(Esta é a segunda aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).
Aula 2
Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault
Na aula de hoje, iniciaremos
nosso primeiro módulo sobre a formação da experiência intelectual de Michel
Foucault. Trata-se aqui de analisar este período que vai da formação
intelectual de Foucault até a redação de História
da Loucura, em 1961.
Talvez a
melhor de analisarmos tal período seja levando em conta a maneira com que o
próprio Foucault compreende o ambiente intelectual no interior do qual ele
aparecerá. Ou seja, trata-se de levar a sério esta operação de interpretação
das linhas de força que geraram um programa filosófico determinado. Operação
que exige uma certa reconfiguração a
posteriori da história da filosofia, uma certa filtragem constituída para
legitimar escolhas e estratégias intelectual. Sendo assim, devemos nos
perguntar como Foucault organiza e compreende as linhas de força que atuaram na configuração de seu programa
filosófica.
A resposta a esta pergunta nos é fornecida pelo próprio Foucault:
Sem
desconhecer as clivagens que puderam, durante estes últimos anos e desde o
final da guerra, opor marxistas e não-marxistas, freudianos e não-freudianos,
especialistas de uma disciplina e filósofos, universitários e
não-universitários, teóricos e políticos, parece-me que poderíamos encontrar
uma outra linha de partilha que atravessa todas estas oposições. Tal linha é
aquela que separa uma filosofia da experiência, do sentido, do sujeito e uma
filosofia do saber, da racionalidade e do conceito. De um lado, uma filiação
que é esta de Merleau-Ponty e Sartre; de outro, esta de Cavaillès, Bachelard,
Koyré e Canguilhem. Sem dúvida, esta clivagem vem de longe e poderíamos seguir
seus traços através do século XIX: Bergson e Poincaré, Lachelier e Couturat,
Maine de Biran e Comte[1].
Esta
afirmação é extremamente importante devido a sua clareza. Foucault compreende
as linhas principais de força do pensamento francês desde o iluminismo como o
desdobramento de uma clivagem entre “filosofias do sujeito” e “filosofias do
conceito”. Clivagem esta que teria alcançado o século XX através da
confrontação entre fenomenologia e epistemologia.
Notemos
inicialmente quão contra-intuitiva é esta maneira de pensar, a começar pelo
fato da fenomenologia e da epistemologia francesa nunca terem se
auto-compreendidos como opostos fundamentais. Apenas para ficar em um caso,
basta lembrar aqui das proximidades evidentes entre as perspectivas holísticas
de O normal e o patológico, de
Canguilhem, e de A estrutura do comportamento, de Merleau-Ponty. O que não poderia ser diferente já que os dois são leitores
atentos e influenciados por Kurt Goldstein. Isto sem falar no fato do jovem
Foucault de Doença mental e psicologia ter
sido influenciado, de maneira decisiva, por um autor que certamente ficaria do
lado da filosofia do sujeito: Georges Politzer de Crítica dos fundamentos da psicologia.
Mas não
contente com o fato, Foucault insere a fenomenologia em uma linha inusitada
composta por Bergson, Lachelier e Maine de Biran, isto enquanto a epistemologia
encontra suas raízes no positivismo de Augusto Comte. Feita esta partilha,
Foucault poderá afirmar que seu programa filosófico, programa este que vai
configurar-se claramente pela primeira vez através da constituição do campo de
uma arqueologia do saber, insere-se claramente na segunda linhagem, o que o
coloca em frontal oposição com a fenomenologia francesa e suas temáticas. Uma
oposição que nos explica, entre outras coisas, a aliança que Foucault fará, nos
anos 60, com uma outra corrente que, esta sim, afirmava suas diferenças
fundamentais com Sartre e Merleau-Ponty: o estruturalismo.
No
entanto, fica aqui a questão central: como Foucault pretende justificar a
centralidade desta clivagem, o que ela pode nos dizer a respeito da maneira com
que Foucault procura legitimar suas escolhas? Um texto pode nos guiar nesta
discussão: La vie: l´expérience et la
science, escrito em 1984 e dedicado à análise da obra de seu antigo
orientador Georges Canguilhem. Ficará ainda uma questão a ser abordada, a
saber, como esta filiação À tradição epistemológica francesa, irá se articular
com uma outra filiação assumida por Foucault, esta que o vincula às
expectativas disruptivas da literatura francesa de vanguarda através de nomes
como: Georges Bataille, Maurice Blanchot e Raymond Roussel.
Epistemologia histórica e história da razão
Poderíamos começar
aqui lembrando da peculiaridade maior da tradição epistemológica francesa a
qual Foucault se vincula. Uma tradição que não compreende a tarefa da
epistemologia como fundação de uma teoria do conhecimento baseada na análise
das faculdades cognitivas e da estrutura possível da experiência. Antes, nomes
como Canguilhem, Bachelard, Cavaillès e Koyré são lembrados por vincularem
radicalmente reflexão epistemológica e reconstrução de uma história das ciências.
No entanto, esta verdadeira “epistemologia histórica” não era resultante apenas
da submissão da epistemologia à história
das ciências. Havia ainda uma clara articulação que visava inserir tais
reflexões sobre a história das ciências
em um quadro mais amplo de história das idéias, dos sistemas filosóficos,
religiosos, em suma, de uma história geral das sociedades. Koyré, por exemplo,
afirmará que: “A evolução do pensamento científico, ao menos durante o período
por mim estudado, não formava uma série independente, mas estava , ao
contrário, fundamentalmente ligado à evolução de idéias transcientíficas, filosóficas, metafísicas, religiosas”. Isto a fim
de fornecer, como exemplo, o fato de que: “o pensamento científico e a visão de
mundo que ele determina não está apenas presente nos sistemas – tais como os de
Descartes e Leibniz – que se apóiam abertamente na ciência, mas também em
doutrinas – tais como as doutrinas místicas – aparentemente estranhas a toda
preocupação desta natureza. O pensamento, quando ele se formula em sistema,
implica uma imagem, ou melhor, uma concepção de mundo e se situa em relação a
ela: a mística de Boehme é rigorosamente incompreensível sem referência à nova
cosmologia criada por Copérnico”[2].
Se o
pensamento científico não forma uma série independente, mas está ligado a um
quadro mais amplo de idéias historicamente determinadas é porque, dirá mais
tarde Foucault, a reflexão epistemológica não deve se perguntar apenas sobre os
poderes e direitos de técnicas e proposições científicas que aspiram validade,
mas deve esclarecer a gênese dos padrões de racionalidade e as condições de
exercício que se encarnam em técnicas e proposições, assim como se encarnam nas
outras formações discursivas que compõem o tecido social. Tal certeza fornece o
sentido de uma afirmação metodológica central de Canguilhem como: “A história
das idéias não pode ser necessariamente superposta à história das ciências.
Porém, já que os cientistas, como homens, vivem sua vida num ambiente e num
meio que não são exclusivamente científicos, a história das ciências não pode
negligenciar a história das idéias”[3].
Podemos mesmo dizer que a história das ciências não pode negligenciar a
história das idéias porque a história das
ciências não seria outra coisa que um setor privilegiado da história dos
processos de racionalização de visões partilhadas de mundo.
Foucault
procura defender tal perspectiva lembrando que a gênese desta epistemologia
histórica na França deveria ser procurada no positivismo de Augusto Comte.
Colocar Comte na origem não era uma decisão gratuita. Na França, foi sobretudo
o positivismo de Comte que apareceu como maneira de retomar a indagação sobre a
natureza dos processos de racionalização próprios a modernidade. Indagação que
não deixava de articular, no seu interior, uma história geral das sociedades e
uma discussão a respeito da positividade das ciências. Daí porque Foucault pode
dizer que:
Na França, foi
sobretudo a história das ciências que serviu de suporte à questão filosófica
sobre o que é a Aufklãrung; de uma
certa forma, as críticas de Saint-Simon, o positivismo de Comte e de seus
sucessores foi uma maneira de colocar a indagação de Mendelssohn e de Kant
[sobre O que é o esclarecimento?] na
escala de uma história geral das sociedades[4].
No
caso de Comte, o problema sobre o que é o esclarecimento é conjugado no
interior de uma reflexão sobre processos de evolução e desenvolvimento que
visam fundamentar uma teoria do progresso social. Uma teoria feita de “cortes
epistemológicos” e de inserção do desenvolvimento da positividade das ciências
no interior do projeto ocidental de desenvolvimento universal da razão.
Esta
articulação entre epistemologia e reflexão sobre a estrutura dos padrões de
racionalização permitirá a Foucault afirmar que o terreno estava aberto para a
transformação da epistemologia em linha de frente da crítica da razão. Bastava
um movimento localizado, porém prenhe de conseqüências. Um movimento que
consistia em retirar o solo realista sobre o qual a epistemologia se movia (e
que assegurava ainda uma direção cumulativa do progresso científico), isto em
prol da compreensão do progresso científico como uma sucessão descontínua de
discursos, historicamente limitados, sobre o mundo. Se para o positivismo, a
história não era mais do que uma “injeção de duração na exposição dos
resultados científicos”[5],
já que os critérios de validação de tais resultados estão para além da
história, para Foucault, ela era a chave para compreender a constituição mesma
dos critérios de validade de enunciados científicos.
De fato,
Bachelard com sua noção central de corte epistemológico, assim como Koyré e
Canguilhem insistiram no caráter descontínuo da história das ciências. Canguilhem
lembra, por exemplo, que Lavoisier assumira a responsabilidade de duas decisões
maiores: ter mudado a língua que nossos mestres falavam e não ter dado
histórico algum da opinião dos que lhe precederam. Ou seja, trata-se da
fundação de um saber que opera na descontinuidade de um acontecimento que exige
a reconfiguração da linguagem e a
suspensão do passado. Descontinuidades desta natureza permitem a Foucault
afirmar que:
A história das
ciências não é a história do verdadeiro, da sua lenta epifania, ela não saberia
pretender contar a descoberta progressiva de uma verdade sempre inscrita nas
coisas ou no intelecto, salvo a imaginar que o saber atual possui enfim tal
verdade de maneira tão completa e definitiva que ele pode medir o passado a
partir dela[6].
No entanto, uma colocação desta
natureza deixa em aberto uma questão maior: pois a história das ciências não pode negligenciar o problema da relação
às expectativas de descrições verdadeiras de estados de coisa. Foucault sabe
disto, ele sabe que a referência ao verdadeiro e ao falso é peça fundamental da
especificidade do discurso científico. Mas ele insistirá se trata,
fundamentalmente de compreender a história das ciências como:
a história dos
´discursos verídicos´, ou seja, dos discursos que se retificam, se corrigem e
que operam sobre eles mesmos todo um trabalho de elaboração finalizada pela
tarefa do “dizer verdadeiro”[7].
Este
deslizamento, da confrontação com um estado de coisas dotado, ao mesmo tempo,
de acessibilidade epistêmica e autonomia metafísica, a uma análise dos
discursos que aspiram validade, análise dos modos de um dizer que se põe como
dizer da verdade faz toda a diferença e é especificamente foucauldiana. Nem
Bachelard, nem Koyré, nem Canguilhem foram tão longe. Canguilhem, por exemplo,
também aceitava que o objeto da história das ciências era a “historicidade do
discurso científico enquanto que tal historicidade representa a efetivação de
um projeto interiormente submetido a normas”[8],
ou seja, a história das ciências fala do discurso científico e suas aspirações
normativas internas. No entanto, ele não deixava de insistir na distinção entre
objeto da história das ciências e objetos da ciência, mesmo que não se trate de
um objeto naturalizado. Isto significa que, em certas situações, Canguilhem
poderá comparar o objeto da ciência com o objeto da história da ciência.,
encontrado uma norma que determina a história, ao invés de ser simplesmente
determinada por ela.
É tal
deslizamento que permite comentadores como Peter Dews afirmar: “na obra de
Foucault, a relação entre teoria e experiência é apresentada como uma relação
determinada de maneira unidirecional. Foucault, ao menos o Foucault dos anos
60, adota o primado do discursivo sobre o “vivido” que é claramente
influenciado de mais pesada pelo estruturalismo”[9].
Como veremos em outras aulas, tal
primado é fundamental para que a transformação foucauldiana da epistemologia em
um setor privilegiado da auto-crítica da razão ou (para usar um vocabulário
frankfurtiano a respeito do qual o próprio Foucault se sente próximo) em um
setor de crítica da racionalidade instrumental possa ser efetivado.
De
qualquer forma, fica claro aqui uma das razões pelas quais Foucault precisa
operar uma clivagem na filosofia francesa entre a vertente epistemológica da
“filosofia do conceito” e a vertente fenomenológica da “filosofia do sujeito”.
A dita filosofia do conceito, com sua noção histórica e alargada de história
das ciências, permite a tematização do processo de constituição de estruturas
discursivas que determinam a configuração da positividade das ciências e de
expectativas gerais de racionalidade. Com isto, ela nos liberaria da ilusão do
sujeito como pólo produtor de sentido da experiência.
Mas
antes de discutirmos a pertinência desta estratégia (até porque tal discussão
exigiria uma compreensão mais clara sobre o que Foucault compreende sob a
categoria de sujeito e subjetividade), vale a pena analisarmos mais
demoradamente o movimento que permitiu ao filósofo francês constituir sua noção
de epistemologia como análise de estruturas discursivas. Dentre as várias
perspectivas possíveis de análise, talvez a melhor seja medirmos a distância
que sempre separou Foucault daquele que
é seu interlocutor mais próximo da tradição da epistemologia histórica
francesa: Georges Canguilhem. Comparemos então algumas proposições centrais de
dois livros: O normal e o patológico, escrito
por Canguilhem em 1943, e Doença mental e
psicologia, escrito por Foucault em 1954 e re-editado em 1962. Na aula de
hoje, gostaria de tecer algumas considerações gerais sobre O normal e o patológico. A aula que vem será dedicada ao comentário
da primeira parte de Doença mental e
psicologia.
Georges Canguilhem : O normal e o
patológico
Canguilhem é, sem dúvida, o nome
mais eminente da epistemologia das ciências médicas e biológicas do século XX e
figura fundamental no desenvolvimento da epistemologia das ciências humanas.
Sua experiência intelectual é peculiar e resultante de sua dupla formação:
médico e pesquisador em filosofia. Isto o permitiu construir de todas as peças
um campo novo de reflexão epistemológica, a saber, a reflexão filosófica sobre
a medicina e sobre aquilo que se chama, na França, de “ciências da vida”. A
constituição de tal campo de pesquisas foi desdobrada e continuada
principalmente pelo mais conhecido de seus alunos, Michel Foucault. Dificilmente
poderíamos pensar em livros como O nascimento da clínica sem o impacto
gerado por trabalhos como O normal e o patológico. Há uma linha reta que vai das reflexões de
Canguilhem sobre as práticas médicas e as reflexões de Foucault a respeito do
advento da psiquiatria e da psicologia.
No entanto, a
obra de Canguilhem dialoga, devido a partilha de temáticas, com esta outra
tradição de reflexão filosófica, de Merleau-Ponty e Politzer, marcada sobretudo
pela fenomenologia e pela perspectiva da relação entre sujeito e sentido, do
sujeito como pólo de produção de sentido dos fatos próprios a clínica. Basta
lembrar como o programa politzeriano de uma psicologia concreta ainda ressoa,
de uma certa forma, nesta afirmação de Canguilhem: “Esperávamos da medicina justamente
uma introdução a problemas humanos concretos [ou seja, a problemas cujo
sentido exige a atualização de uma perspectiva que leve em conta os modos de
interação entre o homem e seu meio, assim como suas disposições teleológicas]”[10].
Neste sentido,
a experiência intelectual de Canguilhem se coloca em um ponto privilegiado no
interior do qual duas grandes tradições do pensamento francês se encontram.
Isto talvez explique a extensão de uma influência bem traçada por Foucault ao
afirmar:
Retirem Canguilhem
e vocês não compreenderão grande coisa sobre uma série de discussões que
ocorreram no marxismo francês, vocês não apreenderão o que há de específico em
sociólogos como Bourdieu, Castel, Passeron e que os marca de maneira tão forte
no campo da sociologia, você perderão todo um aspecto do trabalho teórico feito
pelos psicanalistas e , em especial, pelos lacanianos. Mais: em todo o debate
de idéias que precedeu ou seguiu o movimento de 1968, é fácil encontrar o lugar
destes que, de perto ou de longe, foram formados por Canguilhem[11].
Dentre suas
obras, O normal e o patológico é sem dúvida a mais ambiciosa e
sistemática. Resultado de uma tese defendida em 1943 intitulada Ensaio sobre
a alguns problemas relativos ao normal e ao patológico, o livro, em sua versão
final, foi acrescido de três artigos escritos vinte anos depois e
agrupados sob o título de Novas reflexões referentes ao normal e ao
patológico.
Mas do que
fala exatamente este livro? Seu título já indica claramente a configuração do
objeto de estudos: trata-se de discutir o estatuto das estruturas de definição
e de partilha entre fenômenos normais e fenômenos patológicos. Questão central
não apenas para a biologia e para a clínica (seja ela médica ou psicológica)
mas, fundamentalmente, uma questão central para a filosofia. Pois, por trás das
mudanças e redefinições do que está em jogo na partilha entre normal e
patológico encontramos um problema vinculado à maneira com que a razão moderna
determina a articulação entre vida e conceito, entre ordem e desordem, entre
norma e erro. Uma grande parte do trabalho canguilhemeano de historiador das
ciências está ligada a tentativa de demonstrar como as decisões clínicas a
respeito da distinção entre normal e patológico são, na verdade, um setor de
decisões mais fundamentais da razão a respeito do modo de definição daquilo que
aparece como seu Outro (a patologia, a loucura etc.). Lição que será
apreendida por Foucault à redação de seu História
da Loucura.
Neste sentido,
decisões clínicas, segundo Canguilhem, se inserem em configurações mais amplas
de racionalização que ultrapassam o domínio restrito da clínica. Daí porque ele
pode afirmar: “a filosofia é uma reflexão para a qual qualquer matéria estranha
serve, ou diríamos mesmo para qual só serve a matéria que lhe for estranha”[12].
Pois problemas que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas pelo
estado da técnica ou pela configuração natural do dado são, ao contrário,
espaços privilegiados nos quais a razão configura, silenciosamente, os campos
da experiência possível.
Por outro
lado, isto significa que um problema clínico nunca é apenas um problema
clínico, até porque, ele só e determinado enquanto problema por partilhar um
padrão de racionalidade, historicamente situado, cujas raízes não se esgotam
apenas no campo da clínica. Esta e uma das razões que leva Canguilhem a afirmar
ser: “um grave problema, ao mesmo tempo biológico e filosófico, saber se é ou
não legítimo introduzir a História na Vida”[13].
Esta é a razão também que permite a Canguilhem operar com uma noção ampla de
clínica que, embora privilegiando a nosografia somática e a fisiopatologia, não
deixa de abrir questões e permitir extensões em direção à nosografia psíquica e
á psicopatologia. Esta indistinção de
Canguilhem entre somático e psíquico é fundamental e marca, como veremos
claramente na aula que vem, um ponto de distinção entre ele e Foucault. Ponto
não negligenciável, já que o que está em jogo é, na verdade, aceitar ou não uma separação estrita entre
os domínios da natureza e da cultura, separação entre o que é da ordem da
circulação social do discurso e o que não é totalmente redutível a tal
circulação. Como vocês podem imaginar, Foucault irá, desde o início,
assumir uma separação estrita entre natureza e cultura prenhe de conseqüências.
Voltando a
Canguilhem, podemos dizer que sua posição a respeito do problema próprio à
distinção entre normal e patológico nos permite lançar luz sobre a estrutura
peculiar de seu livro. Dividido em duas grandes partes, o livro inicia passando
em revista diferentes versões de uma mesma tese então hegemônica no século XIX,
“uma espécie de dogma cientificamente garantido”, dirá Canguilhem, a respeito
da distinção entre normal e patológico. Augusto Comte, Claude Bernard e René
Leriche teriam em comum uma maneira de compreender a diferença entre normal e
patológico como uma diferença quantitativa que diria respeito a funções e
órgãos isolados, como se os fenômenos patológicos fossem, no organismo vivo,
apenas variações quantitativas, déficits ou excessos. Como lembra Canguilhem,
semanticamente, o patológico é designado a partir do normal, daí porque ela será descrita como distúrbio,
transtorno, déficit ou excesso que acontece no nível de funções e órgãos. Assim:
“a doença não é pensada como uma experiência vivida, engendrando transtornos e
desordens, mas como uma experimentação
aumentando as leis do normal”[14].
Quer dizer, a doença nada mais é do que um sub-valor derivado do normal. É a
definição do normal como estrutura valorativa positiva que define o campo da
clínica. Esta experiência clínica exige
que o normal esteja assentado em um campo mensurável acessível à observação.
Tal campo privilegiado é,a partir de Claude Bernard, a fisiologia que aparece
assim como fundamento para uma clínica que irá se orientar a partir dos
postulados de uma anatomia patológica: “As técnicas de intervenção terapêutica
só podem ser secundárias em relação à ciência fisiológica, isto na medida em
que o patológico só tem realidade provisória por declinação do normal”[15].
O que nos deixa como uma questão maior: o que deve acontecer ao corpo para que
a fisiologia possa aparecer como campo de determinação da normatividade da
vida, campo de identificação daquilo que deve valer para a clínica como norma?
Questão que será retomada por Foucault, em O nascimento da clínica, ao lembrar que:
o que é modificado com o advento da medicina
anatomo-clínica não é a simples superfície de contato entre o sujeito
cognoscente e o objeto conhecido; é a disposição mais geral do saber que
determina as posições recíprocas e o jogo mútuo deste que deve conhecer e o que
há a conhecer[16].
Em um capítulo
do Nascimento da Clínica, intitulado “Abram alguns cadáveres”, Michel
Foucault reconstitui a trajetória que permitiu à fisiologia e à anatomia
patológica aparecerem como fundamento da clínica. Tal posição da fisiologia só
foi possível a partir do momento em que o corpo foi reconfigurado, aparecendo
como um “espaço ao mesmo tempo mais complexo e mais abstrato, onde era questão
de ordem, de sucessão, de coincidência e de isomorfismo”[17].
Transformação do corpo em um espaço abstrato que era resultado da aplicação de
um “princípio geral de decifração” do espaço corporal semelhante ao princípio
geral de constituição do espaço homogêneo e geométrico da física moderna. Tal
princípio geral de inteligibilidade era fornecido, no caso da constituição do
espaço corporal, pela redução do corpo a
um campo de tecidos orgânicos:
A partir dos
tecidos, a natureza trabalha com uma extrema simplicidade de materiais. Eles
são os elementos dos órgãos, mas o atravessam, os aproximam e, para além deles,
constituem os vastos sistemas nos quais o corpo humano encontra a forma
concreta de sua unidade. Haverá tantos sistemas quanto tecidos: neles, a
individualidade complexa e inesgotável dos órgãos se dissolve e, de uma vez, se
simplifica[18].
Tal redução do
volume orgânico a um elementar que é, ao mesmo tempo, um universal aparece como
condição para o aparecimento de uma fisiologia que pode se submeter a um padrão
de objetividade fundado em dispositivos de mensuração, de redução quantitativa
e de abstração a um padrão geral de cálculo. Mais importante, ele demonstra
como uma certa forma de conceber a distinção entre normal e patológico está
claramente ancorada na reconstrução da experiência do corpo, constituição de
uma tecnologia de normatização do corpo a partir de uma estrutura valorativa
que guia a racionalidade clínica. Toda uma clínica poderá se orientar a partir
daí baseando-se nos postulados de uma anatomia patológica, ou seja, uma
anatomia fascinada pela procura da lesão de órgãos e tecidos como causa
explicativa para o desvio da conduta.
Isto nos deixa
com um problema maior: se a noção clássica de partilha entre normal e
patológico é resultado de uma norma que tem a função de valor, então é possível
pensar um outro modo de partilha entre normal e patológico?
De fato, já no
primeiro capítulo, intitulado “Introdução ao problema”, Canguilhem lembra que
há uma outra perspectiva de análise das distinções entre normal e patológico
que insiste na distinção qualitativa, e não meramente quantitativa, entre os
dois. Tal perspectiva teria, ao menos, duas versões. Uma deveria ser chamada de
teoria ontológica devido ao fato de encarar a doença como o resultado da
presença do que tem realidade ontológica distinta do corpo são. A teoria
microbiana das doenças contagiosas (Pasteur) seria um caso paradigmático aqui
por fornecer, através do micróbio, uma “representação ontológica do mal”
positivamente localizada, segundo Canguilhem. Já a outra deveria ser chamada de
teoria dinamista ou funcional e encontra na medicina grega seu exemplo
fundador. Contrariamente a uma noção de doença determinada a partir da
possibilidade de localização, a medicina grega estaria marcada por um certo
dinamismo relacional: “A natureza (physis) tanto no homem como fora dele, é
harmonia e equilíbrio. A perturbação desse equilíbrio, dessa harmonia, é a
doença. Nesse caso, a doença não está em alguma parte no homem. Está em todo o
homem e é toda dele”[19].
A doença aparece assim como um acontecimento que diz respeito ao organismo vivo
encarado na sua totalidade Pois: “não há um único fenômeno que se realize no
organismo doente da mesma forma como no organismo são”[20].
Quando classificamos como patológico um sistema ou um mecanismo funcional isolado,
esquecemos que aquilo que os tornam patológicos é a relação de inserção na
totalidade indivisível de um comportamento individual. Canguilhem chega mesmo a
afirmar que ser doente é, para o homem, viver uma vida diferente. Notemos ainda
que tal estratégia de vincular o normal a partir de uma relação normativa de
ajustamento ao meio implica em afirmar que não há fato algum que seja normal ou
patológico em si. Eles são normal
e patológico no interior de uma relação entre organismo e meio ambiente. De
fato, a clínica procura, através de noções anatômicas, fisiológicas ou
neuronais, determinar a realidade da doença, mas esta realidade, a clínica só a
percebe através da consciência de decréscimo da potência e das possibilidades
de relação com o meio, consciência esta veiculada primeiramente pelo sujeito
que sofre. Tais colocações serão fundamentais para Foucault poder pensar, em História da loucura, a própria noção de doença
mental como figura dependente de um certo modo de ordenamento do meio ambiente
social.
No entanto, no
caso de Canguilhem, afirmar que normal e patológico são categorias pensáveis
apenas no interior da relação entre organismo e meio ambiente implica, entre
outras coisa, em assumir que a doença é a produção de novas normas de
ajustamento entre o organismo e o meio ambiente; normas estas que, embora sejam
vivenciadas como restrição do mundo e da capacidade de atuação do indivíduo
biológico, podem, muitas vezes, ser o embrião do desenvolvimento de novos
comportamentos. O que aparece como anormal é, em vários casos, o prenúncio de
uma nova potência de normatividade em relação à vida. Canguilhem se serve
constantemente de exemplos de anomalias a fim de defender tal hipótese. seres
vivos que se afastam do tipo específico são, muitas vezes, inventores a caminho
de novas formas. A vida, mesmo no animal, não é mera capacidade de evitar
dissabores e se conservar. Ela é tentativa, atividade baseada na capacidade de
afrontar riscos e triunfar[21],
daí porque ela tolera monstruosidades. É isto que levará Canguilhem a afirmar:
“Não existe fato que seja normal ou patológico em si. A anomalia e a mutação
não são, em si mesmas, patológicos. Elas exprimem outras normas de vida
possíveis. Se essas normas forem inferiores às normas anteriores, serão
chamadas patológicas. Se, eventualmente, se revelarem equivalentes – no mesmo
meio – ou superiores – em outro meio – serão chamadas normais. Sua normalidade
advirá de sua normatividade”[22].
Não é difícil encontrar nestas reflexões de Canguilhem uma certa posição
nietzscheana que procura erigir a criação de valores em vontade de afirmação da
vida. Daí esta definição surpreendente de Canguilhem: a saúde não é o
ajustamento completo entre organismo e meio ambiente; ela é a conservação de
uma margem de transcendência e de infidelidade do organismo em relação ao meio.
Margem que permite ao organismo não sucumbir à primeira modificação do meio. Um
organismo completamente adaptado e fixo é doente por não ter uma margem que lhe
permita suportar as mudanças e infidelidades do meio. A doença aparece assim
como fidelidade a uma norma única. Daí esta definição: “uma vida sã, uma vida
confiante na sua existência, nos seus valores, é uma vida em flexão, uma vida
flexível (...) Viver é organizar o meio a partir de um centro de referência que
não pode, ele mesmo, ser referido sem com isto perder sua significação
original”[23].
Não se trata,
com isto, de continuar o velho debate entre causalidade somática e causalidade
psíquica, entre organogênese e psicogênese. A posição de Canguilhem é mais
radical pois assentada na pergunta: compreendemos bem um organismo biológico
quando vemos nele apenas um feixe de funções e órgãos que se submetem a padrões
gerais de mensuração e quantificação? Esta vida não seria apenas o exemplo de
uma razão que se transformou em princípio de dominação e controle da vida? Por
outro lado, e este é um ponto absolutamente importante, Canguilhem assenta sua
concepção de saúde em uma “filosofia da natureza”, em um vitalismo que será
absolutamente estranho a Foucault. No entanto, tal vitalismo lhe fornece o
critério e o fundamento de uma crítica da razão médica. Foucault, por sua vez,
será obrigado a encontrar um critério para além de todo fundamento. O que não
será tarefa fácil.
[1] FOUCAULT, La vie: l´expérience et la science in Dits et écrits II, p. 1583
[2] KOYRÉ, Etudes d´histoire de la pensée scientifique,
pp 12-13
[3]
CANGUILHEM, O normal e o patológico,,
p. 25
[4] FOUCAULT, La vie; L´expérience et la science, p., 1585
[5]
CANGUILHEM, Etudes d´histoire de la
pensée scientifique, p. 12
[6]
FOUCAULT, idem, p. 1588
[7] idem, p.
1588
[8] CANGUILHEM, Etudes de histoires et de philosophie des
sciences, p. 17
[9] DEWS, Foucault and the french tradition of historical epistemology, p. 42
[10]
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 16
[11] FOUCAULT, La vie: l´expérience
et la science in Dits et écrits II, p. 1983
[12]
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 15
[13] idem,
p. 13
[14] LE BLANC, Conguilhem et les
normes, p. 34
[15] idem, p. 42
[16] FOUCAULT, La naissance de la
clinique, p. 139
[17] FOUCAULT, La naissance de la
clínique, p. 128
[18] idem,
p. 129
[19]
CANGUILHEM, idem, p. 20
[20]
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 52
[21] CANGUILHEM, La connaissance
de la vie, p. 215
[22]
CANGUILHEM, O normal e o patológico, p. 113
[23] CANGUILHEM, La connaissance
de la vie, p. 188
buscado em: cooperação.sem.mando
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