sábado, 1 de dezembro de 2012

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a terceira aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault
Aula 3

Na aula de hoje, analisaremos a primeira parte de Doença mental e psicologia, isto a fim de mostrar qual o campo inicial de reflexões de Michel Foucault e quais as articulações entre tal campo e os procedimentos gerais próprios à epistemologia histórica francesa.
Este pequeno livro, Doença mental e psicologia, é, na verdade, uma porta de entrada privilegiada para a compreensão da experiência intelectual de Michel Foucault por retomar temas articulados no interior da reflexão filosófica francesa desde os anos vinte e por já indicar os caminhos que Foucault trilhará em direção ao estabelecimento de sua estratégia maior: submeter a reflexão epistemológica sobre as ciências humanas a uma genealogia do poder e das práticas disciplinares. Submissão que aparece no horizonte desde que Foucault admite que: “o homem só se transformou em uma ´espécie psicológizável´ a partir do momento em que sua relação à loucura permitiu uma psicologia”[1]. Como se a própria normatização da vida produzisse seu outro.
No entanto, este livro tem uma história peculiar. Lançado pela primeira vez em 1954, seu título era outro: Doença mental e personalidade. De fato, toda a segunda parte, intitulada “As condições reais da doença” era diferente do que encontramos na versão atual pois dedicada, principalmente, a Pavlov e á tentativa de edificação das condições para uma ciência psicológica materialista. Então vinculado ao marxismo e ao partido comunista, Foucault não deixa de seguir vias muito semelhantes a outro marxista, Georges Politzer e sua psicologia concreta que privilegia o caráter de internalização de contradições sociais enquanto cerne da constituição de patologias. Colaborava para isto, ainda, uma leitura precoce de Hegel. Foucault havia defendido, em 1949, uma dissertação para a obtenção do diploma de estudos superiores sob a orientação de Jean Hyppolite cujo título era: “A constituição de um transcendental histórico na Fenomenologia do Espírito de Hegel”.
No entanto, ao preparar uma nova versão em 1962, Foucault, agora distante do marxismo, reescreve todo o capítulo final de seu livro, substituindo a análise inicial por um grande resumo de sua tese de doutorado que acabara de sair: A história da loucura. Devido a este grande remanejamento, Foucault renegará completamente este trabalho. Em suas entrevistas, sempre irá se referir a História da loucura como sendo seu primeiro livro. O que nos deixa com uma questão maior,: por que introduzir o pensamento de Michel Foucault através de um livro que o próprio autor repudiou?
Uma resposta possível diz respeito ao desejo de compreender de maneira mais clara o processo de formação das questões e métodos que marcaram a experiência intelectual de Foucault. Muitas vezes, um projeto abandonado ou totalmente reescrito diz muito a respeito do movimento próprio a um pensamento, já que ele evidencia o encaminhamento que leva um autor a  procurar sintetizar questões que continuarão a guiar sua produção intelectual. Neste sentido, devemos responder o que leva Foucault a abandonar uma perspectiva classicamente marxista na análise do estatuto da psicologia, isto em prol da constituição de um campo de análise da clínica que caminhará para a elaboração de um método de reflexão epistemológica inicialmente pensado como uma “arqueologia” e posteriormente como uma “genealogia”. Pois não é por acaso que o primeiro trabalho verdadeiramente acabado de arqueologia da ciência tenha sido efetuado a partir da análise do próprio aparecimento da noção moderna de clínica (O nascimento da clínica, de 1963). Foucault vê na constituição da psicologia e da clínica dos fatos psicológicos, o campo privilegiado de orientação da razão em seus processos de racionalização da vida. 

A autonomia do mental

“Duas questões se colocam: sob quais condições podemos falar de doença no domínio psicológico?  Quais relações podemos estabelecer entre os fatos da patologia mental e estes da patologia orgânica?”. Desta forma, começa Doença mental e psicologia. Como vemos, trata-se de se perguntar sobre a especificidade da causalidade psíquica a partir de uma dupla problematização. Primeiro, o problema da causalidade psíquica é abordado sob o fundo da distinção entre o normal e o patológico. O que é um estado patológico para a psicologia? Quais seus critérios e modos de classificação? Segundo, o problema da causalidade psíquica é lido no interior da discussão entre psicogênese e organogênese. Há alguma distinção estrutural entre patologia mental e patologia orgânica? Podemos utilizar os mesmos procedimentos de determinação do segundo caso na análise do primeiro?
            De fato, colocar o problema nestes termos já é operar com a pressuposição de uma distinção pretensamente fundadora da racionalidade do campo da psicologia, a saber, a pressuposição de que a perspectiva de análise de fenômenos físicos, orgânicos pode ser completamente inadequada para a determinação mesma do que é um fato psicológico. Uma das raízes de tal distinção em um livro como a Critica dos fundamentos da psicologia, de Georges Politzer com suas críticas contra o realismo e o formalismo do discurso próprio á psicologia experimental dependente da entificação do modo de objetividade próprio às ciências físicas. Foucault parece admitir tal perspectiva crítica politzeriana ao afirmar, por exemplo: “Se parece tão difícil definir a doença e a saúde psicológica, não seria por que nos esforçamos de maneira vã em lhes aplicar massivamente conceitos igualmente destinados á medicina somática?”[2]. Lembremos, a este respeito, da descrição foucauldiana sobre o estado da psicologia: “O destino desta psicologia que se via como conhecimento positivo repousou sempre sobre dois postulados filosóficos: a verdade do homem esgota-se em seu ser natural e o caminho em direção a todo conhecimento científico deve passar pela determinação de relações quantitativas, pela construção de hipóteses e pela verificação experimental. Toda história da psicologia até a metade do século XX é a história paradoxal das contradições entre este projeto e seus postulados. Ao perseguir o ideal de rigor e exatidão das ciências da natureza, ela foi levada a renunciar a tais postulados. Ela foi levada, por cuidado de fidelidade objetiva, a reconhecer na realidade humana outra coisa que um setor da objetividade natural [Foucault pensa sobretudo na psicanálise e na análise existencial de Biswanger], e a utilizar para o conhecer, outros métodos que estes fornecidos como modelo pelas ciências da natureza”[3]. Ou seja, trata-se de colocar em operação aqui uma “epistemologia histórica à contrapelo” capaz de mostrar a origem da ilusão de cientificidade própria a um domínio empírico do saber[4].
            Foucault parte então para uma descrição dos impasses advindos da tentativa de constituir o campo da análise das doenças psicológicas a partir do quadro metodológico utilizado para analisar doenças orgânicas. Tal como na análise da doença orgânica, lembra Foucault, a psicologia tentou inicialmente constituir uma sintomatologia (determinando o quadro dos signos e sintomas que indicam a existência de estruturas mórbidas) e uma nosografia (determinando as formas e os padrões de desenvolvimento da doença). Foucault passa então a descrição de estruturas mórbidas tradicionalmente aceitas à época (histeria, psicastenia, obsessão, mania, paranóia, psicose alucinatória crônica, hebefrenia, catatonia), isto a fim de mostrar como tais estruturas são marcadas pelo mesmo método de repartição de sintomas em grupos patológicos e de determinação de estruturas mórbidas que encontramos na análise das doenças orgânicas. Nos dois casos, a doença aparece como essência cujos sintomas são atributos. Ou seja, consideramos a doença como uma: “essência natural manifestada por sintomas específicos”[5]. Tal perspectiva essencialista converge com a descrição que vimos de Georges Canguilhem sobre a compreensão da doença como o resultado de variações quantitativas de funções e órgão.
            Foucault lembra que, contra tal perspectiva, desenvolveu-se a noção de doença como o que resulta de reações globais de indivíduos tomados como totalidades orgânicas e psicológicas. Visão bastante difundida na França principalmente devido a Canguilhem, Merleau-Ponty e Kurt Goldstein, vimos como ela encontrava suas raízes já presentes na medicina grega. Contrariamente a uma noção de doença determinada a partir da possibilidade de localização, a medicina grega estaria marcada por um certo dinamismo relacional: “A natureza (physis) tanto no homem como fora dele, é harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem. Está em todo o homem e é toda dele”[6]. A doença aparece assim como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade. Como dirá claramente Foucault: “A doença não é então nem um déficit nem uma regressão, mas um problema na regulação com o meio”[7].
            No entanto, Foucault dá um passo próprio cheio de conseqüências. Ele cita Goldstein e sua tentativa de, através da reflexão do patológico como situação global do indivíduo, colocar-se para-além de toda distinção entre orgânico e psíquico (uma posição que vimos também com Canguilhem). Goldstein podia ainda afirmar: “Tomando o homem como ponto de partida, procuramos compreender a partir do seu comportamento o comportamento de outros seres vivos”[8]. Foucault quer criticar tal posição ao insistir na impossibilidade de ignorarmos a diferenciação radical entre o que é da ordem da causalidade orgânica e o que é da ordem da causalidade psíquica. Na verdade, posições desta natureza nos explicam uma das facetas da adesão de Foucault a perspectivas como o estruturalismo francês. Pois o filósofo já admite, desde seus primeiros escritos, uma distinção radical entre as ordens da natureza e da cultura, tal como é o caso em pensadores como Claude Lévi-Strauss. Tal distinção traz conseqüências profundas para a determinação do campo da psicologia e das doenças mentais.
            No primeiro capítulo de seu livro, Foucault, descreve três aspectos onde a distinção estrita entre natureza e cultura produz impossibilidade de estabelecer similitudes entre doença mental e doença orgânica.
            O primeiro destes aspectos diz respeito à abstração. Foucault insiste que as patologias orgânicas não excluem a possibilidade de abstração de elementos isolados a fim de reconstituir uma análise causal inteligível. “Ora”, dirá Foucault, “a psicologia nunca forneceu à psiquiatria o que a fisiologia deu à medicina: o instrumento de análise que, ao delimitar o problema, permitia identificar a relação funcional entre este e o conjunto da personalidade”[9]. Daí porque ele poderá afirmar que a abstração não pode ser feita da mesma maneira em psicologia e em fisiologia. Este é um ponto interessante porque Foucault age como quem acredita que a abstração quantitativa e individualizadora são adequadas aos fenômenos orgânicos, enquanto que não são adequadas aos fenômenos psicológicos. Como se o corpo fosse mais facilmente moldável à abstração instrumentalizadora do que o mental. No entanto, vimos como esta perspectiva não é sustentada por alguém como Georges Canguilhem. Ela será abandonada pelo próprio Foucault, principalmente após o impacto da escrita de O nascimento da clínica com sua descrição do modo com que o advento da fisiologia moderna implicou na transformação do corpo em um espaço submetido a procedimentos gerais de abstração.
Em um capítulo do Nascimento da Clínica, intitulado “Abram alguns cadáveres”, Michel Foucault reconstitui a trajetória que permitiu à fisiologia e à anatomia patológica aparecerem como fundamento da clínica. Tal posição da fisiologia só foi possível a partir do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo como um “espaço ao mesmo tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questão de ordem, de sucessão, de coincidência e de isomorfismo”[10]. Transformação do corpo em um espaço abstrato que era resultado da aplicação de um “princípio geral de decifração” do espaço corporal semelhante ao princípio geral de constituição do espaço homogêneo e geométrico da física moderna. Tal princípio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituição do espaço corporal, pela  redução do corpo a um campo de tecidos orgânicos: “A partir dos tecidos, a natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles são os elementos dos órgãos, mas o atravessam, os aproximam e, para além deles, constituem os vastos sistemas nos quais o corpo humano encontra a forma concreta de sua unidade. Haverá tantos sistemas quanto tecidos: neles, a individualidade complexa e inesgotável dos órgãos se dissolve e, de uma vez, se simplifica”[11]. Tal redução do volume orgânico a um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal aparece como condição para o aparecimento de uma fisiologia que pode se submeter a um padrão de objetividade fundado em dispositivos de mensuração, de redução quantitativa e de abstração a um padrão geral de cálculo.
            O segundo aspecto de distinção entre doença mental e doença orgânica é a partilha entre normal e patológico. Foucault afirma neste momento haver distinções claras entre normal e patológico no domínio dos fenômenos orgânicos. Seguindo Leriche, Foucault afirma existir algo como uma planificação coerente das possibilidades fisiológicas do organismo fundado na análise dos mecanismos em estado normal. Ou seja, Foucault  age como quem admite que a noção de norma e de normal na análise dos fenômenos físicos é relativamente não-problemática. Isto é feito para afirmar que: “em psiquiatria, ao contrário, a noção de personalidade torna particularmente difícil a distinção entre o normal e o patológico”[12]. Pois sintomas que podem identificar quadros patológicos podem também ser descrição de análises de caráter. Reich já havia percebido claramente como traços de caráter organizam-se de forma semelhante a sintomas. Foucault utiliza o exemplo de Bleuler que determinava as psicoses maniaco-depressivas por exageração de reações afetivas enquanto Kretschmer constituía um quadro caracterial  bipolar, comportando esquizotimia e ciclotimia. No entanto, podemos, como já vimos, não aceitar a tese de que fenômenos orgânicos fornecem determinações não-problemáticas de norma e de normal.
            Por fim, Foucault afirma que a relação entre o doente e seu meio é distinto nos casos de doença mental e nos casos de doença orgânica. Pois a noção de totalidade orgânica permitiria isolar a individualidade em sua originalidade mórbida (já que a cura seria realizada a partir de uma atuação particular) enquanto que a realidade da doença mental não permitiria tal abstração em relação ao meio (já que a cura seria realizada a partir do ponto de relação entre indivíduo e meio). Tais pontos são levantados por Foucault a fim de afastar o postulado de uma metapatologia. Como vemos, a distinção estrita entre natureza e cultura implica em uma distinção estrita entre doença mental e doença orgânica.
Com isto, fica a questão de saber qual a perspectiva adequada de análise das patologias mentais, assim como o quadro mais amplo dos fatos psicológicos em geral. Este é o sentido do primeiro capítulo do nosso livro. Trata-se de expor qual seria a perspectiva capaz de permitir a apreensão adequada do que se manifesta em uma patologia mental determinada. Neste sentido, a simples compreensão do encadeamento próprio aos títulos dos três capítulos que compõem a primeira parte já evidencia a estratégia foucauldiana. Ele começará discutindo a noção, então clássica, da doença como regressão (daí a discussão entre doença e evolução), isto a fim de introduzir, no quadro da compreensão da doença, a dimensão da história individual. Uma história individual que, por sua vez, deverá se submeter a uma análise existencial inspirada por suas leituras de Ludwig Binswanger e que procura apreender:  “liberdade fundamental de uma existência que escapa, de pleno direito, á causalidade psicológica”[13]. Ou seja, o pequeno livro de é uma maneira de articular uma abordagem epistemológica de um setor preciso das ciências humanas através da pressuposição de diferenças estritas entre aquilo que é da ordem da natureza e aquilo que é da ordem da história.
           

Evolução e história

Foucault parte da noção, hegemônica ainda no início do século XX, da doença mental como regressão a um estágio anterior de desenvolvimento. A doença seria, principalmente, dissolução de funções complexas de coordenação e substituição de tais funções por atividades simples e restritas. Tudo se passa como se aceitássemos que: “a doença suprime as funções complexas, instáveis e voluntárias, exaltando as funções simples, estáveis e automáticas”[14]. Isto permita Foucault afirmar que a doença aparece aqui não exatamente como uma essência anti-natural, mas como a própria natureza e um processo inverso de involução.
            Este esquema de compreensão da doença tornou-se hegemônico principalmente devido a defesa de paralelismo entre filogênese e ontogênese, entre a evolução do que é da ordem da espécie e a repetição de tal esquema evolutivo, de maneira mais rápida, no desenvolvimento do indivíduo. Tal noção de doença depende de uma certa teleologia evolutiva na qual etapas anteriores são superadas e integradas em etapas subseqüentes; noção esta cuja teleologia se organiza a partir da lógica do aperfeiçoamento progressivo. Ernst Haeckel, zoólogo alemão, divulgador do darwinismo insistia, por exemplo que: “O desenvolvimento filogenético, dos seres mais simples aos mais complexos, é repetida no desenvolvimento progressivo e aperfeiçoador do indivíduo: o adulto é mais perfeito que a criança porque o homem é mais perfeito que a monera”[15].  Neste sentido, a doença seria necessariamente um retorno e dissolução de funções complexas que teriam sidos sintetizadas em fases mais avançadas do desenvolvimento. Como vemos, aqui, o que é da ordem do comportamento humano sob pode ser inteligível ‘a condição de submetermos o humano à dimensão de uma história natural.
Foucault vê tal perspectiva naturalista atuando em autores como Freud e Pierre Janet. Foucault pensa principalmente em uma certa perspectiva freudiana que vê a neurose como uma regressão a estágios anteriores do desenvolvimento libidinal (não seria por outra razão, ao menos segundo o jovem Foucault, que Freud insiste em vários momentos nas similitudes possíveis entre o pensamento selvagem, o pensamento pré-lógico da criança e o pensamento neurótico). Foucault acredita que uma perspectiva como a freudiana é dependente de, ao menos, dois mitos: o mito de uma substância psicológica que progrediria no curso do desenvolvimento individual e social (substância que seria, no caso, a “libido” enquanto energia psíquica) e o mito da identidade entre o doente, o primitivo e a criança; um mito patrocinado pela crença em uma similitude estrita entre filogênese e ontogênese.
Contra tais perspectivas, Foucault insiste que a regressão é apenas um aspecto descritivo da doença. Até porque, por mais profunda que seja a dissolução de funções complexas, a personalidade nunca desaparece completamente, o próprio processo de dissolução com seus motivos e modos de desenvolvimento é sempre vinculado aos quadros de uma personalidade. Daí porque Foucault pode afirmar que: “o que a regressão da personalidade encontra não são elementos dispersos nem uma personalidade mais arcaica”[16]. Isto nos exige pois passarmos de uma compreensão evolutiva geral à especificidade da história pessoal do doente, isto se quisermos compreender o sentido da doença. Ou seja, passarmos de uma psicologia evolutiva a uma psicologia capaz de levar em conta a dimensão histórica da constituição da subjetividade. De qualquer forma, Foucault admite que: “a importância do evolucionismo na psicologia advém, sem dúvida, de que ele foi o primeiro a mostrar que o fato psicológico só tem sentido em relação a um futuro e a um passado, que seu conteúdo atual repousa sobre um fundo silencioso de estruturas anteriores que o preenchem com toda uma história, mas ele implica, ao mesmo tempo, um horizonte aberto para o eventual”[17].
 Foucault começa o capítulo III lembrando que evolução e história obedecem a dimensões temporais distintas. A história é doação de sentido ao passado através de exigências do presente. É o presente que organiza e determina o sentido do que é recuperado no passado. Já a evolução é marca do passado sobre a determinação do presente. Ela é o peso determinista de um processo de desenvolvimento já previamente definido. Ou seja, a articulação entre passado e presente obedecem, na história e na evolução, sentidos distintos. Daí porque Foucault afirmará: “A psicologia da evolução, que descreve os sintomas como condutas arcaicas, deve ser completada por uma psicologia da gênese que descreve, em uma história, o sentido atual de tais regressões”[18].
No interior da psicanálise, encontramos as duas tendências, a evolutiva e a histórica. Grosso modo, a dimensão evolutiva aparece na metapsicologia através da teoria das fases da libido, enquanto que a dimensão histórica aparece na clínica através da compreensão da regressão não como queda natural no passado, mas como fuga intencional para fora de um presente conflitual. Tanto que o passado ao qual se retorna é, fundamentalmente, o passado imaginário das substituições fantasmáticas: “a doença tem por conteúdo o conjunto das reações de fuga e de defesa através da qual o doente responde à situação na qual se encontra; é a partir deste presente, desta situação atual que se deve compreender e dar sentido às regressões evolutivas que aparecem nas condutas patológicas; a regressão não é apenas uma virtualidade da evolução, ela é uma conseqüência da história”[19]. Ou seja, a regressão é um processo vinculado a conflito que se desenrolam no campo de interações do sujeito com a configuração do meio no qual ele se insere e age. Esta idéia vem, mais uma vez de Politzer, pois é ele que lembrava que, para a psicanálise, interpretar não era aplicar esquemas prévios de simbologias, mas permitir uma reconstrução de contextos no interior da qual o sujeito aparecia em um papel ativo. Este é o sentido de uma afirmação central de Politzer: “a idéia [central para a psicanálise] segundo a qual poderia haver uma dialética puramente individual à qual os atos individuais forneceriam uma significação puramente individual é totalmente estranha à psicologia clássica”[20]. Por outro lado, esta insistência foucauldiana na história individual aparece em Politzer através da exigência de reconstrução daquilo que ele chama de “drama” como seqüência de atos na qual cada ato vai configurando o campo de significação dos atos posteriores.
Foucault chegará mesmo a utilizar o vocabulário do sentido a fim de insistir que a psicanálise teria trazido à psicologia o problema da produção do sentido ao deixar de lado hipóteses muito amplas e gerais através das quais explicamos o homem como um setor privilegiado do mundo natural, isto ao insistir no vínculo entre formação de sintomas e resultado de processos de socialização. Por outro lado, ele compreende a tendência, forte nos anos 30 e 40  graças principalmente a Anna Freud, de transformar a psicanálise em uma análise dos mecanismos de defesa através dos quais o Eu produz sintomas contra as exigências pulsionais do isso, em um movimento que indica a insistência no uso psicanalítico da história. Pois analisar os mecanismos de defesa significaria analisar o modo com que o sujeito reproduz e reconstitui sua história a partir de conflitos próprios à sua situação presente. Significa compreender como ele mobiliza a regressão, o isolamento, a introjeção, a projeção, a anulação retroativa, entre outros, isto a fim de dar conta de contradições nas quais ele se enredou no presente.
Mas Foucault não deixa de fazer uma pergunta fundamental: qual a natureza do conflito que produz esta fuga em direção ao passado? Conflito que não é apenas uma experiência da contradição e da ambigüidade, mas uma experiência contraditória e ambivalente [como, por exemplo, aquela responsável pela produção do sintoma fóbico no pequeno Hans]. Freud se servia basicamente da noção de dualidade pulsional a fim de expor uma gênese (a-histórica e praticamente naturalizada) do conflito. Este recurso a forças impessoais que agem na antecãmara da subjetividade não é a perspectiva de Foucault. Na verdade, ele prefere lembrar que a dimensão afetiva desta contradição interna que gera o conflito psíquico é a angústia. Trata-se então de compreender a quais objetos e situações a angústia está normalmente vinculada. Trata-se, por outro lado, de elevar a angústia a condição para a compreensão do sentido da história individual, já que a angústia marca a natureza do conflito psíquico responsável pela doença. Foucault chega mesmo a afirmar que a angústia é o coração da doença.
Lembremos que nem todas as experiências de contradição e conflito são necessariamente experiências nas quais a angústia aparece como dimensão afetiva fundamental. A pergunta fica sendo pois: o que faz com que certos conflitos sejam vivenciados de maneira angustiante e outros não por um sujeito;  o que faz com que alguns sujeitos vivam certos conflitos de maneira angustiante enquanto outros sujeitos não caem em tal situação. Ao colocar questões desta natureza, Foucault procura uma dimensão para além da análise da história individual, da antropologia do sujeito, já que se trata de determinar um elemento organizador da história, enquanto campo de conflito, para além da própria história: “para que uma contradição seja vivenciada sob o modo angustiante da ambivalência, para que, a respeito de um conflito, o sujeito se feche na circularidade dos mecanismos patológicos de defesa, foi necessário que a angústia já estivesse presente, que ela tenha transformado a ambiguidade de uma situação em ambivalência de reações”[21]. Daí a necessidade de passar a uma análise existencial da doença, ou seja, desta maneira com que, a partir da angústia, a doença se transforma em modo de estar no mundo, em “maneira com que a existência humana se oferece no mundo”[22], temporalizando-se, espacializando-se e projetando um mundo. Foucault chega a falar de um “estilo de angústia” cuja interpretação fornece a unidade significativa dos fenômenos de uma personalidade. Esta passagem à existência é pensada sob o patrocínio da experiência ontológica do Dasein. Daí porque ele afirmará: “Faz-se necessário reencontrar a dimensão vertical para apreender a existência se fazendo nesta forma de presença absolutamente originária na qual se define o Dasein. Através daí, abandona-se o nível antropológico da reflexão que analisa o homem enquanto homem, no interior de seu mundo humano, e acede-se a uma reflexão ontológica que concerne o modo de ser da existência enquanto presença ao mundo”[23].
De qualquer forma, ao operar a partir desta via, Foucault não inovava. Baseando-se fundamentalmente em Binswanger, mas sem deixar de sentir os ecos de alguns trabalhos de Jean-Paul Sartre (em especial O ser e o nada, de 1943), Foucault via, na gênese da angústia um problema que não podia ser resolvido por uma análise do tipo naturalista, nem por uma análise do tipo histórico. Ao contrário, a história e a natureza do homem só poderia ser compreendidas a partir da angústia, já que ela forneceria a unidade significativa da totalidade de um sujeito.
A este respeito, lembremos, por exemplo, de Sartre e sua compreensão de que a angústia é manifestação primeira da liberdade em sua distância em relação à norma. Quando me deparo com uma tal fragilização daquilo que causa meu ato que apreendo minha conduta como um possível que, por ser meu possível, não se impõe de maneira obrigatória, então a consciência da minha liberdade se manifesta como angústia. É neste sentido que devemos compreender a afirmação de Sartre: “A angústia como manifestação da liberdade diante de si significa que o homem está sempre separado de sua essência por um nada (...) Na angústia, a liberdade se angustia diante de si mesma enquanto ela nunca é solicitada ou entravada por nada”[24].  desta forma que Sartre absorve um tema clássico que vincula a angústia a uma certa: “negação dos apelos do mundo” e de “desengajamento no mundo em que estava engajado”[25]. Angústia como momento de confrontação com aquilo que não se articula a partir de princípios de ligação derivados do Eu como unidade sintética.  Poderíamos seguir esta perspectiva e afirmar que, para o jovem Foucault, através da angústia a doença expõe uma certa experiência trágica constitutiva da liberdade humana. Mas quando a angústia advém objeto de uma psicologia, ela se esvazia enquanto manifestação da existência em seu sentido mais amplo.
            Dito isto, a reconstituição da história individual deve se submeter a uma análise da existência, a uma reconstituição do universo patológico da consciência doente cujos lineamentos Foucault procura definir no capítulo IV, intitulado “Doença e existência”  Neste sentido, Foucault se apóia em Minkowski e em Binswanger a fim de insistir na maneira com que a doença mental, em especial em casos de psicose, é solidária de modificações profundas naquilo que determina a configuração da posição existencial dos sujeitos, ou seja, as noções de tempo e de espaço. Por exemplo, a lineraridade do tempo é suspensa em delírios psicóticos nos quais eventos anteriores repetem-se de maneira insistente ou se acoplam, de maneira simultânea, com outros eventos ocorridos em momentos distintos. Todos conhecemos a  modificações na noção de espaço (onde dicotomias como interno e externo, dentro e fora, longe e perto não conseguem mais organizar a vivência) assim como na estrutura de relações intersubjetivas resultantes da doença. Tais modificações permitem a Foucault falar de uma espécie de “mundo privado” resultante da entificação da doença. Uma proposição que nós já vimos ao estudarmos Canguilhem com sua noção de que a doença é um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo encarado na sua totalidade Pois: “não há um único fenômeno que se realize no organismo doente da mesma forma como no organismo são”[26]. Isto a ponto dele afirmar que, para um organismo, estar doente é habitar outro mundo.
            No entanto, Foucault lembra que, qualquer que seja o grau da doença, o doente reconhece sua anomalia e dá a ela o sentido de uma diferença irredutível que o separa da consciência dos outros. A doença mental sempre implica uma consciência da doença, até porque, o universo mórbido nunca é um absoluto no qual se aboliria toda referência ao normal. Há sempre a referência a uma norma partilhada. No entanto, esta referência é feita no interior da própria doença e a partir de seus móbiles. Foucault fala, nestes casos, de um “reconhecimento alusivo”, de uma “consciência ambígua” na qual o normal é reconhecido mas seu valor é suspenso. De qualquer forma, tal reconhecimento é fundamental por mostrar como a doença mental é posição existencial organizada a partir de uma referência de normatividade fornecida pelo meio social. Ou seja, a doença ainda é um modo de participação social.
Vemos, como isto, que, na aurora da experiência intelectual foucauldiana, já há um movimento maior de tentativa de ultrapassagem da categoria de sujeito através de uma reflexão sobre as condições de possibilidade do fato histórico. O que se insinua primeiramente como uma analítica do Dasein dará lugar a uma arqueologia das ciências que visa explicar como uma figura como o sujeito foi possível. Mas, para entender este ponto, deveremos passar a História da loucura.



[1] FOUCAULT, Maladie mentale et psychologie, p. 88
[2] FOUCAULT, Maladie mentale ... p. 2
[3] idem, La psychologie de 1850 à 1950, Dits et écrits, p. 148
[4] “The way in which psychology or psychiatry remember their histories is based, in Foucault´s view, on the inversion of the ends which one intuitively associates with historiography. Psychology/Pschiatry writes the history of the condition of its emergence not with the intetion of remembering its origin but in order to forgot the shame of the origin” (VISKER, Michel Foucault: genealogy as critique, p. 18)
[5] FOUCAULT, Maladie mentale..., p. 9
[6] CANGUILHEM, idem, p. 20
[7] FOUCAULT, La psychologie ... p. 154
[8] GOLDSTEIN, La structure de l´organisme, p.7
[9] FOUCAULT, idem, p. 13
[10] FOUCAULT, La naissance de la clínique, p. 128
[11] idem, p. 129
[12] FOUCAULT, Maladie mentale, p. 14
[13] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 164
[14] FOUCAULT, Maladie mentale, p. 21
[15] CANGUILHEM, Du développement à l´évolution au XIX siècle, p. 84
[16] FOUCAULT, idem, p. 31
[17] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 153
[18] FOUCAULT, Maladie mentale ..., p. 51
[19] idem, p. 43
[20] idem, p. 102
[21] FOUCAULT, Maladie mentale..., p. 51-52
[22] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 164
[23] FOUCAULT, idem, p. 137
[24] SARTRE, L´être et le néant, p. 70
[25] idem, p. 74
[26] CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
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