Em nossa estranha sociedade, tornou-se possível contratar animadores de festas, alugar úteros e até pagar visitas a túmulos. A multiplicação de tais serviços perturba nossa noção do que deve ou não ser comprado ou alugado
Por Thomaz Wood Jr., em Carta Capital
O tema é tratado há décadas no mundo corporativo. Como é de conhecimento até mesmo das correias transportadoras, terceirizar significa contratar externamente uma atividade da cadeia produtiva, em lugar de realizá-la internamente. O suposto objetivo é melhorar a qualidade e reduzir custos. Pressupõe-se que um processo bem conduzido permite à empresa que terceiriza concentrar-se em suas atividades essenciais, enquanto adquire serviços e produtos não essenciais de outras empresas, mais eficientes em suas especialidades.
Até os anos 1970, as empresas eram fortemente integradas. Para produzir automóveis ou fraldas descartáveis, era preciso controlar as respectivas cadeias produtivas e seus “afluentes”. Com isso, as empresas gerenciavam dezenas de serviços de apoio, pouco relacionados às suas atividades-fim: de restaurantes industriais até o transporte de funcionários. A partir do último quartil daquele século, a terceirização avançou sem piedade, gerando ganhos de eficiência.
No entanto, nem todos foram vencedores: muitos profissionais foram demitidos ou tornaram-se trabalhadores de segunda classe. Além disso, o processo expôs as empresas a riscos relacionados ao vazamento de know-how, rupturas no fornecimento e ameaças à reputação. Significativamente, surgiu o termo primarização, o inverso da terceirização, ou seja, deixar de realizar algumas atividades externamente e voltar a controlá-las diretamente.
O fenômeno da terceirização é substantivo e relaciona-se a mudanças econômicas amplas. Curiosamente, conforme aconteceu com outras práticas e termos originados na vida corporativa, também a terceirização invadiu a vida privada. Como em outros casos, a nova onda se deu pela oratória onipresente dos gurus, por meio dos livros de gestão e pela ação da irritante mídia de autoajuda.
Arlie Russell Hochschild, professora emérita de sociologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley, escrevendo no New York Times, apresenta aos leitores awantologist Katherine Ziegler, que ostenta um Ph.D. em psicologia, mas trabalha ajudando seus pacientes a descobrir o que querem da vida. A Want-ology®, explica Hochschild, foi criada por Kevin Kreitman, uma engenheira industrial especializada em qualidade total, produção enxuta, planejamento estratégico e mais uma lista robusta de modas gerenciais. Originalmente, o objetivo da criadora era orientar gestores a tomar decisões técnicas de compras em suas empresas. O salto para os seminários de autoajuda e o surgimento de discípulos, como Ziegler, parecem ter sido pequenos.
Hochschild observa que a mera existência de wantologists é reveladora de quanto o mercado penetrou em nossas vidas privadas. Hoje é possível contratar animadores de festas, alugar úteros e até pagar visitas a túmulos. Metemo-nos em um ciclo vicioso. A vida moderna nos tornou mais ansiosos, isolados e sem tempo. Para enfrentar esse contexto, trabalhamos mais tempo e mais intensamente para financiar serviços extras. Isso nos deixa ainda menos tempo para passar com nossa família, vizinhos e amigos. Com isso, temos menos chance de recorrer a eles (e eles a nós) para pedir ajuda. Assim, recorremos ao mercado. E o mercado atende sorrindo as nossas novas necessidades.
De fato, a facilidade com que acessamos hoje os mais variados serviços nos impede de perceber o quanto foi transformada a noção do que deve ou não deve ser alugado ou comprado. O que nos reserva o futuro? Muitas empresas avançaram tanto na terceirização que se tornaram cascas vazias, a zelar pela marca e pela imagem, e a observar a distância as atividades físicas de produção, transporte e distribuição. Seguirão os indivíduos a mesma trilha? Seremos, no futuro, apenas gestores de uma marca pessoal, terceirizando atividades físicas e emocionais para o mercado? Ao observar o comportamento de torcedores de equipes de futebol, tem-se a impressão de que o futuro é aqui, agora.
Derek Thompson, escrevendo no website da revista The Atlantic, relativiza os comentários críticos de Hochschild, sugerindo que, à medida que a humanidade segue seu inexorável caminho rumo ao enriquecimento material, a fome deixa de ser uma preocupação. Toma o seu lugar o preenchimento de necessidades psicológicas mais sofisticadas. Daí a emergência de serviços como o prestado pelos wantologists. Será?
Ao focalizar nossa atenção nos resultados, explica Hochschild, afastamo-nos dos aspectos mais significativos da existência. Atingimos nossos objetivos, concluímos a compra e conseguimos a entrega pretendida. Perdemos, porém, o prazer, a sabedoria e a conexão com nossos pares, que vêm com a busca e a realização.
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