sábado, 1 de dezembro de 2012

Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault

(Esta é a primeira aula sobre "Introdução à experiência intelectual de Michel Foucault", cuja autoria da sistematização não consta em meus registros, mas mesmo assim estou compartilhando).

Introdução ao pensamento de Michel Foucault
Aula 1

Ler com a garganta fechada 
“Um pesadelo me persegue desde minha infância: tenho sob os olhos um texto que não posso ler ou que apenas uma ínfima parte é para mim decifrável. Simulo lê-lo, sei que o invento. Depois, o texto de repente se embaralha inteiramente, não posso mais ler ou inventar nada, minha garganta se fecha e então eu acordo”[1]. Aquele que sempre sonhou com textos fugidios que resistem à apreensão, aquele que desconfiou de uma leitura que passa ao largo de tal resistência, leitura que só poderá simular sua compreensão, será protagonista de uma experiëncia intelectual singular na história da filosofia contemporânea. Singular não apenas por ser uma experiência que concordou em demorar-se diante de objetos que, à primeira vista, não pareciam próprios à reflexão filosófica, como o estatudo da loucura, das prisões, da sexualidade, da literatura de vanguarda, entre outros. Singular porque esta constituição de novos objetos de reflexão esteve indissociável de uma questão de método mais profunda. Questão que se enuncia da seguinte forma: o que significa, para a prática filosófica, ler um texto? Todo texto pode ser objeto de uma leitura filosoficamente orientada ou tal leitura deve apenas confrontar-se com textos estabelecidos pelo organon da tradição da filosofia ocidental? E, principalmente, o que vem a ser uma “leitura filosoficamente orientada”? Tais questões estão na base deste que será o objeto de análise de nosso curso: a experiência intelectual de Michel Foucault.

         Sabemos todos, e Foucault em primeiro lugar, que o estabelecimento de regras de prática de leitura é a base de todo e qualquer aprendizado em filosofia. Mas em um dado momento de sua história, a filosofia (ou, ao menos, uma parte dela) começou a desconfiar sistematicamente de suas práticas. Não há dúvidas que aquele quem potencializou este momento de maneira mais clara foi Michel Foucault. Como quem procura escapar de um pesadelo que lhe amedronta desde a infância, Foucault passou os trinta anos de sua experiëncia intelectual sistematizando um método de interpretação de sistemas de pensamento que caminhava na contracorrente do que ele próprio aprendera como estudante de filosofia. Método que o obrigou a aceitar que a instauração de novos projetos filosóficos passa necessariamente por estratégias peculiares de “negociação” com textos da tradição, o que implica na constante reconsideração sobre a plasticidade dos estilos de leitura. Admitir tal plasticidade talvez nos obrigue a rever certas posições. Talvez ela nos leve a ver naquilo que normalmente tomamos por “erro de leitura”, por “distorção de perspectiva” ou “redução do texto a um mero pretexto” um momento fundamental de todo fazer filosófico. Pois talvez não exista fazer filosófico sem certos deslocamentos, sem torções e reconfigurações.
De fato, esta será a posição de Foucault. Contrariamente a uma perspectiva hegemônica no meio francês de então, que via a filosofia como prática de análise interna da sistematicidade de textos que compõem a tradição do pensamento filosófico. para Foucault, ler um texto filosófico é principalmente forçar a sistematicidade do discurso filosófico a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Forçagem que impediria a filosofia de se transformar em : “Perpétua reduplicação de si mesma, em um comentário infinito de seus próprios textos e sem relação a exterioridade alguma”[2]. Comentário infinito que nos levaria necessariamente à simples textualização de práticas discursivas, ou seja, a esta prática de análise que ignora a relevância filosófica dos espaços em branco, dos não-ditos, das resistências e das elisões necessárias à instauração de todo discurso fundador.
Todos vocês sabem do que trata aqui. Creio que esta é uma questão de suma importância porque vocês estão no interior de um processo de aprendizagem de leitura. Vocês aprenderão técnicas fundamentais para  todo e qualquer processo filosófico de leitura de textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir a ordem das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do pensamento filosófico, entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a constituição daquilo que chamamos de “rigor interpretativo” que respeita a autonomia do texto filosófico enquanto sistema de proposições e não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que nos lembra como o ato de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de “explicar”. Mas ele não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define, isto sim, procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto possa parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início.
Lembremos, por exemplo, do que diz Kant a respeito de seu modo de leitura dos textos filosóficos : “Não raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos, compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra sua própria intenção”[3]. Este comentário aparentemente inocente é a exposição de todo um programa de leitura que, aparentemente, não está totalmente de acordo com as regras do rigor interpretativo. Afinal, Kant reconhece que sua leitura é, digamos, sintomal. Ele irá procurar aqueles pontos da superfície do texto nos quais a letra não condiz com o espírito, nos quais o autor estranhamente pensou contra sua própria intenção. Mas o que significa admitir um pensamento que se descola de sua própria intenção e que deixa traços deste descolamento nos textos que produz? Podemos dizer que significa, principalmente, estar atento às regiões textuais nas quais o projeto do sistema filosófico é traído pelo encadeamento implacável do conceito que insiste em abrir novas direções. Estar atento as estas estruturas que atravessam a consciência do texto e que deixam marcas nos caminhos trilhados pela escrita. Ao menos neste ponto, é difícil estar de acordo com Goldsmith, para quem : “as asserções de um sistema não podem ter por causas, tanto próximas quanto imaginárias, senão conhecidas do filósofo e alegadas por ele”[4].
A história da filosofia, ao contrário, mostra que é sim possível pensar a partir daquilo que o autor produz sem o saber, ou sem o reconhecer. Isto implica, em última instância, aceitar que: “a filosofia não é nem historicamente nem logicamente fundadora de conhecimento, mas existem condições e regras de formação do saber aos quais o discurso filosófico encontra-se submetido a cada época, como toda forma de discurso com pretensões racionais”. Pois haveria uma espécie de “inconsciente do saber que tem suas próprias formas e regras específicas”[5].  Um inconsciente como sistema de regras e leis que age, que configura o campo de experiëncias à revelia do autor. Inconsciente cuja melhor figura é a noção de uma estrutura que submete a produção textual filosófica a um “sistema de pensamento” historicamente configurado e determinado. Neste sentido, trata-se de inserir a filosofia e seus textos no interior da reconstrução de práticas discursivas cujas formas e regras compõem o inconsciente do saber de uma época. A estas práticas discursivas com suas regras e condições circunscritas em uma época nós daremos o nome de “epiteme”. Uma análise das rupturas e discontinuidades na episteme da cultura ocidental foi o objeto exaustivo de As palavras e as coisas. Escavar tais epistemes que vinculam a configuração da filosofia aos campos empíricos do saber e das práticas culturais será, ao menos para Foucault, a condição maior para a realização de algo como o ato de “ler um texto filosófico”. Daí porque, ler um texto filosófico estará, ao menos durante um primeiro momento, vinculado a um exercício “arqueológico”. Pois a análise das epistemes não é função de uma metodologia histórica no seu sentido tradicional,  ele é função primeiramente de uma arqueologia do saber que: “endereçando-se ao espaço geral do saber, a suas configurações e ao modo de ser das coisas que aí aparecem, define sistemas de simultaneidades, assim que a série de mutações necessárias e suficientes para circunscrever o solo de uma positividade nova”[6].
O que isto significa? Foucault admite que a filosofia não é outra coisa que uma “forma cultural (...) talvez a forma cultura mais geral na qual nós podemos refletir sobre o que é o Ocidente”[7]. Mas isto não quer dizer ignorar sistematicamente a autonomização da legitimidade das esferas do saber na época atual e de propor alguma espécie de imperialismo filosófico no qual a filosofia teria sempre a última palavra a dizer a respeito dos desenvolvimentos dos campos empíricos de pesquisa. Nem se trata por outro lado, de dissolver o estatuto autônomo do discurso filosófico, embora isto exija uma reconfiguração clara da noção mesma de “autonomia”. Mas é certo que esta reconfiguração não se deixa ler como dissolução que poderia ser operada através da assunção do projeto de uma grande “conversação” na qual o discurso filosófico depõe suas aspirações em fornecer fundamentos aos processos de justificação e validade a fim de comparecer como uma das vozes que ressoam no campo da cultura (como o quer Richard Rorty). Ou ainda através do embaralhamento sistemático da diferença genérica entre filosofia e literatura (como o quer Jacques Derrida).
         Isto exige, na verdade, a constatação de que alguns projetos de leitura de textos filosóficos (e de constituição mesma do que é uma tarefa filosófica) são solidários de operações de forçagem e de descentramento discursivo. Tal constatação, por sua vez, é capaz de nos indicar que talvez existam objetos que só podem ser apreendidos na interseção entre práticas e elaborações conceituais absolutamente autônomas e com causalidades próprias. Quando Marx pensa o problema da produção da aparência, ele só pode pensá-lo ao construir um ponto de cruzamento entre a análise do processo de determinação social do valor das mercadorias no capitalismo e a reflexão lógica sobre a dialética entre essência e aparência a partir de Hegel. Estas duas séries de saberes são autônomas e irredutíveis, uma não depende nem é a “aplicação” da outra (o problema da determinação social do valor é da ordem da economia política e sua causalidade é economicamente determinada). Mas tais séries devem se cruzar para que um certo objeto possa ser apreendido. E elas devem se cruzar no interior do texto filosófico. Só a elaboração conceitual sobre a dialética essência/aparência ou só a análise econômica do problema do valor da forma-mercadoria não seriam capazes de apreender o “acontecimento” que está em jogo no pensamento de Marx.
De fato, é isto que Foucault tem em mente. Como veremos, quando, em História da loucura, define aquilo que ele chama de “grande internação” e que marca um momento de modificação radical no estatuto da loucura que ocorre no século XVII, ele insiste em mostrar como o significado de tal modificação só pode ser pensável e apreendido ao articularmos acontecimentos absolutamente independentes  e que seguem lógicas próprias. A medida administrativa que consistiu em internar libertinos, desempregados e loucos em antigos leprosários desativados não participa da mesma lógica que levou Descartes a conceber, de uma maneira excludente, a relação entre racionalidade e loucura nas Meditações. No entanto, a reflexão sobre estes dois acontecimentos deve convergir para que possamos apreender a maneira com que a razão moderna define o que lhe é exterior.

Filosofia e ciëncias humanas

         Esta maneira foucauldiana de conceber o que é o trabalho de leitura e interpretação de textos filosóficos está profundamente ancorada em uma reflexão sobre a natureza da tarefa que a filosofia deve assumir na contemporaneidade. Esta tarefa é indissociável de uma reflexão demorada sobre o estatuto do que convencionamos chamar de “ciências humanas”. Isto está claro na própria produção bibliográfica de Michel Foucault.
         De maneira esquemática, podemos dizer que a produção de Foucault está divida em dois grandes momentos. Primeiramente, ele procurou colocar em marcha uma reflexão de larga escala sobre as condições de possibilidade para a constituição de saberes positivos sobre o homem, saberes que tomam o homem por objeto. Estratégia compreensível se estivermos de acordo com o que diz Foucault: “Talvez faça parte do destino da filosofia ocidental que, desde o século XIX, algo como uma antropologia tenha sido possível; quando digo antropologia, não me refiro a esta ciência particular que chamamos antropologia e que é o estudo das culturas exteriores à nossa; por antropologia, entendo esta estrutura propriamente filosófica que faz com que atualmente os problemas filosóficos estejam todos alojados no interior deste domínio que podemos chamar de domínio da finitude humana [ou seja, domínio no interior do qual o sujeito aparece como objeto positivo de um saber determinado]”[8]. Ou seja, a filosofia moderna e seu projeto é indissociável de uma reconstrução das relações necessárias entre ela e os campos empíricos que permitem uma reflexão sobre uma figura do sujeito entificada na concepção do homem como objeto das ciências humanas. Neste sentido, a tarefa filosófica da contemporaneidade é, ao menos para Foucault, solidária de uma epistemologia. A reflexão filosófica é fundamentalmente reflexão epistemologia, quer dizer, reflexão historicamente orientada sobre a constituição de objetos do discurso científico. Um conceito de epistemologia histórica que Focault herda desta tradição epistemológica francesa presente em nomes como Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e, a seu modo, Georges Politzer.
Neste sentido, os quatro primeiros livros de Foucault estão organicamente articulados entre si. Doença mental e personalidade (1954, posteriormente reeditado em 1962 como Doença mental e psicologia), Loucura e desrazão: a história da loucura na idade clássica (1961), O nascimento da clínica (1963) e Raymond Roussel (1963) estruturam uma articulação cruzada. O nascimento da clínica e Doença mental e psicologia procuram dar conta de uma certa arqueologia deste olhar capaz de constituir o homem como objeto de um saber clínico. Já História da loucura e Raymond Roussel procuram, cada um a sua maneira, expor o processo de transformação da loucura de “experiência trágica do mundo”, que atualmente só encontraria lugar em experiências estéticas como as de Roussel, Artaud, Nerval, em doença mental, objeto privilegiado de um olhar clínico.
         A fim de refletir sobre esta antropologia que permite o advento do homem, Foucault toma inicialmente como ponto privilegiado uma reflexão sobre o campo da psicologia, o que não deve nos estranhar já que sua formação é híbrida. Licenciado em psicologia e diplomado em psicologia patológica, Michel Foucault nunca deixou de alinhar sua formação filosófica a uma reflexão ampla sobre a clínica.
A razão de tal hibridismo não é difícil de adivinhar. Desde o início de sua experiência intelectual, Foucault parece animado pelo desejo de mostrar como a determinação da racionalidade das práticas clínicas de intervenção é um setor privilegiado da razão e de seus modos de racionalização. Neste sentido, a técnica e questões aparentemente técnicas são pontos maiores de compreensão dos modos com que uma racionalidade historicamente determinada racionaliza os campos da praxis. Pois nenhum problema clínico é simplesmente um problema clínico ligado apenas a condições neutras de eficácia de intervenção. Problemas clínicos são o resultado da constituição de um olhar instaurados de condições de normalidade, olhar capaz de organizar distinções operacionais entre o normal e o patológico. Desta forma, questões que parecem obedecer a um desenvolvimento ditado apenas pelo estado da técnica ou pela configuração natural do dado mostram-se, ao contrário, como espaços privilegiados nos quais a razão configura, silenciosamente, os campos da experiência possível. A distinção entre o normal e o patológico é apenas um setor, talvez o mais sensível, da partilha moderna entre razão e desrazão. Ela permite a configuração inicial de um procedimento peculiar de crítica da razão que parte da análise exaustiva dos modos de seus processos de racionalização de certos campos da práxis científica. Daí esta exigência foucauldiana de transformar a filosofia em verdadeiro « programa interdisciplinar » onde pesquisas de ordem histórica, sociológica e clínicas se articulam. Foucault tem consciência clara de que inova na maneira de pensar o que é o trabalho filosófico: “A História da loucura e os textos que a seguiram são exteriores à filosofia, à maneira com que, na França, ela é praticada e ensinada”[9].
A partir de 1966, com o aparecimento de As palavras e as coisas, podemos dizer que Foucault mostra claramente suas cartas. Seu subtitulo não poderia ser mais claro : « Uma arqueologia das ciências humanas ». Ou seja, trata-se de uma arqueologia das ciências humanas no sentido de um esforço de reflexão que visa dar conta das condições de possibilidade do advento de um discurso no qual o homem pode ser, ao mesmo tempo, aquele que toma a si mesmo e às suas condutas como objeto de conhecimento e aquele que organiza o campo no qual tal objeto pode constituir-se. Para tanto, Foucault organizará o desenvolvimento das estruturas do saber em três grandes epistemes: esta que vai até a Renascença, a clássica e a moderna. Compreendamos, inicialmente, estas epistemes como  estruturas de racionalidades implementadas pela multiplicidade de práticas discursivas em um determinado momento histórico. Estruturas de valor transcendental, mas temporalmente determinadas. Daí porque Habermas, por exemplo, poderá ver em Foucault uma espécie de "historicismo transcendental".
Mas, para além desta questão, lembremos como esta arqueologia tem um interesse mais geral. Pois todo o esforço de Foucault consistirá, de uma certa forma, a mostrar como o advento das ciências humanas e a configuração da razão moderna estão profundamente vinculados. Tanto que, em As palavras e as coisas, é o advento das ciências humanas que marca a consolidação dos dispositivos categoriais de apreensão de objeto próprios à razão moderna. A sua maneira, Foucault conjuga uma temática presente na história da filosofia ao menos desde Hegel: a critica da razão é indissociável da crítica da figura da consciência pressuposta por operações que aspiram racionalidade. Daí porque as baterias de Foucault são claramente direcionadas contra a categoria do sujeito e as múltiplas versões de uma filosofia do sujeito. Afinal, uma reflexão arqueológica tende a mostrar que: “o homem é apenas uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma simples dobra em nosso saber e que desaparecerá desde que este saber encontre uma nova forma”[10]. Homem nasceu com a configuração da episteme moderna e irá desaparecer com ela. O livro termina assim com a defesa de um dos grandes motivos do pensamento francês dos últimos quarenta anos: a morte do sujeito, esta aposta de que: “o homem desaparecerá, como um rosto de areia no limite do mar”[11]. Esta temática da morte do sujeito com seu anti-humanismo que traz conseqüências maiores para a compreensão das aspirações modernas de emancipação, nos parece fornecer um ponto privilegiado de introdução ao pensamento francês contemporâneo.

Por uma auto-crítica da razão 

Como veremos, a experiência intelectual de Michel Foucault não irá terminar neste enquadramento da reflexão filosófica no interior dos procedimentos próprios a uma arqueologia do saber que visa, ao mesmo tempo, fornecer uma perspectiva historicista renovada sobre a gênese dos saberes positivos com suas aspirações de racionalidade e fornecer uma crítica a toda e qualquer filosofia do sujeito (o que permitia a Foucault colocar-se na contramão do hegelianismo e da fenomenologia então em voga na França dos anos cinqüenta). A partir dos anos setenta, o projeto foucauldiano caminhará em direção àquilo que chamamos de “genealogia do poder”. Seus textos serão dedicados à maneira com que a razão moderna sempre foi indissociável de modos de racionalização da dimensão prática vinculados às premissas de um bio-poder. Ao estudar a constituição do sistema punitivo moderno, com seu ordenamento jurídico e suas prisões, ao estudar às práticas governamentais de gestão social, ao estudar a história da sexualidade, Foucault procurava apenas uma coisa: compreender como a razão é indissociável de um mecanismo de normatização da vida.
De fato, Foucault cunhara o termo bio-poder a fim de dar conta da centralidade, na consolidação do poder na modernidade, daquilo que o filósofo chama de "administração dos corpos" e de "gestão calculista da vida". Uma perspectiva de análise do poder que encontrava raízes nas suas pesquisas a respeito do saber médico e dos dispositivos clínicos enquanto espaço privilegiado de operação de uma racionalização da vida que se invertia em dispositivo de dominação.
Mas, aos poucos, Foucault irá ampliar suas considerações. Tratava-se de sair do regime de economia restrita própria à reflexão sobre o saber clínico, isto a fim de alcançar a generalização de uma verdadeira genealogia do poder capaz expor a lógica de inversão da razão em dominação, da norma racional em seu outro, isto nas várias esferas de valores da modernidade. Isto foi feito, principalmente, a partir dos anos setenta.
Muito haverá a se dizer a respeito do que está em jogo na constituição de tal programa. Muito haverá a se dizer porque muito já foi dito a respeito desta tentativa foucauldiana de submeter todos processos de constituição dos saberes, todos os processos de fundamentação da crítica a uma genética das formas de poder. Como se, no final das contas, tivéssemos, com Foucault, uma espécie de submissão geral das expectativas de racionalidade a reflexões sobre estruturas de poder inspirada na genealogia nietzscehana, como se toda tentativa de fundar um discurso racional acabasse por inverter-se em modos astutos de dominação. Interversão da racionalidade em dominação que nos levaria diretamente ao relativismo pós-moderno ou, na melhor das hipóteses, a um certo cetiscismo epistemológico selvagem.
Esta foi uma maneira de desqualificar a crítica foucauldiana à razão moderna, assim como a crítica de toda uma geração de filósofos franceses (Derrida, Lyotard, Deleuze e Foucault) jogando-os na vala comum do “pós-modernismo”. Vala na qual estariam enterrados aqueles que, em nome da hipóstase da Diferença, do Desejo, da Alteridade teriam assumido o projeto impossível de uma crítica totalizante da razão. Crítica que só poderia resvalar no mais completo relativismo ou no puro e simples irracionalismo estetizante. Desta forma a problematização destes autores em relação a alguns operadores filosóficos maiores, como o universalismo, a identidade, a verdade unívoca, o sujeito e a interversão da razão em processo de dominação acaba sendo rapidamente desqualificada.
Lembremos, por exemplo, daquilo que Habermas diz a respeito de Foucault e de sua tentativa de crítica da razão através da articulação de uma genealogia do poder: “A história dramática da influência de Foucault e a sua reputação de iconoclasta seriam difíceis de explicar se a fachada glacial do historicismo radical não cobrisse meramente as paixões do modernismo estético”[12]. Ou seja, por trás do projeto foucauldiano haveria a verdade de um certo irracionalismo estético fascinado pela violência modernista da dissolução do sujeito (lembremos da paixão com que Foucault lera Bataille, Roussel, Sade) acabando, com isto, por abandonar os potenciais emancipatórios da razão.
         No entanto, veremos como críticas desta natureza erram completamente o alvo. Elas erram o alvo por não identificarem o que procura exatamente Foucault. Impressionadas pela temática da presença inflacionada da temática do poder, tais críticas temem o “irracionalismo” advindo da impossibilidade de garantir a posição de um solo estável para a comparação e clarificação de julgamentos que se pretendam racionais, para além de toda dinâmica própria às relações de força. No entanto, podemos dizer, com Bento Prado Júnior: “Irracionalismo é um pseudoconceito. Pertence mais à linguagem da injúria do que da análise. Que conteúdo poderia ter, sem uma prévia definição da Razão? Como há tantos conceitos de Razão quantas filosofias há, dir-se-ia que irracionalismo é a filosofia do Outro. Ou pastichando uma frase de Emile Bréhier que, na ocasião, ponderava as acusações de “libertinagem”, poderíamos dizer: “On est toujours l´irrationaliste de quelque´un”[13].
Veremos como, no caso de Foucault, o que impulsiona a crítica é uma filosofia do imediato que só vai conseguir dizer claramente seu nome através na História da sexualidade e através da construção do conceito de “cuidado de si”. Conceito central no edifício foucauldiano por permitir o advento de pensamento de uma relação a si que não seria mais submetida à estruturas de dominação de si.. É claro que tal impulso de reconquista do imediato traz uma série de problemas. Mas eles só ficarão claramente visível se o colocarmos em seu verdadeiro terreno. Tentaremos terraplanar tal terreno no interior deste curso, mostrando como ele pode fornecer uma via mais frutífera de análise não apenas da experiência intelectual de Foucault, mas do que esteve em jogo neste momento do pensamento francês contemporâneo chamado atualmente de « pós-estruturalismo ».

Estrutura do curso

         A fim de alcançar tais objetivos, nosso curso será dividido em três módulos. Cada módulo terá de quatro a cinco aulas e será organizado a partir do comentário de um livro fundamental na compreensão da experiência intelectual de Foucault. Outros textos menores serão utilizados como direcionadores de discussão. Os comentadores serão indicados no decorrer do curso.
         O primeiro módulo será dedicado à leitura de História da loucura. Trabalharemos, principalmente, a primeira de suas três parte e o último capítulo da terceira parte, este intitulado “O círculo antropológico”. Mas antes de iniciarmos a leitura de História da loucura, teremos uma aula dedicada à apresentação de uma vertente fundamental da filosofia francesa cuja influência em Foucault é visível: a epistemologia histórica de Bachelard e de Canguilhem (diretor de tese de História da loucura). Nesta aula, será questão principalmente do comentário de algumas teses fundamentais de “O novo espírito científico” e “O normal e o patológico”. Quando estivermos analisando o capítulo de História da loucura intitulado “A grande internação”, daremos espaço para a análise da polêmica que envolveu Foucault e Derrida a respeito da tese foucauldiana sobre o cogito cartesiano como momento de expulsão da loucura. Neste sentido, comentadoremos o texto de Derrida “Cogito e história da loucura”, assim como as réplicas de Foucault.
Ao final deste módulo, dedicaremos ainda uma aula ao comentário de um pequeno texto de Foucault intitulado “A loucura, ausência de obra”. Trata-se de um texto privilegiado para medirmos o impacto de uma segunda tradição que irá influenciar a trajetória de Foucault e a composição de seu primeiro grande livro: o “pensamento da transgressão” de Bataille e Blanchot marcado pelas experiências disruptivas do modernismo estético.  Um outro texto de Foucault cuja leitura é recomendável neste módulo intitula-se Doença mental e psicologia, reescrito à mesma época que História da Loucura.
         Nosso segundo módulo será dedicado à leitura de As palavras e as coisas. Antes de abordar o texto, teremos uma aula dedicada ao estruturalismo, já que o livro de Foucault é, sem dúvida, a realização filosófica mais claramente vinculada a este momento da reflexão sobre as ciências humanas em solo francês. O texto-guia desta aula será “Como reconhecemos o estruturalismo?”, de Gilles Deleuze. Ao final do módulo, teremos ainda uma aula dedicada ao comentário de outro pequeno texto de Foucault: “O que é um autor?”. Trata-se de um texto importante por apresentar claramente a posição de Foucault a respeito da temática da morte do sujeito e de confrontá-la com Jacques Lacan, influência importante de Foucault.
         Por fim, nosso terceiro e último módulo será dedicado à leitura de História da sexualidade, em especial seu primeiro livro “A vontade de saber”. A fim de introduzir o conceito de “genealogia do poder”, leremos o texto “Nietzsche, a genealogia e a história”. Veremos ainda dois desdobramentos importantes do conceito foucauldiano de bio-poder através de dois filósofos que tomaram a reflexão de Foucault como ponto de partida: Giorgio Agamben com sua noção de homo sacer (o primeiro capítulo de um livro que se chama exatamente Homo sacer) e Judith Butler com suas reflexões sobre teoria de gêneros em Problemas de gênero, em especial o capítulo intitulado: “Foucault, Herculine e a política da descontinuidade sexual”. 



[1] FOUCAULT, Dits e écrits I, p. 623
[2] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 1152
[3] KANT, Crítica da razão pura,  A 314
[4] GOLDSMITH, Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos, p. 141
[5] FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
[6] FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 14
[7] idem, p. 467
[8] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 467
[9] FOUCAULT, Dits et écrits, p. 1150
[10] FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 15
[11] idem, p. 398
[12] HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 259
[13] PRADO JR, Erro, ilusão, loucura, p. 256
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