sem alma
do chão da fábrica, sem ser observado pelo companheiro ou vizinho, mas apenas
pelo desconfiado capataz, obedecer aos movimentos ditados pela máquina sem
chance de admirar o produto do próprio esforço, e muito menos de apreciar sua
qualidade, tornavam o esforço “fútil”; e um esforço fútil era o que o instinto
do trabalho bem-feito levava os humanos a detestarem todo o tempo. E esse tão
humano desgostar da futilidade e da falta de sentido é que era em realidade o
alvo da acusação de preguiça formulada contra os homens, mulheres e crianças,
afastados de seu ambiente comum e sujeitos a um ritmo que não determinavam nem
ao menos compreendiam. A suposta “natureza” das mãos de fábrica era
responsabilizada pelos efeitos da não-naturalidade do novo meio social. O que
os gerentes da indústria capitalista e os pregadores morais que corriam em sua
ajuda queriam através da “ética do trabalho” que projetavam e pregavam era
forçar ou inspirar os trabalhadores a desempenharem as “tarefas fúteis” com a
mesma dedicação e abandono com que costumavam perseguir o “trabalho bem-feito”.
33
Para o empresário, a separação entre
negócio e lar foi uma verdadeira emancipação. Suas mãos foram desatadas, o céu
era o único limite além do qual sua imaginação não se atrevia a passar. Na
busca do que a razão lhe dizia ser o caminho de maior riqueza, aquele alguém
exuberante e autoconfiante “que faz
as coisas acontecerem” não mais teria que limitar-se às noções tradicionais do
dever comunitário, agora postas de lado como fora de moda (quando não
superstição ignorante). A separação entre o meio de vida e o lar, o outro lado
da primeira separação, não pretendia, porém, nem era percebida como uma
emancipação: como um desatar das mãos e uma libertação do indivíduo. Pretendia
ser e era percebida como um ato de expropriação, um desenraizamento e evicção
de um lar defensável. Os homens e mulheres deviam primeiro ser separados da
teia de laços comunitários que tolhia seus movimentos, para que pudessem ser mais
tarde redispostos como equipes de fábrica. Essa nova disposição era seu
destino, e a liberdade da indeterminação não passaria de um breve e transitório
estágio entre duas gaiolas de ferro igualmente estreitas.
O capitalismo moderno, na expressão célebre de Marx e
Engels, “derrete todos os
sólidos”; as comunidades auto-sustentadas e auto-reprodutivas figuravam em
lugar de destaque no rol de sólidos a serem liqüefeitos. Mas o trabalho de
fusão não era um fim em si mesmo: os sólidos eram liqüefeitos para que outros
sólidos, mais sólidos do que os derretidos, pudessem ser forjados. Se para os
poucos escolhidos o advento da ordem moderna significava o começo de uma
extraordinariamente grande expansão da auto-afirmação individual — para a
grande maioria apenas anunciava o deslocamento de uma situação estreita e dura
para outra equivalente. Destruídos os laços comunitários que a mantinham em seu
lugar, essa maioria viria a ser submetida a uma rotina inteiramente diferente,
ostensivamente artificial, sustentada pela coação nua e sem sentido em termos
de “dignidade, mérito ou honra”.
Seria no mínimo ingênuo esperar que os deserdados
abraçassem a rotina artificial e imposta com a mesma placidez com que
costumavam seguir os ritmos da vida comunitária. Um regime disciplinar rigoroso
e supervisionado de perto preencheu o
34
vazio aberto pelo desaparecimento da “compreensão natural”
e do consentimento que outrora regulavam o curso da vida humana. John Stuart
Mill12 assim resumiu a disposição dominante da época (de que se
ressentia profundamente):
A
sina dos pobres, em tudo o que os afeta coletivamente, era controlada para eles
e não por eles... Compete às classes mais altas pensarem por eles, e assumir a
responsabilidade por seu destino... [para que possam] resignar-se... a uma
verdadeira despreocupação, repousando à sombra
de seus protetores... Os ricos devem ficar in loco parentis dos pobres,
guiando-os e sujeitando-os como crianças.
Mais de um século depois, olhando para as
primeiras décadas do admirável mundo novo da modernidade capitalista, o
historiador John Foster13 capta a essência da grande transformação
ao observar que
A
prioridade absoluta era atrelar a força de trabalho emergente à nova classe dos patrões — e fazê-lo durante o período em
que as velhas disciplinas auto-impostas da sociedade camponesa-artesanal
estavam em processo de desintegração, mas ainda eram perigosamente poderosas.
Olhando com ironia e ceticismo a fúria com
que os reformadores e revolucionários desmantelavam os arranjos sociais
existentes, Alexis de Tocqueville sugeria que, ao declarar guerra ao “atraso” e
“paroquialismo” da sociedade camponesa-artesanal, a classe empresarial
emergente estava chutando um cavalo morto; pois a comunidade local estava em
avançado estado de decomposição muito antes do início da construção da nova
ordem. Isso bem pode ter acontecido, mas qualquer que fosse seu estado de
putrefação, a comunidade local continuava a ser percebida como “perigosamente
poderosa” durante os longos anos que durou a adaptação dos camponeses e
artesãos à nova disciplina das
fábricas. Essa sensação dava força ao fervor e ao engenho com que os donos e os
gerentes da indústria lutavam para controlar a conduta de sua força de trabalho
e para sufocar toda manifestação de espontaneidade e livre arbítrio.
35
Em verdade, como dizia Stuart Mill, as
“classes altas” se colocavam in loco parentis dos pobres e indolentes
que, achavam, não podiam
lidar com a preciosa dádiva da liberdade, ameaçada se posta em mãos erradas. O
dever dos pais é guiar e restringir, mas para realizá-lo de modo sério e
responsável eles precisam antes de mais nada vigiar e supervisionar.
Já se disse que, como os peixes, as crianças devem ser
vistas e não ouvidas. E assim durante a maior parte de sua história a
modernidade se desenvolveu sob os auspícios do poder “panóptico”, obtendo a
disciplina pela vigilância contínua. O princípio essencial do panóptico é a
crença dos internos de que estão sob observação contínua e de que nenhum
afastamento da rotina, por minúsculo e trivial que seja, passará despercebido.
Para manter essa crença, os supervisores tinham que passar a maior parte do
tempo nos postos de observação, do mesmo modo que os pais não podem sair de
casa por muito tempo sem temer travessuras dos filhos. O modelo panóptico de poder
prendia os subordinados ao lugar, aquele lugar onde podiam ser vigiados e
punidos por qualquer quebra de rotina. Mas também prendia os supervisores ao
lugar, aquele de onde deviam vigiar e administrar a punição.
A era da grande transformação foi, numa palavra, uma era de
engajamento. Os governados dependiam dos governantes, mas estes não
deixavam de depender daqueles. Para o bem ou para o mal, os dois lados estavam
amarrados entre si e nenhum deles podia com facilidade sair do impasse — por
difícil ou repulsivo que fosse. O divórcio não era uma solução realista para
qualquer das partes. Quando, num momento de inspiração, Henry Ford tomou a histórica decisão de dobrar os
salários de seus empregados, estava à procura de um duplo vínculo que os atasse às suas fábricas
de maneira mais forte e segura do que a mera necessidade de sobreviver, que
também poderia ser obtida de outros patrões. O poder e a riqueza de Ford não eram mais extensos nem
mais sólidos do que suas imensas fábricas, suas pesadas máquinas e sua massiva
força de trabalho; ele não podia se dar ao luxo de perder qualquer uma delas.
Passou-se muito tempo até que os dois lados, em muitas tentativas e muito mais
erros, aprendessem
36
essa verdade. Uma vez aprendida a verdade, a inconveniência
e o alto e crescente custo do poder panóptico (e, em geral, da dominação pelo
engajamento) ficaram óbvios.
Um casamento em que os dois lados sabem que estão unidos
por um longo porvir, e no qual nenhum dos parceiros está livre para rompê-lo é
necessariamente um lugar de perpétuo conflito. A chance de que os parceiros
tenham a mesma opinião em todos os problemas que possam surgir ao longo desse
longo futuro é tão pequena quanto a probabilidade de que um deles ceda sempre à vontade do outro, sem tentar melhorar sua
posição relativa. E ocorrerão inúmeros confrontos, batalhas campais e incursões
guerrilheiras. Só em casos extremos, contudo, as ações de guerra levarão à derrota final de um ou dos dois parceiros:
uma consciência de que essa derrota pode acontecer e o desejo de que seria
melhor que não acontecesse serão provavelmente suficientes para romper a
“cadeia cismogenética” antes daquele desfecho (“como ficaremos unidos
independente do que aconteça, vamos tentar tornar a convivência suportável”). E
assim, em meio à guerra
de destruição ocorrem tréguas mais ou menos longas, e entre elas momentos de
barganha e negociação. E também tentativas renovadas de compromisso sobre um
conjunto comum de regras aceitáveis para ambas as partes.
Duas tendências acompanharam o capitalismo moderno ao longo
de toda sua história, embora sua força e importância tenham variado no tempo.
Uma delas já foi assinalada: um esforço consistente de substituir o
“entendimento natural” da comunidade de outrora, o ritmo, regulado pela
natureza, da lavoura, e a rotina,
regulada pela tradição, da vida do artesão, por uma outra rotina
artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada. A segunda
tendência foi uma tentativa muito menos consistente (e adotada tardiamente) de
ressuscitar ou criar ab nihilo um “sentido de comunidade”, desta vez
dentro do quadro da nova estrutura de poder.
A primeira tendência atingiu seu ponto culminante por volta
do começo do século XX com a linha de montagem e o “estudo do tempo e do
movimento” e da “organização científica do trabalho” de Frederick Taylor, que pretendia separar o desempenho
37
produtivo dos motivos e sentimentos dos trabalhadores. Os
produtores deveriam ser expostos ao ritmo impessoal da máquina, que
estabeleceria o ritmo do movimento e determinaria qualquer gesto; não sobraria
espaço, nem ele deveria ser reservado, para a escolha pessoal. O papel da
iniciativa, da dedicação e da cooperação, mesmo para as “aptidões vivas” dos
operadores (preferivelmente transferidas para a máquina) deveria ser reduzido
ao mínimo. A dinâmica e a rotinização do processo de produção, a impessoalidade
da relação entre trabalhador e máquina, a eliminação de todas as dimensões do
papel produtivo que não as tarefas fixas da produção, e a resultante homogeneidade das ações dos
trabalhadores formavam o exato oposto do ambiente comunitário em que se
inscrevia o trabalho pré-industrial. O chão da fábrica deveria ser o
equivalente, comandado pela máquina, da burocracia que, segundo o modelo ideal
esboçado por Max Weber, tinha como objetivo a irrelevância total dos laços e
compromissos sociais estabelecidos e mantidos fora do escritório e do horário
de trabalho. Os resultados do trabalho não deveriam ser afetados por fatores
tão pouco confiáveis e flutuantes como o “instinto de obra bem-feita” com sua
fome de honra, mérito e dignidade e, acima de tudo, sua aversão à futilidade.
A segunda tendência corria paralela à primeira, tendo começado cedo nas “cidades
modelo” de alguns filantropos que associavam o sucesso industrial a um fator de
“sentir-se bem” entre os trabalhadores. Em lugar de confiar exclusivamente nos
poderes coercitivos da máquina, apostavam nos padrões morais dos trabalhadores,
sua piedade religiosa, na generosidade de sua vida familiar e sua confiança no
chefe-patrão. As cidades modelo construídas em torno das fábricas estavam
equipadas com moradias decentes, mas também com capelas, escolas primárias,
hospitais e confortos sociais básicos — todos projetados pelos donos das
fábricas junto com o resto do complexo de produção. A aposta era na recriação
da comunidade em torno do lugar de trabalho e, assim, na transformação do
emprego na fábrica numa tarefa para “toda a vida”.
Os filantropos, vistos por seus contemporâneos como
“socialistas utópicos” e por isso mesmo aplaudidos por alguns como
38
pioneiros da reforma moral, vistos por outros com suspeitas
e postos no ostracismo por subversão, esperavam cegar o gume despersonalizante
e desumanizante da era da máquina que se avizinhava e preservar algo da antiga
relação paternal, benigna e benevolente entre mestre e aprendiz e do espírito
de comunidade no áspero clima de competição e busca do lucro. Filantropos
eticamente motivados ficaram à margem do ímpeto principal do desenvolvimento capitalista. Logo
ficou claro que nadavam contra a corrente: a sentença de morte da comunidade
era irrevogável e mínimas as chances de que ela pudesse ressurgir dentre os
mortos. Levou quase um século para que a segunda tendência voltasse à cena uma vez mais, agora como um esforço
para recuperar a debilitada eficiência do trabalho nas fábricas na indústria
capitalista vitoriosa e não mais contestada, em vez de para, como um século
antes, deter a destruição da tradição comunitária por uma ordem capitalista em
progresso.
Na década de 1930, a “escola das relações humanas” foi
fundada na sociologia industrial seguindo os experimentos de Elton Mayo nas
Empresas Hawthorne. A descoberta de Mayo foi que nenhum dos aspectos físicos do
ambiente de trabalho, nem mesmo os incentivos materiais que ocupavam lugar tão
importante na estratégia de Frederick Taylor, influenciava o aumento da
produtividade e eliminava os conflitos tanto quanto os fatores espirituais: uma
atmosfera amigável e “doméstica” no local de trabalho, a atenção dos gerentes e
capatazes às variáveis disposições dos trabalhadores e o cuidado deles em
explicar aos trabalhadores o significado de suas contribuições para os efeitos
gerais da produção. Pode-se dizer que a esquecida e negligenciada importância
da comunidade para a ação significativa, e do “instinto do trabalho bem-feito”
foram redescobertos como recursos no esforço perpétuo de melhorar a relação
entre custo e efeito.
O que garantiu o sucesso da noite para o dia das propostas
de Mayo foi sua idéia de que os bônus e aumentos de salários, bem como a
minuciosa (e custosa) supervisão minuto a minuto, não seriam tão importantes —
desde que os patrões conseguissem evocar entre seus empregados o sentimento de
que “estamos todos no mesmo barco”, promover a lealdade à empresa e con-
39
vencê-los do significado do desempenho individual para o
esforço conjunto; numa palavra, desde que eles respeitassem o anseio dos
trabalhadores por dignidade, mérito e honra e seu desprezo inato pela rotina
fútil e sem sentido. A boa notícia era que a satisfação no emprego e uma
atmosfera amigável podiam superar a estrita atenção às regras e a vigilância ubíqua na promoção da
eficiência e na prevenção da ameaça do conflito industrial recorrente, ao mesmo
tempo em que era mais econômica, em termos puramente atuariais, do que os
métodos de treinamento que vinham substituir.
A célebre “fábrica fordista” tentou a síntese das duas
tendências, combinando assim o melhor dos dois mundos, sacrificando o mínimo
tanto da “organização científica” quanto da união de tipo comunitário. Nos
termos de Tönnies, seu objetivo era transformar Kürwille em Wesenwille,
“naturalizar” os padrões racionais de conduta abstratamente projetados e
ostensivamente artificiais. Durante cerca de meio século, e particularmente nas
“três gloriosas décadas” do “acordo social” que acompanhou a reconstrução do
pós-guerra, a “fábrica fordista” serviu de modelo para o ideal perseguido, com
graus variados de sucesso, por todas as outras empresas capitalistas.
As duas tendências, uma estrita e explicitamente
anticomunitária e a outra flertando com a idéia da nova forma da comunidade,
representavam duas formas alternativas de administração. Mas o suposto de que
os processos sociais em geral, e o trabalho produtivo em particular, precisavam
ser administrados em lugar de ser deixados por sua própria conta não
estava em questão. Nem
a crença de que o dever de “guiar e restringir” era um ingrediente obrigatório
da posição dos patrões in loco parentis. Na maior parte de sua história,
a modernidade foi uma era de “engenharia social” em que não se acreditou na
emergência e na reprodução espontânea da ordem; com o desaparecimento das
instituições auto-regenerativas da sociedade pré-moderna, a única ordem
concebível era uma ordem projetada com os poderes da razão e mantida pelo
monitoramento e manejo quotidianos.
• 3 •
Tempos de
desengajamento
ou a grande transformação,
segundo tempo
Desde o começo dos tempos modernos, a gerência não é uma
questão de escolha, mas uma necessidade. Contudo, como observou Karl Marx, não é
preciso que o regente da orquestra sinfônica seja dono dos violinos e
trombetas. Podemos virar o argumento pelo avesso e dizer que os donos dos
instrumentos da orquestra também não precisam assumir a complexa tarefa da
regência. Em verdade, sabe-se de poucos regentes que tenham tentado comprar os
instrumentos de suas orquestras; mas os donos das orquestras e das salas de
concertos têm preferido, como regra geral, contratar seus regentes em lugar de
regê-las diretamente. Assim que puderam fazê-lo, os empresários capitalistas
passaram as tarefas gerenciais a empregados contratados.
Pouco antes da Segunda Guerra Mundial,
James Burnham expressou, de maneira articulada, o que já era do conhecimento
geral, ao proclamar que a “revolução dos gerentes” já acontecera, e estava para
terminar com a vitória dos mesmos. Os lucros, dizia Burnham, ainda fluíam como
antes para os bolsos dos proprietários, mas a condução cotidiana dos negócios
passara a ser uma prerrogativa dos gerentes, e ninguém se atreveria a
interferir, nem desejaria fazê-lo. Alguns gerentes podiam ser donos de ações
das empresas que dirigiam, alguns podiam, em termos legais, ser pura e
simplesmente empregados, mas para a alocação do poder isso era irrelevante. O
poder consiste na tomada de decisões e pertence aos que as tomam. E assim o
poder pertencia aos gerentes.
40
41
Depois de mais de meio século, lê-se a Revolução dos
gerentes de Burnham como o resumo da longa experiência das modernas lutas
pelo poder e das estratégias nelas empregadas. A substância do poder moderno
não estava em títulos legais de propriedade e as lutas modernas pelo poder não
consistiam da corrida por mais posses. O poder moderno dizia respeito antes e
acima de tudo à capacidade
de gerenciar pessoas, de comandar, de estabelecer as regras de conduta e obter
obediência a essas regras. A união pessoal original entre propriedade e
gerência foi um caso de coincidência histórica, e desenvolvimentos posteriores
mostraram o que aconteceu. Essa união mais obscurecia do que revelava a verdade
do poder moderno. De maneira oblíqua, Burnham prestava homenagem à paixão pela construção da ordem e pelo
serviço à ordem como força motriz
da sociedade moderna; e ao engajamento direto com as pessoas, à atividade de padronizar, vigiar, monitorar
e dirigir as ações delas como principal método de projeto, construção e
manutenção da ordem. E ele o fez substituindo o modelo da modernidade capitalista,
dirigida pelo motivo do lucro, pelo do capitalismo moderno, dirigido
pela urgência de substituir a tradição fundada na comunidade por uma rotina
artificial e construída.
Acontece que as formas sociais ficam mais visíveis (e
portanto mais fáceis de serem notadas e reconhecidas pelo que sempre foram)
quando surgem a partir da carapaça dentro da qual foram gestadas; quando
atingem a maturidade e passam a existir. O momento da maturação, contudo, é com
freqüência o começo da decadência e da superação. A história do “grande
engajamento”, da aventura do gerenciamento e da engenharia social não
constituiu uma exceção.
Passadas algumas décadas, vividas à sombra da destruição da guerra e da
reconstrução do pós-guerra, ficou claro que chegara a vez de os gerentes se
livrarem dos incômodos e embaraçosos deveres lançados previamente sobre seus
ombros pelos detentores do capital. Os gerentes se dispunham seriamente a
repetir o ato de desaparecimento dos donos do capital. Depois da era do “grande
engajamento” eram chegados os tempos do “grande desengajamento”. Os tempos de
grande velocidade e aceleração, do
42
encolhimento dos termos do compromisso, da
“flexibilização”, da “redução”, da procura de “fontes alternativas”. Os termos
da união “até segunda ordem”, enquanto (e só enquanto) “durar a satisfação”.
A “desregulamentação” é a palavra da hora e o princípio
estratégico louvado e praticamente exibido pelos detentores do poder. A
“desregulamentação” é demandada porque os poderosos não querem ser “regulados”
— ter sua liberdade de escolha limitada e sua liberdade de movimento restrita;
mas também (talvez principalmente) porque já não estão interessados em
regular os outros. O serviço e o policiamento da ordem viraram uma batata
quente alegremente descartada pelos que são suficientemente fortes para
livrar-se da incômoda sucata, entregando-a de pronto aos que estão mais abaixo
na hierarquia e são fracos demais para recusar o presente venenoso.
Nestes dias, a dominação não se apóia principalmente no
engajamento e no compromisso; na capacidade de os dirigentes observarem de
perto os movimentos dos dirigidos e coagirem-nos à obediência. Ela ganhou um novo fundamento,
muito menos incômodo e menos custoso — pois requer pouco serviço: a incerteza
dos governados sobre o próximo movimento dos governantes — se estes se dignarem
a fazê-lo. Como Pierre Bourdieu
não se cansou de observar, o estado de permanente précarité — insegurança quanto à posição social, incerteza sobre o futuro
da sobrevivência e a opressiva sensação de “não segurar o presente”— gera uma
incapacidade de fazer planos e segui-los. Quando a ameaça da mudança unilateral
ou do fim dos arranjos correntes por parte daqueles que decidem o meio em que
os afazeres da vida devem ser realizados paira perpetuamente sobre as cabeças
daqueles que os realizam, as chances de resistência aos movimentos dos
detentores do poder, e particularmente de resistência firme, organizada e
solidária, são mínimas — virtualmente inexistentes. Os detentores do poder não
têm o que temer e assim não sentem necessidade das custosas e complicadas
“fábricas de obediência” ao estilo panóptico. Em meio à incerteza e à insegurança, a disciplina (ou antes a
submissão à condição de que “não há
alternativa”) anda e se reproduz por conta própria e não
43
precisa de capatazes para supervisionar seu abastecimento
constantemente atualizado.
O desmantelamento dos panópticos anuncia um grande salto
para frente no caminho da maior liberdade do indivíduo. Ela é experimentada,
porém, para dizer o mínimo, como uma bênção problemática, ou uma bênção
enfeitada demais para ser recebida com alegria.
O regime do panóptico, praticamente universal durante a era
do “grande engajamento”, era cruel e degradante: fazia com que mesmo esforços
produtivos perfeitamente racionais parecessem uma “faina fútil” e despiam o
trabalho de sua capacidade de conferir “honra, mérito e dignidade”. Tinha, contudo,
certas vantagens para as vítimas — trazia-lhes benefícios que só foram
percebidos com seu desaparecimento.
Sua permanência estável fazia do
engajamento mútuo uma moldura confiável em que os destinatários do arranjo
panóptico também podiam inscrever confiantemente suas esperanças e sonhos de um
futuro melhor; a solidez do engajamento mútuo fazia da luta por condições
melhores uma luta digna de ser travada. Como os dois lados estavam “presos ao
lugar” de modo similar e não tinham liberdade de movimento, tinha sentido que
ambos procurassem uma acomodação aceitável em lugar de arriscar a confrontação
e a guerra (mesmo em Auschwitz, onde o sinistro potencial do panóptico revelou
toda sua horrível maldade, os internos que — ao contrário dos prisioneiros judeus
e ciganos — esperavam permanecer no campo e trabalhar ainda por longo tempo em
vez de serem mandados para a morte a qualquer momento conseguiam melhoras em
suas condições pela resistência solidária). A rotina imposta pelas “fábricas de
disciplina” era sem dúvida detestada e provocava ressentimentos. Mas, como
lembra Richard Sennett,
intensa
negociação sobre os horários ocupava tanto a United Auto Workers Union quanto a
administração da General Motors... O tempo rotinizado se tornara uma arena em
que os trabalhadores podiam fazer suas próprias demandas, uma arena de poder...
A rotina pode ser degradante, mas também pode proteger; a rotina
44
pode
descompor o trabalho, mas também pode compor uma vida.14
Sob as novas condições, com os poderes do
momento não mais interessados na supervisão e monitoramento da rotina e
preferindo apoiar-se na endêmica falta de autoconfiança de seus subordinados,
as limitações que interferiam sobre a liberdade dos subordinados não ficaram
menos estritas; a “dominação a partir de cima”, como observa Sennett, se tornou
“informe” sem perder nada de sua força.15 Como que juntando o
insulto ao opróbrio, as forças capazes de infligir dor mantiveram firme o
controle, talvez mais firme do que antes, mas também ficaram invisíveis e quase
impossíveis de localizar, para que houvesse reação e eventualmente
confrontação. A luta desesperada para mitigar a dor tem que ser travada no
escuro e tende a ser desfocada, variando de um alvo acidental para outro, cada
tentativa errando longe, e com pouca vantagem mesmo que acerte. As forças
verdadeiramente responsáveis pela dor podem se sentir seguras de que, por mais
furiosas que sejam as respostas provocadas pelos sofrimentos que causaram, elas
serão desviadas para outros objetos e dificilmente impedirão sua liberdade de
ação.
Há meio século, os estudiosos das ciências sociais foram
apresentados ao funcionamento da psique humana através dos experimentos em
série dos psicólogos behavioristas; ratos famintos tinham que percorrer os
corredores tortuosos de um labirinto em busca de uma porção de comida colocada
sempre no mesmo compartimento, de tal modo que o tempo que levavam para
aprender o caminho certo (sempre o mesmo caminho certo entre os muitos errados)
pudesse ser devidamente registrado. Apenas umas poucas pessoas objetaram então à sugestão dos behavioristas de que o que
valia para os ratos também valia para os humanos, e as objeções foram poucas e
espaçadas não porque a semelhança implícita entre ratos e humanos fosse
evidente ou universalmente aceita, mas porque a situação no laboratório
behaviorista era notavelmente similar ao destino humano concebido à época: muralhas sólidas, fortes,
impenetráveis e inamovíveis de um labirinto com apenas um caminho certo e
muitos outros
45
levando à perdição; regras imutáveis determinando uma única
localização do prêmio que esperava ao fim do caminho; o aprendizado
(memorização e habituação) da capacidade de distinguir os caminhos certos dos
errados como essência da arte de viver. A situação artificial dos ratos no
labirinto parecia uma réplica fiel da sina diária dos humanos no mundo. Se hoje
os paralelos behavioristas perderam grande parte de seu poder de persuasão e
estão quase esquecidos isso não se deveu a que as insinuações de parentesco
espiritual com os ratos tenham parecido ofensivas ao lado humano da comparação,
mas sim a que a visão de um sólido labirinto talhado na pedra não está mais de
acordo com a visão que os humanos têm do mundo em que vivem. Uma metáfora
radicalmente diferente, a imagem de Edmund Jabès de um deserto em que os
caminhos (muitos e cruzados, e todos sem sinalização) não passam de filas de
pegadas de passantes, que poderão ser apagadas pelos ventos, parece ajustar-se
muito melhor a essa experiência.
No mundo em que vivemos no limiar do século XXI, as
muralhas estão longe de ser sólidas e com certeza não estão fixadas de uma vez
por todas; eminentemente móveis, parecem aos passantes divisórias de papelão ou
telas destinadas a serem reposicionadas mais e mais vezes segundo mudanças
sucessivas de necessidades ou caprichos. Alternativamente, pode-se dizer que há
hoje meadas de algodão onde ficavam as gaiolas de ferro do tempo de Max Weber; os
golpes passam por elas e a abertura
produzida se fechará no momento seguinte. Pode-se também pensar num mundo que
deixou de ser um árbitro rigorosamente imparcial e se tornou um dos jogadores
que, como todos os jogadores adeptos aos truques, esconde a mão e espera para
trapacear se tiver a chance.
De longe a mais dura das gaiolas de ferro em que a vida média
costumava ser inscrita era o quadro social em que se ganhava o sustento: o
escritório ou a planta industrial, os trabalhos ali realizados, as habilidades
necessárias para realizá-los e a rotina diária. Solidamente encapsulado nessa moldura, o trabalho
podia razoavelmente ser visto como uma vocação ou a missão de uma vida: como o
eixo em torno do qual o resto da vida se
46
revolvia e ao longo do qual se registravam as realizações.
Agora, esse eixo está irreparavelmente quebrado. Em lugar de ter ficado
“flexível”, como os porta-vozes do admirável mundo novo gostariam que fosse
percebido, ele se tornou frágil e quebradiço. Nada pode (ou deveria) ser fixado
a esse eixo com segurança — confiar em sua durabilidade seria ingênuo e poderia
ser fatal. Até os escritórios mais veneráveis e as fábricas mais orgulhosas de
seu longo e glorioso passado tendem a desaparecer da noite para o dia e sem
aviso; empregos tidos como permanentes e indispensáveis, do tipo “impossível
passar sem eles”, se evaporam antes que o trabalho esteja terminado,
habilidades outrora febrilmente procuradas, sob forte demanda, envelhecem e
deixam de ser vendáveis muito antes da data prevista de expiração; e rotinas de
trabalho são viradas de cabeça para baixo antes de serem aprendidas. A “porção
de comida” no suposto fim do caminho se desloca ou apodrece mais rápido e antes
que mesmo o mais inteligente dos ratos tenha aprendido como chegar até ela...
Porém, a moldura social de trabalho e sobrevivência não é a
única que está se esboroando. Tudo o mais parece estar no olho do furacão.
Citando Sennett uma vez mais,16 o lugar onde se passará toda a vida,
ou onde se espera passá-la, “existe a partir da batuta do agente imobiliário,
floresce e começa a decair no prazo de uma geração”. Em tal lugar (e mais e mais pessoas começam a conhecer esses
lugares e sua amarga atmosfera do modo mais difícil) “ninguém testemunha a vida
de ninguém”. O lugar pode estar fisicamente cheio, e no entanto assustar e
repelir os moradores por seu vazio moral. Não somente ele surge do nada, num
local inóspito na memória humana, e antes do pagamento da hipoteca já começou a
decair, deixando de ser hospitaleiro para se tornar repulsivo e obrigando os
infelizes moradores a buscarem outra moradia. O que acontece é que nada nele
permanece o mesmo durante muito tempo, e nada dura o suficiente para ser
absorvido, tornar-se familiar e transformar-se no que as pessoas ávidas de
comunidade e lar procuravam e esperavam. Deixaram de existir os simpáticos
mercadinhos de esquina; se conseguiram sobreviver à competição dos supermercados, seus donos,
gerentes e os rostos atrás dos balcões mudam com excessiva freqüência
47
para que qualquer um deles possa substituir a
permanência que já não se encontra nas ruas. Também desapareceram o banco local
e os escritórios da construtora, substituídos pelas vozes anônimas e impessoais
(cada vez mais produzidas por sintetiza-dores eletrônicos) do outro lado da
linha ou por “amigáveis”, embora infinitamente remotos, ícones da web sem nome
e sem rosto. Também não existe mais o carteiro, que batia à porta seis dias por semana e se dirigia
aos moradores pelo nome. Chegaram as lojas de departamentos e cadeias de
butiques, e que, espera-se, sobrevivam às fusões ou trocas de donos, mas que
trocam de pessoal a uma tal velocidade que reduz a zero a chance de se
encontrar duas vezes seguidas o mesmo vendedor.
Mas as coisas tampouco parecem mais sólidas dentro da casa
da família do que na rua. Como observou Yvonne Roberts com acidez, “embarcar no casamento no século XXI parece
uma decisão tão sábia como partir para o mar numa jangada de mata-borrão” (Observer, 13 de fevereiro de
2000). As chances de que a família sobreviva a qualquer de seus membros diminui
a cada ano que passa: a expectativa de vida do corpo mortal individual parece
uma eternidade por comparação. Uma criança média tem diversos pares de avós e
diversos “lares” entre os quais escolher — “por temporada”, como as casas de
praia. Nenhum deles se parece com o verdadeiro “e único” lar.
Em suma: foi-se a maioria dos pontos firmes e solidamente marcados de orientação que
sugeriam uma situação social que era mais duradoura, mais segura e mais
confiável do que o tempo de uma vida individual. Foi-se a certeza de que “nos
veremos outra vez”, de que nos encontraremos repetidamente e por um longo
porvir — e com ela a de que podemos supor que a sociedade tem uma longa memória
e de que o que fazemos aos outros hoje virá a nos confortar ou perturbar no
futuro; de que o que fazemos aos outros tem significado mais do que episódico,
dado que as conseqüências de nossos atos permanecerão conosco por muito tempo
depois do fim aparente do ato — sobrevivendo nas mentes e feitos de testemunhas
que não desaparecerão.
Esses e outros supostos semelhantes formavam, por assim
dizer, o “fundamento epistemológico” da experiência de comuni-
48
dade, seríamos tentados a dizer “de uma comunidade bem
tecida”, se a expressão não fosse pleonástica — nenhum agregado de seres
humanos é sentido como “comunidade” a menos que seja “bem tecido” de biografias
compartilhadas ao longo de uma história duradoura e uma expectativa ainda mais
longa de interação freqüente e intensa. É essa experiência que falta hoje em
dia, e é sua ausência que é
referida como “decadência”, “desaparecimento” ou “eclipse” da comunidade — como
já notava Maurice R. Stein em 1960:
“as comunidades se tornam cada vez mais dispensáveis... As lealdades pessoais
diminuem seu âmbito com o enfraquecimento sucessivo dos laços nacionais,
regionais, comunitários, de vizinhança, de família e, finalmente, dos laços que
nos ligam a uma imagem coerente de nós mesmos.”17
O tipo de incerteza, de obscuros medos e premonições em
relação ao futuro que assombram os homens e mulheres no ambiente fluido e em
perpétua transformação em que as regras do jogo mudam no meio da partida sem
qualquer aviso ou padrão legível, não une os sofredores: antes os divide e os
separa. As dores que causam aos indivíduos não se somam, não se acumulam nem
condensam numa espécie de “causa comum” que possa ser adotada de maneira mais
eficaz unindo as forças e agindo em uníssono. A decadência da comunidade nesse
sentido se perpetua; uma vez instalada, há cada vez menos estímulos para deter
a desintegração dos laços humanos e para procurar meios de unir de novo o que
foi rompido. A sina de indivíduos que lutam em solidão pode ser dolorosa e
pouco atraente, mas firmes compromissos a atuar em conjunto parecem prometer
mais perdas do que ganhos. Pode-se descobrir que as jangadas são feitas de
mata-bor-rão só depois que a chance de salvação já tiver sido perdida.
• 4 •
A
secessão dos bem-sucedidos
A expressão que encabeça este capítulo foi tirada de The
Work of Nations de Robert Reich: refere-se ao novo distanciamento, indiferença,
desengajamento e, em verdade, à extraterritorialidade mental e moral daqueles que não se
importam de ficar sós, desde que os outros, que pensam diferente, não insistam
em que se ocupem e muito menos partilhem sua vida por conta própria. Richard Rorty18 sugere que, tendo
capitalizado individualmente as batalhas solidárias e coletivas de seus pais,
os filhos da geração que passou pela Grande Depressão se estabeleceram nos
subúrbios prósperos e “decidiram recolher as pontes levadiças”. Na verdade, os
filhos dos militantes obtiveram suas promoções individuais graças ao seguro
comunitário contra azares individuais que os pais construíram para eles. Mas
não gostam de ser lembrados de como foi que ficaram auto-suficientes; não vêem
razão por que os outros não sejam como eles, desde que se comportem como eles.
Reconstroem seu próprio desagrado com a “dependência” de que não mais precisam
como uma condenação moral universal da dependência de que os menos afortunados
precisam como do ar que respiram e que não podem dispensar. E assim, como diz
Rorty,
Sob
os presidentes Carter
e Clinton, o Partido Democrata sobreviveu
afastando-se dos sindicatos e de qualquer menção à redistribuição, movendo-se para um vácuo estéril chamado de
“centro”... Foi como se a distribuição da renda e da riqueza tivesse virado um
tópico assustador demais para ser mencionado por qualquer político
norte-americano... E assim a escolha entre os dois partidos
49
50
principais
acabou como uma escolha entre mentiras cínicas e um silêncio temeroso.
Aconteceu alguma coisa que jamais teria
ocorrido a Menênio Agripa quando instigava os plebeus a permanecerem em Roma e
a abandonarem os planos de separar-se deixando os patrícios por sua própria
conta. Agripa ficaria atônito ao saber que, no fim, não foram os plebeus, mas
os equivalentes contemporâneos dos patrícios da Roma antiga que
(intencionalmente ou não, mas de qualquer maneira sem nunca olhar para trás)
decidiram pela “secessão”, por abandonar seus compromissos e lavar as mãos de
suas responsabilidades. Os patrícios de hoje não precisam mais dos serviços da
comunidade; na verdade, não conseguem perceber o que ganhariam permanecendo na
e com a comunidade que já não tenham obtido por conta própria ou ainda
esperam assegurar por seu próprio esforço, mas podem pensar em muitos recursos
que poderiam perder caso se submetessem às demandas da solidariedade
comunitária.
Dick Pountain e David Robins19 escolhem o modo “cool” [distanciado]
como sintoma da mente e caráter da “secessão dos bem-sucedidos”. Quando o “cool”
ganhou popularidade repentina e se espalhou como fogo na floresta entre os
filhos dos prósperos pós-Depressão envergava a máscara de uma rebelião e da
renovação moral: era o símbolo de um distanciamento militante de uma ordem
envelhecida satisfeita com a situação a que o passado a tinha conduzido e à míngua de idéias novas. Hoje, porém, o “cool”
se transformou na visão do mundo dos importantes, inteiramente
conservadores em suas ações e nas preferências que essas ações exemplificam,
quando não em seu auto-elogio explícito (e enganador). Essa ordem cada vez mais
conservadora se funda nos impressionantes poderes do mercado de consumo e do
que resta das instituições políticas outrora autônomas. O “cool”, sugerem
Pountain e Robins, “parece estar usurpando o lugar da ética do trabalho para
instalar-se como forma mental dominante do capitalismo de consumo avançado”. “Cool”
significa “fuga ao sentimento”, fuga “da confusão da verdadeira intimidade,
para o mundo do sexo fácil, do divórcio casual, de relações não possessivas”.
51
Dada
a completa perda da fé em alternativas políticas radicais, o cool diz
hoje respeito principalmente ao consumo. Esse é o “cimento” que preenche a
contradição escancarada — cool é a maneira de viver com as expectativas
rebaixadas, indo às compras... O gosto pessoal é elevado a um ethos completo;
você é aquilo de que gosta e, portanto, aquilo que você compra.
Embora ostente os enfeites da autonomia
pessoal e atue sob o slogan da “falta de espaço”, a fuga “da confusão da
verdadeira intimidade” está mais próxima do rompante que de uma jornada individualmente concebida e
assumida de auto-exploração. A secessão quase nunca é solitária — os fugitivos
se inclinam a juntar-se com outros fugitivos como eles, e os padrões da vida de
fugitivo tendem a ser tão rígidos e exigentes como aqueles que pareciam
opressivos na vida deixada para trás; a facilidade do divórcio casual
multiplica imperativos tão inflexíveis e intratáveis (e potencialmente tão
desagradáveis) como o casamento sem cláusula de rompimento. O único atrativo do
exílio voluntário é a ausência de compromissos, especialmente de compromissos
de longo prazo, do tipo dos que impedem a liberdade de movimento numa
comunidade com sua “confusa intimidade”. Substituídos os compromissos pelos
encontros passageiros e pelas relações “até nova ordem” ou “por uma noite” (ou
um dia), podemos excluir do cálculo os efeitos que nossas ações podem ter sobre
a vida dos outros. O futuro pode ser tão nebuloso e impenetrável como antes,
mas pelo menos esse traço que seria desconfortável não influi sobre uma vida vivida
como uma sucessão de episódios e uma série de recomeços.
Sören Kierkegaard20 provavelmente acharia uma grande afinidade
entre o tipo de vida que atrai os bem-sucedidos à secessão e o tipo de patologia que
entreviu no caráter do Don Giovanni, tal como retratado no libreto da ópera de Mozart.
O prazer de Don Juan, como Kierkegaard o via, não era a posse das
mulheres, mas a sedução delas; Don Giovanni não tinha interesse pelas
mulheres já conquistadas — seu prazer terminava no momento do triunfo. Seus apetites
sexuais não eram necessariamente mais vorazes ou mais insaciáveis que o de
qualquer homem; o que
52
importa, porém, é que a questão do tamanho desses apetites era totalmente
irrelevante para a fórmula da vida de Don Juan, pois sua vida era dedicada a manter vivo o desejo e não
a sua satisfação.
É só
dessa maneira que Don Juan pode tornar-se um épico, na medida em que ele
constantemente acaba e constantemente recomeça do começo, pois sua vida é a
soma de momentos repulsivos que não têm coerência, sua vida como momento é a soma dos momentos, assim como a soma dos momentos é o
momento...
A escolha da sedução das mulheres como
passatempo principal certamente era um atributo acidental do plano de vida de Don
Juan; poderia ser facilmente substituída por tipos de prazer inteiramente
diferentes sem afastar-se um átimo da estratégia de vida deste personagem.
Acabar constantemente e começar outra vez desde o começo — essa era a essência
da fórmula de vida de Don Giovanni, e para ser aplicada consistentemente essa fórmula requeria, acima de
tudo, a inexistência de ligações e de compromissos, e a negação de reparação por nossos prazeres
passados; em outras palavras, postulava a ausência de comunidade. Don
Juan estava só, e se estivesse numa multidão de outros como ele isso não faria
diferença: uma multidão de Don Giovannis não constituiria uma comunidade.
O mesmo pode ser dito dos bem-sucedidos em
secessão dos dias de hoje. As “comunidades cercadas” pesadamente guardadas e
eletronicamente controladas que eles compram no momento em que têm dinheiro ou
crédito suficiente para manter distância da “confusa intimidade” da vida comum
da cidade são “comunidades” só no nome. O que seus moradores estão dispostos a
comprar ao preço de um braço ou uma perna é o direito de manter-se à distância e viver livre dos intrusos.
“Intrusos” são todas as outras pessoas, culpadas de ter suas próprias agendas e
viver suas vidas do modo como querem. A proximidade de outras agendas e de
modos de vida alternativos solapa o conforto de “acabar rapidamente e começar
do começo”, e por isso os “intrusos” são objetos de ressentimento porque
visíveis e embaraçosos.
53
“Desocupados” e pessoas “à espreita” são os objetos do temor e ódio
dos Don Giovannis de hoje, e é a distância em relação a esses tipos, prometida
pela guarda fortemente armada em constante ronda e pela densa rede de cameras espias
que torna as “comunidades cercadas” tão atraentes e procuradas e acaba por ser
o ponto mais destacado pelos agentes imobiliários, acima de qualquer outro traço,
em seus anúncios.
O mundo habitado pela nova elite não é porém definido por
seu “endereço permanente” (no antigo sentido físico e topográfico). Seu mundo
não tem outro “endereço permanente” que não o e-mail e o número do telefone celular. A nova elite
não é definida por qualquer localidade: é em verdade e plenamente extraterritorial.
Só a extraterritorialidade é garantida contra a comunidade, e a nova “elite global” que, exceto pela
companhia inevitável (e às vezes agradável) dos maîtres, arrumadeiras
e garçons, é sua única
detentora e quer que assim seja.
Os entrevistados no “Estudo da Globalização Cultural”
realizado pelo Instituto de Estudos Avançados da Cultura da Universidade da
Virgínia,21 homens e mulheres representativos dos novos
extraterritoriais, não têm dúvidas sobre isso. Um executivo da AT&T
assegura que ele e seus companheiros de viagem “se consideram a espécie de
cidadãos que por acaso têm um passaporte norte-americano”. Como concluem os
autores do relatório a partir do grande número de respostas que reuniram, “eles
vêem as fronteiras nacionais e os Estados-nação como cada vez mais irrelevantes
para as principais ações da vida no século XXI. Um executivo da Nike insistiu
sobre sua extraterritorialidade, desprezando os que pensam de outra maneira:
“as únicas pessoas a se preocuparem com as fronteiras nacionais serão os
políticos”.
Ser extraterritorial não significa, no entanto, ser
portador de uma nova síntese cultural global, ou mesmo estabelecer laços e
canais de comunicação entre áreas e tradições culturais. Há uma interface muito
estreita, se houver alguma, entre o “território da extraterritorialidade” e as
terras em que seus vários postos avançados e hospedarias intermediárias por
acaso se situam. Como observam os pesquisadores da Virgínia, os executivos
globais que entrevistaram
54
vivem
e trabalham num mundo feito de viagens entre os principais centros
metropolitanos globais — Tóquio, Nova York, Londres e Los Angeles. Passam não
menos do que um terço de seu tempo no exterior. Quando no exterior, a maioria
dos entrevistados tende a interagir e socializar com outros “globalizados”...
Onde quer que vão, os hotéis, restaurantes, academias de ginástica, escritórios
e aeroportos são virtualmente idênticos. Num certo sentido habitam uma bolha
sociocultural isolada das diferenças mais ásperas entre diferentes culturas
nacionais... São certamente cosmopolitas, mas de maneira limitada e isolada.
Deixemos claro sobre o que os autores do
relato (e os autores de inúmeros outros relatos, jornalistas e pesquisadores,
todos pintando um retrato espantosamente parecido) estão falando. Perguntemos
qual é o significado desse “cosmopolitismo”, palavra que tende a ser usada com
freqüência cada vez maior tanto na apresentação do estilo de vida dos
“globalizados” quanto nas suas autodefinições. A que espécie de experiência e a que traços culturais refere-se essa nova
palavra da moda?
Independente de outros conteúdos associados a ele, o
“cosmopolitismo” da nova elite global é certamente seletivo. É
singularmente inadequado para o papel de “cultura global”: o modelo não pode
ser espalhado, disseminado, compartilhado universalmente, usado como padrão a
imitar numa missão de proselitismo e conversão. Como tal, é diferente das
culturas que conhecemos e sobre as quais ouvimos falar, aqueles diferentes
modelos da “vida decente e apropriada” que, durante a era moderna, costumavam
ser expostos aos olhos do “povo” por seus líderes intelectuais, professores,
pregadores e outros “reformadores”. O estilo de vida “cosmopolita” dos novos
atores em secessão não foi feito para imitação das massas, e os “cosmopolitas”
não são apóstolos de um modelo novo e melhor de vida, nem são a vanguarda de um
exército em marcha. O
que esse estilo de vida celebra é a irrelevância do lugar, uma condição inteiramente fora do alcance
das pessoas comuns, dos “nativos” estreitamente presos ao chão e que (caso
decidam desconsiderar os grilhões) vão encontrar no “amplo mundo lá fora”
funcionários da imigração pouco amigáveis e severos em lugar dos sorridentes
recepcionistas dos hotéis. A
55
mensagem do modo “cosmopolita” de ser é curta e grossa: não
importa onde estamos, o que importa é que nós estamos lá.
As viagens dos novos cosmopolitas não são viagens de
descoberta. Embora sejam com freqüência descritas como tais pelos viajantes
globais e seus biógrafos; seu estilo de vida não é “híbrido” nem
particularmente notável por seu gosto pela variedade. A mesmice é a
característica mais notável, e a identidade cosmopolita é feita precisamente da uniformidade mundial
dos passatempos e da semelhança global dos alojamentos cosmopolitas, e isso
constrói e sustenta sua secessão coletiva em relação à diversidade dos nativos. Dentro das muitas
ilhas do arquipélago cosmopolita, o público é homogêneo, as regras de admissão
são estrita e meticulosamente (ainda que de modo informal) impostas, os padrões
de conduta precisos e exigentes, demandando conformidade incondicional. Como em
todas as “comunidades cercadas”, a probabilidade de encontrar um estrangeiro
genuíno e de enfrentar um genuíno desafio cultural é reduzida ao mínimo
inevitável; os estranhos que não podem ser fisicamente removidos por
causa do teor indispensável dos serviços que prestam ao isolamento e
autocontenção ilusória das ilhas cosmopolitas são culturalmente eliminados
— jogados para o fundo do “invisível” e “tido como certo”.
Acima de tudo, a “bolha” em que a elite cosmopolita global
dos negócios e da indústria cultural passa a maior parte de sua vida é — repito
— uma zona livre de comunidade. É um lugar onde uma reunião, entendida
como mesmice (ou mais precisamente, uma insignificância de idiossincrasias) de
indivíduos encontrados por acaso e “ necessariamente irrelevantes”, e uma
individualidade, entendida como a facilidade não-problemática com que as parcerias
são celebradas e abandonadas, são exercidas dia a dia em lugar de todas as
outras práticas socialmente compartilhadas. A “secessão dos bem-sucedidos” é,
antes e acima de tudo, uma fuga da comunidade.
• 5 •
Duas
fontes do comunitarismo
A partir deste breve levantamento parece que o novo
cosmopolitismo dos bem-sucedidos (aqueles que conseguem reformular a
individualidade de jure, uma condição que compartilham com o
resto dos homens e mulheres modernos, como individualidade de facto, uma capacidade que os separa de
grande número de seus contemporâneos) não precisa da comunidade. Há pouco que
possam ganhar com a bem-tecida rede de obrigações comunitárias, e muito que
perder se forem capturados por ela. Em seu subestimado estudo feito bem antes
que a idéia da hibridez global dos cosmopolitas livres fosse inventada e
transformada no folclore das “classes tagarelas”,22 Geoff Dench apontou
para o traço da comunidade que leva todos os que podem a fugirem dela: uma
parte integrante da idéia de comunidade é a “obrigação fraterna” “de partilhar
as vantagens entre seus membros, independente do talento ou importância deles”.
Esse traço por si só faz do “comunitarismo” “uma filosofia dos fracos”. E os
“fracos”, diga-se, são aqueles indivíduos de jure que não são capazes de
praticar a individualidade de facto, e assim são postos de lado se e quando a
idéia de que as pessoas merecem o que conseguem obter por seus próprios meios e
músculos (e não merecem nada mais que isso) toma o lugar da obrigação de
compartilhar. A idéia
de
que o mérito, e só o mérito, deve ser premiado é prontamente transformada numa
carta autocongratulatória com que os poderosos e bem-sucedidos atribuem
generosos benefícios a si próprios a partir dos recursos da sociedade. A
sociedade aberta a todos os talentos se torna para todos os fins práticos uma
sociedade em que
56
57
a
incapacidade de exibir alguma capacidade especial é tratada como base
suficiente para a condenação a uma vida de submissão.
Condenação, também, e cada vez mais, a uma
miséria sem perspectivas, à medida que o triunfo da ideologia do mérito avança em direção a
sua conclusão lógica, isto é, do desmantelamento das provisões previdenciárias,
aquele seguro comunitário contra o infortúnio individual, ou à reformulação dessas provisões — outrora
vistas como uma obrigação fraternal sem discriminações, e um direito universal
— como caridade da parte “dos que estão dispostos” dirigida “aos que têm
necessidades”.
“Os poderosos e bem-sucedidos” não podem dispensar com
facilidade a visão meritocrática do mundo sem afetar seriamente o fundamento
social do privilégio que prezam e do qual não têm intenção de abrir mão. E
enquanto essa visão de mundo for mantida e considerada o cânone da virtude
pública, o princípio comunitário do compartilhamento não pode ser aceito. A
avareza que resulta numa relutância a pôr a mão no bolso não é talvez a única
razão, talvez nem mesmo a principal, dessa não-aceitação. Há coisas mais
importantes que o mero desapreço pelo auto-sacrifício: o princípio mesmo que
fundamenta uma ambicionada distinção social é que está em jogo. Se qualquer coisa
além do mérito imputado fosse reconhecida como título legítimo às recompensas
oferecidas, aquele princípio perderia sua maravilhosa capacidade de conferir
dignidade ao privilégio. Para os “poderosos e bem-sucedidos” o desejo de
“dignidade, mérito e honra” paradoxalmente exige a negação da comunidade.
Por mais verdade que isso seja, não é toda a verdade. Os
“poderosos e bem-sucedidos” podem ressentir-se, ao contrário dos fracos
e derrotados, dos laços comunitários — mas da mesma forma que os demais
homens e mulheres podem achar que a vida vivida sem comunidade é precária,
amiúde insatisfatória e algumas vezes assustadora. Liberdade e comunidade podem
chocar-se e entrar em conflito, mas uma composição a que faltem uma ou outra
não leva a uma vida satisfatória.
A necessidade dos dois ingredientes é
sentida de maneira ainda mais forte porque a vida, em nossa sociedade
globalizada e
58
rapidamente desregulada que gerou a nova elite cosmopolita,
mas que foi definida, na célebre expressão de Ulrich Beck, como Risikogessellschaft, sociedade
do risco, é uma Risikoleben, uma vida de risco — em que “a idéia mesmo
de controle, certeza e segurança... entra em colapso”;23 e porque em
nenhum outro lugar da sociedade essa certeza e essa segurança — e
particularmente a sensação tranqüilizadora de “saber com certeza o que vai
acontecer” — entraram em colapso tão retumbante como no território subdefinido,
subinstitucionalizado, sub-regulado e com freqüência anômico da
extraterritorialidade habitada pelos novos cosmopolitas. Falar de “colapso”
talvez seja equivalente a dar crédito demais à certeza que resta. Não é que os velhos
mapas tenham ficado desatualizados e não mais ofereçam orientação confiável nesse
terreno pouco familiar — é que o levantamento nunca foi feito, e a agência que
poderia fazê-lo nem mesmo foi formada, nem parece que virá a sê-lo num futuro
previsível. A faixa de fronteira para a qual a fuga para a
extraterritorialidade transportou os refugiados por escolha nunca foi mapeada;
e não tem características permanentes em condições de serem projetadas no mapa,
mesmo que quiséssemos desenhá-lo. Aqui a comunidade não “foi perdida”; ela
nunca nasceu.
E não é o caso de “negar as raízes” — não
há raízes a negar. E o que é ainda mais importante: não há por que negar as
responsabilidades em relação aos fracos — não há fracos deste lado dos portões
estritamente vigiados, e menos ainda responsabilidades para com seus destinos.
De fato, não há estruturas firmes, nem origens de classe que não possam ser
deixadas para trás, nem passado que não possa ser jogado fora. O habitat extraterritorial da elite global é informe
e extravasa os limites que lhe são impostos, e parece macio e flexível, pronto
para ser alterado por mãos habilidosas. Ninguém impede ninguém de ser o que é e ninguém parece impedir ninguém de ser
diferente do que é. A identidade
parece uma questão de escolha e resolução, e as escolhas devem ser respeitadas
e a resolução merece ser recompensada. Os cosmopolitas são culturalistas natos
e naturais, a cultura de seu tipo sendo uma justaposição de convenções
revogáveis, lugar de in-
59
venção e experimentação, mas acima de tudo sem pontos de
não-retorno.
No livro citado,24 Richard Rorty escreve sobre a “esquerda cultural”
nos EUA (categoria que se sobrepõe em larga medida à nova elite cosmopolita em discussão) que
veio a substituir a esquerda politicamente correta da época da “grande
sociedade” e cujos muitos membros
se
especializam no que chamam de “política da diferença”, ou “da identidade”, ou
“do reconhecimento”. Essa esquerda cultural pensa mais no estigma do que no
dinheiro, mais em profundas e ocultas motivações psicossexuais do que na
avareza rasa e evidente... [Essa esquerda cultural] prefere não falar de
dinheiro. Seu inimigo principal é uma forma da mente e não uma forma de arranjo
econômico.
Foi sem dúvida um feito da nova esquerda
ter instituído (ao mesmo tempo em que refletia sobre a experiência
“culturalista” e as práticas diárias de seu novo e pouco definido habitat) novas disciplinas acadêmicas — como a
história das mulheres e estudos sobre os negros, gays, hispano-americanos
e “de outras vítimas” (como os descreveu genericamente Stefan Collini); entretanto,
como Rorty observa com amargura, não se encontram estudos sobre os
desempregados, os sem-teto e os que moram em trailers. Deixou-se
que “demagogos vis como Patrick Buchanan tirem vantagem política do fosso que
se abre cada vez mais entre os ricos e os pobres”.
No mundo acolchoado, maleável e informe da
elite global dos negócios e da indústria cultural, em que tudo pode ser feito e
refeito e nada vira sólido, não há lugar para realidades obstinadas e duras
como a pobreza, nem para a indignidade de ser deixado para trás, nem tampouco
para a humilhação que representa a incapacidade de participar do jogo do
consumo. A nova elite, com carros próprios em quantidade suficiente para não se
preocupar com o estado lamentável do transporte público, de fato destruiu as
pontes que seus pais tinham atravessado à medida que as deixava para trás, esquecendo que essas pontes eram cons-
60
truídas e usadas socialmente — e que, se assim não
fosse, ela mesma não teria chegado aonde chegou.
Em termos práticos, a nova elite global lavou as mãos em
relação à questão do “transporte
público”. A “redistribuição” está definitivamente excluída, lançada à lata de lixo da história, junto com outros
lamentáveis erros de julgamento que são hoje retrospectivamente
responsabilizados pela opressão da autonomia individual e portanto também pelo
estreitamento daquele “espaço” de que todos, como gostamos de repetir,
“precisamos cada vez em maior quantidade”. E portanto também está eliminada a
comunidade, entendida como um lugar de compartilhamento do bem-estar conjuntamente
conseguido; como uma espécie de união que supõe a responsabilidade dos ricos e
dá substância às esperanças dos pobres de que essa responsabilidade será
assumida.
Isso não quer dizer que a “comunidade” esteja ausente do
vocabulário da elite global, nem que, se mencionada, seja negada e censurada. É
só que a “comunidade” da Lebenswelt da elite global é muito diferente
daquela outra “comunidade” dos fracos e despossuídos. Em cada uma das duas
linguagens em que aparece, a das elites globais e a dos deixados para trás, a
noção de “comunidade” corresponde a experiências inteiramente diferentes e a aspirações contrastantes.
Por mais que prezem sua autonomia individual, e por mais
confiança que tenham em sua capacidade pessoal e privada de defendê-la com
eficiência e dela fazer bom uso, os membros da elite global por vezes sentem
necessidade de fazer parte de alguma coisa. Saber que não estamos sós e que
nossas aspirações pessoais são compartilhadas por outros pode conferir
segurança. As pessoas que tropeçam entre uma escolha arriscada e outra (afinal
todos vivemos na Risikogesselschaft e viver em tal mundo é uma Risikoleben) e que nunca têm certeza de
que a escolha feita resultará na bem-aventurança que esperam, aceitam qualquer
tipo de conforto.
Em nossos tempos, depois da desvalorização das opiniões
locais e do lento mas constante desaparecimento dos “líderes locais de opinião”
(problema que discuti de modo mais completo nos dois primeiros capítulos de Globalização:
As conseqüências
61
humanas) restam duas autoridades, e só duas,
capazes de conferir segurança aos juízos que pronunciam ou manifestam em suas
ações: a autoridade dos expertos, pessoas “que sabem” (cuja área de competência
é excessivamente ampla para ser explorada e testada pelos leigos), e a autoridade do número (na suposição de que
quanto maior o número menor a chance de que estejam errados). A natureza da
primeira autoridade faz dos extraterritoriais da Risikogesselschaft um
mercado natural para a “explosão do aconselhamento”. A natureza da segunda os
leva a sonhar com a comunidade e dá forma à comunidade de seus sonhos.
Essa comunidade dos sonhos é uma extrapolação das lutas
pela identidade que povoam suas vidas. É uma “comunidade” de semelhantes na
mente e no comportamento; uma comunidade do mesmo — que, quando
projetada na tela da conduta amplamente replicada/copiada, parece dotar a
identidade individualmente escolhida de fundamentos sólidos que as pessoas que
escolhem de outra maneira não acreditariam que possuíssem. Quando monotonamente
reiteradas pelas pessoas em volta, as escolhas perdem muito de suas
idiossincrasias e deixam de parecer aleatórias, duvidosas ou arriscadas: a
tranqüilizadora solidez de que sentiriam falta se fossem os únicos a escolher é
fornecida pelo peso impositivo da massa.
Contudo, como já vimos, as pessoas envolvidas na luta pela
identidade temem a vitória final mais do que uma sucessão de derrotas. A
construção da identidade é um processo sem fim e para sempre incompleto, e
assim deve permanecer para cumprir sua promessa (ou, mais precisamente, para
manter a credibilidade da promessa). Na política-vida que envolve a luta pela
identidade, a autocriação e a auto-afirmação são os cacifes, e a liberdade de escolha é ao mesmo tempo a
principal arma e o prêmio mais desejado. A vitória final de uma só tacada
removeria os cacifes, inutilizaria a arma e cancelaria a recompensa. Para
evitar que isso aconteça, a identidade deve continuar flexível e sempre
passível de experimentação e mudança; deve ser o tipo de identidade “até nova
ordem”. A facilidade de desfazer-se de uma identidade no momento que ela deixa
de ser satisfatória, ou deixa de ser atraente pela competição com outras
identidades mais sedu-
62
toras, é muito mais importante do que o “realismo” da
identidade buscada ou momentaneamente apropriada.
A “comunidade”, cujos usos principais são confirmar, pelo
poder do número, a propriedade da escolha e emprestar parte de sua gravidade à identidade a que confere “aprovação
social”, deve possuir os mesmos traços. Ela deve ser tão fácil de decompor como
foi fácil de construir. Deve ser e permanecer flexível, nunca ultrapassando o
nível “até nova ordem” e “enquanto for satisfatório”. Sua criação e
desmantelamento devem ser determinados pelas escolhas feitas pelos que as
compõem — por suas decisões de firmar ou retirar seu compromisso. Em nenhum
caso deve o compromisso, uma vez declarado, ser irrevogável: o vínculo
constituído pelas escolhas jamais deve prejudicar, e muito menos impedir,
escolhas adicionais e diferentes. O vínculo procurado não deve ser vinculante
para seus fundadores. Para usar as célebres metáforas de Weber, o que é
procurado é um manto diáfano e não uma jaula de ferro.
Esses requisitos são preenchidos pela comunidade da Crítica
do juízo: a comunidade estética de Kant. A identidade parece partilhar seu status existencial com a beleza: como a beleza,
não tem outro fundamento que não o acordo amplamente compartilhado, explícito
ou tácito, expresso numa aprovação consensual do juízo ou em conduta uniforme.
Assim como a beleza se resume à experiência artística, a comunidade em questão se apresenta e é consumida no “círculo aconchegante” da
experiência. Sua “objetividade” é tecida com os transitórios fios dos juízos
subjetivos, embora o fato de que eles sejam tecidos juntos empreste a esses
juízos um toque de objetividade.
Enquanto vive (isto é, enquanto é experimentada), a
comunidade estética é atravessada por um paradoxo: uma vez que trairia ou
refutaria a liberdade de seus membros se demandasse credenciais não
negociáveis, tem que manter as entradas e saídas escancaradas. Mas se tornasse
pública a falta de poder vinculante, deixaria de desempenhar o papel
tranqüilizador que foi o primeiro motivo de adesão dos fiéis. É por isso que,
como diz o novelista filósofo tcheco Ivan Klima,25 “a fé substituta
tem uma vida limitada na prateleira” e “quanto mais bizarra a crença, mais
fanáti-
63
cos seus aderentes”. Quanto menos críveis forem as crenças
expressas pelas escolhas (e portanto menos provável que sejam amplamente
compartilhadas e menos ainda seguidas), tanto mais paixão será necessária para
unir e manter unida a associação sabidamente vulnerável dos fiéis; e como a
paixão é o único cimento que mantém a união dos fiéis, a vida “de prateleira”
da “comunidade de juízo” tende a ser curta. As paixões são, afinal, notórias
por sua volatilidade incurável e pelo modo como mudam. A necessidade da
comunidade estética, notadamente do tipo de comunidade estética que serve à construção/destruição da identidade, tende
por isso tanto à autoperpetuação
quanto à autodestruição. Essa
necessidade nunca será satisfeita, nem deixará de estimular a busca de sua
satisfação.
A necessidade da comunidade estética gerada pela ocupação
com a identidade é o campo preferencial que alimenta a indústria do entretenimento:
a amplitude da necessidade explica em boa medida o sucesso impressionante e
contínuo dessa indústria.
Graças à imensa capacidade advinda da tecnologia eletrônica, podem ser
criados espetáculos que oferecem uma oportunidade de participação e um foco
compartilhado de atenção a uma multidão indeterminada de espectadores
fisicamente remotos. Devido à massividade mesma da audiência e à intensidade da atenção, o indivíduo se
acha plena e verdadeiramente “na presença de uma força que é superior a ele e diante
da qual ele se curva”; realiza-se a condição posta por Durkheim26
para a capacidade tranqüilizadora da orientação moral dada e imposta pela
sociedade. A orientação opera nestes dias mais pela estética do que pela ética.
Seu principal veículo não é mais a autoridade ética dos líderes com suas visões, ou dos pregadores
morais com sua homilias, mas o exemplo das “celebridades à vista” (celebridades porque estão à vista); sua arma principal não está na
sanção nem em seu poder, difuso mas bruto, de imposição. Como todos os objetos
de experiência estética, a orientação insinuada pela indústria do
entretenimento atua pela sedução. Não há sanções contra os que saem da linha e
se recusam a prestar atenção — a não ser o horror de perder uma experiência que
os outros (tantos outros!) prezam e de que desfrutam.
64
A autoridade das celebridades deriva da
autoridade do número — ela aumenta (e diminui) com o número de espectadores,
ouvintes, compradores de livros e de discos. O aumento e diminuição de seu
poder de sedução (e portanto de conforto) estão sincronizados com os movimentos
dos pêndulos dos índices de audiência da tevê e da circulação dos tablóides; a
rigor, a atenção dos gerentes da tevê aos índices de audiência tem uma
justificativa sociológica mais profunda do que eles mesmos imaginam. Seguir as
peripécias das celebridades não é uma simples questão de curiosidade ou apetite
pelo divertimento. A autoridade do número torna os “indivíduos à vista do público” exemplos de autoridade:
confere ao exemplo uma gravidade adicional. De fato, se muitas pessoas as olham
com atenção, seu exemplo deve ser “superior” ao que um simples espectador ou
uma simples espectadora poderia aprender de sua própria experiência de vida.
Como diz Klima, citando A User’s Guide to the Millennium [Manual do Usuário do Milênio], de J.G. Ballard,
entrevistas
povoam as ondas, um papo confessional inteiramente aberto à bisbilhotice.
A cada minuto políticos e atores, romancistas e celebridades da mídia são
questionados sem cessar sobre seu assunto favorito. Muitos descrevem sua
infância infeliz, alcoolismo e casamentos fracassados com uma franqueza que
acharíamos embaraçosa mesmo entre nossos amigos mais íntimos, que dirá na
presença de completos estranhos.
O que os ávidos espectadores esperam das
confissões públicas das pessoas na ribalta é a confirmação de que sua própria solidão não
é apenas tolerável, mas, com alguma habilidade e sorte, pode dar bons frutos.
Mas o que os espectadores que se deleitam com as confissões das celebridades
recebem como primeira recompensa é a sensação de fazer parte: o que lhes é
prometido todo dia (“a quase qualquer momento”) é uma comunidade de solitários.
Ao ouvir as histórias de infância infeliz, surtos de depressão e casamentos
desfeitos ficam seguros de que viver em solidão significa estar em boa (e muito
célebre) companhia e de que enfrentá-la por conta própria é o que os torna
membros de uma comunidade.
65
Klima também diz que as pessoas hoje em
dia “precisam de ídolos que lhes dêem um senso de segurança, permanência e
estabilidade num mundo cada vez mais inseguro, dinâmico e mutável”. Sim, elas
precisam de ídolos — mas o erro de Klima é acreditar que elas precisam deles
para “o senso de permanência e estabilidade”. Num mundo notoriamente “dinâmico
e mutável”, a permanência e estabilidade do indivíduo, ostensivamente não
compartilhada pelas pessoas à volta, seria uma receita de desastre. Os ídolos servem a outro
propósito: sugerir que a não-permanência e a instabilidade não
são desastres completos, e podem acabar premiadas na loteria da felicidade;
pode-se construir uma vida sensível e agradável em meio a areias movediças. Os
ídolos, portanto — aqueles que são verdadeiramente “necessários” — devem ser
portadores da mensagem de que a não-permanência está aqui para ficar,
mostrando, ao mesmo tempo, que a instabilidade deve ser apreciada e
experimentada. Enquanto cortesia da indústria da ilusão, não há falta de tais
ídolos. Klima enumera alguns:
Jogadores
de futebol, de hóquei sobre o gelo, de tênis e de basquete, guitarristas,
cantores, atores de cinema, apresentadores de tevê e top models. Ocasionalmente
— e apenas simbolicamente — a eles se junta algum escritor, pintor ou
estudioso, vencedor do prêmio Nobel (há quem se lembre
de seus nomes um ano depois?) ou princesa — sua morte trágica lembrando a
antiga tradição dos mártires — até que também ela seja esquecida.
Vê-se que a seleção não é aleatória ou sem
motivo. Como observa o próprio Klima, “não há nada tão transitório como o
entretenimento e a beleza física, e os ídolos que os simbolizam são igualmente
efêmeros”. Esse é, na verdade, o ponto fundamental. Para que sirvam a seu
propósito, os ídolos devem ser brilhantes a ponto de ofuscar os espectadores e
formidáveis a ponto de ocupar inteiramente o palco; mas devem ser também
voláteis e móveis — de maneira a poderem desaparecer rapidamente da memória
deixando a cena para a multidão dos ídolos à espera da vez. Não deve haver tempo para a
sedimentação de laços duradouros entre os ídolos e seus fãs, e nenhum ídolo em particular
deve ter uma presença duradoura. Os espectadores ficam encan-
66
tados durante o que, ao longo de suas vidas, não parece
mais que um instante passageiro. Os túmulos dos ídolos precocemente
desaparecidos constituirão no curso da vida dos espectadores verdadeiros
marcos, que serão visitados e receberão flores nos aniversários; mas dependerá
dos espectadores, que desde então mudaram, recuperar do esquecimento os
desaparecidos por mais um instante passageiro. Os ídolos seguem o padrão de
“impacto máximo e obsolescência instantânea” que, segundo George Steiner, caracteriza todas as invenções
culturais da “cultura de cassino” dos nossos tempos.
Os ídolos realizam um pequeno milagre: fazem acontecer o
inconcebível; invocam a “experiência da comunidade” sem comunidade real, a
alegria de fazer parte sem o desconforto do compromisso. A união é sentida e
vivida como se fosse real, mas não é contaminada pela dureza,
inelasticidade e imunidade ao desejo individual que Durkheim considerava
atributos da realidade, mas que os habitantes móveis da extraterritorialidade
detestam como uma intromissão indevida e insuportável em sua liberdade. Os
ídolos, pode-se dizer, foram feitos sob encomenda para uma vida fatiada em episódios. As
comunidades que se formam em torno deles são comunidades instantâneas prontas
para o consumo imediato — e também inteiramente descartáveis depois de usadas.
Trata-se de comunidades que não requerem uma longa história de lenta e
cuidadosa construção, nem precisam de laborioso esforço para assegurar seu
futuro. Enquanto são festiva e alegremente consumidas, as comunidades centradas
em ídolos são difíceis de distinguir das “comunidades verdadeiras” — mas
comparadas a elas exibem a vantagem de estarem livres dos “visgos” e embaraços
das Gemeinschaften ordinárias, com sua odiosa tendência a sobreviver à própria utilidade. O truque das
comunidades estéticas em torno de ídolos é transformar a “comunidade” —
adversária temida da liberdade de escolha — numa manifestação e confirmação
(genuína ou ilusória) da autonomia individual.
Nem todas as comunidades estéticas são centradas em ídolos.
O papel da “celebridade na ribalta” pode ser desempenhado por outras entidades,
notadamente uma ameaça real ou imagina-
67
ria, mas terrificante (por exemplo, por uma intenção de
localizar um asilo próximo a uma área residencial, ou pelo rumor de que as
prateleiras do supermercado estão cheias de alimentos geneticamente modificados
com conseqüências desconhecidas para os consumidores) ou pela figura de um
“inimigo público” (por exemplo, por um pedófilo à solta depois de libertado da prisão, ou
por mendigos, ou desagradáveis vagabundos sem teto dormindo ao relento). Às
vezes uma comunidade estética se forma em torno de um evento festivo recorrente
— como um festival pop, uma partida de futebol ou uma exibição na moda, muito
falada e que atrai multidões. Outras comunidades estéticas se formam em torno
de “problemas” com que muitos indivíduos se deparam em sua rotina diária (por
exemplo, os vigilantes do peso); esse tipo de “comunidade” ganha vida pela
duração do ritual semanal ou mensal previsto, e se dissolve outra vez, tendo
assegurado a seus membros que enfrentar os problemas individuais
individualmente, usando a habilidade individual, é a coisa certa e uma coisa
que todos os outros indivíduos fazem com sucesso; nunca haverá uma derrota
definitiva.
Todos esses agentes, eventos e interesses servem como
“cabides” em que as aflições e preocupações experimentadas e enfrentadas
individualmente são temporariamente penduradas por grande número de indivíduos
— para serem retomadas em seguida e penduradas alhures: por essa razão as
comunidades estéticas podem ser chamadas de “comunidades-cabide”. Qualquer que
seja o foco, a característica comum das comunidades estéticas é a natureza
superficial, perfunctória e transitória dos laços que surgem entre seus
participantes. Os laços são descartáveis e pouco duradouros. Como está
entendido e foi acertado de antemão que esses laços podem ser desmanchados,
eles provocam poucas inconveniências e não são temidos.
Uma coisa que a comunidade estética definitivamente não faz
é tecer entre seus membros uma rede de responsabilidades éticas e,
portanto, de compromissos a longo prazo. Quaisquer que sejam os laços
estabelecidos na explosiva e breve vida da comunidade estética, eles não
vinculam verdadeiramente: eles são literalmente “vínculos sem conseqüências”.
Tendem a evaporar-se
68
quando os laços humanos realmente importam — no momento em
que são necessários para compensar a falta de recursos ou a impotência do
indivíduo. Como as atrações disponíveis nos parques temáticos, os laços das
comunidades estéticas devem ser “experimentados”, e experimentados no ato — não
levados para casa e consumidos na rotina diária. São, pode-se dizer, “laços
carnavalescos” e as comunidades que os emolduram são “comunidades
carnavalescas”.
Esse não é, contudo, o estímulo que leva os indivíduos de
jure (isto é, indivíduos “nomeados” — aconselhados a resolver seus
problemas por seus próprios meios pela simples razão de que ninguém mais fará
isto por eles), que lutam em vão para tornar-se indivíduos de facto (isto é, senhores do próprio destino por
meio de atos e não meramente em declarações públicas) a procurarem um tipo de
comunidade que possa, coletivamente, tornar realidade algo de que sentem falta
e que sozinhos não conseguem concretizar. A comunidade que procuram seria uma
comunidade ética, em quase tudo o oposto do tipo “estético”. Teria que
ser tecida de compromissos de longo prazo, de direitos inalienáveis e obrigações
inabaláveis, que, graças à sua durabilidade prevista (melhor ainda, institucionalmente
garantida), pudesse ser tratada como variável dada no planejamento e nos
projetos de futuro. E os compromissos que tornariam ética a comunidade seriam
do tipo do “compartilhamento fraterno”, reafirmando o direito de todos a um
seguro comunitário contra os erros e desventuras que são os riscos inseparáveis
da vida individual. Em suma, o que os indivíduos de jure, mas
decididamente não de facto, provavelmente vêem na comunidade é uma garantia de certeza,
segurança e proteção — as três qualidades que mais lhes fazem falta nos
afazeres da vida e que não podem obter quando isolados e dependendo dos
recursos escassos de que dispõem em privado. Esses dois modelos muito diferentes de
comunidade são muitas vezes misturados e confundidos no “discurso comunitário”
hoje em moda. Uma
vez misturados, as importantes contradições que os opõem são falsamente
apresentadas como problemas filosóficos e dilemas a serem resolvidos pelo refinamento
do raciocínio — em lugar de serem apresentadas como o produto dos genuínos
conflitos sociais que na realidade são.
• 6 •
Direito ao reconhecimento, direito à redistribuição
Uma das características mais importantes da modernidade em
seu estado “sólido” era uma visão a priori de um “estado final” que seria o eventual
ponto culminante dos esforços correntes de construção da ordem, ponto no qual
se deteriam — fosse ele um estado de “economia estável”, “de um sistema em
equilíbrio”, de uma “sociedade justa” ou um código de “direito e ética
racionais”. A modernidade diluída, por outro lado, liberta as forças da
mudança, como a bolsa de valores ou os mercados financeiros: deixa que as
pessoas “encontrem seu próprio nível” para que depois procurem níveis melhores
ou mais adequados — nenhum dos níveis presentes, por definição transitórios, é
visto como final e irrevogável. Fiéis ao espírito dessa transformação, os
operadores políticos e porta-vozes culturais do “estágio líquido” praticamente
abandonaram o modelo da justiça social como horizonte último da seqüência de
tentativas e erros — em favor de uma regra/padrão/medida de “direitos humanos”
que passa a guiar a infindável experimentação com formas de coabitação
satisfatórias ou pelo menos aceitáveis.
Se os modelos de justiça social tentam ser substantivos e
compreensivos, o princípio dos direitos humanos não pode deixar de ser formal e
aberto. A única “substância” desse princípio é um convite renovado a registrar
velhas reivindicações não atendidas, a articular outras demandas e a acreditar no reconhecimento delas.
Supõe-se que a questão de quais dentre os muitos direitos e dos muitos grupos
que demandam reconhecimento
69
70
possam ter sido esquecidos, negligenciados ou
insuficientemente considerados não pode ser decidida de antemão. O conjunto das
respostas possíveis a essa pergunta nunca é em princípio fechado e completo, e
cada resposta está aberta à renegociação; na prática, aberta a “batalhas de reconhecimento” —
isto é, repetidas demonstrações de força para descobrir o quanto o adversário
pode ser empurrado para trás, de quantas de suas prerrogativas ele poderá ser
forçado a abrir mão e que parte da reivindicação ele poderá ser persuadido,
compelido ou subornado a reconhecer. Com todas as suas ambições universalistas,
a conseqüência prática do apelo aos “direitos humanos” e da busca do
reconhecimento é uma situação envolvendo sempre novas frentes de batalha e um
traçar e retraçar das linhas divisórias que propiciarão conflitos sempre
renovados.
Como sugeriu Jonathan Friedman,27 fomos lançados num mundo ainda inexplorado
de modernidade sem modernismo; embora continuemos a ser movidos pela paixão
eminentemente moderna pela transgressão emancipatória, não temos mais uma visão
clara de seu propósito ou destino último. Trata-se de uma formidável
reviravolta; e no entanto muito mais mudou. A nova elite global do poder,
extraterritorial e não mais interessada, quando não ressentida, pelo
“engajamento de campo” (particularmente um engajamento de longo prazo do tipo
“até a morte”), abandonou a maioria, senão todas as ambições, comuns às elites
modernas, de produzir uma nova e melhor ordem — e também perdeu o outrora voraz
apetite pela administração da ordem e seu gerenciamento diário. Os projetos de
“alta civilização, alta cultura e alta ciência” — convergentes e unificadores
nas intenções quando não na prática — não estão mais na moda, e aqueles que
surgem e ocasionalmente circulam são tratados como produtos de ficção
científica: são louvados principalmente por seu valor enquanto entretenimento e
provocam pouco mais que um interesse passageiro. Como diz o próprio Friedman, “na
decadência do modernismo, o que sobra é simplesmente a própria diferença, e sua
acumulação”. Não há falta de diferenças: “uma das coisas que não está
desaparecendo são as fronteiras. Ao contrário, parecem ser erigidas em cada
esquina de cada uma das vizinhanças decadentes de nosso mundo”.
71
É da natureza dos “direitos humanos” que,
embora se destinem ao gozo em separado (significam, afinal, o direito a
ter a diferença reconhecida e a continuar diferente sem temor a reprimendas ou
punição), tenham que ser obtidos através de uma luta coletiva, e só
possam ser garantidos coletivamente. Daí o zelo pelo traçado das fronteiras e
pela construção de postos de fronteira estritamente vigiados. Para tornar-se um
“direito”, a diferença tem que ser compartilhada por um grupo ou categoria de
indivíduos suficientemente numeroso e determinado para merecer consideração:
precisa tornar-se um cacife numa reivindicação coletiva. Na prática,
porém, tudo se reduz ao controle de movimentos individuais — demandando
lealdade inabalável de alguns indivíduos considerados como os portadores da
diferença reivindicada, e barrando o acesso a todos os demais.
A luta pelos direitos individuais e sua
alocação resulta numa intensa construção comunitária — na escavação de
trincheiras e no treinamento e armamento de unidades de assalto: impedir a
entrada de intrusos, mas também a saída dos de dentro; em uma palavra: em
cuidadoso controle dos vistos de entrada e de saída. Se ser e permanecer
diferente é um valor em si mesmo, uma qualidade digna de ser preservada a
qualquer custo, mesmo com luta, um clarim é tocado para o alistamento, a
formação e a ordem-unida. Antes,
porém, a diferença adequada ao reconhecimento sob a rubrica dos “direitos
humanos” precisa ser encontrada ou construída. É graças à combinação de todas essas razões que o
princípio dos “direitos humanos” age como um catalisador que estimula a
produção e perpetuação da diferença, e os esforços para construir uma
comunidade em torno dela.
Nancy Fraser28
estava portanto certa ao
protestar contra “a indiscriminada separação da política cultural da diferença
em relação à política social da
igualdade” e ao insistir em que a “justiça hoje requer tanto a
redistribuição quanto o reconhecimento”.
Não
é justo que alguns indivíduos ou grupos vejam negado seu status de plenos parceiros na interação social simplesmente em
conseqüência de padrões institucionalizados de valor cultural de
72
cuja construção não participaram com igualdade
e que menosprezam suas características distintivas ou as características
distintivas a eles atribuídas.
Por razões que já devem ter ficado claras,
a lógica das “guerras pelo reconhecimento” prepara os combatentes para a
absolutização da diferença. Há um traço fundamentalista difícil de reduzir, e
menos ainda silenciar, em qualquer reivindicação de reconhecimento, e ele tende
a tornar “sectárias”, nos termos de Fraser, as demandas por reconhecimento. Colocar a questão do
reconhecimento no quadro da justiça social, em vez do contexto da
“auto-realização” (onde, por exemplo, Charles Taylor ou Axel Honneth, junto com a tendência
“culturalista” hoje dominante, preferem colocá-la) pode ter um. efeito de
desintoxicação: pode remover o veneno do sectarismo (com todas as suas pouco
atraentes conseqüências: separação física ou social, quebra da comunicação,
hostilidades perpétuas e mutuamente exacerbadas) do ferrão das demandas por
reconhecimento. As demandas por redistribuição feitas em nome da igualdade são
veículos de integração, enquanto que as demandas por reconhecimento em meros
termos de distinção cultural promovem a divisão, a separação e acabam na
interrupção do diálogo.
Por último, mas não menos importante, juntar as “guerras
pelo reconhecimento” à demanda
por igualdade pode também deter o reconhecimento da diferença à beira do precipício relativista. De fato,
se o “reconhecimento” for definido como o direito à participação na interação social em
condições de igualdade, e se esse direito for por sua vez concebido como uma
questão de justiça social, isso não quer dizer que (citando Fraser uma vez mais) “todos tenham direitos
iguais à estima social” (ou que,
em outras palavras, todos os valores sejam iguais e que cada uma das diferenças
mereça ser cultivada simplesmente por ser uma diferença), mas apenas que “todos
têm direito de procurar a estima social em condições de igualdade”. Quando
postas à força na moldura da
auto-afirmação e da auto-realização, as guerras pelo reconhecimento trazem à tona seu potencial combativo (e, como
demonstra muito bem a experiência recente, em última análise,
73
genocida). Se, porém, forem devolvidas à problemática da justiça social que lhes
corresponde, as reivindicações ao reconhecimento e a política de esforços de
reconhecimento se tornam um terreno fértil para o comprometimento mútuo e o
diálogo significativo, que poderão eventualmente levar a uma nova unidade — em
verdade, uma ampliação e não um estreitamento do âmbito da “comunidade ética”.
Não se trata de filigranas filosóficas; a elegância
filosófica do argumento ou a conveniência da teorização não estão aqui em jogo,
e com certeza não só elas. A mescla de justiça distributiva com uma política de
reconhecimento é, pode-se dizer, uma conseqüência natural da moderna promessa
de justiça social nas condições da “modernidade líquida”, ou, como diz Jonathan Friedman, “modernidade sem modernismo”,
que é, como sugere Bruno Latour,29 a era da reconciliação com a
perspectiva da coexistência perpétua e, portanto, uma condição que acima de
tudo precisa da arte da coabitação pacífica e caridosa; uma era em que não se
pode mais ter (ou mesmo querer ter) a esperança de uma erradicação completa e
radical da miséria humana, seguida de uma condição humana livre de conflitos e
de sofrimentos. Para que a idéia da “boa sociedade” possa reter seu sentido
numa situação de modernidade líquida ela precisa significar uma sociedade que
cuida de “dar a todos uma oportunidade” e, portanto, da remoção dos muitos impedimentos
a que a oportunidade seja aproveitada. Agora sabemos que os impedimentos em
questão não podem ser removidos de um só golpe, por um ato de imposição de
outra ordem planejada — e assim a única estratégia disponível para realizar o
postulado da “sociedade justa” é a eliminação dos impedimentos à distribuição eqüitativa das oportunidades uma a uma, à medida que se revelam e são trazidas à atenção pública graças à articulação, manifestação e esforço das
sucessivas demandas por reconhecimento. Nem todas as diferenças têm o mesmo
valor, e alguns modos de vida e formas de união são eticamente superiores a
outras; mas não há forma de definir qual é o que, a menos que seja dada a todas
a oportunidade de defender e fundamentar seu pleito. A forma de vida que poderá
emergir ao fim da negociação não é uma conclusão determinada de
74
antemão e não pode ser deduzida segundo as regras da lógica
dos filósofos.
“Na verdade”, como insistia Cornelius Castoriadis,30
“nenhum problema é resolvido de antemão. Temos que criar o bem em condições
incertas e com conhecimento imperfeito. O projeto de autonomia é fim e guia,
mas não resolve efetivamente situações reais.” Pode-se dizer que a liberdade de
articular e perseguir demandas por reconhecimento é a principal condição da autonomia, da
capacidade prática de autoconstituição (e, portanto, potencialmente, do
auto-avanço) da sociedade em que vivemos; e que nos dá a possibilidade de que
nenhuma injustiça ou privação será esquecida, posta de lado ou de outra forma
impedida de assumir sua correta posição na longa linha de “problemas” que
clamam por solução. Como observou o próprio Castoriadis,
o
alfa e ômega de qualquer pleito é o exercício da criatividade social — que, se
liberada, deixaria novamente para trás tudo o que hoje somos capazes de
pensar... “Convencer” as pessoas “pelo uso da razão” significa hoje ajudá-las a
atingirem sua própria autonomia.
Castoriadis se esforça por sublinhar que
não “respeita a diferença dos outros simplesmente enquanto diferença e sem
consideração pelo que eles são e pelo que fazem”. O reconhecimento do “direito
humano”, o direito de lutar pelo reconhecimento, não é o mesmo que assinar um
cheque em branco e não implica numa aceitação a priori do modo de vida
cujo reconhecimento foi ou está para ser pleiteado. O reconhecimento de tal
direito é, isso sim, um convite para um diálogo no curso do qual os méritos e
deméritos da diferença em questão possam ser discutidos e (esperemos)
acordados, e assim difere radicalmente não só do fundamentalismo universalista
que se recusa a reconhecer a pluralidade de formas que a humanidade pode
assumir, mas também do tipo de tolerância promovido por certas variedades de
uma política dita “multiculturalista” que supõe a natureza essencialista das
diferenças e, portanto, também a futilidade da negociação entre diferentes
modos de vida. O ponto de vista sugerido por
75
Castoriadis tem que se defender em duas frentes: contra o comprometimento que toma a
forma de cruzadas culturais e homogeneização opressiva; e contra a indiferença
soberba e desengaja-mento do descomprometimento.
Sempre que a questão do “reconhecimento” é
levantada é porque certa categoria de pessoas se considera relativamente
prejudicada e não vê fundamento para essa privação. Como sabemos pelo estudo clássico
da injustiça de Barrington Moore Jr., as queixas de privação raramente eram
manifestadas no passado simplesmente porque grupos de pessoas se encontrassem
em condições de desigualdade (se isso acontecesse, o número relativamente
pequeno de rebeliões ao longo da história humana seria um mistério). Baixos
padrões de vida, por mais infames, miseráveis e repulsivos para um observador
de fora, foram em geral suportados com humildade e não levaram à resistência quando duraram por longo tempo
e foram incorporados pelas vítimas como “naturais”. Os despossuídos se
rebelaram não tanto contra o horror de sua existência como contra uma “volta do
parafuso”, contra terem que enfrentar mais demandas ou receber menores
recompensas do que antes; em uma palavra, não se rebelaram contra condições
repugnantes, mas contra a mudança abrupta das condições a que estavam
acostumados e suportavam. A “injustiça” contra a qual estavam prontos a se
rebelar era medida em relação às suas condições de ontem e não pela comparação
invejosa com as outras pessoas à volta.
Essa regra, que operou durante a maior
parte da história humana, começou a perder seu potencial normativo com o
advento da modernidade, e agora o perdeu de vez. Dois aspectos da vida moderna
reduziram esse poder de modo mais radical do que quaisquer outras mudanças
trazidas na esteira da modernidade.
O primeiro foi a proclamação do prazer, ou a felicidade,
como propósito supremo da vida, e a promessa feita em nome da sociedade e de seus poderes de garantir
as condições que permitissem um crescimento contínuo e persistente do total
disponível de prazer e felicidade. Como sugeriu Harvie Ferguson,31 a
visão de mundo do burguês, ao mesmo tempo personagem principal,
76
ditador do ritmo e roteirista involuntário do moderno drama
do progresso inevitável e infinito, “pode ser entendida como... a busca do
prazer”, guiada pela “insaciabilidade regulada”. Note-se, contudo, que, quando
se torna o principal objetivo da vida e medida de seu sucesso, a busca do
prazer elimina a antiga autoridade que levava o camponês pré-moderno de
Barrington Moore Jr. a tratar de maneira respeitosa as Rechtsgewohnenheiten (velhos
direitos, velhas maneiras) e a sentir-se obrigado a lutar se — e apenas se — os
antigos costumes fossem ameaçados. O fato de que o problema seja recente deixa
de ser um argumento a favor da complacência. Deixa de ter sentido medir a
justiça de nossa própria condição apelando para a memória — são todas, ao
contrário, as razões para comparar nosso próprio pleito com os prazeres hoje em
oferta, acessíveis a outras pessoas, mas que nos foram negados. A “injustiça”
mudou de sentido: hoje significa ser deixado para trás no movimento universal
em direção a uma vida cheia de prazeres.
Como
observou Jacques Ellul,32
Ao
longo de sua história, os homens se colocaram certos objetivos que não
derivavam do desejo de felicidade e que não inspiravam ações em busca da
felicidade; por exemplo, no que diz respeito ao problema da sobrevivência, da
estruturação de um grupo social, das operações ou ideologia técnica, a
preocupação com a felicidade não aparece... [Foi portanto uma novidade
proclamada pela revolução moderna] a possibilidade de produção da abundância e
de garantia de uma vida material melhor, uma vida mais fácil, longe do perigo,
do cansaço, da repetição, da doença e da fome.
A sociedade moderna proclamava o direito à felicidade: não era só a melhoria do
padrão de vida, mas o grau de felicidade dos homens e mulheres envolvidos que
devia justificar (ou condenar, caso aquele grau se recusasse a chegar a níveis
cada vez mais altos) a sociedade e todas as suas obras. A busca da felicidade e a esperança de sucesso tornaram-se “a
motivação principal da participação do indivíduo na sociedade”. Tendo recebido
tal papel, a busca da felicidade se transformou, da mera oportunidade que era,
num dever e no supremo princípio ético. Os obstáculos res-
77
ponsabilizados ou suspeitos de bloquear essa busca passaram
a constituir o sistema de injustiça e uma causa legítima de rebelião.
O segundo ponto de partida não podia deixar de se seguir à revolução axiológica em discussão. E dizia
respeito ao significado da “privação relativa” que veio a estimular queixas e
ações corretivas: deixou de ser diacrônica (medida em relação a uma
condição passada) para tornar-se sincrônica (medida em relação à condição de outras categorias de pessoas).
O quadro de referência em que uma má condição de vida costumava ser percebida
como “privação”, e portanto injusta (isto é, justificando resistência), era a
condição lembrada e aceita como “normal”. “Privação” significava ruptura da
norma, anormalidade; a condição presente devia ser percebida como pior que a
passada para ser vista como injusta. Com o advento da modernidade, que prometia
um aumento regular da felicidade, o que passou a ser o signo da privação foi a
própria constância do padrão de vida e a falta de sinais visíveis de progresso; se o padrão de vida
de outras categorias de pessoas melhorasse, e o nosso não, ou se melhorasse
mais rápida ou espetacularmente do que o nosso, uma condição que outrora fora
sofrida em silêncio poderia ser reformulada como caso de privação e ser
percebida como violação da justiça. O que agora importava eram “diferenciais de
renda”. A desigualdade de riqueza e de renda enquanto tais não podiam ser consideradas
justas ou injustas — sendo meramente, gostássemos ou não, “as coisas como elas
eram”; mas qualquer aumento da distância entre nossos padrões e os daqueles
logo acima, ou qualquer estreitamento da distância entre nós e aqueles logo
abaixo ofendia o sentido de justiça e inspirava demandas redistributivas.
Qual dos numerosos diferenciais de renda haveria de ser
selecionado como padrão da justiça distributiva, acompanhado de perto e
transformado no lugar da disputa não podia ser decidido por uma medida objetiva
de tamanho. O fator decisivo era a proximidade ou distância social entre as
categorias remuneradas de maneira diferente e pela intensidade da interação
entre elas. Como indicou Max Weber,33 a similaridade de condição e status não asseguram automaticamente uma ação
unificada, da mesma forma que a dissimilaridade não leva necessariamente ao
confli-
78
to. Para que ocorram unidade e conflito, um mero agregado
de unidades similares tem que ser transformado antes numa comunidade agindo em
uníssono para então poder se opor contra outro grupo apresentado como o “vilão
da história”—seja como objeto de comparação invejosa, embora legítima, ou como
agente responsável pelas injustiças na distribuição. “O fato de a identidade ou
similaridade da situação típica em que um indivíduo dado e muitos outros
encontrem definidos seus interesses” não é suficiente para transformar uma mera
similaridade de privação individualmente sofrida numa comunidade pronta para
lutar pelo “interesse comum”. Entre os requisitos adicionais necessários à transformação, Weber menciona “a
possibilidade de concentrar-se em opositores nos quais o conflito imediato de
interesses é vital” e “a possibilidade técnica de reunião”. Note-se que as duas
condições se referem ao engajamento: estreitos laços entre os membros da
emergente “comunidade de interesses” e contato permanente com aqueles que
supostamente ameaçam tais interesses.
Nenhum dos requisitos que segundo Weber deveriam existir
para que surgisse a “comunidade de interesses” se dá hoje. Para começar, a
“identidade ou similaridade da situação típica”, que Weber podia dar por
assente graças ao mecanismo de negociação coletiva e aos contratos
coletivamente assinados e coletivamente vinculantes, não dá mais garantia
alguma. Com os sindicatos desabilitados como sujeitos coletivos e quase
incapazes de estimular uma ação una e continuada, a “identidade da situação
típica” é tudo menos evidente e deixou de ser a principal experiência dos
empregados. A remuneração tende a ser estabelecida individualmente, a promoção
e as demissões não estão mais sujeitas a regras impessoais, as carreiras são
tudo menos fixas; nestas circunstâncias, a competição entre os indivíduos é
mais importante do que unir-se a “outros em condições semelhantes”.
O que mais importa, contudo, é que os laços com os “outros
em condições semelhantes” tendem a ser frágeis e ostensivamente transitórios.
Estabelecer e solidificar laços humanos toma tempo, e ganha com a visão de
perspectivas futuras. Hoje, porém, a união tende a ser de curto prazo e
destituída de perspectivas —
79
para não falar de um futuro garantido. O mesmo vale para os
“opositores aos quais o conflito de interesses pode ser dirigido”; são tão
móveis e voláteis como candidatos potenciais para a união de interesses. A possível
comunidade de interesses está condenada antes de se reunir e tende a se
dissolver antes mesmo de se solidificar. Não há forças ou pressões, de dentro
ou de fora, suficientemente fortes para manter estáveis suas fronteiras e
torná-la uma frente de batalha.
A proximidade já não garante a intensidade
da interação; e o que é mais grave, não se pode confiar na duração de qualquer
interação que surja na base da proximidade, e inscrever as expectativas de uma
vida individual na perspectiva de sua longevidade já não é um passo óbvio ou
sensato. Na ausência de uma base comunitária para as comparações, a “privação
relativa” perde muito de seu sentido e muito do papel que desempenhou na
avaliação do status e na
escolha de uma estratégia de vida. Acima de tudo, sobrou pouco de sua outrora
poderosa capacidade de geração de comunidade. A percepção da injustiça e das
queixas que ela faz surgir, como tantas outras coisas nestes tempos de
desengajamento que definem o estágio “líquido” da modernidade, passou por um processo
de individualização. Supõe-se que os problemas sejam sofridos e
enfrentados solitariamente e são especialmente inadequados à agregação numa comunidade de interesses à procura de soluções coletivas para
problemas individuais.
Uma vez perdido o caráter coletivo das queixas, podemos
também esperar o desaparecimento dos “grupos de referência” que ao longo dos
tempos modernos serviram como padrão de medida da privação relativa. Isso de
fato está acontecendo. A experiência da vida como procura inteiramente
individual redunda numa percepção das fortunas e infortúnios de outras pessoas
como resultado principalmente de seu próprio esforço ou indolência, com a
adição de um toque pessoal de boa sorte ou um golpe individualmente desferido
de má sorte (“catástrofes naturais”, como terremotos, enchentes ou secas, sendo
as únicas exceções; tais exceções, porém, não são suficientes para deter a
desvalorização da ação comunitária ou restaurar parte do valor que já
80
perdeu — pois não há esforço de imaginação que nos permita
visualizar o adiamento desse tipo de desastre pela decisão de unir forças).
Comparações fundadas na inveja, quando feitas, tendem a inspirar inveja pessoal
e a aumentar a preocupação com nossa própria astúcia, em lugar de provocar
instintos comunitários e construir uma imagem de conflito de interesses.
O colapso dos “grupos de referência” e a individualização da idéia de privação
relativa coincidiu com um aumento espetacular dos diferenciais reais de riqueza
e renda, sem precedentes na era moderna. O abismo entre os ricos e os pobres, e
entre os mais ricos e os mais pobres, se amplia ano a ano tanto entre as
sociedades como dentro delas, em escala global e dentro de cada Estado. Nos
EUA, país mais rico do mundo, e ao mesmo tempo capital mundial dos conflitos de
interesses e das lutas em torno de reivindicações, a renda dos chefes das
grandes empresas era 419 vezes maior que a dos trabalhadores manuais em 1999
(meros dez anos antes era apenas 42 vezes maior).34 Não se trata de
uma simples questão de extremos; nem de uma questão relativa a um pequeno setor
das elites globais autoconfiantes atribuindo-se vantagens que ninguém tem força suficiente para
impedir ou revogar, e a um
setor um pouco maior, mas ainda relativamente menor, da população como um todo
deixada de fora quando todos os demais entravam na festa de consumo cada vez
mais opulenta. Como observa Richard Rorty,35
o
aburguesamento do proletariado branco que teve início na Segunda Guerra Mundial
e continuou com a Guerra do Vietnã foi detido, e o processo deu para trás. A
América está agora proletarizando sua burguesia... A questão agora é saber se
um casal médio, ambos trabalhando em tempo integral, será capaz de trazer para
casa mais que US$ 30 mil por ano... Mas 30 mil dólares anuais não permitirão a
casa própria nem atendimento decente para as crianças. Num país que não
acredita no transporte público nem num seguro saúde nacional, essa renda
permite a uma família de quatro pessoas apenas uma humilhante subsistência. Tal
família, tentando sobreviver com essa renda, será constantemente atormentada
pelo temor da redução de salário e do downsizing, e pelas conseqüências
desastrosas de qualquer doença, mesmo as menos graves.
81
Os dois desenvolvimentos — o colapso das demandas
coletivas por redistribuição (e em termos mais gerais a substituição dos
critérios de justiça social pelos do respeito à diferença reduzida à distinção cultural) e o crescimento
selvagem da desigualdade — estão intimamente relacionados. Não há nada de acidental
nessa coincidência. Libertar as demandas por reconhecimento de seu
conteúdo redistributivo permite que a crescente ansiedade individual e o medo
gerados pela precariedade da vida na “modernidade líquida” sejam canalizados
para fora da área política — único território onde poderiam se cristalizar numa
ação redentora e radical — bloqueando suas fontes sociais.
Quando esboçou os caminhos que levavam da semelhança de status à ação comunal, Weber estava certo ao fazer
algumas suposições tácitas sobre a natureza da situação social em que a
passagem tem lugar e que é necessária
para que ela seja possível. Essas suposições já não podem ser feitas: a
situação social ficou irreconhecível. Um dos aspectos mais originais dessa
mudança é a separação entre a “questão do reconhecimento” e a da redistribuição. Demandas por
reconhecimento tendem hoje em dia a ser apresentadas sem referência à justiça distributiva. Quando isso
acontece, suposições tácitas também são feitas, mas, ao contrário das
suposições de Weber, elas são contrafactuais. O que se supõe, afinal, é que ter
assegurado legalmente o direito de escolha significa ser livre para escolher —
o que não é o caso. No caminho de uma versão “culturalista” do direito humano
ao reconhecimento, a tarefa não realizada do direito humano ao bem-estar e a uma vida vivida com dignidade se perdeu.
• 7 •
Da
igualdade ao multiculturalismo
Em todo o mundo contemporâneo parece haver uma importante
exceção ao processo aparentemente infindável de desintegração do tipo ortodoxo
de comunidade: as chamadas “minorias étnicas”. Elas parecem reter plenamente o
caráter atributivo do pertencimento comunal, a condição da reprodução contínua
da comunidade. Por definição, no entanto, a atribuição não é questão de
escolha; e de fato as escolhas que intervém na reprodução das minorias étnicas
enquanto comunidades são produto de coação mais que de liberdade de escolha, e
têm pouca semelhança com o tipo de decisão livre imputada ao consumidor livre
numa sociedade liberal. “Valores comunais”, como observou Geoff Dench,36
giram
em torno de pertencimento ao grupo do qual em princípio não se pode escapar...
O pertencimento ao grupo é designado pelas coletividades fortes sobre as mais
fracas, sem se considerar a base subjetiva das identidades alocadas.
As pessoas são designadas como de “minoria
étnica” sem que lhes seja pedido consentimento. Podem ficar satisfeitas com a
situação, ou passar mais tarde a gostar dela, e até lutar por sua perpetuação
sob alguma palavra de ordem do tipo “black is beautiful”. O problema,
contudo, é que isso não influencia o estabelecimento das fronteiras, que é
administrado pelas “comunidades poderosas”, e perpetuado pela circunstância
dessa administração. As condições da separação cultural e da redução da
comunicação
82
83
entre culturas, que Robert Redfield considerava indispensáveis para a formação e sobrevivência de uma cultura, são portanto preenchidas, mas
não da maneira concebida por Redfield, ao generalizar a partir de sua
experiência antropológica: as “minorias étnicas” são antes e acima de tudo
produtos de “limites impostos de fora” e só secundariamente do autocerceamento.
“Minoria étnica” é uma rubrica sob a qual
se escondem ou são escondidas entidades sociais de tipos diferentes, e o que as
faz diferentes raramente é explicitado. As diferenças não derivam dos atributos
da minoria em questão, e ainda menos de qualquer estratégia que os membros da
minoria possam assumir. As diferenças derivam do contexto social em que se
constituíram como tais: da natureza daquela atribuição forçada que levou à imposição de limites. A natureza da
“sociedade maior” deixa sua marca indelével em cada uma de suas partes.
Pode-se argumentar que a mais crucial das
diferenças que separam os fenômenos reunidos sob o nome genérico de “minorias
étnicas” se correlaciona com a passagem do estágio moderno de construção da
nação para o estágio pós-Estado-nação.
A construção da nação significava a busca do princípio “um
Estado, uma Nação”, e, portanto, em última análise, a negação da diversificação
étnica entre os súditos. Da perspectiva da “Nação Estado” culturalmente
unificada e homogênea, as diferenças de língua ou costume encontradas no
território da jurisdição do Estado não passavam de relíquias quase extintas do
passado. Os processos esclarecedores e civilizadores presididos e monitorados
pelo poder do Estado já unificado foram concebidos para assegurar que tais
traços residuais do passado não sobreviveriam por muito tempo. A nacionalidade
compartilhada deveria desempenhar um papel crucial de legitimação na unificação
política do Estado, e a invocação das raízes comuns e de um caráter comum
deveria ser importante instrumento de mobilização ideológica — a produção de
lealdade e obediência patrióticas. Esse postulado se chocava com a realidade de
diversas línguas (agora redefinidas como dialetos tribais ou locais, e
destinados a serem substituídos por uma língua nacional padrão), tradições e
hábitos
84
(agora redefinidos como paroquialismos e destinados a serem
substituídos por uma narrativa histórica padrão e por um calendário padrão de
rituais de memória). “Local” e “tribal” significavam atraso; o esclarecimento
significava progresso, e o progresso significava a elevação do mosaico dos
modos de vida a um nível superior e comum a todos. Na prática, significava
homogeneidade nacional — e dentro das fronteiras do Estado só havia lugar para
uma língua, uma cultura, uma memória histórica e um sentimento patriótico.
A prática da construção da nação tinha duas faces: a
nacionalista e a liberal. A face nacionalista era melancólica, desanimada e
severa — às vezes cruel, raramente benigna. O nacionalismo era quase sempre
belicoso e às vezes sanguinário — quando encontrava uma forma de vida relutante
em abraçar o modelo de “uma nação” e disposto a manter seus próprios costumes.
O nacionalismo queria educar e converter, mas se a persuasão e doutrinação não
funcionassem ou se seus resultados demorassem, recorria à coação: a defesa da autonomia local ou
étnica passava a ser considerada crime, os líderes da resistência étnica eram
proclamados rebeldes ou terroristas, e postos na cadeia ou decapitados, falar
“dialetos” em lugares ou cerimônias públicas estava sujeito a penalização. O
plano nacionalista de assimilar as variedades de vida herdadas e de
dissolvê-las num padrão nacional era e tinha que ser apoiado pelo poder. Assim
como o Estado precisava do frenesi nacionalista como meio de legitimação de sua
soberania, o nacionalismo precisava de um Estado forte para atingir seu
propósito de unificação. O poder de Estado de que o nacionalismo precisava não
podia ter competidores. Todas as autoridades alternativas eram potenciais focos
de sedição. As comunidades — étnicas ou locais — eram os habituais suspeitos e
os inimigos principais.
A face liberal era totalmente diferente da nacionalista.
Era amigável e benévola; sorria a maior parte do tempo, e seu sorriso era
convidativo. Mostrava desagrado à vista da coação e aversão à crueldade. Os liberais se recusavam a forçar quem quer que fosse a
agir contra seu próprio arbítrio, e acima de tudo se recusavam a permitir que
os outros fizessem o que eles próprios (liberais)
85
detestavam: impor a conversão não desejada pela força ou
impedir a conversão, se desejada, também pelo recurso à força. Outra vez, as comunidades étnicas e
locais, forças conservadoras que impediam a auto-afirmação e a autodeterminação individual, eram os
principais suspeitos e se tornavam os alvos na linha de tiro. O liberalismo
acreditava que recusar liberdade aos inimigos da liberdade e deixar de tolerar
os inimigos da tolerância bastariam para fazer com que a pura essência comum a
todos os humanos surgisse das masmorras do paroquialismo e da tradição. Não
restaria obstáculo a impedir que cada um escolhesse a identidade e objeto de
lealdade oferecidos a todos.
A escolha entre as faces nacionalista ou
liberal do emergente Estado-nação não fez diferença para o destino das
comunidades: o nacionalismo e o liberalismo podiam ter diferentes estratégias,
mas compartilhavam o mesmo propósito. Não havia lugar para a comunidade, e
menos ainda para uma comunidade autônoma e capaz de autogoverno, nem naquela
“uma nação” dos nacionalistas, nem na república liberal dos cidadãos livres e
libertos. As duas faces viam o iminente desaparecimento de les pouvoirs
intermédiaires.
A perspectiva aberta pelo projeto de
construção da nação para as comunidades étnicas era uma escolha difícil:
assimilar ou perecer. As duas alternativas apontavam em última análise para o
mesmo resultado. A primeira significava a aniquilação da diferença, e a segunda
a aniquilação do diferente, mas nenhuma delas deixava espaço para a
sobrevivência da comunidade. O propósito das pressões pela assimilação era
despojar os “outros” de sua “alteridade:” torná-los indistinguíveis do resto do
corpo da nação, digeri-los completamente e dissolver sua idiossincrasia no
composto uniforme da identidade nacional. O estratagema da exclusão e/ou
eliminação das partes supostamente indigeríveis e insolúveis da população tinha
uma dupla função. Era usado como arma — para separar, física ou culturalmente,
os grupos ou categorias considerados estranhos demais, excessivamente imersos
em seus próprios modos de ser ou excessivamente récalcitrantes para poderem perder o estigma da
alteridade; e como
86
ameaça — para extrair mais entusiasmo em favor da assimilação
entre os displicentes, os indecisos e os desinteressados.
A escolha de seu próprio destino nem
sempre foi legada às comunidades. A decisão de quem merecia a assimilação e de
quem não a merecia (e, inversamente, de quem deveria ser excluído e impedido de
contaminar o corpo nacional e solapar a soberania do Estado-nação) corria por
conta da maioria dominante, não da minoria dominada. E dominar significa, mais
que qualquer outra coisa, a liberdade de mudar de decisão quando esta deixar de
ser satisfatória; ser fonte de incerteza constante na condição do dominado. As
decisões da maioria dominante eram notórias por sua ambigüidade, e mais ainda
por sua volatilidade. Nessas circunstâncias, a escolha entre um esforço honesto
de assimilar e a rejeição
da oferta, mantendo-se fiel ao modo da própria comunidade, era uma jogada para
os membros das minorias dominadas; quase todos os fatores que podiam levar ao
sucesso ou ao fracasso continuavam teimosamente fora de seu controle. Nas
palavras de Geoff Dench, “suspensos no limbo entre a promessa de integração
plena e o temor da exclusão permanente”, os membros da minoria nunca saberão
se
é realista ver-se como agentes livres na sociedade, ou se é melhor esquecer a
ideologia oficial e reunir-se a outros que compartilham a mesma experiência de
rejeição...
Esse
problema da ênfase relativa que se deve dar à ação
pessoal ou à coletiva... torna-se diferencial e mais desestabilizador para os membros da minoria pela maneira como se liga a uma
segunda dimensão da escolha.
Cara, você ganha; coroa, eu perco. A
promessa de igualdade no final do tortuoso caminho da assimilação pode ser
desfeita a qualquer momento sem que qualquer razão seja apresentada. Os que
exigem o esforço sentem-se como juizes do resultado, e são conhecidos pelo
rigor e também pela excentricidade. Além disso, há o paradoxo inseparável de
qualquer esforço honesto de “tornar-se como eles”. “Eles” se orgulham (de fato
se definem por isso) de ter sido desde sempre o que são, pelo menos desde o
87
antigo ato da miraculosa criação realizada pelo herói
fundador da nação; tornar-se o que sempre se foi graças a uma
longa cadeia de ancestrais desde tempos imemoriais é em verdade uma contradição
em termos. É verdade que a fé moderna permite que qualquer um se torne alguém,
mas uma coisa que ela não permite é tornar-se alguém que nunca foi outro
alguém. Até mesmo o mais zeloso e diligente dos assimilados voluntários
carrega consigo na “comunidade de destino” a marca de suas origens alienígenas,
estigma que nenhum juramento de lealdade pode apagar. O pecado da origem errada
— o pecado original — pode ser tirado do esquecimento a qualquer momento e
transformado em acusação contra o mais consciencioso e devoto dos
“assimilados”. O teste de admissão nunca é definitivo; não há aprovação
conclusiva.
Não há solução evidente e sem riscos para o dilema
enfrentado pelas pessoas declaradas “minorias étnicas” pelos promotores da
unidade nacional. Além disso, se aqueles que aceitaram a oferta de assimilação
cortarem os laços com os antigos irmãos para provarem a lealdade inabalável
para com os novos irmãos por escolha serão imediatamente suspeitos do vício
mortal da traição, e portanto considerados como não merecedores de confiança.
Se, porém, decidirem se engajar em trabalho comunitário para ajudar os irmãos
por nascimento a se elevarem coletivamente da inferioridade coletiva e da
discriminação sofrida coletivamente serão imediatamente acusados de duplicidade
e terão que responder: de que lado estão?
Embora perverso em certo sentido, pode até ser melhor, mais
humano mesmo, ser declarado inadequado para a assimilação desde o começo e ver
negada a escolha. Decerto muito sofrimento se seguiria a tal declaração, mas
muito sofrimento seria poupado. O tormento do risco, o temor de embarcar numa jornada
sem volta é o maior dos sofrimentos evitados por uma “minoria” que viu negado o
convite para fazer parte da nação, ou, se o recebeu, viu-se logo desmascarada
como uma falsa promessa.
O “comunitarismo” ocorre mais naturalmente às pessoas que
tiveram negado o direito à assimilação. Tiveram negada a escolha — procurar abrigo na suposta
“fraternidade” do grupo nativo é sua única opção. Voluntarismo, liberdade
individual,
88
auto-afirmação são sinônimos de emancipação em relação aos
laços comunitários, da capacidade de desconsiderar a atribuição herdada — e foi
isso que lhes foi negado quando não receberam o convite para a assimilação, ou
este lhes foi retirado. Membros das “minorias étnicas” não são “comunitaristas
naturais”. Seu “comunitarismo realmente existente” é apoiado pelo poder,
resultado de expropriação. A propriedade não permitida ou a propriedade
retirada é o direito de escolha. O resto vem depois desse primeiro ato de
expropriação; de qualquer modo, não aconteceria se a expropriação não tivesse
acontecido. A decisão dos dominantes de encerrar os dominados na concha de uma
“minoria étnica” com base em sua relutância ou incapacidade de rompê-la tem
todas as características de uma profecia que se cumpriu. Citando Dench uma vez
mais:
os
valores fraternais são necessariamente hostis ao voluntarismo e à liberdade individual. Eles não têm uma concepção válida do
homem natural e universal... Os únicos direitos humanos admissíveis são aqueles
logicamente derivados dos deveres para com as coletividades que os fornecem.
Os deveres individuais não podem ser
meramente contratuais; a situação sem escolha em que o ato de exclusão sumária
lançou a “minoria étnica” redunda numa situação sem escolha para os membros
individuais quando se trata de seus deveres comunitários. Uma resposta comum à rejeição é um espírito de “fortaleza
sitiada”, que nega a seus ocupantes qualquer opção que não seja a lealdade
incondicional à causa
comum. E não será apenas a recusa explícita a assumir o dever comunitário que
será rotulada de traição, mas tudo que fique aquém da plena dedicação à causa comunitária. Uma sinistra
conspiração da “quinta coluna” será percebida em todo gesto cético e em toda
pergunta endereçada à sabedoria
dos modos comunitários. Os indecisos, os mornos e os indiferentes se tornam os
inimigos principais da comunidade; as mais importantes batalhas são travadas na
frente doméstica e não nos baluartes da fortaleza. A fraternidade proclamada
revela sua face fratricida.
89
No caso da exclusão sumária, ninguém pode
optar com facilidade por retirar-se da comunidade; os ricos e cheios de
recursos, como todos os demais, não têm para onde ir. Essa circunstância
aumenta a capacidade de recuperação da “minoria étnica” e lhe dá uma vantagem
de sobrevivência em relação a comunidades que não foram excluídas da “sociedade
maior”, e que tendem a dissipar-se e a perder a especificidade de maneira muito
mais rápida, abandonadas de pronto pelas elites nativas. Mas também reduz a
liberdade dos membros da comunidade.
Muitas causas se combinam para tornar
pouco realista a dupla estratégia da construção da nação. E mais razões ainda
se aliam para tornar a aplicação dessa estratégia menos urgente, menos
avidamente buscada, ou decididamente indesejável. A globalização acelerada é
defensavelmente a “meta-razão”, ponto de partida a que se seguem todas as
outras.
Mais do que qualquer outra coisa, “globalização” significa
que a rede de dependências adquire com rapidez um âmbito mundial — processo que
não é acompanhado na mesma extensão pelas instituições passíveis de controle
político e pelo surgimento de qualquer coisa que se assemelhe a uma cultura
verdadeiramente global. Bem entrelaçado com o desenvolvimento desigual da
economia, da política e da cultura (outrora coordenadas no quadro do Estado-nação)
está a separação do poder em relação à política; o poder, enquanto incorporado na circulação mundial do
capital e da informação, torna-se extraterritorial, enquanto as instituições
políticas existentes permanecem, como antes, locais. Isso leva inevitavelmente
ao enfraquecimento do Estado-nação; não mais capazes de reunir recursos
suficientes para manter as contas em dia com eficiência e de realizar uma
política social independente, os governos dos Estados não têm escolha senão
seguirem estratégias de desregulamentação: isto é, abrir mão do controle dos
processos econômicos e culturais, e entregá-lo às “forças do mercado”, isto é,
às forças essencialmente extraterritoriais.
O abandono daquela regulação normativa, outrora marca do
Estado moderno, torna redundantes a mobilização cultural/ideológica da
população, outrora estratégia principal do Esta-
90
do moderno, e a evocação da nacionalidade e do dever patriótico, outrera sua principal legitimação: não servem mais
a qualquer propósito perceptível. O Estado não mais preside os processos de
integração social ou manejo sistêmico que faziam indispensáveis a regulação
normativa, a administração da cultura e a mobilização patriótica, deixando tais tarefas (por ação ou
omissão) para forças sobre as quais não tem jurisdição. O policiamento do
território administrado é a única função deixada nas mãos dos governos dos
Estados; outras funções ortodoxas foram abandonadas ou passaram a ser
compartilhadas e assim são apenas em parte monitoradas pelo Estado e por seus
órgãos, e não de maneira autônoma.
Essa transformação, contudo, priva o
Estado de seu antigo status de lugar supremo, talvez único, do poder soberano. As nações, antes
firmemente abrigadas na armadura da soberania multidimensional do Estado-nação,
se acham num vazio institucional. A segurança existencial se estilhaçou; as
velhas histórias reiteradas para restaurar a confiança na filiação perdem muito
de sua credibilidade e, como observou Jeffrey Weeks em outro contexto,37
quando as velhas histórias de filiação (comunitária) já não soam verdadeiras ao
grupo, cresce a demanda por “histórias de identidade” em que “dizemos a nós
mesmos de onde viemos, quem somos e para onde vamos”; tais histórias são
urgentemente necessárias para restaurar a segurança, construir a confiança e
tornar “possível a interação significativa com os outros”. “À medida que as
velhas certezas e lealdades são varridas para longe, as pessoas procuram novas
filiações.” O problema com as novas histórias de identidade, em claro contraste
com as velhas histórias da “filiação natural” diariamente confirmadas pela
solidez aparentemente invulnerável de instituições profundamente estabelecidas,
é que “a confiança e o compromisso têm que ser trabalhados em relações cuja
duração ninguém garante, a menos que os indivíduos decidam fazê-las
duradouras”.
O vazio normativo aberto pela retirada da meticulosa
regulamentação estatal sem dúvida traz mais liberdade. Nenhuma “história de
identidade” está imune a correções; pode ser reformulada se insatisfatória ou
não tão boa como outras. No vazio, a
91
experimentação é fácil e encontra poucos obstáculos — mas o
empecilho é que, agradável ou não, o produto experimental nunca é seguro; sua
expectativa de vida é curta e por isso a segurança existencial que promete custa
a chegar. Se as relações (inclusive a união comunitária) não têm garantia de
durabilidade que não seja a decisão individual de “fazê-las durar”, a decisão
tem que ser repetida diariamente, e manifestada com tal zelo e dedicação que a
faça valer de verdade. As relações escolhidas não durarão a menos que a vontade
de mantê-las seja protegida contra o perigo da dissipação.
Isso não é uma grande tragédia (e pode até
ser uma boa notícia) para os indivíduos cheios de recursos e
autoconfiantes, que contam com
sua própria capacidade para enfrentar as correntes contrárias e proteger suas
escolhas, ou, se isso for impossível, fazer novas escolhas, diferentes mas não
menos satisfatórias. Tais indivíduos não precisam procurar uma garantia
comunitária para sua segurança, dada a etiqueta de preço em todos os
compromissos de longo prazo (e portanto numa filiação comunitária que não
permite livre escolha nem na entrada nem na saída). É diferente para os
indivíduos que não têm recursos nem autoconfiança. Tudo o que estes querem
ouvir é a sugestão de que a coletividade em que buscam abrigo e da qual esperam
proteção tem um fundamento mais sólido do que as escolhas individuais
reconhecidamente caprichosas e voláteis. A etiqueta de preço colada à filiação involuntária e para toda a vida,
que não permite saída, não parece sinistra para todos, uma vez que o que lhes é
negado — o direito à livre
escolha da identidade — é, no caso dos fracos e desvalidos, uma ilusão e,
acrescentando o opróbrio à ofensa, também causa de auto-reprovação e humilhação pública.
Portanto, como observa Jeffrey Weeks,
O
mais forte sentido de comunidade costuma vir dos grupos que percebem as
premissas de sua existência coletiva ameaçadas e por isso constróem uma
comunidade de identidade que lhes dá uma sensação de resistência e poder.
Incapazes de controlar as relações sociais em que se acham envolvidas, as
pessoas encolhem o mundo para adaptá-lo ao tamanho de suas comunidades e agem
política-
92
mente a partir dessa base. O resultado é com
freqüência um particularismo obsessivo como modo de enfrentar e/ou lidar com a
contingência.
Recriar fragilidades e debilidades
individuais muito reais na forma da potência (imaginária) da comunidade resulta
em ideologia conservadora e pragmática exclusivista. O conservadorismo (“voltar
às raízes”) e o exclusivismo (“eles” são, coletivamente, uma ameaça para “nós”,
coletivamente) são indispensáveis para que o verbo se faça carne, para que a
comunidade imaginária gere a rede de dependências que a tornarão real, e para que a célebre regra de W.I. Thomas, “se as
pessoas definem uma situação como real, ela tende a se tornar real em suas
conseqüências”, possa operar.
A triste verdade é que a enorme maioria da
população deixada órfã pelo Estado-nação quando este renunciou, uma a uma, às
funções geradoras de segurança e confiança pertence à categoria dos “frágeis e débeis”. Somos
todos instados, como notou Ulrich Beck, a “procurar soluções biográficas para contradições
sistêmicas”, mas apenas uma minoria ínfima da nova elite extraterritorial pode
vangloriar-se de encontrá-las, ou, se ainda não a tiverem encontrado, de serem
plenamente capazes de encontrá-la em um futuro próximo. A procura com a
quase-certeza de sucesso é um passatempo agradável, e a demora em encontrar, assim como possíveis
erros, só acrescenta excitação à longa viagem da descoberta. A procura com a quase-certeza de
fracasso é um tormento — e assim a promessa de livrar os que procuram da
obrigação de continuarem na busca soa agradável. É preciso, seguindo o exemplo
de Ulisses, tapar bem os ouvidos para não ouvir o canto das sereias.
Vivemos em tempos de grande e crescente migração global. Os
governos se esmeram ao máximo para agradar os eleitores endurecendo as leis de
imigração, restringindo o direito de asilo, sujando a imagem dos “migrantes
econômicos” que, diferentemente dos eleitores encorajados a sair de bicicleta
em busca do êxtase econômico, são também estrangeiros — mas há pouca chance de
que a “grande migração das nações, fase dois” venha a
93
ser detida. Os governos e os advogados que eles empregam
tentam traçar uma linha divisória entre, de um lado, a livre circulação do
capital, das finanças e do investimento e as pessoas de negócios que os
carregam, saudando-os e desejando que eles se multipliquem, e, de outro, a
transmigração dos que procuram empregos que eles, e seus eleitores, detestam.
Mas essa linha não pode ser traçada e, se o fosse, seria prontamente apagada.
Há um ponto em que as duas intenções entram em choque; a liberdade de comércio
e investimento logo atingiria o limite se não fosse complementada pelo direito
de os desempregados irem aonde os empregos estivessem disponíveis.
Não há como negar o fato de que essas flutuantes “forças de
mercado” extraterritoriais são instrumentais no movimento dos “migrantes
econômicos”. Mas os governos territoriais, por mais relutantes que sejam, são
obrigados a cooperar. Em conjunto, as duas forças promovem os processos que
pelo menos uma delas de outra maneira desejaria com todas as forças deter. De
acordo com o estudo de Saskia Sassen,38 independente do que digam
seus porta-vozes, as ações das agências extraterritoriais e dos governos locais
estimulam a migração cada vez mais intensa. As pessoas sem rendimentos e com
poucas esperanças depois da devastação das economias locais tradicionais são
presa fácil para organizações semi-oficiais e semicriminosas especializadas no
“tráfico de seres humanos”. (Estima-se que na década de 1990, organizações
criminosas lucraram 3,5 bilhões de dólares ao ano com a migração ilegal — mas
não o fizeram sem o apoio tácito dos governos, ou pelo menos sem que estes
fizessem vista grossa. Se, por exemplo, as Filipinas tentaram fechar as contas
e pagar a dívida do governo com a exportação oficial da população excedente, as
autoridades norte-americanas e japonesas aprovavam leis permitindo a importação
de trabalhadores estrangeiros para atividades que sofressem escassez aguda de
trabalho.)
O sedimento das pressões combinadas é a proliferação de diasporas étnicas; as pessoas continuam a ser menos
voláteis do que os ciclos de explosão e depressão econômica, e a história dos ciclos passados deixou atrás
de si uma longa trilha de imigrantes em busca de assentamento. Mesmo que
quisessem embarcar em
94
outra jornada e
partir, as mesmas contradições
políticas que acabaram trazendo os
imigrantes “para dentro” os impediriam de agir. Os imigrantes não têm escolha a
não ser tornar-se outra “minoria étnica” no país de adoção. E os locais não têm
escolha a não ser preparar-se para uma longa vida em meio às diasporas. Espera-se que ambos encontrem seus
caminhos para enfrentar as realidades fundadas no poder.
Na conclusão de seu abrangente estudo de uma dessas diasporas na Grã-Bretanha, Geoff Dench sugere que
muitas
pessoas na Grã-Bretanha... vêem as minorias étnicas como intrusos cujos
destinos e lealdades são evidentemente divergentes em relação aos do povo
britânico, e cuja posição dependente e inferior na Grã-Bretanha não suscita
comentários. Onde surja um conflito de interesses, é evidente que a simpatia
pública estará contra eles...39
Isso, obviamente, não vale só para a
Grã-Bretanha e para a “minoria étnica” (maltesa), objeto do estudo de Dench. As
atitudes descritas foram registradas em todos os países com diasporas consideráveis, e isso significa virtualmente
todo o globo. A proximidade de “estranhos étnicos” dispara os instintos étnicos
dos nativos, e as estratégias que se seguem a esses instintos têm por objetivo
a separação e isolamento desses “alienígenas”, o que por sua vez réverbéra no impulso ao auto-estranhamento e
autofechamento do grupo isolado à força. O processo tem todas as marcas da “cadeia cismogenética” de
Gregory Bateson, conhecida por sua propensão a se perpetuar e notoriamente
difícil de deter. E assim a tendência ao fechamento comunitário é preparada e
encorajada em ambas as direções.
Por mais que os formadores de opinião liberais possam
lamentar esse estado de coisas, parecem não existir agentes políticos
interessados em romper o círculo vicioso das exclusividades que se reforçam de
lado a lado, e menos ainda trabalhando na prática para eliminar suas fontes.
Por outro lado, muitas das forças mais poderosas conspiram, ou pelo menos atuam
em uníssono, para perpetuar a tendência exclusivista e a construção de
barricadas.
95
Primeiro, o antigo e bem usado princípio
de dividir para reinar ao qual os poderes de todos os tempos alegremente
recorreram sempre que se sentiram ameaçados pela fusão e condensação de queixas
e reclamações, em geral variadas e dispersas. Se ao menos se pudesse impedir
que as ansiedades e fúrias dos sofredores corressem para o mesmo leito; se ao
menos as muitas e diferentes opressões pudessem ser sofridas por cada categoria
de oprimidos em separado, então os fluxos poderiam ser desviados e a energia do
protesto dissipada e logo esgotada numa pletora de inimizades intertribais e
intercomunitárias — assumindo os poderes supremos o papel de juizes imparciais,
promotores da igualdade entre as demandas em choque, defensores da paz e
salvadores e benevolentes protetores de todos e de cada um na guerra civil; seu
papel na criação das condições que tornaram inevitável a guerra sendo logo
subestimado ou esquecido. Richard Rorty40 faz uma “descrição densa” dos usos atuais da
estratégia de dividir para reinar:
O
objetivo será manter 75% dos americanos e 95% da população mundial ocupados com
hostilidades étnicas e religiosas ... Se os proletários puderem ser distraídos
de seu próprio desespero por pseudo-eventos criados pela mídia, incluindo uma
breve e sangrenta guerra ocasional, os super-ricos nada terão a temer.
Quando os pobres brigam entre si, os ricos
têm todas as razões para se alegrar. E não apenas porque a perspectiva de que
os sofredores assinarão um pacto contra os responsáveis por sua miséria se
tornou remota como no passado quando se aplicara com sucesso o princípio de dividir
para reinar. Há razões menos banais para a alegria — razões específicas do
novo caráter da hierarquia global de poder. Como foi dito, essa nova hierarquia
opera por uma estratégia de desengajamento que por sua vez depende da
facilidade e velocidade com que os novos poderes globais são capazes de
mover-se, desligando-se dos compromissos locais e deixando aos “locais” e a
todos os deixados para trás a tarefa de limpar os destroços. A liberdade de movimento
da elite depende em grande medida da incapacidade ou falta de vontade
96
de ação comum dos nativos. Quanto mais pulverizados estes,
tanto mais fracas e diminutas as unidades em que se dividem, tanto mais sua ira
se gasta em brigas com vizinhos igualmente impotentes, e tanto menor é a chance
de ação comum. Ninguém será forte o bastante para impedir outro ato de
desaparecimento, para deter o fluxo, para manter à mão os voláteis recursos de sobrevivência.
Ao contrário do que comumente se pensa, a ausência de agências políticas
capazes de igualar o escopo das forças econômicas não é uma questão de
defasagem no desenvolvimento; não é que as instituições políticas existentes
não tenham tido tempo para rearranjar-se num novo sistema global de freios e contrapesos
democraticamente controlado. Parece, ao contrário, que a pulverização do espaço
público e sua saturação por conflitos intercomunitários é precisamente o tipo
de “superestrutura” (ou seria melhor chamá-la de “subestrutura”?) que a nova
hierarquia de poder servida pela estratégia do desengajamento precisa, e aberta
ou sub-repticiamente cultivará se puder. A ordem global precisa de muita
desordem local “para não ter o que temer”.
Na última citação de Rorty, deixei de fora uma referência
aos “debates sobre os usos sexuais” como outro fator, ao lado das “hostilidades
étnicas e religiosas”, responsável pelo fato de os “super-ricos nada terem a
temer”. Trata-se de uma referência à “esquerda cultural” que, apesar de todos os seus méritos na luta
contra a intolerância da sociedade norte-americana em relação à diferença cultural, é culpada, na opinião
de Rorty, de afastar da agenda pública a questão da privação material, fonte
mais profunda de toda desigualdade e injustiça. Os hábitos sexuais foram sem
dúvida explorados como um dos alvos mais importantes da intolerância — mas o
problema é que se a atenção se volta para a civilidade e a correção política em
encontros com diferenças de hábitos, terá pouca chance de ir mais fundo nas
raízes da desumanidade. E causará mais prejuízos que isso: absolutizará a
diferença e impedirá o debate sobre as virtudes e defeitos relativos de formas
de vida coexistentes. A letra miúda do rodapé é que todas as diferenças são
boas e dignas de preservação simplesmente porque são diferenças; e todo debate,
por sério, honesto e civilizado que seja, será banido se tentar reconciliar as
diferenças existentes
97
de modo a elevar (e presumivelmente melhorar) o
nível dos padrões gerais que presidem a vida humana. Jonathan Friedman apelidou os intelectuais com essa
posição de “modernistas sem modernismo” — isto é, pensadores inclinados, na
consagrada tradição modernista, à transcendência, mas sem qualquer idéia do destino a que a
transcendência eventualmente pode (ou deve) levar, e que evitam qualquer
consideração antecipada sobre a forma desse destino. O resultado é uma
contribuição involuntária à perpetuação e até mesmo à aceleração da presente tendência à pulverização; e torna ainda mais difícil
um diálogo entre culturas, única ação que poderia superar a atual incapacidade
dos potenciais agentes políticos da mudança social.
As atitudes a que Rorty e Friedman se referem não são na
realidade surpreendentes. Pode-se dizer que é justo o que se esperaria de uma
elite do conhecimento que renunciou a seu papel moderno de esclarecedora, guia
e mestra e passou a seguir (ou foi forçada a seguir) a liderança do outro
setor, de negócios, da elite global na nova estratégia de separação,
distanciamento e desengajamento. Não que as atuais classes do conhecimento
tenham perdido sua fé no progresso e passado a suspeitar de todos os modelos de
transformação; uma razão mais importante para abraçar a estratégia da separação
foi, parece, a aversão do impacto imobilizador dos compromissos de longo prazo
e dos confusos e embaraçosos laços de dependência em que a alternativa ora
abandonada inevitavelmente teria implicado. Como tantos de seus contemporâneos,
os descendentes dos intelectuais modernos querem e procuram “mais espaço”. O
engajamento com “o outro”, por oposição a “deixá-lo em liberdade”, reduziria
esse espaço em lugar de aumentá-lo.
O novo descaso em relação à diferença é teorizado como reconhecimento
do “pluralismo cultural”: a política informada e defendida por essa teoria é o
“multiculturalismo”. Ostensivamente, o multiculturalismo é orientado pelo
postulado da tolerância liberal, pela preocupação com o direito das comunidades
à auto-afirmação e com o
reconhecimento público de suas identidades por escolha ou por herança. Ele
funciona, porém, como força essencialmente conservadora: seu efeito é uma
transformação
98
das desigualdades incapazes de obter aceitação pública em
“diferenças culturais” — coisa a ser louvada e obedecida. A fealdade moral da
privação é miraculosamente reencarnada na beleza estética da diversidade
cultural. O que se perdeu de vista no processo foi que a demanda por
reconhecimento fica desarmada se não for sustentada pela prática da
redistribuição — e que a afirmação comunitária da especificidade cultural serve
de pouco consolo para aqueles que, graças à cada vez maior desigualdade na divisão dos
recursos, têm que aceitar as escolhas que lhes são impostas.
Alain Touraine41
sugeriu que o
“multiculturalismo” como postulado de respeito pela liberdade de escolha entre
uma variedade de possibilidades culturais fosse separado de algo inteiramente
diferente (se não manifestamente, pelo menos em suas conseqüências): uma visão
mais bem chamada de multicomunitarismo. O primeiro pede respeito pelo
direito de os indivíduos escolherem seus modos de vida e seus compromissos; o
segundo supõe, ao contrário, que o compromisso dos indivíduos é um caso
encerrado, determinado pelo pertencimento comunitário e portanto não passível
de negociação. Confundir as duas vertentes no credo culturalista é, porém, tão comum
quanto equivocado e politicamente perigoso.
Enquanto essa confusão perdura, o “multiculturalismo” é um
joguete nas mãos da globalização não limitada politicamente; as forças
globalizantes conseguem escapar com suas conseqüências devastadoras, a principal
das quais sendo a impressionante desigualdade entre sociedades e dentro das
sociedades. O antigo, ostensivo e arrogante hábito de explicar a desigualdade
por uma inferioridade inata de certas raças foi substituído por uma
representação aparentemente compassiva de condições humanas brutalmente
desiguais como direito inalienável de toda comunidade à sua forma preferida de viver. O novo
culturalismo, como o velho racismo, tenta aplacar os escrúpulos morais e
produzir a reconciliação com a desigualdade humana, seja como condição além da
capacidade de intervenção humana (no caso do racismo), seja com o veto à violação dos sacrossantos Valores
culturais pela interferência humana. A fórmula racista obsoleta de
reconciliação com a desigualdade estava intimamente associada com a
99
busca moderna da “ordem social perfeita”: a construção da
ordem necessariamente envolve seleção, e era óbvio que raças inferiores,
incapazes de atingir padrões humanos decentes, não teriam lugar em qualquer
ordem que se aproximasse da perfeição. A nova fórmula culturalista está, por
sua vez, intimamente ligada ao abandono dos projetos da “boa sociedade”. Se a
revisão dos arranjos sociais não está nas cartas — seja ditada pela
inevitabilidade histórica, seja sugerida pelo dever ético — é obvio que todos
temos o direito de procurar um lugar na ordem fluida da realidade e arcar com
as conseqüências da escolha.
O que a visão “culturalista” do mundo não menciona é que a desigualdade é sua própria causa mais
poderosa, e que apresentar as divisões que ela gera como um aspecto inalienável
da liberdade de escolha, e não como um dos maiores obstáculos a essa liberdade
de escolha, é um dos principais fatores de sua perpetuação.
Há outros problemas a examinar, porém, antes de voltar ao
“multiculturalismo” no último capítulo.
• 8 •
O nível mais baixo: o gueto
Uma insólita aventura aconteceu com o espaço rumo à globalização: ele perdeu sua importância,
mas ganhou significação. De um lado, como insiste Paul Virilio,42 a
soberania territorial perdeu quase toda a substância e boa parte de sua
atração: se cada ponto pode ser alcançado e abandonado no mesmo instante, a
posse permanente de um território com seus deveres e compromissos de longo
prazo transforma-se em um passivo, e se torna um peso e não mais um recurso na
luta pelo poder. De outro, como observa Richard Sennett,43 “como as instituições cambiantes da
economia diminuem a experiência de pertencer a algum lugar especial... os
compromissos das pessoas com os lugares geográficos, como nações, cidades e
localidades, aumentam”. De um lado, tudo pode ser feito aos lugares longínquos
dos outros sem se mudar de lugar. De outro, pouco se pode prevenir em relação a
nosso próprio lugar, por mais vigilantes e cuidadosos que sejamos em guardá-lo.
No que diz respeito à experiência diária compartilhada pela maioria, uma conseqüência
particularmente pungente da nova rede global de dependências, combinada ao
gradual mas inexorável desmantelamento da rede institucional de segurança que
costumava nos proteger das oscilações do mercado e dos caprichos de um destino
determinado por ele, é paradoxalmente (embora não surpreendente de um ponto de
vista psicológico) o aumento do valor do lugar. Na explicação de Richard Sennett, “o sentido de lugar se baseia na
necessidade de pertencer não a uma ‘sociedade’
100
101
em abstrato, mas a algum lugar em particular; satisfazendo
essa necessidade, as pessoas desenvolvem o compromisso e a lealdade”. A
abstração da “sociedade”, acrescento eu, pode ter sido uma característica
constante da sociedade, mas hoje em dia é ainda mais evidente e sentida.
É verdade que a “sociedade” foi sempre uma entidade imaginária,
nunca dada à experiência
em sua totalidade; há não muito tempo, contudo, sua imagem era a de uma
comunidade de “cuidados e compartilhamento”. Através de disposições
previdenciárias vistas como certidão de nascimento do cidadão e não como
caridade para com os menos capazes, inválidos ou indolentes, essa imagem irradiava uma confiança reconfortante
no seguro coletivo contra o
infortúnio individual. A sociedade era imaginada como o pai poderoso, rigoroso
e às vezes implacável, mas sempre pai, alguém a quem sempre se podia recorrer
em busca de ajuda em caso de problemas. Tendo desde então dispensado, ou tendo
sido roubada de muitos dos eficientes instrumentos de ação que manejava nos
tempos da soberania inconteste do Estado-nação, a “sociedade” perdeu muito de sua aparência “paternal”.
Pode algumas vezes ferir, e dolorosamente; mas no que diz respeito ao
suprimento dos bens necessários para uma vida decente e para enfrentar as
adversidades do destino, ela parece perturbadoramente de mãos vazias. Por isso
as esperanças de salvação que podem vir das torres de controle (adequadamente
tripuladas) da “sociedade” definham e se esvaem. Por isso também a “boa
sociedade” é uma noção a que a maioria de nós não dá maior importância, e cuja
consideração seria vista como uma perda de tempo.
O amor frustrado acaba, na melhor das hipóteses, em
indiferença, mas no mais das vezes em suspeição e ressentimento. Se a
“sociedade” não satisfaz o desejo de um lar seguro, não é tanto por ser
“abstrata” (não é mais abstrata ou “imaginária”, lembremos, do que “nação” ou
qualquer outra “comunidade” contemporânea) mas pela recente traição ainda
fresca na memória popular. Ela não cumpriu suas promessas; negou abertamente
das mais vitais delas. Às pessoas que sofrem sob a pressão de uma existência
insegura e perspectivas incertas, ela promete mais e
102
não menos insegurança: numa drástica mudança de tom ainda
difícil de assimilar, seus porta-vozes exigem maior “flexibilidade”; instam os
indivíduos a que exerçam seu próprio juízo na procura da sobrevivência, do
progresso e da vida digna, a que dependam de suas próprias entranhas e energia
e a que censurem sua própria indolência ou preguiça em caso de derrota.
Entre as totalidades imaginárias a que as pessoas
acreditavam pertencer e aonde acreditavam poder procurar (e eventualmente
encontrar) abrigo, um vazio boceja no lugar outrora ocupado pela “sociedade”.
Esse termo já representou o Estado, armado com meios de coerção e também com
meios poderosos para corrigir pelo menos as injustiças sociais mais
ultrajantes. Esse Estado está sumindo de nossa vista. Esperar que o Estado, se
chamado ou pressionado adequadamente, fará algo palpável para mitigar a
insegurança da existência não é muito mais realista do que esperar o fim da
seca por meio de uma dança da chuva. Parece cada vez mais claro que o conforto
de uma existência segura precisa ser procurado por outros meios. A segurança,
como todos os outros aspectos da vida humana num mundo inexoravelmente
individualizado e privatizado, é uma tarefa que toca a cada indivíduo. A
“defesa do lugar”, vista como condição necessária de toda segurança, deve ser
uma questão do bairro, um “assunto comunitário”. Onde o Estado fracassou,
poderá a comunidade— a comunidade local, uma comunidade corporificada
num território habitado por seus membros e ninguém mais (ninguém que
“não faça parte”) — fornecer aquele “estar seguro” que o mundo mais extenso claramente
conspira para destruir?
O lugar como tal pode ter perdido importância para a elite
“voadora”, hoje capaz de olhar todos os lugares com distanciamento e sem
envolvimento, como já se considerou ser privilégio dos pássaros. Mas mesmo os
membros dessa elite precisam de intervalos nas angustiantes e estressantes
viagens, momentos de relaxamento e descanso, de reabastecimento da capacidade
de resistir à tensão
cotidiana — e para isso precisam de um lugar seguro. Talvez os outros lugares,
os lugares das outras pessoas, não importem — mas aquele lugar especial, seu
próprio lugar, importa. Talvez também o conhecimento de que os lugares das
103
outras pessoas são maleáveis e indefensáveis acrescente
urgência à necessidade de
fortificar e tornar inexpugnável aquele lugar próprio especial.
A certeza e a segurança das condições existenciais dificilmente pode ser
comprada com os recursos da conta bancária — mas a segurança do lugar pode, se
a conta for suficientemente grande; as contas bancárias dos “globais” são em
geral suficientemente grandes. Os globais podem obter os equivalentes da haute couture
da indústria da
segurança. Os demais, não menos atormentados pela corrosiva sensação da
insuportável volatilidade do mundo, mas não suficientemente voláteis eles mesmos
para se equilibrarem nas ondas, têm em geral menos recursos e precisam se
contentar com as réplicas baratas, produzidas em massa, da alta moda. Esses
outros podem fazer ainda menos, em verdade quase nada, para mitigar a incerteza
e a insegurança que assolam
o mundo que habitam — mas podem investir suas últimas moedas na segurança de
seus corpos, suas posses, sua rua. Há não muito tempo, pessoas que acreditavam
que o confronto nuclear não poderia ser detido procuravam a salvação
construindo abrigos nucleares para suas famílias. As pessoas que acreditam que
não há nada a fazer para suavizar o tom, e menos ainda para exorcizar o
espectro da insegurança, se ocupam em comprar alarmes contra ladrões e arame
farpado. O que eles procuram é o equivalente do abrigo nuclear pessoal; o
abrigo que procuram chamam de “comunidade”. A “comunidade” que procuram é um
“ambiente seguro” sem ladrões e à prova de intrusos. “Comunidade” quer dizer isolamento, separação,
muros protetores e portões vigiados.
Sharon Zukin descreve, seguindo City of Quartz de
Mike Davis (1990), os espaços públicos em Los Angeles
reformulados pelos cuidados com a segurança dos habitantes e seus guardas,
escolhidos ou indicados: “helicópteros trovejam nos céus sobre os guetos, a
polícia persegue jovens como presumíveis bandidos, os donos das casas compram
todo tipo de defesa armada que puderem... ou tiverem coragem de usar” As
décadas de 1960 e 70 foram, diz Zukin, “um divisor de águas na
institucionalização dos temores urbanos”:
104
Os
eleitores e as
élites — uma classe média em termos amplos nos Estados Unidos —
poderiam ter preferido aprovar políticas governamentais para eliminar a
pobreza, administrar a competição étnica e integrar as pessoas em instituições
públicas comuns. Em lugar disso, preferiram comprar proteção, alimentando o
crescimento da indústria privada da segurança.
Um perigo mais palpável ao que chama de
“cultura pública” é percebido por Zukin na “política do medo cotidiano”. O
espectro, que gela o sangue e esfrangalha os nervos, das “ruas inseguras”
mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da procura da arte e
habilidades necessárias para participar da vida pública.
“Endurecer”
o combate ao crime construindo mais prisões e impondo a pena de morte é uma
resposta bem conhecida à política do medo. “Prendam toda a
população”, ouvi um homem dizer no ônibus, reduzindo a solução a seu extremo
ridículo. Outra resposta é privatizar e militarizar o espaço público — fazendo
mais seguras as ruas, parques e lojas, mas menos livres...44
O bairro seguro concebido com guardas
armados controlando a entrada; o gatuno e suas variantes substituindo os
primeiros bichos-papões modernos do mobile vulgus, e juntamente
promovidos à posição de inimigos
públicos número-um; uma equiparação das áreas públicas a enclaves “defensáveis” com acesso seletivo; a
separação em lugar da negociação da vida em comum; a criminalização da
diferença residual — essas são as principais dimensões da atual evolução da
vida urbana. E é na
moldura cognitiva dessa evolução que a nova concepção de “comunidade” se forma.
Segundo essa noção, comunidade significa mesmice, e a “mesmice” significa a ausência do Outro,
especialmente um outro que teima em ser diferente, e precisamente por
isso capaz de causar surpresas desagradáveis e prejuízos. Na figura do estranho
(não simplesmente o “pouco familiar”, mas o alien, o que está “fora de
lugar”), o medo da incerteza, fundado na experiência da vida, encontra a
largamente procurada, e bem-vinda, corporifi-
105
cação. No fim, não nos sentiremos humilhados por sofrer os
golpes sem levantar a mão — podemos fazer algo real e tangível para aparar os
golpes aleatórios do destino, talvez até frustrá-los ou evitá-los. Dada a
intensidade do medo, se não existissem estranhos eles teriam que ser
inventados. E eles são inventados, ou construídos, diariamente: pela vigilância
do bairro, pela tevê de circuito fechado, guardas armados até os dentes. A
vigilância e as façanhas defensivas/agressivas que ela engendra criam seu
próprio objeto. Graças a elas, o estranho é metamorfoseado em alienígena, e o
alienígena, numa ameaça. As ansiedades esparsas e flutuantes ganham um núcleo
sólido. O antigo sonho da pureza, que há não tanto tempo embalou a visão da
sociedade “perfeita” (transparente, previsível, livre da contingência), tem
agora como objeto principal a “comunidade do bairro seguro”. O que aparece no
horizonte da longa marcha em direção à “comunidade segura” (comunidade como segurança) é um
mutante bizarro do “gueto voluntário”.
Um gueto, como o define Loïc Wacquant,45 combina o
confinamento espacial com o fechamento social: podemos dizer que o fenômeno do
gueto consegue ser ao mesmo tempo territorial e social, misturando a
proximidade/distância física com a proximidade/distância moral (nos
termos de Durkheim, ele funde a densidade moral com a densidade física). Tanto
o “confinamento” quanto o “fechamento” teriam pouca substância se não fossem
complementados por um terceiro elemento: a homogeneidade dos de dentro,
em contraste com a heterogeneidade dos de fora. Através da longa
história do gueto, assim como no gueto negro norte-americano, seu arquétipo de
hoje, o terceiro elemento foi fornecido pela separação etno-racial. Ele assume
forma semelhante nos numerosos “guetos de imigrantes” espalhados pelas cidades
européias e norte-americanas. Só a separação étnica/racial dá à oposição homogeneidade/heterogeneidade a
capacidade de conferir aos muros do gueto o tipo de solidez, durabilidade e
confiabilidade de que precisam (e para as quais são necessários). Por essa
razão, a separação étnica/racial é um “padrão ideal” natural a ser seguido por
todas as separações secundárias e substitutas com pretensões a desempenhar o
papel de terceiro ele-
106
mento, a separação homogeneidade/heterogeneidade, modelo
que se esforçam por emular e cujas penas desejam roubar.
Os guetos voluntários não são guetos verdadeiros, é claro,
e têm seus voluntários (isto é, podem ser tentadores e criar desejos,
incentivando as pessoas a construírem suas falsas réplicas) precisamente porque
não são “reais”. Os guetos voluntários diferem dos verdadeiros num aspecto
decisivo. Os guetos reais são lugares dos quais não se pode sair (como diz
Wacquant, os habitantes dos guetos negros norte-americanos “não podem
casualmente atravessar para o bairro branco adjacente, sob pena de serem
seguidos e detidos, quando não hostilizados, pela polícia”); o principal
propósito do gueto voluntário, ao contrário, é impedir a entrada de intrusos —
os de dentro podem sair à vontade.
Realmente, as pessoas que dão um braço e uma perna pelo
privilégio do “confinamento espacial e fechamento social” são zelosas na
justificação do investimento pintando a selva do lado de fora dos portões com
cores mais carregadas, exatamente como pode parecer aos habitantes dos guetos
reais. Nada, contudo, inspiraria os que se decidem pelo isolamento estilo gueto
a trancar os portões se não fosse a tranqüilizante consciência de que não há
nada de final ou irrevogável na decisão de comprar uma casa dentro dos muros do
quase-gueto. Os guetos reais implicam na negação da liberdade. Os guetos
voluntários pretendem servir à causa da liberdade.
Seu efeito sufocante é uma “conseqüência
não prevista” — não é intencional. Os moradores descobrem, decepcionados, que,
quanto mais seguros se sentem dentro dos muros, tanto menos familiar e mais
ameaçadora parece a selva lá fora, e mais e mais coragem se faz necessária para aventurar-se além dos guardas
armados e além do alcance da rede eletrônica de segurança. Os guetos
voluntários compartilham com os verdadeiros uma espantosa capacidade de
permitir que seu isolamento se perpetue e exacerbe. Nas palavras de Richard
Senett,46
as
demandas por lei e ordem atingem o máximo quando as comunidades estão mais
isoladas das outras pessoas da cidade... As cidades na América durante as duas
últimas décadas cresceram de tal
107
modo que as áreas étnicas se tornaram
relativamente homogêneas; não é um acidente que O medo dos de fora tenha
aumentado na medida em que essas comunidades étnicas foram isoladas.
Canalizar as emoções geradas pela
incerteza existencial em uma procura frenética de “segurança na comunidade”
funciona como todas as outras profecias: uma vez iniciada, tende a dar
substância a seus motivos originais e a produzir sempre novas “boas razões” e justificativas para o
movimento original. Resumindo: insere retrospectivamente maior substância nas
razões que a provocaram e produz um número crescente de causas convincentes
para sua continuidade. Ao fim, sua continuidade vira prova de sua própria
correção e urgência — a única prova de que precisa no momento.
Não nos deixemos enganar, porém, pela
aparente simplicidade da urgência da “segurança na comunidade”; ela encobre
profundas diferenças nas condições de vida socialmente determinadas. Mesmo se
esquecermos por um momento as diferenças entre o luxo perfumado dos
“quase-guetos” e a fétida
esqualidez dos verdadeiros e imaginarmos que seus respectivos habitantes podem
sentir-se igualmente seguros quando do lado de dentro, ainda existe um mundo de
diferenças entre envergar o “leve manto” e achar-se trancado na “gaiola de
ferro” (para usar a célebre metáfora de Max Weber). As pessoas que vestem o
manto podem achá-lo bonito, aconchegante e confortável, podem nunca sair sem
ele e recusar-se a trocá-lo por qualquer outra coisa, mas a crença de que podem
despir o manto é o que o faz ser percebido como “leve”, nunca irritante ou
opressivo. É a situação “sem
alternativas”, o destino sem saída do morador do gueto que faz com que a
“segurança da mesmice” seja sentida como uma gaiola de ferro — apertada,
incômoda, incapacitante e à prova de fuga. É essa falta de escolha num mundo de livre-escolha
que é muitas vezes mais detestada que o desmazelo e a sordidez da moradia não escolhida. Os que
optam pelas comunidades cercadas tipo gueto podem experimentar sua “segurança
da mesmice” como um lar; as pessoas confinadas no verdadeiro gueto vivem em
prisões.
108
Em outro relato de sua série de
reveladores estudos sobre o gueto, Loïc Wacquant47 põe a nu as “lógicas institucionais de segregação
e agregação” que resultam “em elevados níveis de frustração, pobreza e privação
no gueto”. Guetos verdadeiros podem ser diferentes entre si. Os guetos negros
norte-americanos, como dissemos, são a sedimentação de uma dupla rejeição,
combinando classe e raça — e a cor da pele mantém os moradores do gueto em sua prisão com mais
firmeza do que um exército de carcereiros. De outro lado, as banlieues ou
cités francesas, áreas
operárias com grande aporte de imigrantes, têm uma população racialmente mista
e seus jovens enchem o tempo indo para as áreas prósperas de classe média onde
podem, pelo menos, andar pelos shoppings e outros pontos favoritos de diversão das
“pessoas comuns”. Nem nos guetos negros nem nas cités francesas, contudo, é possível livrar-se
do “poderoso estigma territorial ligado à moradia numa área publicamente reconhecida como ‘depósito’ de
pobres, de casas de trabalhadores decadentes e grupos marginais de indivíduos”.
O mecanismo de segregação e exclusão pode ou não ser
complementado e reforçado por fatores adicionais de raça/pele, mas no limite
todas as suas variedades são essencialmente a mesma:
ser
pobre numa sociedade rica implica em ter o status de uma anomalia social e ser privado de controle sobre sua
representação e identidade coletiva; a análise da mancha urbana do gueto
norte-americano e da periferia urbana francesa [mostra] a privação simbólica
que torna seus habitantes verdadeiros párias.
Numa palavra, a guetificação é parte
orgânica do mecanismo de disposição do lixo ativado à medida que os pobres não são mais úteis
como “exército de reserva da produção” e se tornam consumidores incapazes, e
portanto inúteis. O gueto, como Wacquant resume em seus estudos, “não serve
como reservatório de trabalho industrial disponível, mas como mero depósito
[daqueles para os quais] a sociedade circundante não faz uso econômico ou
político”.
109
A guetificação é paralela e complementar à
criminalizaçao da pobreza; há
uma troca constante de população entre os guetos e as penitenciárias, um servindo
como grande e crescente fonte para a outra. Guetos e prisões são dois tipos de
estratégia de “prender os indesejáveis ao chão”, de confinamento e imobilização.
Num mundo em que a mobilidade e a facilidade de mudar de lugar se tornaram fatores importantes de
estratificação social, isso é (tanto física como simbolicamente) uma arma final
de exclusão e degradação, da reciclagem das “classes baixas” e dos pobres em
geral numa “subclasse” — categoria
que foi posta para fora da classe ou de qualquer outro sistema social de
significação e utilidade funcional e definida desde o início por referência a
suas inclinações endemicamente criminosas. Em outro estudo,48 Wacquant
enfatiza a conexão entre a incriminação da pobreza e a normalização do trabalho assalariado precário
no mercado “flexível” de trabalho. Tendo se afastado de seu papel de supervisor
normativo das relações de trabalho, e cada vez mais de suas funções econômicas
em geral, o Estado recorre em lugar disso a causar dor (a descrição feita por Neil
Christie da política penitenciária baseada sobretudo no confinamento na prisão)
como meio de reconciliar os pobres com sua nova condição: como se tornaram as
únicas alternativas às incertezas de um mercado de trabalho desregulamentado, a
prisão e o gueto transformam uma humilde aceitação da “economia de cassino” com
seu jogo de sobrevivência sem regras numa opção suportável, e talvez até
desejável.
Os
mesmos partidos, políticos, eruditos e professores que ontem mobilizavam, com
notório sucesso, apoiando “menos governo” em relação às prerrogativas do
capital e à utilização da força de trabalho, agora demandam, com
exatamente o mesmo fervor, “mais governo” para mascarar e conter as
deletérias conseqüências sociais, nas regiões mais baixas do espaço social, da
desregulamentação do trabalho assalariado e da deterioração da proteção social.
Pode-se dizer que as prisões são guetos
com muros, e os guetos são prisões sem muros. Diferem entre si principalmente
no método pelo qual seus internos são mantidos no lugar e impe-
110
didos de fugir — mas eles são imobilizados, têm as rotas de
fuga bloqueadas e mantidos firmemente no lugar nos dois casos. Em sua própria
condição, até um mínimo de mobilidade é percebido como liberdade sem limites, e
o aperto férreo do “mercado flexível de trabalho” parece um abraço amigável.
Ajudar os outros a suportarem as dificuldades de uma vida precária é a última
função que os excluídos de outra forma inúteis, hoje encarcerados em suas
moradias no gueto ou nas celas das prisões, são chamados a desempenhar pela
próspera sociedade consumidora da “modernidade líquida”.
Essa função seria mais difícil de
preencher se fosse oferecido aos moradores do gueto, como compensação, aquele
abrigo comunitário com que os outros, lançados às águas turbulentas sem bóias e
sem a proteção dos salva-vidas, sonham em vão. Mas isso não acontece. A vida no gueto não
sedimenta a comunidade. Compartilhar o estigma e a humilhação pública não faz irmãos os
sofredores; antes alimenta o escárnio, o desprezo e o ódio. Uma pessoa
estigmatizada pode gostar ou não de outra portadora do estigma, os indivíduos
estigmatizados podem viver em paz ou em guerra entre si — mas algo que
provavelmente não acontecerá é que desenvolvam respeito mútuo. “Os outros como
eu” significa os outros tão indignos como eu tenho repetidamente afirmado e
mostrado ser; “parecer mais com eles” significa ser mais indigno do que já sou.
Os lugares contemporâneos da segregação
social forçada e estigmatizante herdam seus nomes dos guetos medievais tardios
— e de novo o nome em comum mais oculta do que revela. Citando Wacquant outra
vez,49
enquanto
o gueto em sua forma clássica atuava em parte como escudo protetor contra a
brutal exclusão racial, o hipergueto perdeu seu papel positivo de amortecedor
coletivo, tornando-se uma máquina mortífera para o desnudado banimento social.
Nenhum “amortecedor coletivo” pode ser
forjado nos guetos contemporâneos pela simples razão que a experiência do gueto
dissolve a solidariedade e destrói a confiança mútua antes que
111
estas
tenham tido tempo de criar raízes. Um gueto não é um viveiro de sentimentos
comunitários. É, ao contrário, um laboratório de desintegração social, de
atomização e de anomia.
Para
obter uma certa dignidade e reafirmar a legitimidade de seu próprio status aos olhos da sociedade, os moradores da cité e do
gueto comerciam seu merecimento moral como indivíduos (ou membros de famílias)
e aderem ao discurso dominante de denúncia daqueles que “se aproveitam”
indevidamente de programas sociais, dos faux pauvres [falsos pobres] e “trapaceiros da previdência”. Como se
pudessem se valorizar desvalorizando seus bairros e vizinhos. Também se
envolvem em estratégias de distinção e exclusão social que convergem para
solapar a coesão da vizinhança.
Resumindo: gueto quer dizer impossibilidade
de comunidade. Essa característica do gueto torna a política de exclusão
incorporada na segregação espacial e na imobilização uma escolha duplamente
segura e a prova de riscos numa
sociedade que não pode mais manter todos os seus membros participando do jogo,
mas deseja manter todos os que podem jogar ocupados e felizes, e acima de tudo
obedientes.
• 9 •
Muitas culturas, uma humanidade?
O “multiculturalismo” é a resposta mais comum dada em
nossos dias pelas classes ilustradas e formadoras de opinião para a incerteza
do mundo sobre os tipos de valores que merecem ser apreciados e cultivados, e
sobre as direções que devem ser seguidas com férrea determinação. A resposta
está se tornando rapidamente o cânone da “correção política”; mais, ela se
torna um axioma que já não precisa ser explicado, um prolegômeno a toda
deliberação futura, a pedra de toque da doxa: não propriamente um
conhecimento, mas a suposição tácita, impensada, de todo pensamento que mira o
conhecimento.
Numa palavra, a invocação do
“multiculturalismo”, enquanto parte das classes ilustradas, essa encarnação
contemporânea dos intelectuais modernos, quer dizer: Perdão, mas não podemos
resgatá-lo da confusão em que você se meteu. Sim, há confusão sobre
valores, sobre o sentido de “ser humano”, sobre as maneiras certas da vida em
comum; mas depende de você encontrar seu próprio caminho e arcar com as
conseqüências caso não goste dos resultados. Sim, há uma cacofonia de vozes e
nenhuma canção será cantada em uníssono, mas não se preocupe: nenhuma canção é
necessariamente melhor que a próxima, e, se fosse, não haveria maneira de
sabê-lo — por isso fique à vontade para cantar (compor se puder) sua própria canção (de
qualquer maneira, você não aumentará a cacofonia; ela já é ensurdecedora e uma
canção a mais não fará diferença).
112
113
Russell Jacoby deu o título O fim da
utopia50 à sua denúncia vigorosa da fatuidade do credo
“multiculturalista”. Há uma mensagem nesse título: as classes ilustradas de
nosso tempo não têm nada a dizer sobre a forma preferida da condição humana. É
por essa razão que buscam refúgio no “multiculturalismo”, essa “ideologia do
fim da ideologia”.
Levantar-se contra o status quo sempre requer coragem, considerando as forças terríveis que
ele tem por trás — e coragem é uma qualidade que os intelectuais, outrora
famosos por seu radicalismo estrepitoso, perderam na busca de seus novos papéis
e “nichos” como expertos, pesquisadores acadêmicos ou celebridades da mídia.
Somos tentados a tomar essa versão ligeiramente atualizada de la
trahison des clercs como
explicação para o enigma da resignação e indiferença das classes ilustradas.
Mas precisamos resistir à tentação. Razões mais importantes do que
os pés frios da elite ilustrada estão por trás da jornada dos intelectuais na
direção de sua presente equanimidade. As classes ilustradas não fizeram o
caminho a sós. Viajaram na companhia de muitos outros: com os poderes
econômicos cada vez mais extraterritoriais, com uma sociedade que cada vez mais
envolve seus membros no papel de consumidores e não no de produtores, e com a
modernidade cada vez mais fluida, “líquida”, “desregulamentada”. E no curso
dessa jornada sofreram transformações semelhantes àquelas do resto dos
companheiros de viagem. Entre as transformações que todos os viajantes
compartilharam, duas emergem como explicações plausíveis da espetacular
carreira da “ideologia do fim da ideologia”. A primeira é o desengajamento como
nova estratégia do poder e da dominação; a segunda — o excesso como
substituto de hoje para a regulamentação normativa.
Os intelectuais modernos costumavam ser pessoas com uma
missão: a vocação que lhes foi atribuída e que levaram a sério foi auxiliar na
“reinserção dos desenraizados” (“reencaixe dos desencaixados”, para usar os
termos preferidos pelos sociólogos de hoje). Essa missão se dividia em duas
tarefas.
A primeira delas era “iluminar as pessoas”, isto é, prover
os homens e mulheres desorientados e perplexos pela separação da
114
monótona rotina da vida comunitária com giroscópios axiológicos
e quadros cognitivos que lhes permitam navegar nas águas turbulentas e pouco
familiares que demandam habilidades de que nunca antes precisaram e nunca
tiveram oportunidade de aprender; de pôr no devido lugar novos pontos de
orientação, novos objetivos de vida e novos padrões de conformidade para
substituir aqueles que costumavam ser fornecidos pelas comunidades em que as
vidas humanas, do berço ao túmulo, se inscreviam, mas que se extinguiram,
ficaram inacessíveis ou caíram em desuso.
A outra tarefa era auxiliar no trabalho
dos legisladores: projetar e construir novos ambientes bem estruturados e
mapeados, que tornassem possível e eficaz tal navegação, dando assim forma à massa temporariamente informe; dar lugar à “ordem social” ou mais exatamente à “sociedade ordeira”.
As duas tarefas derivavam do mesmo grande
empreendimento da revolução moderna: a construção do Estado e da nação — a
substituição de um mosaico de comunidades locais pelo novo e estreitamente
integrado sistema do Estado-nação, da “sociedade imaginária”. E as duas
requeriam um confronto direto, face a face, de todos os seus agentes —
econômicos, políticos ou espirituais — com os corpos e almas dos objetos da
grande transformação em
curso. Construir a indústria moderna significava o desafio de
replantar os produtores, tirando-os de sua rotina tradicional ligada à comunidade, numa outra, projetada e
administrada pelos donos das fábricas e seus supervisores contratados.
Construir o Estado moderno consistia em substituir as velhas lealdades à paróquia, à vizinhança ou à corporação dos artesãos por novas
lealdades ao estilo do cidadão para com a totalidade abstrata e distante da
nação e das leis da terra. As novas lealdades, diferentemente das antigas já
obsoletas, não podiam se fundar em mecanismos espontâneos e corriqueiramente
seguidos de auto-reprodução; tinham que ser cuidadosamente planejadas e
meticulosamente insuladas num processo de educação organizada de massa. A
construção da nova ordem requeria administradores e professores. A era da
construção do Estado e da nação
115
tinha que ser, e foi, uma era de engajamento direto de
governantes e governados.
Não é mais o caso; pelo menos, é cada vez
menos o caso. Os nossos são tempos de desengajamento. O modelo panóptico de
dominação, que usava a vigilância, o monitoramento e a correção da conduta dos dominados como
estratégia principal está sendo rapidamente desmantelado e dá lugar à
autovigilância e automonitoramento
por parte dos dominados, tão eficiente em obter o tipo correto (funcional para
o sistema) de comportamento quanto o antigo método de dominação — apenas bem
mais barato. Em lugar de colunas em marcha, enxames.
Ao contrário de colunas em marcha, os
enxames não precisam de sargentos ou cabos; encontram seu caminho sem a
colaboração do estado-maior e de suas ordens. Ninguém lidera um enxame em
direção aos campos floridos e ninguém precisa repreender os preguiçosos para
trazê-los de volta à coluna.
Quem quiser manter o enxame na direção correta deve se ocupar das flores, e não
de uma a uma das abelhas. É como se o bicentenário oráculo de Claude
Saint-Simon e de Karl Marx tivesse
virado verdade: o manejo dos seres humanos está sendo substituído pelo manejo
das coisas (e espera-se que os homens sigam as coisas e ajustem suas próprias
ações a essa lógica).
Ao contrário das colunas em marcha, os
enxames são coordenados sem serem integrados. Ao contrário da
coluna em marcha, cada uma das “unidades” que se combinam num enxame é uma
entidade “voluntária” que se autodirige, mas outra vez ao contrário da coluna
em marcha a possível aleatoriedade dos efeitos gerais da autonomia é cancelada
sem recurso à integração
pela obediência às ordens. Nenhuma ordem é dada, não se ouvem apelos à disciplina. Se apelos forem feitos, são
dirigidos ao “interesse individual” e à compreensão. A sanção para a conduta imprópria é o prejuízo
auto-infligido, e o prejuízo é atribuído à ignorância do interesse — do interesse individual e não do “bem de
todos”. O enxame pode mover-se de maneira sincronizada sem que qualquer de suas
entidades tenha a mais vaga idéia do que significa o “bem comum”. Exatamente
como as torres de observa-
116
ção do panóptico, esses acessórios do “poder engajado”, da
doutrinação e da mobilização, também se tornaram desnecessários.
Segundo a versão do grande drama do
desengajamento de Daniel Cohen,51 economista da Sorbonne, não
compete mais à empresa guiar,
regular e controlar seus empregados — agora é o contrário: os empregados é que
devem provar seu fervor, demonstrar que trazem recursos que faltam aos outros
empregados. Numa curiosa inversão do modelo de Karl Marx da relação
capital-trabalho, onde os capitalistas apenas pagavam o mínimo necessário à reprodução da capacidade de trabalho dos
trabalhadores, sua “força de trabalho”, mas exigiam trabalho muito além de seus
gastos, as empresas de hoje pagam aos empregados o tempo que trabalham para
elas, mas demandam toda sua capacidade, sua vida inteira e toda sua
personalidade. A competição ferrenha veio para dentro dos escritórios da
empresa: o trabalho significa testes diários de capacidade e dedicação, méritos
acumulados não garantem a estabilidade futura. Cohen cita um relatório da Agência Nacional de
Condições de Trabalho: “A frustração, o isolamento e a competição dominam” a
condição dos empregados. Cita Alain Ehrenberg:52 neuroses causadas por conflitos com
figuras de autoridade dão lugar “à depressão, causada pelo temor de ‘não estar à altura da tarefa’ e não ter um
‘desempenho’ tão bom como o do colega ao lado”. E, finalmente, Robert Linhart:53 as contrapartidas da
autonomia e do espírito de iniciativa são “sofrimento, confusão, mal-estar,
sentimentos de desamparo, tensão e medo”. Com o esforço de trabalho
transformado numa luta diária pela sobrevivência, quem precisa de supervisores?
Com os empregados açoitados por seu próprio horror à insegurança endêmica, quem precisa de
gerentes para estalar o açoite?
De colunas em marcha a enxames; das salas de aula às redes
da mídia, à internet e softwares de
aprendizado cada vez menos diferenciados de jogos de computador. Espera-se (e
confia-se) que os que procuram trabalho “montem em suas bicicletas” ou
encontrem um consultor de pequenas empresas amigável (Gordon Brown, Chancellor
of the Exchequer [Ministro das Finanças] britânico, propôs armar todos os
que procuram emprego de tele-
117
fones celulares gratuitos, para assegurar que sempre
estejam à disposição); como ações
e moedas, os aprendizes devem procurar (e espera-se que encontrem) seus
“próprios níveis”. Em nenhum caso é necessário o antiquado engajamento, aquela
mistura de supervisão rigorosa e administração interessada. A administração que
sobra é manipulação indireta e oblíqua através da sedução: é uma administração à distância.
A segunda diferença importante — a substituição da
regulamentação normativa pelos poderes sedutores do excesso — se relaciona de
perto com a transformação das estratégias de dominação e o advento da
coordenação sem integração.
A sentença de morte das normas nunca foi oficialmente
pronunciada, e muito menos chegou às manchetes, mas o destino das normas foi
selado quando surgiu (em termos metafóricos), da crisálida da sociedade
capitalista de produtores, a borboleta da sociedade de consumidores. A
metáfora, contudo, é verdadeira somente em parte, pois a passagem em questão não
foi nem de longe tão abrupta como o nascimento de uma borboleta. Levou muito
tempo para que se percebesse que muitas coisas tinham mudado nas condições e
nos propósitos da vida humana e para que o novo estado das coisas fosse visto
como uma versão nova e melhorada do antigo; que o jogo da vida adquirira novas
regras e interesses suficientes para merecer um nome todo seu.
Retrospectivamente, porém, podemos situar o nascimento da sociedade e da
mentalidade de consumo aproximadamente no último quartel do século XIX, quando
a teoria do valor trabalho de Smith/Ricardo/Marx/Mill foi confrontada pela
teoria da utilidade marginal de Menger/Jevons/Walras: quando se disse, em alto
e bom som, que o que dá valor às coisas não é o suor necessário à sua produção (como diria Marx), ou a renúncia necessária para obtê-las (como
sugeriu Georg Simmel), mas um desejo em busca de satisfação; quando a
antiga disputa sobre quem seria o melhor juiz do valor das coisas, se o
produtor ou o usuário, foi resolvida em termos não ambíguos em favor do
usuário, e o problema do direito de emitir um juízo competente se misturou com
a questão dos direitos da autoria do valor. Quando isso aconteceu, ficou claro
que (como disse Jean-Joseph Goux) “para criar valor, basta
118
criar, por qualquer meio, uma intensidade suficiente de
desejo” e que “o que em última análise cria o valor excedente é a manipulação
do desejo excedente”.54
Em verdade, como diria Bourdieu mais tarde, a tentação e a
sedução acabaram substituindo a regulação normativa e a vigilância ostensiva como principais meios
de construção do sistema e de integração social. O principal efeito da tentação
e a essência da sedução é
a ruptura da norma (ou antes a transcendência perpétua da norma, com uma pressa
que nega aos hábitos o tempo de que precisam para fixar-se em normas). E na
ausência da norma, o excesso é a única esperança da vida. Numa sociedade de produtores, o excesso
era equivalente ao desperdício e por isso rejeitado e condenado; mas nasceu
como uma luta da vida com a norma (uma doença terminal, como se sabe). Num
mundo desprovido de normas, o excesso deixou de ser um veneno e tornou-se o
remédio para as doenças da vida; talvez o único apoio disponível. O excesso,
esse inimigo declarado da norma, se tornou a própria norma; talvez a única
norma. Certamente uma norma curiosa, que escapa à definição. Tendo rompido as algemas
normativas, o excesso perdeu seu sentido. Nada é excessivo se o excesso é a norma.
Nas palavras de Jacques Ellul,55 o medo e a angústia são hoje as “características
essenciais” do “homem ocidental”, enraizados que eles são na “impossibilidade
de refletir sobre tão gigantesca multiplicidade de opções”. São construídos
novos caminhos e o acesso aos antigos é bloqueado, os acessos, saídas e
direções do tráfego permitido ficam mudando de lugar, e novos land-rovers [viajantes
da terra] (os de quatro rodas e mais ainda aqueles feitos de sinais elétricos)
fizeram das trilhas conhecidas e das estradas sinalizadas coisas inteiramente
redundantes. A nova situação faz com que os viajantes louvem diariamente sua
liberdade de movimento e exibam orgulhosamente sua velocidade e a potência de seus veículos; à noite também sonham com mais segurança e
autoconfiança para o momento em que, durante o dia, tiverem que decidir pra que
lado virar e que destino seguir.
Heather Höpfl56 observou há alguns anos que a
oferta de excesso está se tornando rapidamente a maior preocupação da
119
vida social da modernidade tardia, e lidar com o
excesso é o que passa, na sociedade moderna tardia, por liberdade individual —
a única forma de liberdade conhecida pelos homens e mulheres de nosso tempo.
Com
a aproximação do final do século XX, há uma preocupação crescente com a
produção elaborada, aparentemente para servir os interesses do consumo, e com a
proliferação do excesso, de uma heterogeneidade liberadora de escolha e
experiência, de construção e busca de sublimes objetos de desejo. A construção
de artefatos sublimes, de objetos de desejo, de personalidades, de “estilos de
vida”, estilos de interação, modos de agir, modos de construir a identidade e
assim por diante se torna uma tarefa opressiva que se disfarça de escolha cada
vez mais variada. A matéria enche o espaço. A escolha é uma ilusão desconcertante.
Ilusão ou não, essas são as condições de
vida que nos tocam: a coisa sobre a qual não há escolha. Se a seqüência dos
passos não está predeterminada por uma norma (para não falar de uma norma não
ambígua), só a experimentação contínua poderá sustentar a esperança de vir a
encontrar o alvo, e essa experimentação exige grande quantidade de caminhos
alternativos. George Bernard Shaw, sábio que era também dedicado fotógrafo amador, sugeriu uma
vez que, como o peixe que precisa botar miríades de ovos de modo que alguns
possam chegar à maturidade,
o fotógrafo precisa fazer miríades de fotografias para que algumas atinjam uma
real qualidade. Todos parecemos hoje seguir a receita de sobrevivência do
peixe. O excesso se torna um preceito da razão. O excesso já não parece
excessivo, nem o desperdício parece uma perda. O significado principal de
“excessivo” e “desperdício”, e a principal razão para condená-los à maneira calculista sóbria e fria da razão
instrumental, era, afinal, sua “inutilidade”; mas numa vida de experimentação,
excesso e desperdício são tudo, menos inúteis — são, de fato, as condições
indispensáveis da busca racional dos fins. Quando o excesso fica excessivo?
Quando o desperdício é uma perda? Não há maneira óbvia de responder a essas
perguntas, e certamente não há maneira de respondê-las de antemão. Podemos
chorar anos desperdiçados e gastos excessivos
120
de energia e dinheiro, mas não conseguimos distinguir o
excessivo do gasto certo, nem o desperdício da necessidade antes que o dedo nos
seja apontado e que chegue a hora do arrependimento.
Sugiro que a “ideologia do fim da ideologia” dos
multiculturalistas seria mais bem interpretada como um comentário intelectual
sobre a condição humana formada sob os impactos gêmeos do poder pelo
desengajamento e a regulação
pelo excesso. O “multiculturalismo” é um modo de ajustar o papel das classes
ilustradas a essas novas realidades. É um manifesto a favor da reconciliação:
as novas realidades não são enfrentadas nem contestadas, há uma rendição a elas
— que as coisas (sujeitos humanos, suas escolhas e o destino que se segue a
elas) “sigam seu próprio curso”. É também um produto do arremedo de um mundo
marcado pelo desengajamento como principal estratégia do poder e pela
substituição das normas pela variedade e pelo excesso. Se a realidade não for
questionada e se supuser que não deixa alternativas, só podemos torná-la
aceitável replicando seu padrão em nossa própria maneira de viver.
Na nova Weltanschauung dos formadores e
disseminadores de opinião, as realidades em questão são visualizadas na forma
do Deus medieval construída pelos franciscanos (especialmente pelos Fratricelli,
sua fração dos “frades menores”) e pelos nominalistas (o mais célebre foi
Guilherme de Ockham). No resumo de Michael Allen Gillespie,57 esse
Deus franciscano/nominalista era “caprichoso, temível em seu poder, impossível
de ser conhecido, imprevisível, ilimitado por natureza e razão e indiferente ao
bem e ao mal”. Acima de tudo, pairava imutável fora do alcance da capacidade
intelectual e prática dos homens. Não havia nada a ganhar tentando forçar a mão
de Deus — e como todas as tentativas de fazer isso eram vãs e davam testemunho
da presunção humana, eram tanto pecaminosas como indignas. Deus nada devia aos
humanos. Tendo-os posto de pé e dito a eles que procurassem seu caminho, retirou-se.
No ensaio “Dignidade do homem”, Giovanni Pico della Mirandola,58 o
grande codificador das confiantes ambições do Renascimento, extraiu as únicas
conclusões que podiam ser tiradas do afastamento de Deus. Deus, ele conclui,
fez o homem
121
como
criatura de natureza indeterminada, e colocando-o no centro do universo,
disse-lhe: “Não te demos, Adão, nem um lugar estabelecido, nem uma forma só
tua, nem qualquer função específica, e é por isso que podes ter e possuir,
segundo teu desejo e juízo, qualquer lugar, qualquer forma e qualquer função
que desejes ... Tu, que não estás confinado por quaisquer limites, determinarás
por ti mesmo tua própria natureza...”
Agora é o momento de a sociedade seguir o
exemplo do deus franciscano/nominalista, e retirar-se. Peter Drucker, esse Guilherme de Ockham e Pico della
Mirandola da era do capitalismo “líquido moderno”, resumiu o novo saber, de
acordo com o espírito da época: “Não mais salvação pela sociedade”. Cabe aos
indivíduos humanos construírem o argumento “segundo seu desejo e juízo”,
provarem esse argumento e defendê-lo contra os defensores de outros argumentos.
Não há como invocar os veredictos da sociedade (última das autoridades que o
ouvido moderno quer ouvir) para apoiar o argumento: em primeiro lugar, a invocação
não tem credibilidade, pois os veredictos — se houverem — são desconhecidos e
destinados a assim ficarem; em segundo, uma coisa que se sabe com certeza sobre
os veredictos da sociedade é que eles não se destinam a durar e que não há
maneira de saber para que lado penderão em seguida; e, em terceiro, como o Deus
medieval a “sociedade é indiferente ao bem e ao mal”.
É só quando se supõe que a sociedade tem
tal natureza que o “multiculturalismo” funciona. Se a “sociedade” não tem
preferências além daquelas que os homens, individualmente ou em conjunto,
transformam em suas próprias preferências, não há maneira de saber se uma
preferência é melhor do que outra. Comentando o apelo de Charles Taylor para
aceitar e respeitar as diferenças entre culturas escolhidas comunitariamente, Fred
Constant59 observou que seguir esse apelo é uma faca de dois gumes:
reconhece-se o direito à indiferença,
junto com o direito à diferença. Acrescente-se que, enquanto o
direito à diferença é assegurado
aos outros, são em geral aqueles que asseguram esse direito que usurpam para si
o direito à indiferença — o direito
de abster-se de julgar. Quando a tolerância mútua se junta à indife-
122
rença, as culturas comunitárias podem viver juntas,
mas raramente conversam entre si, e se o fazem costumam usar o cano das armas
como telefone. Num mundo de “multiculturalismo”, as culturas podem coexistir
mas é difícil que se beneficiem de uma vida compartilhada.
Constant pergunta: seria o pluralismo cultural um
valor em si mesmo, ou seu valor deriva da sugestão (e da esperança) de que ele
pode melhorar a qualidade da existência compartilhada? Não fica logo claro qual
das duas respostas o programa multiculturalista prefere; a pergunta está longe
de ser retórica, e a escolha
entre as respostas precisaria saber melhor o que se entende por “direito à diferença”. Esse direito também admite
duas interpretações, que diferem drasticamente em suas conseqüências.
Uma interpretação implica na solidariedade dos
exploradores: enquanto nós todos, isolada ou coletivamente, embarcamos na busca
da melhor forma de humanidade, pois todos desejaríamos eventualmente valer-nos
dela, cada um de nós explora um caminho diferente e traz de suas expedições
descobertas um tanto diferentes. Nenhuma das descobertas pode ser declarada a
priori como sem
valor, e nenhum esforço honesto de achar a melhor forma para a humanidade comum
pode ser descartada de antemão como equivocada e não merecedora de atenção. Ao
contrário: a diversidade das descobertas aumenta a chance de que poucas das
muitas possibilidades humanas passem despercebidas e deixem de ser tentadas.
Cada descoberta pode beneficiar todos os exploradores, qualquer que tenha sido
o caminho tomado. Isso não quer dizer que todas as descobertas tenham o mesmo
valor; mas seu verdadeiro valor só poderá ser estabelecido através de um longo
diálogo, em que todas as vozes poderão ser ouvidas e comparações bem
intencionadas e de boa fé poderão ser feitas. Em outras palavras, o
reconhecimento da variedade cultural é o começo, e não o fim da questão; não
passa de um ponto de partida de um longo e talvez tortuoso processo
político, mas no limite benéfico.
Um verdadeiro processo político, consistindo em diálogo e
negociação e tendo por objetivo um acordo, seria esvaziado e impossibilitado
se, desde o início, fosse suposta a superioridade
123
de alguns contendores e a inferioridade de outros. Mas também acabaria por se deter antes de começar se a segunda
interpretação da pluralidade cultural fosse preferida: isto é, se supuséssemos
(como o programa “multiculturalista” em sua versão mais comum supõe, aberta ou
tacitamente) que cada diferença existente é digna de ser perpetuada justamente
por ser uma diferença.
Charles Taylor60 corretamente rejeita esta
segunda possibilidade:
o
respeito pela igualdade requer mais do que a presunção de que mais estudo há de
nos fazer ver as coisas dessa maneira, como os méritos iguais dos costumes e
criações de outras culturas... Dessa forma a demanda de reconhecimento igual é
inaceitável.
Mas então Taylor torna sua recusa
dependente da afirmação que a questão do mérito relativo das escolhas culturais
precisa ser deixada a estudos adicionais: “a última coisa que queremos a
esta altura dos intelectuais centrados na Europa são julgamentos positivos do
merecimento de culturas que não tenham estudado intensamente”. O reconhecimento
do valor permanece firme nos escritórios dos intelectuais. E, seguindo a
natureza das progressões acadêmicas, seria tão errado quanto bizarro esperar um
julgamento ponderado sem um “projeto” primeiro desenhado e depois executado sine ira et studio. “Na análise, encontraremos, ou não, algo
de grande valor na cultura C”. Somos, contudo, nós, ocupantes dos assentos
acadêmicos, que podemos chegar às descobertas. Taylor censura os intelectuais
“multiculturalisticamente” predispostos por traírem sua vocação acadêmica,
quando deveria censurá-los por fugirem aos deveres do homo politicus, membro
da polis.
Taylor sugere que nos casos em que pensamos saber que certa
cultura tem méritos em si mesma e é portanto digna de perpetuação, não deve restar dúvida de que a
diferença expressa por uma comunidade dada precisa ser preservada para o
futuro, e assim os direitos dos indivíduos atualmente vivos para fazer escolhas
que poderiam lançar dúvidas sobre essas diferenças no futuro devem ser
restringidos. Obrigando seus habitantes a man-
124
darem os filhos para escolas francófonas, o Quebec — de
nenhuma maneira exótico e misterioso, mas um exemplo bem estudado e conhecido —
dá a Taylor um padrão do que pode (ou deve) ser feito em tais casos:
Não
é só tornar disponível a língua francesa para aqueles que podem preferi-la...
Também implica assegurar que haja aqui uma comunidade de pessoas que queira
valer-se no futuro da oportunidade de usar a língua francesa. Políticas que
miram a sobrevivência empenham-se em criar membros da comunidade, por
exemplo, assegurando que as gerações futuras continuem a se identificar como de
fala francesa.
O Quebec é um caso “brando” (diríamos
inócuo), o que torna a suposição de seu valor geral mais fácil. A validade do
exemplo seria mais difícil de sustentar fosse outro o símbolo escolhido de
distinção e separação cultural — um símbolo que, ao contrário da diferença da
língua francesa (ou qualquer outra língua), nós, os “intelectuais centrados na
Europa”, poliglotas que somos embora gostemos de nossos habituais usos e
costumes, detestássemos e dos quais preferíssemos nos manter à distância, escondendo-nos por trás de
projetos de pesquisa ainda não realizados ou inacabados. A generalização também
pareceria muito menos convincente se lembrássemos que a língua francesa, no
caso do Quebec, não é mais que um membro, e um membro caracteristicamente
benigno, de uma grande família de símbolos, a maioria dos quais
consideravelmente mais malignos, que tendem a ser usados por comunidades em
todo o mundo para manter em suas fileiras os membros vivos e para “criar novos
membros” (isto é, obrigar os recém-nascidos dos ainda não nascidos a
permanecerem nas fileiras, predeterminando assim suas escolhas e perpetuando a
separação comunitária); outros membros dessa família são, por exemplo, a
circuncisão feminina ou os barretes rituais para os escolares. Se pensarmos
nisso, estaremos prontos a aceitar que, por mais que devamos respeitar o
direito de uma comunidade à proteção contra forças assimiladoras ou atomizadoras administradas
pelo Estado ou pela cultura dominante, devemos também respeitar o direito dos
indivíduos à proteção con-
125
tra pressões comunitárias que negam ou suprimem a escolha.
Os dois direitos são notoriamente difíceis de conciliar e de respeitar ao mesmo
tempo, e a pergunta que enfrentamos diariamente e a que devemos responder
diariamente é como proceder quando eles se chocam. Qual dos dois direitos é o
mais forte — forte o bastante para anular ou pôr de lado as demandas que
invocam o outro?
Respondendo à interpretação de Charles Taylor sobre o
direito ao reconhecimento, Jürgen Habermas61 traz para o debate um
outro valor, o “estado constitucional democrático”, que está ausente da argumentação
de Taylor. Se concordamos que o reconhecimento da diversidade cultural é o
direito e ponto de partida apropriado para qualquer discussão sensata dos
valores humanos compartilhados, devemos também concordar que o “estado
constitucional” é o único referencial para tal debate. Para deixar mais claro o
que está contido na noção, eu preferiria falar de “república”, ou, seguindo Cornelius
Castoriadis, de “sociedade autônoma”. Uma sociedade autônoma é inconcebível sem
a autonomia de seus membros; uma república é inconcebível sem os direitos
assegurados ao indivíduo. Essa consideração não resolve necessariamente o
problema dos direitos conflitantes da comunidade e do indivíduo, mas torna
evidente que sem a prática democrática de indivíduos livres para manifestar-se
o problema não pode ser enfrentado, e muito menos resolvido. A proteção do
indivíduo contra a demanda de conformidade da comunidade pode não ser uma
tarefa “naturalmente” superior à da tentativa de sobrevivência da comunidade como entidade separada.
Mas a proteção do cidadão individual da república das pressões tanto não
comunitárias quanto comunitárias é uma condição preliminar à realização de qualquer das duas tarefas.
Como diz Habermas,
Uma
teoria dos direitos bem compreendida requer uma política de reconhecimento que
proteja a integridade do indivíduo nos contextos da vida em que sua identidade
se forma ... Tudo o que é preciso é a realização consistente do sistema de
direitos. Isso seria pouco provável, é certo, sem movimentos sociais e lutas políticas...
126
O
processo de realizar os direitos faz parte, na verdade, de contextos que
requerem tais discursos como componentes importantes da política — discussão
sobre uma concepção compartilhada do bem e de uma forma de vida reconhecida
como autêntica.
A universalidade da cidadania é a condição preliminar de qualquer “política
de reconhecimento” significativa. E, acrescento: a universalidade da humanidade
é o horizonte pelo qual qualquer política de reconhecimento precisa orientar-se
para ser significativa. A universalidade da humanidade não se opõe ao
pluralismo das formas de vida humana; mas o teste de uma verdadeira humanidade
universal é sua capacidade de dar espaço ao pluralismo e permitir que o
pluralismo sirva à causa
da humanidade — que viabilize e encoraje “a discussão contínua sobre as
condições compartilhadas do bem”. Tal teste só pode ser superado se se
realizarem as condições de vida republicana. Como diz Jeffrey Weeks,62 o argumento que
procuramos sobre os valores comuns requer a “ampliação das oportunidades de vida e a maximização da liberdade individual”:
Não
há agente social privilegiado para atingir os fins; somente a multiplicidade
das lutas locais contra o peso da história e as várias formas de dominação e
subordinação. A contingência e não o determinismo é que está subjacente ao
nosso presente complexo.
A visão da indeterminação sem dúvida é
desanimadora. Mas também pode levar a um maior esforço. Uma reação possível à indeterminação é a “ideologia do fim da
ideologia” e a prática do desengajamento.
Outra, também razoável mas muito mais promissora, é a suposição de que em
nenhum outro momento a busca ardente de uma humanidade comum, e a prática que se segue a essa suposição, foi
tão imperativa quanto hoje.
Fred Constant cita Amin Maalouf, escritor franco-libanês
radicado na França, que fala da questão das reações das “minorias étnicas” ou
dos imigrantes às pressões culturais cruzadas a que são submetidos no país de
escolha. A conclusão de Maalouf é que quanto mais os imigrantes sentirem que
seu saber cultural original é respeitado no novo lar, e quanto menos sentirem
que por
127
causa de sua identidade diferente são malquistos,
afastados, ameaçados ou discriminados — tanto mais abertos serão às
oportunidades culturais do país de adoção e menos convulsivamente se aferrarão
a suas próprias e diferentes maneiras de ser. Essa é uma visão crucial para as
possibilidades de um diálogo entre culturas. Ela aponta uma vez mais para o que
já percebemos antes: para a relação próxima entre o grau de segurança, de um
lado, e a “desativação” da
questão da pluralidade cultural, com uma superação da separação cultural e a aceitação de fazer parte da busca por uma
humanidade comum, de outro.
A insegurança (tanto entre os imigrantes
quanto na população nativa) tende a transformar a multiculturalidade num
“multicomunitarismo”. Diferenças culturais profundas ou irrisórias, visíveis ou
quase despercebidas, são usadas na frenética construção de muralhas defensivas
e de plataformas de lançamento de mísseis. “Cultura” vira sinônimo de fortaleza
sitiada, e numa fortaleza sitiada os habitantes têm que manifestar diariamente
sua lealdade inquebrantável e abster-se de quaisquer relações cordiais com
estranhos. A “defesa da comunidade” tem que ter precedência sobre todos os
outros compromissos. Sentar-se à mesma mesa com “estranhos”, estar em sua companhia nos mesmos
lugares, para não falar em enamorar-se ou casar fora dos limites da comunidade,
são sinais de traição e razões para ostracismo e degredo. Comunidades assim construídas
viram expedientes que objetivam principalmente a perpetuação da divisão, da
separação e do isolamento.
A segurança é a inimiga da comunidade cercada de muros e
protegida por cercas. O sentimento de segurança faz com que o temível oceano
que serve de obstáculo entre “nós” e “eles” mais pareça uma piscina
convidativa. O apavorante precipício entre a comunidade e seus vizinhos mais
parece uma trilha para vaguear/passear/andar aberta a aventuras agradáveis.
Compreensivelmente, os defensores do isolamento comunitário tendem a ficar
imunes aos sintomas de que os temores que assolam a comunidade estão se
dissipando; conscientes ou não, desenvolveram interesses pelas armas inimigas
apontadas para sua própria comunidade. Quanto maior a ameaça e mais profunda a
insegu-
128
rança, tanto mais cerradas as fileiras de defensores e
maior a probabilidade de que assim permaneçam num futuro previsível.
A segurança é uma condição necessária do diálogo entre
culturas. Sem ela, há pouca chance de que as comunidades venham a abrir-se umas
às outras e a manter uma conversa que venha a enriquecê-las e a estimular a
humanidade de sua união. Com ela, as perspectivas da humanidade parecem
brilhar.
A segurança em questão é, porém, um problema maior do que a
maioria dos defensores do multiculturalismo, em combinação tácita (ou
inadvertida) com os pregadores do isolamento comunitário, está disposta a
admitir. O estreitamento da questão da insegurança endêmica às ameaças genuínas
ou putativas à singularidade
comunitária é um erro que desvia a atenção a suas verdadeiras fontes. Hoje em
dia, a comunidade é procurada como abrigo contra as sucessivas correntezas de
turbulência global — correntezas originadas em lugares distantes que nenhuma
localidade pode controlar por si só. As fontes da irresistível sensação de
insegurança estão profundamente imbricadas na crescente distância entre a
condição de “individualidade de jure” e a tarefa de obter a “individualidade de facto”. A construção de comunidades cercadas nada
faz para diminuir essa distância, mas tudo para dificultar (até impossibilitar)
essa diminuição. Em lugar de mirar às fontes da insegurança, afasta delas a
atenção e a energia. Nenhum dos
contendores ganha em segurança na guerra contínua entre “nós e eles”; todos,
porém, viram alvos fáceis para as forças globalizantes — as únicas forças que
se beneficiam com a suspensão da procura por uma humanidade comum e com o
controle conjunto sobre a condição humana.
Posfácio
Sentimos falta da comunidade porque sentimos falta de
segurança, qualidade fundamental para uma vida feliz, mas que o mundo que
habitamos é cada vez menos capaz de oferecer e mais relutante em prometer. Mas a
comunidade continua teimosamente em falta, escapa ao nosso alcance ou se
desmancha, porque a maneira como o mundo nos estimula a realizar nossos sonhos
de uma vida segura não nos aproxima de sua realização; em lugar de ser
mitigada, nossa insegurança aumenta, e assim continuamos sonhando, tentando e
fracassando.
A insegurança afeta a todos nós, imersos que estamos num
mundo fluido e imprevisível de desregulamentação, flexibilidade,
competitividade e incerteza, mas cada um de nós sofre a ansiedade por conta
própria, como problema privado, como resultado de falhas pessoais e como
desafio ao nosso savoir faire e à nossa agilidade. Somos convocados, como observou Ulrich Beck com acidez, a buscar soluções
biográficas para contradições sistêmicas; procuramos a salvação individual de
problemas compartilhados. Essa estratégia provavelmente não dará o resultado
que perseguimos, pois deixa intactas as raízes da insegurança; além disso, é
precisamente essa dependência de nosso saber e recursos individuais que produz
no mundo a insegurança da qual queremos escapar.
Quando, pela janela de um trem parado, vemos o trem na
plataforma seguinte se mover, às vezes imaginamos que o nosso trem é que se
move. Em outro caso de ilusão de ótica, é o nosso
129
130
próprio eu que acreditamos afastar-se da turbulência como
único ponto fixo em meio a um mundo volátil em que todas as partes aparentemente
sólidas aparecem e desaparecem, mudando de forma e de cor a cada vez que as
olhamos. Nosso corpo e nossa alma têm uma expectativa de vida mais longa do que
qualquer outra coisa nesse mundo; sempre que procuramos a certeza, investir na
autopreservação parece ser a melhor opção. E por isso tendemos a procurar
remédio para o desconforto da insegurança numa busca de proteção, isto é, com a
integridade de nosso corpo e de todas suas extensões e trincheiras avançadas —
nossa casa, nossas posses, nosso bairro. À medida que o fazemos, começamos a suspeitar dos outros à nossa volta, e em especial dos estranhos
entre eles, portadores e corporificações do não-previsto e do imprevisível. Os
estranhos são a falta de proteção encarnada e assim, por extensão, da insegurança
que assombra nossas vidas. De uma maneira bizarra e ao mesmo tempo perversa sua
presença é um conforto: os temores difusos e esparsos, difíceis de apontar e
nomear, ganham um alvo visível, sabemos onde estão os perigos e não precisamos
mais aceitar os golpes do destino placidamente. No fim, há algo que podemos
fazer.
É difícil (e no limite degradante) preocupar-se com ameaças
que não se pode nomear e muito menos enfrentar. As fontes da insegurança estão
ocultas e não aparecem nos mapas, de modo que não podemos situá-las com
precisão. Mas as ameaças, essas substâncias estranhas que botamos na boca, ou
os estranhos que passam, sem ser convidados, pelas ruas conhecidas por onde
andamos, são bem visíveis. Estão todos, por assim dizer, ao nosso alcance, e
assim podemos pensar que podemos afastá-los ou “desintoxicar-nos”.
Não é, então, por acaso, que exceto pelos escritores de
livros acadêmicos e alguns políticos (em geral políticos fora do poder),
ouçamos pouco sobre “insegurança existencial” ou “incerteza ontológica”. Em
lugar disso, ouvimos muito e em toda parte sobre as ameaças ao que protege as
ruas, casas e corpos, e o que ouvimos parece concordar com nossa experiência
cotidiana, com as coisas que vemos com nossos próprios olhos. A demanda de livrar
a comida que comemos dos ingredientes prejudiciais e
131
potencialmente letais que pode conter e a demanda de livrar
as ruas por onde andamos dos estranhos inescrutáveis e também potencialmente
letais são as que mais se ouvem quando se fala das maneiras de melhorar a vida,
e também as que parecem as mais críveis, em verdade evidentes. Agir de maneira
a não atender a essas demandas é o que preferimos chamar de crime, cuja punição
desejamos, e quanto mais severa, melhor.
Antoine Garapon, o estudioso francês das leis, observou que
enquanto os malfeitos cometidos “no andar de cima”, dentro dos escritórios das
grandes corporações supranacionais, ficam ocultos — e se aparecem,
momentaneamente, à vista
do público são mal compreendidos e recebem pouca atenção — o clamor público
chega ao máximo e ao mais vingativo quando se trata de danos provocados aos
corpos humanos. O tabagismo, ofensas sexuais e excesso de velocidade, as três
injúrias condenadas com maior veemência pela opinião pública e para as quais há
demanda de punição mais dura, se conectam estritamente pelo medo da falta de
proteção ao corpo. Philippe Cohen,
em seu muito aclamado desafio às elites políticas, num livro apropriadamente
intitulado Proteger ou sumir, aponta a “violência urbana” entre as três
causas principais da ansiedade e da infelicidade (ao lado do desemprego e da
velhice desamparada). No que diz respeito à percepção pública, a crença em que a vida
urbana está eivada de perigos e em que livrar as ruas dos ostensivos e
ameaçadores estranhos é a mais urgente das medidas destinadas a restaurar a
segurança que falta aparece como verdade evidente por si mesma, que não precisa
de provas e nem admite discussões.
Em sua excelente investigação sobre o significado de “vida
em comum” na cidade contemporânea, Henning Bech observa que, como as cidades em
que a maioria de nós vivemos nestes dias são “conjuntos grandes, densos e
permanentes de seres humanos heterogêneos em circulação”, lugares em que
estamos fadados a vaguear numa “grande multidão de estranhos diversos em
contínua mudança”, tendemos a “nos tornar superfícies para os outros —
pela simples razão de que essa é a única coisa que uma pessoa pode notar no espaço urbano com grande
quantidade de estranhos”. O que vemos “na superfície” é a única medida disponível
132
para avaliar um estranho. O que vemos pode prometer prazer,
mas também pode anunciar perigo; quando apenas superfícies se encontram (e
sempre “de passagem”) há poucas chances de negociar e descobrir o que é o quê.
E a arte de viver numa multidão de estranhos impede que essa chance se
materialize — deter o encontro antes que ele mergulhe além da superfície é o
mais comum dos estratagemas.
Em nossos tempos civilizados dispensamos
os estigmas, sinais de infâmia ou chapéus de burro que nos advirtam quando e de
quem manter distância, mas temos vários substitutos que fazem exatamente isso.
As superfícies são inteiramente marcadas por eles — há muitos deles para
assegurar que poderemos interpretá-los. À medida que a multidão urbana se torna cada vez mais diversificada,
a chance de encontrar os equivalentes modernos da marca a fogo também aumenta;
e também aumenta a suspeita de que podemos ser muito lentos ou ineptos para 1er
as mensagens contidas nas figuras pouco familiares. Assim, temos razões para
ter medo, e então só falta um passo para projetar nosso medo nos estranhos que
os provocaram, e para condenar a vida urbana por ser perigosa: perigosa por
causa de sua diversidade.
Se pelo menos a cidade pudesse ser livrada
da diversidade que é excessivamente rica e ampla para ser assimilada e
transmitir segurança, deixando variedade suficiente para manter a cidade tão
atraente e cheia de aventuras agradáveis — para poupar um pouco desse sal da
vida sem o qual nós, os modernos, não podemos passar... Como o desejo de
guardar o bolo e comê-lo, esses dois desejos se contradizem. E no entanto os
tipos mais populares (e sedutores) de projetos comunitários prometem
realizá-los de uma só vez. E é por essa razão que eles mesmos são irrealizáveis.
A atração da comunidade dos sonhos
comunitários se funda na promessa da simplificação: levada a seu limite lógico,
simplificação quer dizer muita mesmice e um mínimo de diversidade. A
simplificação oferecida só pode ser atingida pela separação das diferenças:
reduzindo a probabilidade de que se encontrem e estreitando o alcance da
comunicação. Esse tipo de unidade comunitária se funda na divisão, na
segregação e na manutenção
133
das distâncias. Essas são as virtudes que figuram com
destaque nos folhetos de propaganda dos abrigos comunitários.
Dado que essa insegurança, mediada pela canalização da
ansiedade para cuidados com a proteção, é a causa principal da aflição para a
qual o comunitarismo deveria ser o remédio — a comunidade do projeto
comunitário só pode exacerbar a condição que promete corrigir. E o fará
injetando mais força nas pressões atomizantes que foram, e continuam a ser, a
fonte mais abundante da insegurança. Esse tipo de idéia comunitária também é o
culpado de endossar e sancionar a escolha da proteção como lugar de confronto
com as forças da dissensão e da insegurança — cooperando assim com o
afastamento do interesse público em relação às verdadeiras fontes
contemporâneas da ansiedade.
No curso desse tipo de articulação do propósito e da função
da comunidade, os outros aspectos da comunidade que faltam à vida contemporânea (aqueles diretamente
relevantes para as fontes dos problemas atuais) tendem a não ser tematizados e,
portanto, a não entrar na agenda. As duas tarefas que deveriam ser invocadas
pela comunidade para enfrentar diretamente as patologias da sociedade atomizada
de hoje num campo de batalha verdadeiramente relevante são a igualdade dos
recursos necessários para transformar o destino dos indivíduos de jure em
indivíduos de facto, e um seguro coletivo contra incapacidades e infortúnios individuais.
O valor da comunidade original, quaisquer que fossem seus deméritos, residia
nessas duas intenções. O pensamento único de nossa desregulamentada sociedade
de mercado abandona essas tarefas e abertamente as declara contraproducentes —
mas os pregadores da comunidade, inimigos declarados desse tipo de sociedade,
relutam em correr em defesa das tarefas abandonadas.
Somos todos interdependentes neste nosso mundo que
rapidamente se globaliza, e devido a essa interdependência nenhum de nós pode
ser senhor de seu destino por si mesmo. Há tarefas que cada indivíduo enfrenta,
mas com as quais não se pode lidar individualmente. O que quer que nos separe e
nos leve a manter distância dos outros, a estabelecer limites e construir
barricadas,
134
torna a administração dessas tarefas ainda mais difícil.
Todos precisamos ganhar controle sobre as condições sob as quais enfrentamos os
desafios da vida — mas para a maioria de nós esse controle só pode ser obtido coletivamente.
Aqui, na realização de tais tarefas, é que a comunidade
mais faz falta; mas também aqui reside a chance de que a comunidade venha a se
realizar. Se vier a existir uma comunidade no mundo dos indivíduos, só poderá
ser (e precisa sê-lo) uma comunidade tecida em conjunto a partir do
compartilhamento e do cuidado mútuo; uma comunidade de interesse e
responsabilidade em relação aos direitos iguais de sermos humanos e igual
capacidade de agirmos em defesa desses direitos.
Notas
1.
Ferdinand Tönnies, Community and
Society, trad. Charles P. Loomis
(Nova York: Harper, 1963), p.47,65,49.
(Nova York: Harper, 1963), p.47,65,49.
2. Robert Redfield,
The Little Community e Peasant Society and Culture
(Chicago: University of Chicago Press, 1971), p.4 e ss.
(Chicago: University of Chicago Press, 1971), p.4 e ss.
3. Eric Hobsbawm,
The Age of Extremes (Londres: Michael Joseph, 1994),
p.428.
p.428.
4. Eric Hobsbawm,
“The cult of identity politics”, New Left Review 217
(1996), p.40.
(1996), p.40.
5. Jock
Young, The Exclusive Society (Londres: Sage, 1999), p. 164.
6. Jonathan
Friedman, “The hibridization of roots and the abhorrence of
the bush”, in Mike Featherstone e Scott Lasch (orgs.), Spaces of Culture (Lon
dres: Sage, 1999), p.241.
the bush”, in Mike Featherstone e Scott Lasch (orgs.), Spaces of Culture (Lon
dres: Sage, 1999), p.241.
7. Stuart
Hall, “Who needs ‘identity’?” in Stuart Hall e Paul du Gay
(orgs.),
Questions of Cultural Identity (Londres: Sage, 1996), p. 1.
Questions of Cultural Identity (Londres: Sage, 1996), p. 1.
8. Walter
Benjamin, Illuminations, org.Hannah Arendt (Nova York: Schocken,
1969),p.257.
9.
Jean-Paul Fitoussi e Pierre Rosanvallon, Le nouvel âge
des inéqualités
(Paris: Seuil, 1996), p.32.
(Paris: Seuil, 1996), p.32.
10. Sigmund Freud,
The Future of an Illusion, trad. W.D. Robson-Scott
(Londres: Hogarth Press, 1973), p.3-6.
(Londres: Hogarth Press, 1973), p.3-6.
11. Throstein
Veblen, The Theory of the Leisure Class: an Economic Study of
Institutions (Nova York: Random House, s.d.), p. 15,93.
Institutions (Nova York: Random House, s.d.), p. 15,93.
12. John
Stuart Mill, Principles of Political Economy, v. 4 (Londres: John W.
Parker and Son, s.d.), cap.7.
Parker and Son, s.d.), cap.7.
13. John
Foster, Class Struggle and the Industrial Revolution (Londres: Wedenfeld
and Nicolson, 1974), p.33.
14. Richard
Sennett, The Corrosion of Character: the Personal Consequences
of Work in the New Capitalism (Nova York: Norton, 1998), p.42-3.
of Work in the New Capitalism (Nova York: Norton, 1998), p.42-3.
15. Ibid.,p.45.
135
136
16.
Ibid., p.20-1.
17. Maurice
R. Stein, The Eclipse of Community: an Interpretation of American Studies, 2aed.,
(Nova York: Harper and Row, 1965), p.329.
18. Richard
Rorty, Achieving our Country, Leftist Thought in Twentieth-
CenturyAmerica
(Cambridge: Harvard University Press, 1998), p. 86-7.
Century
19. Dick
Pountain e David Robins, “Too cool to care”, excerto do livro a sair
Cool Rules: Anatomy of an Attitude, citado a partir de The Editor, 11.2.2000,
p.12-3.
Cool Rules: Anatomy of an Attitude, citado a partir de The Editor, 11.2.2000,
p.12-3.
20. Sóren Kierkegaard,
Either I Or, trad. David F. Swenson e Lilian Marvin
Swenson (Princeton: Princeton University Press, 1994); citado a partir de David
L. Norton e Mary F. Kille (orgs.), Philosophies of Love (Totowa: Helix Books,
1971),p.45-8.
Swenson (Princeton: Princeton University Press, 1994); citado a partir de David
L. Norton e Mary F. Kille (orgs.), Philosophies of Love (Totowa: Helix Books,
1971),p.45-8.
21. “The Cultural Globalization Project”, Insight
(Primavera 2000), p.3-5.
22. Geoff
Dench, Minorities in the Open Society: Prisoners of Ambivalence
(Londres: Routledge and Kegan Paul, 1986), cap.10.
(Londres: Routledge and Kegan Paul, 1986), cap.10.
23. Ulrich Beck, World Risk
Society (Cambridge: Polity Press, 1999), p.2.
24. Rorty, Achieving our Country, p.76-7,79,83.
25. Ivan
Klima, Between Security and Insecurity, trad. Gerry Turner (Londres: Thames
and Hudson, 1999), p.20,27-8,44.
26.
Emile Durkheim, Les règles de la méthode sociologique,
11ª éd. (1950),
p. 122, aqui citada na tradução de Anthony Giddens, Emile Durkheim: Selected
Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1972), p.100.
p. 122, aqui citada na tradução de Anthony Giddens, Emile Durkheim: Selected
Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 1972), p.100.
27. Jonathan Friedman,
“The hybridization of roots and the abhorrence of
the bush”, p.239,241.
the bush”, p.239,241.
28. Nancy Fraser, “Social
justice in the age of identity politics: redistribution, recognition, and
participation”, in Detlev Claussen e Michael Werz (orgs.),
Kritische Théorie der Gegenwart (Hanover: Institut fur Soziologie and der Universität Hannover, 1999), p.37-60.
Kritische Théorie der Gegenwart (Hanover: Institut fur Soziologie and der Universität Hannover, 1999), p.37-60.
29. Ver Bruno
Latour, “Ein Ding ist ein Thing”, Concepts and Transformations 1-22
(1998), p.97-111.
30.
Cornelius Castoriadis, “Done and to be
done” in Castoriadis Reader,
trad. David Ames Curtis (Oxford: Blackwell, 1997), p.400,414,397-8.
trad. David Ames Curtis (Oxford: Blackwell, 1997), p.400,414,397-8.
31. Harvie
Ferguson, The Science of Pleasure (Londres: Routledge, 1990),
p.199,247.
p.199,247.
32.
Jacques Ellul, Métamorphose du bourgeois
(Paris: La Table Ronde,
1998),p.81,91,94.
1998),p.81,91,94.
33.
Max Weber, The Theory of Social and
Economic Organization (parte 1 de
Wirtschaft und Gesellschaft, trad. A.R. Henderson e Talcott Parsons); citado a
partir de Max Weber: The Interpretation of Social Reality, org. J.E.T. Eldridge
(Londres: Nelson, 1971), p.87, 90.
Wirtschaft und Gesellschaft, trad. A.R. Henderson e Talcott Parsons); citado a
partir de Max Weber: The Interpretation of Social Reality, org. J.E.T. Eldridge
(Londres: Nelson, 1971), p.87, 90.
34.
Loïc Wacquant, Les Prisons de la misère (Paris:
Raisons d’Agir, 1999),
p.70.
p.70.
35. Rorty, Achieving our
Country, p.83-4.
137
36. Dench, Minorities
in the Open Society, p.23-6,156,184.
37. Jeffrey
Weeks, Making Sexual History (Cambridge :
Polity Press, 2000),
p.182,240-3.
p.182,240-3.
38. Saskia
Sassen, “The excesses of globalization and the feminization of
survival”, Paralax (Jan. 2001).
survival”, Paralax (Jan. 2001).
39. Geoff
Dench, Maltese in London :
a Case Study in the Erosion of Ethnic
Consciousness (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1975), p. 158-9.
Consciousness (Londres: Routledge and Kegan Paul, 1975), p. 158-9.
40. Rorty, Achieving
our Country, p.88.
41.
Alain Touraine , “Faux et vrais
problèmes”, in Une Société fragmentée? Le
multiculturalisme en débat (Paris:La Découverte , 1997).
multiculturalisme en débat (Paris:
42.
Ver Paul Virilio, Polar Inertia, trad. Patrick Camiller (Londres: Sage,
1999).
1999).
43. Richard Sennett,
“Growth and failure: the new political economy and
its culture”, in Mike Featherstone e Scott Lash (orgs.), Spaces of Culture: City-
Nation World (Londres: Sage, 1999), p.15.
its culture”, in Mike Featherstone e Scott Lash (orgs.), Spaces of Culture: City-
Nation World (Londres: Sage, 1999), p.15.
44. Sharon Zukin, The Culture of Cities (Oxford:
Blackwell, 1995), p.39,38.
45. Loïc Wacquant,
“‘A black city within the white’; revisiting America’s
dark ghetto”, Black Renaissance 2.1 (Outono/Inverno 1998), p.141-51.
dark ghetto”, Black Renaissance 2.1 (Outono/Inverno 1998), p.141-51.
46. Richard
Sennett, The Uses of Disorder: Personal Indentity and City Life
(Londres: Faber, 1996), p.194.
(Londres: Faber, 1996), p.194.
47.
Loïc Wacquant, “Urban outcasts: stigma and division
in the black
American ghetto and the French urban periphery”, International Journal of
Urban and Regional Research 17.3 (1993), p.365-83.
American ghetto and the French urban periphery”, International Journal of
Urban and Regional Research 17.3 (1993), p.365-83.
48.
Loïc Wacquant, “Elias in the
dark ghetto”, Amsterdam Sociologisch
Tijdschrift 24.3-4 (1997), p.340-9.
Tijdschrift 24.3-4 (1997), p.340-9.
49. Loïc Wacquant,
“How penal common sense comes to Europeans: notes
on the transatlantic discussion of the neoliberal doxa”, European Societies 1.3
(1999),p.319-52.
on the transatlantic discussion of the neoliberal doxa”, European Societies 1.3
(1999),p.319-52.
50. Ver Russell
Jacoby, The End of Utopia: Politics and Culture in an Age of
Apathy (Nova York: Basic Books, 1999).
Apathy (Nova York: Basic Books, 1999).
51.
Daniel Cohen, Nos temps modernes (Paris: Flammarion, 1999), p.56,
60-1.
60-1.
52.
Alain Ehrenberg, La fatigue d’être (Paris: Odile Jacob, 1998).
53.
Robert Linhardt, “L’évolution de
l’organization du travail” in Jacques
Kergouat et al. (orgs.), Le Monde du travail (Paris: La découverte, 1998).
Kergouat et al. (orgs.), Le Monde du travail (Paris: La découverte, 1998).
54.
Jean-Joseph Goux, Symbolic Economies:
After Marx and Freud, trad.
Jennifer Curtiss Gage (Ithaca: Cornell University Press, 1990), p.200,202.
Jennifer Curtiss Gage (Ithaca: Cornell University Press, 1990), p.200,202.
55.
Jacques Ellul, Métamorphose du bourgeois,
p.277.
56. Heather Hópfl,
“The melancholy of the black widow”, in Kevin Hetherington e Rolland
Munro (orgs.), Ideas of Difference (Oxford: Blackwell, 1997),
p.236-7.
p.236-7.
57. Michael
Allen Gillespie, “The theological origins of modernity”, Critical Review 13.1-2
(1999), p.1-30.
138
58. Portable
Renaissance Reader, org. James Bruce Ross e Mary Martin
McLoughlin (Nova York: Vicking, 1953), p.478.
McLoughlin (Nova York: Vicking, 1953), p.478.
59. Fred
Constant, Le multiculturalisme (Paris : Flammarion, 2000), p. 89-
94.
94.
60. Charles
Taylor, “The policy of recognition”, in Amy Gutman (org.),
Multiculturalism (Princeton: Princeton University Press, 1994), p.98-9,88-9.
Multiculturalism (Princeton: Princeton University Press, 1994), p.98-9,88-9.
61. Jürgen
Habermas, “Struggles for recognition in the democratic constitutional regime”,
in Gutman, Multiculturalism, p. 125, 113.
62. Jeffrey
Weeks, “Rediscovering values”, in Judith Squires (org.), Principled
Positions (Londres: Lawrence and Wishart, 1993), p.208-9.
FIM DO LIVRO
Nenhum comentário:
Postar um comentário