por Analice de Lima Palombini
As práticas clínicas, em sua diversidade e especificidades,
devem sempre ser pensadas no contexto de um território, concebido como um espaço político
de diferenças, desigualdades, conflitos e crenças singulares. O território não pode ser
reduzido à casa onde se vive ou aos lugares frequentados pelo cidadão. O território não apenas
circunda ou circunscreve o espaço privado, ele é o espaço vivo e mutante que atravessa,
dinamiza e complexifica as relações existentes entre público e privado. No entanto, muitas
vezes, os serviços de atenção psicossocial estão superlotados, a equipe está cansada e acaba se
limitando às práticas regulares dentro do serviço. Outras vezes, a saída do serviço se dá apenas em
casos de forte necessidade, como em visitas domiciliares e acompanhamento em caso de
emergências. Nem sempre há uma relação orgânica e integrada com a estratégia de saúde da família e
demais recursos do território. Como clinicar tecendo redes que propiciem a busca ativa de novas
oportunidades de vida, do convívio e trocas com a cultura, seus impasses e saída possíveis?
Como pensar neste contexto as relações entre a ciência e a cultura e seus processos de controle
social, e suas relações com a política pública? Como construir estratégias que possibilitem a ampliação
do cuidado no território, com os usuários e familiares? Que espaços temos criado para
aumentar nosso conhecimento, práticas clínicas e sócio-culturais no território de referência? Há
estímulo para se conhecer os recursos sócio-educacionais e a vida comunitária e cultural da
população no território, e para a participação dos usuários e familiares neles? Há incentivo
para ações e eventos comuns com as organizações comunitárias e movimentos sociais da área? As
equipes conhecem e valorizam os recursos voluntários existentes no território? A equipe
realiza alguma forma de acompanhamento terapêutico ou de suporte na vida diária?
Promove grupos de ajuda e suporte mútuos na comunidade? Existem ações matriciais e/ou
integradas com as equipes de saúde da família?
PRÁTICAS CLÍNICAS NO TERRITÓRIO
Conforme
as diretrizes que orientam o sistema único de saúde (SUS) e a política nacional
de saúde mental, a noção de território compreende não apenas uma área geográfica
delimitada, mas as pessoas, instituições, redes e cenários em que se dá a vida comunitária.
Território é lugar de vida, de caráter processual, produtor de relações que podem
ser tanto identitárias como de diferença, onde têm lugar o conflito e sua negociação.
No
livro O declínio do homem público, Richard Sennett propõe a seguinte
definição de cidade:
“assentamento humano onde está dada a possibilidade de encontro com o estranho”.
Podemos aplicá-la à idéia de território que tem a heterogeneidade como sua marca:
um território vivo é aquele que permite o encontro com o outro, com o que difere
de mim, cumprindo, assim, uma função de alteridade que faz com que eu me torne
diferente do que era.
Com
efeito, a subjetividade se faz na relação ao outro, articulando singular e
coletivo, indivíduo
e sociedade, dentro e fora. É nesse entremeio que a clínica opera, como abertura
à produção de novos sentidos e modos de conexão com o mundo, implicando transformações
subjetivas.
É
próprio à clínica, portanto, que sua prática se dê no território, que ela
busque multiplicar
possibilidades de vida, provocando o alargamento dos modos de habitar o território
para que a diferença possa nele ter lugar.
Uma
tal concepção de clínica – a que se chamou de “clínica ampliada” –, se, por um lado,
pode encontrar sustentação teórica em um autor seminal como Freud, que propõe o
psíquico como esse ponto de articulação entre o singular e o coletivo, por
outro é resultado
do processo social e político implicado na consolidação do Sistema Único de Saúde
em nosso país, determinante de transformações no modo de exercício da clínica. Ana
Cristina Figueiredo (2009) aponta-nos três tempos dessa transformação:
-
nos anos setenta, a passagem da clínica dos consultórios privados para os
ambulatórios públicos,
desprivatizando a clínica;
-
nos anos noventa, o deslocamento dos ambulatórios públicos para os centros de atenção
psicossocial (Caps), fazendo da clínica uma prática local, multiprofissional e interdisciplinar;
-
na atualidade, a abertura dos Caps ao trabalho em rede, onde a clínica, ao mesmo tempo
em que se estende ao território, também cede lugar a outras práticas, com as quais
a responsabilidade pelo cuidado do usuário deixa de ser de um serviço, para ser compartilhada
por diferentes atores do território.
A
composição dessa rede é móbil, mutante. Ela acompanha os percursos próprios a
cada usuário
e as amarras singulares que vão se produzindo entre ele e as pessoas, gestos, objetos,
lugares, serviços, organizações, que compõem o território onde vive. As práticas
clínicas no território adquirem, assim, a característica da itinerância, indo
ao encontro
do usuário onde este estiver, acompanhando-o em seus percursos, buscando formas
e espaços de expressão e conexão com o mundo.
Rubem
Lemke, em sua dissertação de mestrado, ao abordar o tema da itinerância no contexto
das políticas atuais de Saúde Mental e de Atenção Básica, destaca três modalidades
clínicas de cuidado no SUS que se fazem nas andanças pelo território: a dos
acompanhantes terapêuticos, dos redutores de dano e dos agentes comunitários.
Resumidamente,
essas três modalidades podem ser assim descritas: o acompanhamento terapêutico
(AT) propõe uma clínica sem muros, que se faz no espaço aberto da cidade, acompanhando
cotidianos de vida de forma a estabelecer laços entre o sujeito acompanhado
e o território por ele habitado, utilizando o inesperado das ruas como matéria
para as suas intervenções; a redução de danos (RD) promove ações de cuidado junto
às pessoas que usam drogas e que habitualmente têm dificuldade de acesso aos serviços
de saúde, com o objetivo de minimizar as conseqüências adversas do uso ou abuso
de drogas; o agente comunitário (AC) promove a integração entre a equipe de saúde
e a população de uma área definida, mantendo contato estreito com as famílias dessa
área, desenvolvendo ações educativas e de vigilância sanitária.
Pautados
pelos princípios da desinstitucionalização (reforma psiquiátrica) e da integralidade
(reforma sanitária), acompanhantes terapêuticos, redutores de danos e agentes
comunitários de saúde situam-se, igualmente, como atores de experiências que arriscam
abandonar os ambientes protegidos e partem em direção ao território de vida daquelas
pessoas a quem se dirigem os seus cuidados, acompanhando essas pessoas em seus
territórios existenciais. Apesar das suas especificidades e dos diferentes
saberes envolvidos
em cada uma dessas práticas, acompanhantes terapêuticos, redutores de danos
e agentes comunitários têm a aprender um com o outro, podendo compartilhar ferramentas
conceituais e estratégias clínicas diversas. Mais além disso, as funções encarnadas
por cada um desses atores – ATs. RDs, ACS – não são sua prerrogativa exclusiva.
Acompanhamento Terapêutico, Redução de Danos e Atenção Comunitária expressam,
antes que especialismos, cargos ou profissões, um modo do cuidado, modo de
conceber a clínica que atravessa, ou pode atravessar, as práticas de qualquer
um dos trabalhadores
envolvidos com o cuidado no território.
Aberta
aos acontecimentos que advêm no espaço cotidiano das trocas sociais, a clínica se
apresenta como “senhora da passagem”, como a nomeia Eduardo Passos, clínica no limiar
entre “o público e o privado, entre a interioridade e a exterioridade do setting terapêutico,
entre nós e a cidade, entre a clínica e as redes sociais”. Isso, porém, exige o diálogo
permanente com outros setores, como educação, cultura, habitação... colocando em
causa a política como indissociavelmente ligada à clínica. A clínica feita no território
encontra, assim, na política, a sua zona fronteiriça, implicando a passagem das práticas
clínicas a um exercício inventivo de cidadania.
Porém,
se cidadania e singularidade são valores assumidos e veiculados pela reforma brasileira,
não necessariamente estão constituídos como valores em torno dos quais se ordenam
os espaços sociais em que se processa a sua implantação, o que remete menos a
contradições internas à proposta dos serviços de atenção psicossocial do que a
tensões históricas
no processo de constituição do tecido social brasileiro, conforme assinala Carvalho
(2001).Assim, as propostas de democratização do espaço de atendimento e de
promoção
de sujeitos cidadãos entrelaçam-se a um quadro complexo de configuração de valores
hegemônicos junto à população, relacionados aos processos de modernização (globalização)
do país e às formas contemporâneas de existência (ibidem). As dificuldades
não se restringem ao campo da reforma psiquiátrica; elas incidem no cerne mesmo
da proposta do Sistema Único de Saúde e do ideário das políticas sociais em que a
reforma se enraíza. A defesa da saúde como direito do cidadão e dever do
estado, assegurada
pela constituição de 1988, é, desde a origem, continuamente ameaçada pela ideia de estado mínimo e pela ótica do lucro, que concebe a saúde como mercadoria, valor
de troca. É nesse contexto que se trava a disputa pela manutenção dos leitos em hospitais
psiquiátricos em detrimento da criação de serviços de fato substitutivos. A precarização
do trabalho, por sua vez, agravada pela ausência de mecanismos de proteção
social, conduz às situações de vulnerabilidade, marcadas pelo empobrecimento,
a ruptura dos laços, as atividades ilegais, o individualismo e a violência
− são esses os desafios maiores que se interpõem à prática clínica no
território, envolvendo
mediação social para o estabelecimento de laços produtivos entre seus usuários
e as comunidades locais. Em destaque, aqui, a polarização entre uma perspectiva
que concebe a cidade como pólis − poder de produção de relações, conflitos e
negociação − e a perspectiva hoje dominante, que a vê como mercado − onde o
espaço público
é privatizado, tornado uniforme, impondo, à diferença, a anulação, o silêncio e
a violência.
Nesse sentido, o caminho que a reforma psiquiátrica brasileira vem percorrendo
é, por princípio, um caminho de resistência (Barros, 2003), sendo crucial que
possa nele persistir.
Referências
bibliográficas
BARROS,
Regina Benevides. Reforma psiquiátrica brasileira: resistências e capturas em
tempos neoliberais. In: CONSELHO Federal de Psicologia (Org.). Loucura,
ética e política:
escritos militantes. São Paulo:
Casa do Psicólogo, 2003, p.196-206.
CARVALHO,
E.N. A reforma, as formas e outras formas: as
construções sociais da pessoa
e perturbação em um serviço de saúde mental. Dissertação (Mestrado em Psicologia)
– Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. Disponível
em .
FIGUEIREDO,
A.C. Psicanálise e atenção psicossocial: clínica e intervenção no cotidiano.
Palestra proferida na Jornada do Instituto APPOA; Psicanálise e intervenções
sociais. Porto Alegre, 2009.
LEMKE,
R.A. A itinerância e suas implicações na construção de um ethos do
cuidado. Dissertação
(Mestrado em Psicologia Social) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2009.
PASSOS,
E. A clínica, o método e as experiências de passagem. Conferência de abertura
do I Congresso Internacional, II Congresso Ibero-Americano, I
Congresso Brasileiro
de AT “Singularidade, Multiplicidades e Ações de Cidadania”.
São Paulo, 7, 8
e 9 de setembro de 2006. Não publicado.
SENNETT,
R. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia
das Letras, 1988. Trabalho originalmente publicado em 1978.
Analice
de Lima Palombini
Junho 2010
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