(Esta é a primeira aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).
Introdução
ao pensamento de Michel Foucault
Aula 1
Ler com a garganta fechada
“Um pesadelo me persegue desde minha infância: tenho
sob os olhos um texto que não posso ler ou que apenas uma ínfima parte é para
mim decifrável. Simulo lê-lo, sei que o invento. Depois, o texto de repente se
embaralha inteiramente, não posso mais ler ou inventar nada, minha garganta se
fecha e então eu acordo”[1].
Aquele que sempre sonhou com textos fugidios que resistem à apreensão, aquele
que desconfiou de uma leitura que passa ao largo de tal resistência, leitura
que só poderá simular sua compreensão, será protagonista de uma experiëncia
intelectual singular na história da filosofia contemporânea. Singular não
apenas por ser uma experiência que concordou em demorar-se diante de objetos
que, à primeira vista, não pareciam próprios à reflexão filosófica, como o
estatudo da loucura, das prisões, da sexualidade, da literatura de vanguarda,
entre outros. Singular porque esta constituição de novos objetos de reflexão
esteve indissociável de uma questão de método mais profunda. Questão que se
enuncia da seguinte forma: o que significa, para a prática filosófica, ler um
texto? Todo texto pode ser objeto de uma leitura filosoficamente orientada ou
tal leitura deve apenas confrontar-se com textos estabelecidos pelo organon da
tradição da filosofia ocidental? E, principalmente, o que vem a ser uma
“leitura filosoficamente orientada”? Tais questões estão na base deste que será
o objeto de análise de nosso curso: a experiência intelectual de Michel
Foucault.
Sabemos
todos, e Foucault em primeiro lugar, que o estabelecimento de regras de prática
de leitura é a base de todo e qualquer aprendizado em filosofia. Mas em um dado
momento de sua história, a filosofia (ou, ao menos, uma parte dela) começou a
desconfiar sistematicamente de suas práticas. Não há dúvidas que aquele quem
potencializou este momento de maneira mais clara foi Michel Foucault. Como quem
procura escapar de um pesadelo que lhe amedronta desde a infância, Foucault
passou os trinta anos de sua experiëncia intelectual sistematizando um método
de interpretação de sistemas de pensamento que caminhava na contracorrente do
que ele próprio aprendera como estudante de filosofia. Método que o obrigou a
aceitar que a instauração de novos projetos filosóficos passa necessariamente
por estratégias peculiares de “negociação” com textos da tradição, o que
implica na constante reconsideração sobre a plasticidade dos estilos de
leitura. Admitir tal plasticidade talvez nos obrigue a rever certas posições.
Talvez ela nos leve a ver naquilo que normalmente tomamos por “erro de
leitura”, por “distorção de perspectiva” ou “redução do texto a um mero
pretexto” um momento fundamental de todo fazer filosófico. Pois talvez não
exista fazer filosófico sem certos deslocamentos, sem torções e
reconfigurações.
De fato, esta será a posição
de Foucault. Contrariamente a uma perspectiva hegemônica no meio francês de
então, que via a filosofia como prática de análise interna da sistematicidade
de textos que compõem a tradição do pensamento filosófico. para Foucault, ler
um texto filosófico é principalmente forçar a sistematicidade do discurso
filosófico a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se com aquilo
que lhe era aparentemente estranho. Forçagem que impediria a filosofia de se
transformar em : “Perpétua reduplicação de si mesma, em um comentário infinito
de seus próprios textos e sem relação a exterioridade alguma”[2]. Comentário infinito que nos
levaria necessariamente à simples textualização de práticas discursivas, ou
seja, a esta prática de análise que ignora a relevância filosófica dos espaços
em branco, dos não-ditos, das resistências e das elisões necessárias à
instauração de todo discurso fundador.
Todos
vocês sabem do que trata aqui. Creio que esta é uma questão de suma importância
porque vocês estão no interior de um processo de aprendizagem de leitura. Vocês
aprenderão técnicas fundamentais para
todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da tradição :
saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem das
razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar as
teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o
método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do pensamento
filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a
constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita a
autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se apressa
em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de
“compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele não
define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim,
procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais
que isto possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início.
Lembremos, por exemplo, do que
diz Kant a respeito de seu modo de leitura dos textos filosóficos : “Não raro
acontece, tanto na conversa corrente como em escritos, compreender-se um autor,
pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu objeto, melhor do que
ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou suficientemente o seu
conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra sua própria intenção”[3]. Este comentário
aparentemente inocente é a exposição de todo um programa de leitura que,
aparentemente, não está totalmente de acordo com as regras do rigor interpretativo.
Afinal, Kant reconhece que sua leitura é, digamos, sintomal. Ele irá procurar
aqueles pontos da superfície do texto nos quais a letra não condiz com o
espírito, nos quais o autor estranhamente pensou contra sua própria
intenção. Mas o que significa admitir um pensamento que se descola de sua
própria intenção e que deixa traços deste descolamento nos textos que produz?
Podemos dizer que significa, principalmente, estar atento às regiões textuais
nas quais o projeto do sistema filosófico é traído pelo encadeamento implacável
do conceito que insiste em abrir novas direções. Estar atento as estas
estruturas que atravessam a consciência do texto e que deixam marcas nos
caminhos trilhados pela escrita. Ao menos neste ponto, é difícil estar de acordo
com Goldsmith, para quem : “as asserções de um sistema não podem ter por
causas, tanto próximas quanto imaginárias, senão conhecidas do filósofo e
alegadas por ele”[4].
A história da filosofia, ao
contrário, mostra que é sim possível pensar a partir daquilo que o autor produz
sem o saber, ou sem o reconhecer. Isto implica, em última instância, aceitar
que: “a filosofia não é nem historicamente nem logicamente fundadora de
conhecimento, mas existem condições e regras de formação do saber aos quais o
discurso filosófico encontra-se submetido a cada época, como toda forma de
discurso com pretensões racionais”. Pois haveria uma espécie de “inconsciente
do saber que tem suas próprias formas e regras específicas”[5]. Um inconsciente como sistema de regras e leis
que age, que configura o campo de experiëncias à revelia do autor. Inconsciente
cuja melhor figura é a noção de uma estrutura que submete a produção textual
filosófica a um “sistema de pensamento” historicamente configurado e
determinado. Neste sentido, trata-se
de inserir a filosofia e seus textos no interior da reconstrução de práticas
discursivas cujas formas e regras compõem o inconsciente do saber de uma época.
A estas práticas discursivas com suas regras e condições circunscritas em uma
época nós daremos o nome de “epiteme”. Uma análise das rupturas e
discontinuidades na episteme da cultura ocidental foi o objeto exaustivo de As
palavras e as coisas. Escavar tais epistemes que vinculam a configuração da filosofia aos
campos empíricos do saber e das práticas culturais será, ao menos para
Foucault, a condição maior para a realização de algo como o ato de “ler um
texto filosófico”. Daí porque, ler um texto filosófico estará, ao menos durante
um primeiro momento, vinculado a um exercício “arqueológico”. Pois a análise das epistemes não é função de uma
metodologia histórica no seu sentido tradicional, ele é função primeiramente de uma arqueologia
do saber que: “endereçando-se ao espaço geral do saber, a suas
configurações e ao modo de ser das coisas que aí aparecem, define sistemas de
simultaneidades, assim que a série de mutações necessárias e suficientes para
circunscrever o solo de uma positividade nova”[6].
O que isto significa? Foucault
admite que a filosofia não é outra coisa que uma “forma cultural (...) talvez a
forma cultura mais geral na qual nós podemos refletir sobre o que é o Ocidente”[7]. Mas
isto não quer dizer ignorar sistematicamente a autonomização da legitimidade
das esferas do saber na época atual e de propor alguma espécie de imperialismo
filosófico no qual a filosofia teria sempre a última palavra a dizer a respeito
dos desenvolvimentos dos campos empíricos de pesquisa. Nem se trata por outro
lado, de dissolver o estatuto autônomo do discurso filosófico, embora isto
exija uma reconfiguração clara da noção mesma de “autonomia”. Mas é certo que
esta reconfiguração não se deixa ler como dissolução que poderia ser operada
através da assunção do projeto de uma grande “conversação” na qual o discurso
filosófico depõe suas aspirações em fornecer fundamentos aos processos de
justificação e validade a fim de comparecer como uma das vozes que ressoam no
campo da cultura (como o quer Richard Rorty). Ou ainda através do embaralhamento sistemático da
diferença genérica entre filosofia e literatura (como o quer Jacques Derrida).
Isto
exige, na verdade, a constatação de que alguns projetos de leitura de textos
filosóficos (e de constituição mesma do que é uma tarefa filosófica) são
solidários de operações de forçagem e de descentramento discursivo. Tal
constatação, por sua vez, é capaz de nos indicar que talvez existam objetos que
só podem ser apreendidos na interseção entre práticas e elaborações conceituais
absolutamente autônomas e com causalidades próprias. Quando Marx pensa o
problema da produção da aparência, ele só pode pensá-lo ao construir um ponto
de cruzamento entre a análise do processo de determinação social do valor das
mercadorias no capitalismo e a reflexão lógica sobre a dialética entre essência
e aparência a partir de Hegel. Estas duas séries de saberes são autônomas e
irredutíveis, uma não depende nem é a “aplicação” da outra (o problema da
determinação social do valor é da ordem da economia política e sua causalidade
é economicamente determinada). Mas tais séries devem se cruzar para que um certo
objeto possa ser apreendido. E elas devem se cruzar no interior do texto
filosófico. Só a elaboração conceitual sobre a dialética essência/aparência
ou só a análise econômica do problema do valor da forma-mercadoria não seriam
capazes de apreender o “acontecimento” que está em jogo no pensamento de Marx.
De fato, é isto que Foucault
tem em mente. Como veremos, quando, em História da loucura, define
aquilo que ele chama de “grande internação” e que marca um momento de
modificação radical no estatuto da loucura que ocorre no século XVII, ele
insiste em mostrar como o significado de tal modificação só pode ser pensável e
apreendido ao articularmos acontecimentos absolutamente independentes e que seguem lógicas próprias. A medida
administrativa que consistiu em internar libertinos, desempregados e loucos em
antigos leprosários desativados não participa da mesma lógica que levou
Descartes a conceber, de uma maneira excludente, a relação entre racionalidade
e loucura nas Meditações. No entanto, a reflexão sobre estes dois
acontecimentos deve convergir para que possamos apreender a maneira com que a
razão moderna define o que lhe é exterior.
Filosofia e ciëncias humanas
Esta
maneira foucauldiana de conceber o que é o trabalho de leitura e interpretação
de textos filosóficos está profundamente ancorada em uma reflexão sobre a
natureza da tarefa que a filosofia deve assumir na contemporaneidade. Esta
tarefa é indissociável de uma reflexão demorada sobre o estatuto do que
convencionamos chamar de “ciências humanas”. Isto está claro na própria
produção bibliográfica de Michel Foucault.
De maneira esquemática, podemos dizer que a produção de
Foucault está divida em dois grandes momentos. Primeiramente, ele procurou
colocar em marcha uma reflexão de larga escala sobre as condições de
possibilidade para a constituição de saberes positivos sobre o homem, saberes
que tomam o homem por objeto. Estratégia compreensível se estivermos de acordo
com o que diz Foucault: “Talvez faça parte do destino da filosofia ocidental que,
desde o século XIX, algo como uma antropologia tenha sido possível; quando digo
antropologia, não me refiro a esta ciência particular que chamamos antropologia
e que é o estudo das culturas exteriores à nossa; por antropologia, entendo
esta estrutura propriamente filosófica que faz com que atualmente os problemas
filosóficos estejam todos alojados no interior deste domínio que podemos chamar
de domínio da finitude humana [ou seja, domínio no interior do qual o sujeito
aparece como objeto positivo de um saber determinado]”[8].
Ou seja, a filosofia moderna e seu projeto é indissociável de uma reconstrução
das relações necessárias entre ela e os campos empíricos que permitem uma
reflexão sobre uma figura do sujeito entificada na concepção do homem como
objeto das ciências humanas. Neste sentido, a tarefa filosófica da
contemporaneidade é, ao menos para Foucault, solidária de uma epistemologia. A
reflexão filosófica é fundamentalmente reflexão epistemologia, quer dizer,
reflexão historicamente orientada sobre a constituição de objetos do discurso
científico. Um conceito de epistemologia histórica que Focault herda desta
tradição epistemológica francesa presente em nomes como Gaston Bachelard,
Georges Canguilhem e, a seu modo, Georges Politzer.
Neste
sentido, os quatro primeiros livros de Foucault estão organicamente articulados
entre si. Doença mental e personalidade (1954,
posteriormente reeditado em 1962 como Doença
mental e psicologia), Loucura e
desrazão: a história da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica (1963) e Raymond Roussel (1963) estruturam uma
articulação cruzada. O nascimento da
clínica e Doença mental e psicologia procuram
dar conta de uma certa arqueologia deste olhar capaz de constituir o homem como
objeto de um saber clínico. Já História
da loucura e Raymond Roussel procuram,
cada um a sua maneira, expor o processo de transformação da loucura de
“experiência trágica do mundo”, que atualmente só encontraria lugar em
experiências estéticas como as de Roussel, Artaud, Nerval, em doença mental,
objeto privilegiado de um olhar clínico.
A fim de refletir sobre esta antropologia que permite o
advento do homem, Foucault toma inicialmente como ponto privilegiado uma
reflexão sobre o campo da psicologia, o que não deve nos estranhar já que sua
formação é híbrida. Licenciado em
psicologia e diplomado em psicologia patológica, Michel Foucault nunca deixou
de alinhar sua formação filosófica a uma reflexão ampla sobre a clínica.
A razão de tal hibridismo não
é difícil de adivinhar. Desde o início de sua experiência intelectual, Foucault
parece animado pelo desejo de mostrar
como a determinação da racionalidade das práticas clínicas de intervenção é um
setor privilegiado da razão e de seus modos de racionalização. Neste sentido, a
técnica e questões aparentemente técnicas são pontos maiores de compreensão dos
modos com que uma racionalidade historicamente determinada racionaliza os
campos da praxis. Pois nenhum problema clínico é simplesmente um problema
clínico ligado apenas a condições neutras de eficácia de intervenção. Problemas
clínicos são o resultado da constituição de um olhar instaurados de condições
de normalidade, olhar capaz de organizar distinções operacionais entre o normal
e o patológico. Desta forma, questões que parecem obedecer a um desenvolvimento
ditado apenas pelo estado da técnica ou pela configuração natural do dado mostram-se,
ao contrário, como espaços privilegiados nos quais a razão configura,
silenciosamente, os campos da experiência possível. A distinção entre o normal e
o patológico é apenas um setor, talvez o mais sensível, da partilha moderna
entre razão e desrazão. Ela permite a configuração inicial de um procedimento
peculiar de crítica da razão que parte da análise exaustiva dos modos de seus
processos de racionalização de certos campos da práxis científica. Daí esta
exigência foucauldiana de transformar a filosofia em verdadeiro « programa
interdisciplinar » onde pesquisas de ordem histórica, sociológica e
clínicas se articulam. Foucault tem consciência clara de que inova na maneira
de pensar o que é o trabalho filosófico: “A História da loucura e os
textos que a seguiram são exteriores à filosofia, à maneira com que, na França,
ela é praticada e ensinada”[9].
A partir de 1966, com o
aparecimento de As palavras e as coisas, podemos
dizer que Foucault mostra claramente suas cartas. Seu subtitulo não poderia ser
mais claro : « Uma arqueologia das ciências humanas ». Ou seja, trata-se de uma
arqueologia das ciências humanas no sentido de um esforço de reflexão que visa
dar conta das condições de possibilidade do advento de um discurso no qual o
homem pode ser, ao mesmo tempo, aquele que toma a si mesmo e às suas condutas
como objeto de conhecimento e aquele que organiza o campo no qual tal objeto
pode constituir-se. Para tanto, Foucault organizará o desenvolvimento das
estruturas do saber em três grandes epistemes: esta que vai até a Renascença, a
clássica e a moderna. Compreendamos, inicialmente, estas epistemes como estruturas de racionalidades implementadas
pela multiplicidade de práticas discursivas em um determinado momento
histórico. Estruturas de valor transcendental, mas temporalmente determinadas.
Daí porque Habermas, por exemplo, poderá ver em Foucault uma espécie de
"historicismo transcendental".
Mas, para além desta questão,
lembremos como esta arqueologia tem um interesse mais geral. Pois todo o
esforço de Foucault consistirá, de uma certa forma, a mostrar como o advento
das ciências humanas e a configuração da razão moderna estão profundamente
vinculados. Tanto que, em As palavras e as coisas, é o advento das
ciências humanas que marca a consolidação dos dispositivos categoriais de
apreensão de objeto próprios à razão moderna. A sua maneira, Foucault conjuga
uma temática presente na história da filosofia ao menos desde Hegel: a critica
da razão é indissociável da crítica da figura da consciência pressuposta por
operações que aspiram racionalidade. Daí porque as baterias de Foucault são
claramente direcionadas contra a categoria do sujeito e as múltiplas versões de
uma filosofia do sujeito. Afinal, uma reflexão arqueológica tende a mostrar
que: “o homem é apenas uma invenção recente, uma figura que não tem dois
séculos, uma simples dobra em nosso saber e que desaparecerá desde que este
saber encontre uma nova forma”[10]. Homem
nasceu com a configuração da episteme moderna e irá desaparecer com ela. O
livro termina assim com a defesa de um dos grandes motivos do pensamento
francês dos últimos quarenta anos: a morte do sujeito, esta aposta de que: “o
homem desaparecerá, como um rosto de areia no limite do mar”[11]. Esta temática da morte do sujeito com seu
anti-humanismo que traz conseqüências maiores para a compreensão das aspirações
modernas de emancipação, nos parece fornecer um ponto privilegiado de
introdução ao pensamento francês contemporâneo.
Por uma auto-crítica da razão
Como
veremos, a experiência intelectual de Michel Foucault não irá terminar neste
enquadramento da reflexão filosófica no interior dos procedimentos próprios a
uma arqueologia do saber que visa, ao mesmo tempo, fornecer uma perspectiva
historicista renovada sobre a gênese dos saberes positivos com suas aspirações
de racionalidade e fornecer uma crítica a toda e qualquer filosofia do sujeito
(o que permitia a Foucault colocar-se na contramão do hegelianismo e da
fenomenologia então em voga na França dos anos cinqüenta). A partir dos anos
setenta, o projeto foucauldiano caminhará em direção àquilo que chamamos de
“genealogia do poder”. Seus textos serão dedicados à maneira com que a razão
moderna sempre foi indissociável de modos de racionalização da dimensão prática
vinculados às premissas de um bio-poder. Ao estudar a constituição do sistema
punitivo moderno, com seu ordenamento jurídico e suas prisões, ao estudar às
práticas governamentais de gestão social, ao estudar a história da sexualidade,
Foucault procurava apenas uma coisa: compreender como a razão é indissociável
de um mecanismo de normatização da vida.
De fato, Foucault cunhara o termo bio-poder a fim de
dar conta da centralidade, na consolidação do poder na modernidade, daquilo que
o filósofo chama de "administração dos corpos" e de "gestão
calculista da vida". Uma perspectiva de análise do poder que encontrava
raízes nas suas pesquisas a respeito do saber médico e dos dispositivos clínicos
enquanto espaço privilegiado de operação de uma racionalização da vida que se
invertia em dispositivo de dominação.
Mas, aos poucos, Foucault irá ampliar suas
considerações. Tratava-se de sair do regime de economia restrita própria
à reflexão sobre o saber clínico, isto a fim de alcançar a generalização de uma
verdadeira genealogia do poder capaz expor a lógica de inversão da razão em
dominação, da norma racional em seu outro, isto nas várias esferas de valores
da modernidade. Isto foi feito, principalmente, a partir dos anos setenta.
Muito
haverá a se dizer a respeito do que está em jogo na constituição de tal
programa. Muito haverá a se dizer porque muito já foi dito a respeito desta
tentativa foucauldiana de submeter todos processos de constituição dos saberes,
todos os processos de fundamentação da crítica a uma genética das formas de
poder. Como se, no final das contas, tivéssemos, com Foucault, uma espécie de
submissão geral das expectativas de racionalidade a reflexões sobre estruturas
de poder inspirada na genealogia nietzscehana, como se toda tentativa de fundar
um discurso racional acabasse por inverter-se em modos astutos de dominação.
Interversão da racionalidade em dominação que nos levaria diretamente ao
relativismo pós-moderno ou, na melhor das hipóteses, a um certo cetiscismo
epistemológico selvagem.
Esta foi uma maneira de desqualificar a crítica
foucauldiana à razão moderna, assim como a crítica de toda uma geração de
filósofos franceses (Derrida, Lyotard,
Deleuze e Foucault) jogando-os na vala comum do “pós-modernismo”. Vala na qual
estariam enterrados aqueles que, em nome da hipóstase da Diferença, do Desejo,
da Alteridade teriam assumido o projeto impossível de uma crítica totalizante
da razão. Crítica que só poderia resvalar no mais completo relativismo ou no
puro e simples irracionalismo estetizante. Desta forma a problematização destes
autores em relação a alguns operadores filosóficos maiores, como o
universalismo, a identidade, a verdade unívoca, o sujeito e a interversão da
razão em processo de dominação acaba sendo rapidamente desqualificada.
Lembremos, por exemplo, daquilo que Habermas diz a
respeito de Foucault e de sua tentativa de crítica da razão através da
articulação de uma genealogia do poder: “A história dramática da influência
de Foucault e a sua reputação de iconoclasta seriam difíceis de explicar se a
fachada glacial do historicismo radical não cobrisse meramente as paixões do
modernismo estético”[12].
Ou seja, por trás do projeto foucauldiano haveria a verdade de um certo irracionalismo
estético fascinado pela violência modernista da dissolução do sujeito
(lembremos da paixão com que Foucault lera Bataille, Roussel, Sade) acabando,
com isto, por abandonar os potenciais emancipatórios da razão.
No
entanto, veremos como críticas desta natureza erram completamente o alvo. Elas
erram o alvo por não identificarem o que procura exatamente Foucault.
Impressionadas pela temática da presença inflacionada da temática do poder,
tais críticas temem o “irracionalismo” advindo da impossibilidade de garantir a
posição de um solo estável para a comparação e clarificação de julgamentos que
se pretendam racionais, para além de toda dinâmica própria às relações de força.
No entanto, podemos dizer, com Bento Prado Júnior: “Irracionalismo é um pseudoconceito.
Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia
ter, sem uma prévia definição da Razão? Como há tantos conceitos de Razão
quantas filosofias há, dir-se-ia que irracionalismo é a filosofia do Outro. Ou
pastichando uma frase de Emile Bréhier que, na ocasião, ponderava as acusações
de “libertinagem”, poderíamos dizer: “On est toujours l´irrationaliste de
quelque´un”[13].
Veremos como, no caso de Foucault, o que impulsiona a
crítica é uma filosofia do imediato que só vai conseguir dizer
claramente seu nome através na História da sexualidade e através da
construção do conceito de “cuidado de si”. Conceito central no edifício
foucauldiano por permitir o advento de pensamento de uma relação a si que não
seria mais submetida à estruturas de dominação de si.. É claro que tal impulso
de reconquista do imediato traz uma série de problemas. Mas eles só ficarão
claramente visível se o colocarmos em seu verdadeiro terreno. Tentaremos
terraplanar tal terreno no interior deste curso, mostrando como ele pode
fornecer uma via mais frutífera de análise não apenas da experiência
intelectual de Foucault, mas do que esteve em jogo neste momento do pensamento
francês contemporâneo chamado atualmente de « pós-estruturalismo ».
Estrutura do curso
A
fim de alcançar tais objetivos, nosso curso será dividido em três módulos. Cada
módulo terá de quatro a cinco aulas e será organizado a partir do comentário de
um livro fundamental na compreensão da experiência intelectual de Foucault.
Outros textos menores serão utilizados como direcionadores de discussão. Os
comentadores serão indicados no decorrer do curso.
O primeiro módulo será dedicado à leitura de História da loucura. Trabalharemos,
principalmente, a primeira de suas três parte e o último capítulo da terceira
parte, este intitulado “O círculo antropológico”. Mas antes de iniciarmos a
leitura de História da loucura, teremos
uma aula dedicada à apresentação de uma vertente fundamental da filosofia
francesa cuja influência em Foucault é visível: a epistemologia histórica de
Bachelard e de Canguilhem (diretor de tese de História da loucura). Nesta aula, será questão principalmente do
comentário de algumas teses fundamentais de “O novo espírito científico” e “O
normal e o patológico”. Quando estivermos analisando o capítulo de História da loucura intitulado “A grande
internação”, daremos espaço para a análise da polêmica que envolveu Foucault e
Derrida a respeito da tese foucauldiana sobre o cogito cartesiano como momento
de expulsão da loucura. Neste sentido, comentadoremos o texto de Derrida
“Cogito e história da loucura”, assim como as réplicas de Foucault.
Ao
final deste módulo, dedicaremos ainda uma aula ao comentário de um pequeno
texto de Foucault intitulado “A loucura, ausência de obra”. Trata-se de um
texto privilegiado para medirmos o impacto de uma segunda tradição que irá
influenciar a trajetória de Foucault e a composição de seu primeiro grande
livro: o “pensamento da transgressão” de Bataille e Blanchot marcado pelas
experiências disruptivas do modernismo estético. Um outro texto de Foucault cuja leitura é
recomendável neste módulo intitula-se Doença
mental e psicologia, reescrito à mesma época que História da Loucura.
Nosso segundo módulo será dedicado à leitura de As palavras e as coisas. Antes de
abordar o texto, teremos uma aula dedicada ao estruturalismo, já que o livro de
Foucault é, sem dúvida, a realização filosófica mais claramente vinculada a
este momento da reflexão sobre as ciências humanas em solo francês. O
texto-guia desta aula será “Como reconhecemos o estruturalismo?”, de Gilles
Deleuze. Ao final do módulo, teremos ainda uma aula dedicada ao comentário de
outro pequeno texto de Foucault: “O que é um autor?”. Trata-se de um texto
importante por apresentar claramente a posição de Foucault a respeito da
temática da morte do sujeito e de confrontá-la com Jacques Lacan, influência
importante de Foucault.
Por fim, nosso terceiro e último módulo será dedicado à
leitura de História da sexualidade, em
especial seu primeiro livro “A vontade de saber”. A fim de introduzir o
conceito de “genealogia do poder”, leremos o texto “Nietzsche, a genealogia e a
história”. Veremos ainda dois desdobramentos importantes do conceito
foucauldiano de bio-poder através de dois filósofos que tomaram a reflexão de
Foucault como ponto de partida: Giorgio Agamben com sua noção de homo sacer (o primeiro capítulo de um
livro que se chama exatamente Homo sacer)
e Judith Butler com suas reflexões sobre teoria de gêneros em Problemas de gênero, em especial o
capítulo intitulado: “Foucault, Herculine e a política da descontinuidade
sexual”.
[1] FOUCAULT, Dits e écrits I, p. 623
[2] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 1152
[3] KANT, Crítica da razão pura, A 314
[4] GOLDSMITH, Tempo lógico e tempo histórico
na interpretação dos sistemas filosóficos, p. 141
[5] FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
[6] FOUCAULT, Les mots et les
choses, p. 14
[7] idem, p. 467
[9] FOUCAULT, Dits et écrits, p.
1150
[10] FOUCAULT, Les mots et les
choses, p. 15
[11] idem, p. 398
[12] HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 259
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