Fundadora do histórico Centro da Mulher Peruana Flora Tristán, Vargas integra o conselho internacional do Fórum Social Mundial. Nos últimos 30 anos, escreveu amplamente sobre democracia, cidadania, Estado e globalização dentro de uma perspectiva feminista. Muito lúcida e combativa, encarna e promove um feminismo aberto, em diálogo com outras forças de resistência, como os movimentos de povos originários, campesinos e demais que são contra as políticas extrativas, pontualmente contra a mineração.
Na entrevista concedida ao jornal Página/12, Vargas avaliou para onde deveriam ir as agendas feministas na América Latina, advertiu sobre a banalização do conceito de “gênero”, referiu-se ao impacto dos fundamentalismos religiosos na região e falou sobre a batalha que as comunidades peruanas estão travando contra a mineração, uma luta pela qual, particularmente, está envolvida. “Neste momento, se os feminismos na América Latina não contam com uma luta aberta, dentro de sua agenda, como dimensão prioritária contra o desenvolvimento econômico neoliberal, buscando alternativas, não vamos muito longe”, considerou.
Vargas foi uma das expositoras “estrela” do 12 Fórum Internacional da Associação para os Direitos da Mulher e o Desenvolvimento (AWID), a maior conferência global feminista dos últimos anos. Durante quatro dias, o fórum aconteceu na belíssima cidade de Istambul, que tem um pé na Europa e outro na Ásia, na qual dos alto-falantes dos minaretes - das muitíssimas mesquitas que há -, cinco vezes ao dia convidam os mulçumanos para rezar. O Fórum do AWID centrou na necessidade de incorporar a dimensão econômica nas agendas feministas. Dentro da conferência, Vargas foi palestrante e ao mesmo tempo ouvinte do seminário sobre a “Reconceitualização do desenvolvimento: exploração de construções alternativas em todo o globo”. Diferentes vozes, entre elas a de Vargas, esmiuçaram o conceito de “desenvolvimento” capitalista, partindo da ideia de que se trata de um processo politicamente construído e, portanto, pode ser definido, pensado e (re)formulado de diferentes maneiras.
É a hora do almoço. O sol brilha sobre o estuário do Corno de Ouro, que desemboca no Bósforo, diante do Centro de Convenções de Istambul, onde mais de duas mil mulheres, de 140 países, participam de um encontro internacional singular devido à diversidade de origens e das temáticas em discussão. O sul global tem ampla presença. Da América Latina há umas 250 participantes. Da Argentina, próximo de uma dúzia.
A entrevista é de Mariana Carbajal, publicada no jornal Página/12, 10-07-2012. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
No atual contexto político, como deve ser redefinida a agenda feminista na América Latina?
Acredito que está se redefinindo, rápida e drasticamente, de muitas formas. Não é que temos perdido nossas lutas históricas: pelo direito ao corpo como território, pela dissidência sexual, pela justiça. No entanto, agora, esta luta exige outras dimensões. O grave problema que temos é que o modelo neoliberal tem se solidificado não apenas naqueles governos de direita, que estamos acostumados, mas também naqueles governos que dizem, pretendem ou desejam ser de esquerda ou progressistas. Eles não têm abandonado a lógica extrativista, uma das dimensões mais dramáticas. Se nos anos 1980 e 1990, os feminismos pertenciam a certo setor social, neste momento, desde fins do século passado até agora, se enriquece tremendamente pela grande diversidade de vozes que antes não existiam com a força que agora possuem, como os feminismos indígenas e os afro-latinos, que questionam claramente algumas de nossas categorias, como a de gênero.
O que enfocam?
Primeiro é preciso dizer que o gênero se tornou um termo tecnificado. O Banco Mundial o usa como um cavalo de batalha para assumir a problemática de mulheres; os nossos ministérios e instituições o usam como um termo técnico apolítico. Porém, outras críticas, das feministas negras, dizem que a forma em que nós concebíamos as dinâmicas de gênero bipolares não considera o que são suas formas de vida.
Na América Latina, há um ressurgimento dos fundamentalismos?
É trágico, pois também corresponde a uma nova geopolítica do poder, do mesmo modo em que, neste processo, osfundamentalismos islâmicos têm crescido, inclusive, naquilo que temos chamado com tanto entusiasmo de “revolução árabe”. As mulheres árabes, com as quais estamos nestes dias, no Fórum AWID, diziam: “Para nós, está começando a ser o outono árabe, porque todos os direitos conquistados e as nossas lutas nas ruas e nas praças, para fomentar esta primavera, estão sendo absolutamente varridos”. Aparentemente, isso poderia parecer uma realidade distante da América Latina, mas não é assim. Não existem os fundamentalistas islâmicos, mas temos osfundamentalistas católicos que perseguem os homossexuais, porque – segundo eles – são desviados, doentes; e o direito das mulheres de decidirem sobre seu próprio corpo. Em meu país, a Opus Dei está enfiada em todos os lugares. O grande líder da Igreja Católica no Peru é capaz de dizer que os direitos humanos são uma grande bobeira. O que acontece na América Latina é muito perverso, porque a Igreja atua como poder fático. Ninguém elegeu a Igreja. É um poder privado. No entanto, está absolutamente metida nas decisões políticas dos países.
O que está acontecendo em Cajamarca, no Peru, na luta pela água?
O Peru é um país com poucos processos de industrialização, mas conta com uma grande riqueza ecológica e mineira, de ouro, de cobre, de prata. O ouro está sempre sob as lagoas, não sobre as colinas. Então, as companhias mineradoras que antes estiveram no município de Cajamarca (cerca de 800 quilômetros ao nordeste da cidade de Lima), e a empresa Yanacocha, que tem sido a mais destruidora, vêm arrasando lagos e toda a economia do local. Existe uma nova proposta da mineradora Conga, que é sucursal da Yanacocha. E a Conga se desenvolve num olho de água que enche os lagos da área. Primeiro foi a luta para que a Conga não atuasse. “Conga não”, tem sido a palavra de ordem. Porém, quando o governo disse: “Conga sim”, todas as pessoas se mobilizaram para dizer: “Não queremos a Conga, mas, sobretudo queremos a água”. A água passou a ser a palavra de ordem fundamental. Fez-se uma marcha de todas as regiões do interior do país para Lima. Foi espetacular porque participou muita gente jovem, indígenas, campesinos, muitas mulheres. E também houve muitíssima solidariedade, em Lima, de homens e mulheres jovens e velhos.
No Peru, existem grupos feministas que articulam as demandas pelo meio ambiente?
Claro. Concretamente, o feminismo a partir do qual eu atuo, que é heterogêneo. Os feminismos não são únicos, são plurais, mas toda esta tendência majoritária está comprometida com esta luta contra o extrativismo, pela defesa dos bens comuns da natureza como bens que possuem direitos, com bastante relação com outros movimentos. Se empaíses pluriculturais e multiéticos essa característica não toca os movimentos, eles ficam mancos.
“Deve-se recuperar a luta pela terra”
Uma feminista brasileira, Sueli Carneiro, um dia, quando estávamos conversando, me disse: ‘Quando vocês dizem que estão lutando para que as mulheres rompam o confinamento doméstico e saiam ao público, de que mulheres estão falando? Se nós nunca estivemos fechadas em casa: fomos escravas, amamentamos os filhos e as filhas dos patrões, fomos vendedoras ambulantes, prostitutas, fomos tudo, menos estivemos fechadas em casa’. E as feministas indígenas dizem: ‘Vocês não estão contemplando o que são as raízes culturais daquilo que são as cosmovisões de indígenas e andinas’. Não é questão de retirar o gênero, mas se colocar na absoluta obrigação de reconceitualizar os próprios conceitos com os quais estávamos avançando.
Para onde devem ir então as agendas feministas?
Neste momento, se os feminismos na América Latina não contam com uma luta aberta, dentro de sua agenda, como dimensão prioritária contra o desenvolvimento econômico, buscando alternativas, não vamos muito longe. Levando em conta que já vem a Conferência Mundial Rio+20, devem ser recuperadas outras dimensões de luta como “a soberania alimentar”, a luta pela terra e o território, que passam a ser dimensões chave nas lutas feministas. E, é claro, a luta contra todas as tentativas dos governos do Norte, mas também de muitos do Sul, em pretender superar a crise, criada por eles, com alternativas como o capitalismo verde, que coloca preço na natureza, que liquida diretamente os direitos dos povos indígenas, e de todas as pessoas na sociedade, para viver de acordo com o que são suas próprias necessidades.
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