(Esta é a quarta aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).
Na aula de hoje, começaremos a
leitura de História da loucura através
do comentário de seu primeiro capítulo, “Stultifera navis”, e de algumas
questões presentes no segundo capítulo, “O grande internamento”.Este comentário
do segundo capítulo será seguido mais de perto na próxima aula através,
principalmente, da reconstituição do debate entre Derrida e Foucault a respeito
das relações entre cogito e loucura. Neste sentido, as leituras para a próxima
aula serão, além do capítulo em questão de História
da loucura, “Cogito e história da loucura”, de Jacques Derrida e os textos
“Meu corpo, este papel, este fogo” e “Resposta a Derrida”, escritos por
Foucault em 1972.
Até
agora, nós vimos algumas coordenadas gerais a respeito da maneira com que
Foucault se insere naquilo que poderíamos chamar de tradição da “epistemologia
histórica” francesa, esta cujos nomes principais são Bachelard, Canguilhem,
Koyré e, de uma maneira muito particular, Politzer. Esta inserção visou evidenciar como, para Foucault, a tarefa filosófica
da contemporaneidade era solidária de uma epistemologia. Pois a reflexão
filosófica seria fundamentalmente reflexão epistemologia, quer dizer, reflexão
historicamente orientada sobre a constituição de objetos do discurso
científico. No entanto, esta epistemologia histórica não era resultante
apenas da submissão da epistemologia à história
das ciências. Havia ainda uma clara articulação que visava inserir tais
reflexões sobre a história das ciências
em um quadro mais amplo de história das idéias, dos sistemas filosóficos,
religiosos, em suma, de uma história geral das sociedades.
Mas se o
pensamento científico não forma uma série independente, mas está ligado a um
quadro mais amplo de idéias historicamente determinadas é porque, dirá
Foucault, a reflexão epistemológica não deve se perguntar apenas sobre os
poderes e direitos de técnicas e proposições científicas que aspiram validade,
mas deve esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade e as condições de
exercício que se encarnam em técnicas e proposições, assim como se encarnam nas
outras formações discursivas que compõem o tecido social. Esta articulação
entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padrões de racionalização
permitirá a Foucault afirmar que o terreno estava aberto para a transformação
da epistemologia em linha de frente da crítica da razão. Bastava um movimento
localizado, porém prenhe de conseqüências. Um movimento que consistia em
retirar o solo realista sobre o qual a epistemologia se movia (e que assegurava
ainda uma direção cumulativa do progresso científico), isto em prol da
compreensão do progresso científico como uma sucessão descontínua de discursos,
historicamente limitados, sobre o mundo. Tal crença permitia a Foucault
afirmar:
A história das
ciências não é a história do verdadeiro, da sua lenta epifania, ela não saberia
pretender contar a descoberta progressiva de uma verdade sempre inscrita nas
coisas ou no intelecto, salvo a imaginar que o saber atual possui enfim tal
verdade de maneira tão completa e definitiva que ele pode medir o passado a
partir dela[1].
No entanto, uma colocação desta
natureza deixa em aberto uma questão maior: pois a história das ciências não pode negligenciar o problema da relação
às expectativas de descrições verdadeiras de estados de coisa. Foucault sabe
disto, ele sabe que a referência ao verdadeiro e ao falso é peça fundamental da
especificidade do discurso científico. Mas ele insistirá se trata,
fundamentalmente de compreender a história das ciências como:
a história dos
´discursos verídicos´, ou seja, dos discursos que se retificam, se corrigem e
que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elaboração finalizada pela
tarefa do “dizer verdadeiro”[2].
Nós vimos como
isto levava Foucault a transformar a epistemologia em algo como uma
“contra-história da ciência”, uma análise dos processos de implementação de
critérios discursivos de verdade, de construção de limites e de táticas de
exclusão que deveriam ser criticados tendo em vistas o desvelamento da maneira
com que padrões históricos de racionalidade fundamentam e constroem a
legitimidade de suas operações.
No interior do
campo de reflexões epistemológicos, vimos ainda como Foucault privilegiara,
desde o início, a análise das práticas médicas e clínicas. De fato, a
constituição da clínica é o espaço privilegiado para Foucault pensar esta
epistemologia crítica que logo ganhará a forma de uma arqueologia. Vários são
os livros dedicados ao assunto (Doença
mental e psicologia, História da loucura, O nascimento da clínica), assim
como vários serão os cursos do Collège de France (O poder psiquiátrico, Os anormais). Devemos então nos perguntar:
qual a razão de tal predomínio?
Vimos na aula passada como Foucault procurava mostrar
como a discussão sobre decisões clínicas a respeito da distinção entre normal e patológico
são, na verdade, um setor de decisões mais fundamentais da razão a respeito do
modo de definição daquilo que aparece como seu Outro (a patologia, a
loucura etc.). Elas se inserem em configurações mais amplas de racionalização
que ultrapassam o domínio restrito da clínica. A distinção entre normal e
patológico, entre saúde e doença é o ponto mais claro no qual a razão se coloca
como fundamento de processos de administração da vida, como prática de
determinação do equilíbrio adequado dos corpos em suas relações a si mesmos e
ao meio ambiente que os envolve. No caso da distinção entre saúde e doença
mental, vemos ainda como a razão decide, amparando práticas médicas e disciplinares,
os limites da partilha entre liberdade e alienação, entre vontade autônoma e
vontade heterônoma. Tudo isto nos explica porque Foucault compreender a
reflexão sobre a anatomia da clínica como setor privilegiado para a compreensão
do impacto e das estratégias dos processos de racionalização.
Dentro deste contexto, a constituição
de uma “história da loucura” é procedimento fundamental. De fato, História da loucura é um livro de
epistemologia. Trata-se de expor o lento processo de transformação da loucura
em “doença mental”, em objeto de um saber psiquiátrico e psicológico
produzindo, com isto, as condições de possibilidade para o advento das
positividades das ciências clínicas do mental. Processo este que, não por
acaso, tem seu momento decisivo com o advento mesmo da modernidade; isto ao
menos se aceitarmos esta maneira foucauldiana de definir a modernidade como o
que advém no final do século XVIII, ou seja, a partir da constituição de uma
episteme que tem na guinada transcendental kantiana, no advento das ciências
humanase na constituição do “homem” como duplo empírico-transcendental, seus
dispositivos maiores. Veremos o sentido de cada um deles com clama quando for
questão do comentário de As palavras e as
coisas. De qualquer forma, guardemos o fato de que, para Foucault, tudo se
passa como se o advento da modernidade fosse solidário da transformação da
loucura em doença mental. O que tal transformação pode significar, eis um dos
objetivos maiores do livro.
Uma coisa, no entanto, é
certa. O que veremos, em História da
loucura, é uma contra-história da ciência. Pois se trata de expor todo o
processo histórico de constituição de categorias e de objetos de ciências que
aspiram positividade, mas tal processo não será mais a narração das descobertas
e experiências bem-sucedidas. Ele será a narração da exclusão como condição
para o advento de critérios de normalidade e de normal, ela será a narração da
maneira com que julgamentos morais vão se infiltrando, muitas vezes a toque de
trombeta, em tratados técnicos e práticas que aspiram validade científica. Uma
narração bem descrita por Foucault nos seguintes termos, no prefácio à primeira
edição de História da loucura:
Poderíamos fazer uma
história dos limites – destes gestos
obscuros, necessariamente esquecidos desde que realizados, através dos quais
uma cultura rejeita algo que será para ela o Exterior; e, ao longo de sua
história, este vazio profundo, este espaço branco graças ao qual ela se isola
as designa tanto quanto seus valores. Pois tais valores, ela os recebe e os
mantém na continuidade de sua história; mas nesta região a respeito da qual
gostaríamos de falar, ela exerce suas escolhas essenciais, ela opera a partilha
que lhe fornecerá o rosto de sua positividade; lá se encontra a espessura
originária a partir da qual ela se forma[3].
De fato, a
afirmação não poderia ser mais clara. A verdadeira história da razão moderna é
a história dos seus limites, da constituição do que deve funcionar como seu
Exterior absoluto, no qual ela não mais se reconhece, mas que ao mesmo tempo
ela criou sob o véu do esquecimento. Assim, a história da loucura será a
história de uma “conjuração”, de um ”gesto de razão soberana” através do qual
os homem “aprisionam seu vizinho, comunicam-se e se reconhecem através da
linguagem sem perdão da não-razão”[4].
Daí porque a relação razão-desrazão seria uma das dimensões de originalidade da
cultura ocidental.
Desta forma, Foucault pode
afirmar que as condições da doença mental não serão encontradas nem na análise
da evolução orgânica, nem na compreensão da história individual, nem na
situação existencial do ser humano. Até porque, a doença mental só teria
realidade, valor e sentido no interior de uma cultura que a reconhece como tal.
As leis psicológicas, base para a
partilha entre o normal e o patológico em saúde mental, são, ao menos segundo
Foucault, sempre relativas a situações históricas determinadas.
Aparentemente,
estaríamos com Foucault diante de um certo relativismo historicista que
definiria a doença mental a partir da norma positivamente enunciada pela média
fornecida pelo social. Ou seja, a doença mental seria definida de maneira
negativa como desvio em relação à normal e de maneira virtual como
possibilidade do comportamento não sancionada socialmente. Mas Foucault quer complexificar
esta relação entre norma e loucura. Ele lembra, por exemplo, que encontramos
situações nas quais as doenças são reconhecidas como tais, mas tê-las é, ao
mesmo tempo, condição necessária para que certos sujeitos possam assumir certos
papéis sociais. Por exemplo, ele cita, em Doença
mental e psicologia, certas patologias necessárias para que, em certas
sociedades, alguém seja reconhecido como xamã. Esta é uma maneira de mostrar
como uma sociedade pode se exprimir positivamente nas doenças mentais
manifestadas por seus membros. O que nos deixa como duas questões maiores:
“Como nosso cultura conseguiu dar à doença o sentido de desvio e ao doente um
estatuto de exclusão? E como, apenas disto, nossa sociedade se exprime nestas
formas mórbidas que nas quais ela recusa a reconhecer-se?”[5].
Responder
esta pergunta exigirá um método híbrido derivado de uma epistemologia histórica
que compreende a história das ciências como indissociável de uma história das
idéias (na qual a filosofia tem um papel decisivo). Daí porque Foucault poderá
afirmar:
Fazer a história da loucura
significará dizer: fazer um estudo estrutural do conjunto histórico – noções,
instituições, medidas jurídicas e policiais, conceitos científicos – que
capturam uma loucura cujo estado selvagem nunca pode ser restituído em si
mesmo; mas a despeito desta inacessível pureza primitiva, o estudo estrutural
deve remontar em direção à decisão que, ao mesmo tempo, liga e separa razão e
loucura; ela deve tender a descobrir a troca perpétua, a obscura raiz comum, o
afrontamento originário que dá sentido tanto à unidade quanto à oposição do
sentido e do insensato[6].
O grau zero da história da loucura
Mas esta
história da loucura duas peculiaridades maiores. Primeiro, trata-se de fazer a
história da loucura na idade clássica.
A noção de classicismo em Foucault é central para a constituição de sua
compreensão da modernidade. Grosso modo, o classicismo é este período que, no
interior da história da filosofia, iria de Descartes a Kant. A ele e à
especificidade de suas estruturas de racionalidade que fornecerá as condições
de possibilidade para o advento da modernidade, Foucault dedicará longos
capítulos de As palavras e as coisas. No
caso do nosso livro, Foucault fornece duas datas que marcariam a história da
loucura na idade clássica: a criação do Hospital Geral, na Paris de 1657, com
suas exigências reais de internamento de loucos, libertinos e desempregados, e
a liberação por Pinel dos loucos acorrentados em Bicêtre, isto na Paris
revolucionária de 1794. Ou seja, há fundamentalmente uma experiência de
internação e de encarceramento que servirá de marco, já que, como dirá o
próprio Foucault: “Procurei sobretudo ver se havia uma relação entre esta nova
forma de exclusão e a experiência da loucura em um mundo dominado pela ciência
e por uma filosofia racionalista”[7].
Uma
experiência de internamento que mudará completamente de sentido com Pinel e com
o advento da psiquiatria moderna. É deste internamento que parte Foucault. É
dele se trata logo nas primeiras frases de História
da loucura:
Ao final da
Idade Média, a lepra desaparece do mundo ocidental. Nas margens da comunidade,
abrem-se grandes plagas que o mal não assombra mais, mas ele as deixou estéreis
e, por muito tempo, inabitadas[8].
Foucault se
refere aos mais de 19.000 grandes leprosários agora vazios espalhados por toda
a Europa. Durante séculos, eles cristalizaram uma experiência de exclusão
social e reintegração espiritual que marcará aqueles que posteriormente
habitarem tais estruturas vazias. Eles serão inicialmente os afetados de
doenças venéreas, aos quais rapidamente se acrescentarão os loucos, dois
objetos presentes em um espaço moral de exclusão. Fato inédito até então pois:
Antes que a
loucura fosse dominada, por volta da metade de século XVII, antes que fosse
ressuscitado, a seu favor, velhos ritos, ela fora vinculada, de maneira
obstinada, à todas as experiências maiores da Renascença[9].
Mas o que
significa este vínculo entre a loucura e as experiências maiores da Renascença?
Foucault inicia lembrando do que significava aquilo que a literatura chamará de
“nau dos insensatos”: estes barcos que navegavam a esmo trazendo uma tripulação
de loucos deixados à sua própria sorte. A nau é a figuração desta situação
limiar do louco: “prisioneiro no meio da mais livre, da mais aberta das rotas”.
De fato, o mar, símbolo da ausência de território, da abertura à contingência,
e o louco, “o passageiro por excelência, o prisioneiro da passagem”, estavam ligados
durante muito tempo no imaginário do homem europeu. No entanto, esta figuração
ganha uma força suplementar na Renascença.
Foucault vai
então construir um argumento segundo o qual a loucura aparecera na Renascença
como espaço e modo de manifestação da verdade. O louco é, muitas vezes, aquele
que ocupa a cena do teatro para denunciar a insensatez do mundo. Em outras
situações, ele é aquele que está completamente cego pelas suas certezas; como
se experiência da loucura fosse intimamente ligada a uma sátira moral. Aos
olhos de Focault, isto indicaria uma configuração do saber no qual a loucura
não apareceria como aquilo que se coloca na exterioridade da racionalidade, mas
como um fato interno à própria razão. Analisando textos literários, filosóficos
e morais da Idade Média e da Renascença nos quais é questão da loucura,
Foucault conclui que, em todos os casos: “A loucura é um momento duro, mas
essencial no trabalho da razão”[10].
Pois “a verdade da loucura está no fato dela ser interior à razão, dela ser uma
figura da razão, algo como uma força e uma necessidade momentânea que a razão
utiliza para melhor se assegurar de si mesma”[11].
Este momento
da loucura no interior de uma razão que procura melhor se assegurar de si mesma
está indissociável de uma experiência da finitude da existência diante da
morte. Foucault apóia-se nas conseqüências da grande experiência social da
proximidade da morte devido à proliferação da peste e de outras epidemias, isto
a fim de lembrar que: “Da descoberta desta necessidade que fatalmente reduzia o
homem a nada [a morte], passa-se a
contemplação que despreza este nada que é a existência humana [uma existência
cujas exigências ordinárias são necessariamente loucura]”[12].
Ou seja, tanto na loucura quanto na morte, é sempre do nada da existência que é
questão. Neste sentido, a sabedoria consiste em denunciar a universalidade da
loucura, ou seja, a presença incessante da loucura em operação todas as vezes
que o homem desvia-se da certeza de que
eles não são nada mais do que mortos a espera de sepultura. Dentre outros, é de
Montaigne e de Erasmo de Roterdã que fala Foucault.
Tal
proximidade da loucura à razão leva Foucault a falar da experiência da
Renascença como uma consciência trágica da loucura. Tragédia significa aqui a
impossibilidade da razão operar sem reconhecer que as fronteiras com seu outro
estão
Consciência que seria responsável, entre
outras coisas, pela não-exclusão do louco através da internação: “Antes do
século XVIII, a loucura não era sistematicamente internada, e era
essencialmente considerada como uma forma de erro ou ilusão (....) As
prescrições dadas pelos médicos eram de preferência a viagem, o repouso, o
passeio, o retiro, o corte com o mundo vão e artificial da cidade”[13].
Retenhamos firmemente esta articulação entre erro, ilusão e loucura, pois ela
será importante mais a frente.
A dissolução de um mundo e a consciência trágica da loucura
Mas esta temática da loucura como
momento interno à própria razão só pode aparecer como sintoma de um mundo em
decomposição. Foucault lembra que a própria noção de racionalidade até a
renascença estava fundamentalmente vinculada a uma certa noção de mimesis,
de semelhança, de analogia e de simpatia: “Até o fim do século XVI, a
semelhança desempenhou um papel decisivo no saber da cultura ocidental”[14].
Procurar o sentido era, fundamentalmente, expor as relações de semelhança. A
própria relação da linguagem ao mundo era pensada sob a forma da analogia, e
não sob a forma da representação. Mas esta episteme fundada na crença da
potência cognitiva da mimesis, crença
capaz de ordenar um simbolismo fechado sobre o mundo e suas figuras se
dissolverá. Com o esgotamento de uma episteme, são as operações elementares de
sentido que perdem seu fundamento. Daí este mundo no qual: Tantas significações
diversas inserem-se sob a superfície da imagem que ela não apresenta mais do
que uma face enigmática”[15]. Neste
sentido, a loucura é figura da experiência histórica do esgotamento de uma
figura do saber. Este mundo em decomposição, como Foucault lembrará em páginas
maiores de As palavras e as coisas, é
o mundo de Dom Quixote, um mundo no qual o indivíduo vaga sem rumo pois os
fenômenos já não respondem mais a suas expectativas de racionalidade, todas
fundadas na força da semelhança:
Dom Quixote
é a primeira das obras modernas porque
vemos aí a razão cruel das identidades e das diferenças zombar incessantemente
dos signos e das similitudes, porque a linguagem rompe seu velho parentesco com
as coisas para entrar nesta soberania solitária de onde ela só reaparecerá, em
seu ser abrupto, como literatura; porque a semelhança entra em uma idade que é
para ela a idade da desrazão e da imaginação[16].
Este é o mundo, ainda segundo
Foucault, de Jeronimus Bosch com suas figuras híbridas que não se submetem mais
a princípio algum de semelhança, seu desregramento que exprime o fim de um
mundo. Veremos no próximo módulo como compreender quais as linhas de força em
operação nesta ruptura de episteme e a desqualificação da mimesis. Por
enquanto, lembremos apenas que, não será por acaso que a doença mental, em
especial a psicose, será vista séculos mais tarde como um pensamento alienado nas
malhas da analogia e das identificações imaginárias. E a própria história da
modernidade será, entre outras coisas, a história da desqualificação da força
analógica da imagem. Pensar por imagens será, já desde Descartes, uma forma
degradada de pensar.
Mas
no interior da experiência renascentista da loucura, Foucault identifica duas
linhas maiores de força: uma por ele designada de “experiência cósmica (ou
trágica) da loucura”, outra recebendo o nome de “experiência crítica da
loucura”. A existência desta duplicidade será fundamental para a explicação
posterior do modo com que a loucura aparecerá, na Idade Clássica, como objeto
privilegiado de exclusão:
De um lado,
haverá uma nau dos insensatos, plena de rostos perdidos, que pouco a pouco
imergem na noite do mundo, dentre paisagens que falam da estranha alquimia dos
saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do final dos tempos. Do outro
lado, haverá uma nau dos insensatos que forma para os sábios a Odisséia
exemplar e didática dos defeitos humanos. De um lado: Bosch, Brueghel, Thierry
Bouts, Dürer e todo o silêncio das imagens (...) Do outro, com Brant, com
Erasmo, com toda a tradição humanista, a loucura é absorvida no universo do
discurso[17].
Ou
seja, a dita experiência crítica da loucura será marcada pela denunciação
irônica da universalidade da loucura no mundo. Ela é a astúcia de uma razão que
denuncia a estreiteza do saber, a cegueira do vício, mas que só pode pensar a
loucura ou como uma forma relativa à razão ou como uma das formas mesmas da
razão. No primeiro caso, a loucura é apenas a desmesura da sabedoria em relação
à razão dos homens. Neste sentido,
lembra Foucault:
Em relação á
Sabedoria [divina] a razão do homem era apenas loucura, em relação a razão
estreita dos homens, a Razão divina é tomada no movimento essencial da Loucura.
Medida a partir de uma grande escala, tudo é apenas loucura, medido a partir de
uma pequena escala, o próprio Todo é loucura[18].
Já enquanto
forma relativa à razão, a loucura apenas aparece como momento interno ao
trabalho da razão, como ponto opaco no qual a razão se arrisca todas as vezes
que procura construir sua obra. Ela é uma força interna, uma figura que a razão
deve atravessar para melhor se assegurar de si mesma: “Não há um grande
espírito sem uma mistura de loucura”, dirá Charron. Mas nos dois casos a
loucura nunca representa uma dissolução da perspectiva da razão, ela é apenas o
momento necessário para que tal perspectiva seja assentada em solo seguro.
Neste sentido, Foucault lembrará que é através dos desdobramentos da
consciência crítica da loucura que poderá se constituir algo como esta
experiência clássica marcada pelo internamento e pela exclusão Uma experiência
que pressupõe uma loucura dominada pelo discurso racional e localizada como
fato regional. Uma dominação pelo discurso racional que não cessará de aumentar
e de cavar um fosso, isto até que entre loucura e razão não passe nada mais do
que uma exterioridade indiferente entre opostos.
Mas Foucault
insistirá também que a Renascença conheceu uma “consciência trágica da loucura”
que será esquecida e só se revelará bem mais tarde através das obras de um
Nerval, Hõlderlin, Nietzsche, Artaud, Roussel. Isto a ponto de Foucault
afirmar: “Sob a consciência crítica da loucura e de suas formas filosóficas ou
científicas, morais ou médicas, uma surda consciência trágica nunca cessou de
velar”[19]. Mas
o que pode significar exatamente tal consciência trágica? E, problema maior,
qual palavra pode descrevê-la?
Antes de
tentar responder tais questões, estejamos atentos ao lugar que tal consciência
trágica ocupa no método foucauldiano. Já sabemos que a História da loucura é uma contra-história do discurso científico
que objetiva a loucura através da noção de “doença mental”. Sabemos como
Focault irá tentar expor o lento movimento de constituição de uma racionalidade
clínica a partir da sua relação solidária com o advento de estruturas de
racionalidade no período clássico e moderno. Mas Foucault precisa operar esta
crítica aos saberes positivos sem economizar a discussão a respeito do
fundamento capaz de orientar a crítica. Vimos, em Doença mental e psicologia, como o fundamento da crítica da
psicologia aparecia através da defesa de uma analítica do Dasein enquanto perspectiva privilegiada de compreensão da história
individual, como solo a priori para o advento de uma história possível. Aqui,
esta função será ocupada por uma experiência de proximidade imanente e
essencial entre razão e loucura que Foucault procura tematizar através da noção
de “tragédia”. Veremos, mais a frente, como serão principalmente Bataille, Blanchot
e Klossovski aqueles a fornecer à Foucault a forma capaz de apreender tal
tragédia através da temática da transgressão
ao discurso da razão e de uma experiência do “ser do limite” (embora ainda
não saibamos o que pode significar isto, transgressão?). Ou seja, um recurso a
experiências disruptivas do “pós-surrealismo”.
De qualquer
forma, já no prefácio à primeira edição de História
da loucura, Foucault, valendo-se de Nietzsche, confronta a “dialética da
história” fundada na dinâmica conflitual entre a razão e seu Outro às
“estruturas imóveis do trágico”, ou seja, espaço de uma “implicação confusa” de
pólos que ainda não são exatamente opostos sem serem totalmente indiferenciados:
Domínio no
qual o homem de loucura e o homem de razão, separando-se, não são ainda
separados e, em uma linguagem muito originária, muito frustra, bem mais matinal
que a linguagem da ciência, sustentam o diálogo sua ruptura que testemunha, de
uma maneira fugidia, que eles ainda se falam[20].
Mas que linguagem é esta na qual
os separados não são opostos nem indiferentes uns aos outros? Uma “raiz
calcinada do sentido”, para usar um termo do próprio Foucault, própria a uma
linguagem onde a contradição não é submetida a uma dialética. Foucault fala, às
vezes, de uma linguagem capaz de interrogar: “uma origem sem positividade e uma
abertura que ignora as paciências do conceito”[21].
Mas isto implica uma linguagem que seja uma “linguagem da ausência de obra”, ou
seja, linguagem da destruição da noção de obra: “uma palavra que se dobra sobre
si mesma, dizendo outra coisa para além do que ela diz, outra coisa a respeito
da qual ela é, ao mesmo tempo, o único código possível”[22].
Veremos mais a frente como esta linguagem dupla, que é, ao mesmo tempo,
anulação do código partilhado e duplicação do código vem da reflexão sobre a
potência da estética modernista. Que ela nos leve a este solo no qual razão e
loucura não se confrontam mais sob o signo da exclusão, um solo que exige uma
reconfiguração nas próprias operações da razão, eis um caminho o que Foucault
ainda precisará nos indicar. Mas, por
enquanto, vale a pena tentar compreender como esta ruptura entre razão e
loucura se deu.
[1]
FOUCAULT, idem, p. 1588
[2] idem, p.
1588
[3] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 189
[4] idem, p.
187
[5]
FOUCAULT, Maladie mentale, p. 75
[6] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 194
[7] idem, p.
196
[8]
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 15
[9]
FOUCAULT, idem, p. 21
[10]
FOUCAULT, História de la folie, p. 55
[11] FOUCAULT, idem, p. 56
[12] idem,
p. 31
[13]
FOUCAULT, Michel; Microfísica do poder, 120
[14] FOUCAULT, Les mots et les
choses, p.; 32
[15]
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 35
[16] FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 63
[17]
FOUCAULT, Histoire de la folie, p. 46
[18] idem,
p. 52
[19]
FOUCAULT, idem, p. 47
[20] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 188
[21] idem,
p. 267
[22] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 445
buscado em: cooperação.sem.mando
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