Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 150, novembro de 2012.
Governamentalidades da sobrevivência
O PCC (Primeiro Comando da Capital) completa dez anos na década em que se comemora um Brasil melhor: milagre legal e ilegal.
O PCC (Primeiro Comando da Capital) completa dez anos na década em que se comemora um Brasil melhor: milagre legal e ilegal.
Entre o momento de sua demonstração pública de força (2001), passando pelo momento em que exerceu seu poder de governo sobre a cidade (2006), até as atuais mortes de policiais fardados ou não, há o desdobrar de um dispositivo ou o preenchimento estratégico de um velho dispositivo que combina polícia e prisão no regime dosilegalismos. (Conforme anotado neste caderno eletrônico em diversas ocasiões, dentre elas: hypomnemata-extra, de fevereiro de 2001, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=22, hypomnemata-extra, de maio de 2006, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=85 hypomnemata 74, de junho de 2006, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=87; hypomnemata 102, de outubro de 2008, em http://www.nu-sol.org/hypomnemata/boletim.php?idhypom=119).
Em torno dessa sigla transitam policiais, coronéis, comandantes, secretários, prefeitos, governadores, gerentes, aviões, especialistas em segurança pública/sociólogos, jornalistas, comentaristas, donos de biqueiras (pontos de venda no varejo), investidores, usuários, ladrões, rappers, assassinos, investigadores, governadores, gente de bem, com suas propriedades, posições de destaques, e os que são tomados pelos jornais e TVs como agentes do mal.
O PCC não é somente uma organização, ele é um programa; não responde a uma estrutura fechada e piramidal de comando, mas atua por conexões, alianças, forma de atuação, incorporação.
A crônica cotidiana feita em músicas e entrevistas de rappers defende a ambigüidade entre interesses gerais e particulares; ao mesmo tempo deixa claro que o PCC oferece à população pobre proteção e cuidado.
Os rappers fazem eco, com seu linguajar peculiar, aos sociólogos e especialistas em segurança, que com seu linguajar acadêmico sustentam que as chamadas organizações criminosas preenchem a lacuna deixada pelo Estado.
Diferente de estabelecer uma direção organizada, a relação entre as ações das chamadas facções e as instâncias do Estado, regula um ramo de negócio e dá forma a um uso específico da violência em prisões e bairros de periferia.
Não se trata de uma organização piramidal tradicional, mas de uma programação disponibilizada também ao uso entre os enclausurados.
Trata-se de mais um programa fortalecedor da variação dos investimentos políticos na formação de resilientes e que contribui para construir a apologia à sobrevivência e a glorificação de superação das adversidades dentro e fora da prisão, dentro e fora do chamado “mundo do crime” e reforçar o amor pela periferia.
Ninguém se filia ao partido do crime, apenas declara pertencimento e, depois, deve mostrar que é capaz de ser considerado.
Como está estampado na imprensa, para entrar tem que ser convidado e fazer uso do “livre arbítrio” na escolha, mas, assumido o compromisso, deve-se obedecer ao conjunto de regras conhecido por todos nas prisões e periferias.
E assim, passa a compor a hierarquia local, seja da prisão ou da biqueira. Em resumo, institui-se a conduta pelo procedimento.
Governa-se ruas e presídios com paciência, diligência e sabedoria, sem prescindir do uso e ameaça do terror.
Quem segue o fluxo das regras e estratégias instituídas sabe que pra formá, tem que tê procedê.
Deve estar pronto a responder um salve, que virá a qualquer momento.
Vez por outra será necessário, na sua mística aterrorizante, oferecer a carne em sacrifício.
Em tribunais de execução, reuniões, cartas e conferências por meio de celulares, dão forma às suas fantasias de “poderosos chefões“ que mandam na cidade ou em parte dela, em conexões nacionais e internacionais, tendo nas mãos uma legião de miseráveis e nos bolsos um tanto de gente importante.
Sabem da sua condição “revolucionária” (como anunciam em seu revisado estatuto e proclamam por meio das letras de rap) de vanguarda da criminalidade e elite dos miseráveis: eles formam, em composição com as demais forças da sociedade civil organizada, a elite secundária no governo das misérias.
Na conexão Rio-Sampa, combina suas modulações com espelhamentos legais e ilegais pela diversificação do mercado de drogas e programas de governo que orquestram repressão e cuidados.
Como declarou um secretário de segurança, há seis anos à frente da pasta no Rio de Janeiro, trata-se de oferecer uma escolha racional aos cidadãos, na qual eles concluam que é mais vantajoso ficar do lado do Estado que do traficante.
Em São Paulo, seus porta-vozes dizem que o partido é mais competente em pacificar os presídios e os bairros, assim como denunciam não apenas a existência de milícias de policiais e ex-policiais, mas a intensificação da ação de grupos armados conhecidos nos anos 1980 como justiceiros ou “pés de pato”, gente que não conseguiu ser policial ou foi expulso da corporação, mas segue no “combate ao crime” e na execução de “criminosos”.
No entanto, sabe-se que não há dicotomia, mas trânsito lucrativo e negociável entre formas de governo compartilhadas: uma política.
Em meio ao alarme e ao pânico imobilizador, autoridades admitiram que negociam com traficantes e chefes, enquanto especialistas contemplativos reclamam por institucionalidade e transparência das negociações.
sinistro
Há um pacto sinistro; quando rompido, arrasta corpos para valas comuns de quebradas, biqueiras, becos e vielas.
Há um pacto sinistro; quando rompido, arrasta corpos para valas comuns de quebradas, biqueiras, becos e vielas.
Sinistro é uma gíria carioca que designa um sujeito apetitoso no crime, pronto para ação, ameaçador, algo próximo do que em São Paulo se chama de bicho solto oucabuloso.
É também, no Rio de Janeiro, um cara legal, bacana, que faz algo impressionante.
Sinistro, no direito, designa o dano material num evento, seja roubo ou uma colisão de carros.
Para as agências de seguro, é o dano material do objeto segurado.
Sinistro, do latim sinistru, é a mão esquerda, presságio de mau agouro, prelúdio de desgraças: o que é assustador, temível, ameaçador.
Se em italiano essa palavra também é usada para nomear os partidos e movimentos de esquerda, eis mais uma possibilidade de situar o termo; para isso basta voltar à história da formação do Comando Vermelho e constatar em que deu a burguesa distinção entre preso político e preso comum.
Mais uma vez, confirma-se que todo preso é um preso político.
Nas ruas, anuncia-se o caos para produzir o desejo de ordem, que, para muitos, só existe sob os cuidados de um governo, seja institucionalizado ou não.
Nas prisões, a atuação do PCC instituiu uma cultura de paz: sem crack, sem estupros, sem mortes, sem rebeliões, sem sinistro.
Provaram a eficiência do programa em promover a ordem com sabedoria, diligência e paciência.
Primeiro o terror ganhou as ruas, agora os agentes seguem em negociações, televisionadas e a portas fechadas, para que as periferias desfrutem da paz que reina nos presídios paulistanos, sob o governo desse programa chamado PCC e seus preceitos morais, regras, instituições, negócios, parcerias, protocolos.
Não houve nem haverá o fim do terror ou das execuções.
O PCC institui, em meio a um contingente de miseráveis e em parceria com ricos negociadores, uma modulação atual de governos dos ilegalismos.
Na composição entre polícia, prisão, justiça e ambientes, não se mostram como um governo paralelo ou complementar, mas como parceiro de uma governamentalidade específica do social.
É o quinhão macabro, com mortes e execuções, das inclusões de miseráveis pelo mercado.
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