Por Gregorio Baremblitt
Introdução e
Advertências
Como já reiteradamente
observado, a classificação das modalidades de violência que vigem no Brasil (e
no mundo) é de muito difícil elaboração. Uma definição muito precária consiste
em qualificar propriamente de violência todo ato corpóreo ou incorpóreo
que não esteja a serviço - ou atue contra - a sobrevivência e a melhoria da
qualidade de vida da espécie humana como um todo. Por outro lado, chamamos de violência ao conjunto
aberto de atos corporais ou incorporais extremados, cujos fins e meios estão
destinados a contrariar o objetivo mais próximo que acabamos de definir.
Em primeiro lugar, é preciso considerar
as formas de violência já caracterizadas pela Lei e as que não o estão, apenas
como introdução ao tema, e que, entre as que a Lei não contempla estão a
natureza e o conteúdo da Lei mesma, que, sendo um produto histórico, envolve
violências constitutivas de acordo com a vaga definição acima insinuada. Além
dessas violências essenciais, o problema da Lei é a insuficiência e a
parcialidade vergonhosa com que é aplicada.
Em segundo lugar, e com similar
imprecisão, talvez se possa falar de micro e macro violências, medindo-as em
tempo e espaço convencional, sendo que, desde logo, essa divisão não é sinônima
de maior ou menor gravidade dos atos praticados ou omitidos. A possibilidade de
tratar a questão em termos de violência molar e molecular (e isto se repetirá
com alguma freqüência neste texto) emprega uma terminologia esquizoanalítica
cujo esclarecimento excede os limites deste escrito conjuntural; da mesma, só
podemos dizer que, de modo geral, a violência molecular está imperceptível e
predominantemente, ainda que não exclusivamente, a serviço da "Biolência".
Em terceiro momento, e apenas como
reflexão acerca de um aspecto da discutida “violência simbólica”, permitimo-nos
aludir a alguns autores que afirmam que a violência no Brasil não pode ser
qualificada de Guerra Civil porque um dos lados em conflito não quer implantar
outra ordem ou projeto social, apenas transgredir o vigente. Esta tese é
bastante questionável porque:
a) Não existem
apenas dois lados, mas muitos deles, em luta.
b) Se, como
parece provável, esses autores se referem a um dos lados como o conjunto
artificialmente reunido do “crime organizado”, o fato duvidoso de que essa
facção “não quer mudar a ordem constituída” se deve a que a natureza e a
efetivação do atualmente operante é por ele considerada favorável. Não
obstante, caso se tome o conjunto amplo e difuso da violência em curso como se
fosse “um lado” e se lhe atribua uma intenção, o mesmo tem, sim, uma proposta
de organização social; tal projeto é o de levar ao extremo compatível com uma
democracia formal, nominal e indireta a impunidade relativa que hoje o protege
e propicia suas ações.
c) Como
conclusão, cremos haver, sim, no Brasil, um estado de Guerra Civil não
declarada, não totalizável, fragmentária, dispersa, com episódios isolados
ocasionais, outros notórios e organizados, porém com persistência e magnitude
registradas e não registradas, assim como enquadradas e não enquadradas
juridicamente, que nos permitem caracterizá-las como uma guerra interna.
d) Uma das
peculiaridades que favorecem o não reconhecimento da citada condição é a
infiltração mútua entre “as partes” (atravessamento) que, dito de uma maneira
simplista, consiste na cumplicidade passiva ou ativa das instituições,
organizações, equipamentos, agentes e práticas sociais “legais” ou “morais”
(especialmente as que têm o direito ao uso monopolista da violência) com os
grupamentos e ações mais ostensivas e ilegalmente violentas.
e) A questão
sobre se essa contenda não ser uma Guerra Civil por ausência de conteúdo
político depende, obviamente, do que se entende por política e de se acreditar
ou não que a guerra “é a continuação da política por outros meios”.
A guerra, seja qual for a modalidade
adotada, é um ato notadamente político e a política, especialmente nos períodos
de totalitarismo ou ditadura (e também nos de pseudodemocracia) é um estado de
guerra dissimulado. Guerra e política
são imanentes entre si. Paz e política também. Suas simultâneas e sucessivas
modalidades e a distribuição e dominância das mesmas em um processo incessante
cujo direcionamento evolutivo e a chegada a um estado de equilíbrio estável e
desejável não estão nunca garantidos.
A violência, delituosa ou não, permeia
todas os setores da sociedade brasileira, sendo a mais preocupante para o
capital, o governo, a imprensa, as igrejas e os setores “mais favorecidos” da
Sociedade Civil aquela que ocorre nas favelas, cidades pobres do interior e nas
lutas pela reforma agrária e contra ela.
Resumo do panorama mais ou
menos relacionado originalmente ao que se costuma considerar como
peculiaridades e causas da violência, especialmente da violência armada
(ou: "De Como As Coisas
São" - I):
1)
Pouca produtividade relativa ao tamanho, riqueza
natural, benevolência climática, homogeneidade idiomática e história escassa de
guerras do país.
2)
Oligopólios latifundiários, financeiros,
industriais, comerciais, comunicacionais de conhecimentos e oligarquias políticas.
3)
Dívida externa e interna, renovadas e
impagáveis, por empenhos e serviços de destino duvidoso.
4)
Extrema desigualdade na distribuição da renda,
nos modos de consumo e na propriedade e uso de bens semiduráveis e duráveis.
5)
Estado hipertrofiado e organizacionalmente
redundante, fisiológico, nepótico, patrimonialista, eleitoreiro, incompetente e
corrupto, quase sempre ameaçado de golpe militar.
6)
Estrutura partidária excessivamente numerosa e
não representativa, com livre trânsito de um grupo para o outro e com todas as
características que enunciamos para o Estado.
7)
Forças Armadas obsoletas e ociosas.
8)
Polícias separadas, numericamente insuficientes,
mal equipadas, mal treinadas, mal pagas e, muitas vezes, cúmplices do crime ou
protagonistas do mesmo.
9)
Poder Judiciário antiquado, conservador e
corporativo, também insuficiente em pessoal, equipamentos e atualização, além
de moroso, chegando a incompetente e venal.
10)
Sistema carcerário absolutamente inadequado,
composto por estabelecimentos centralizados, enormes e superpovoados, com
péssima alimentação e condições de saúde e higiene, nas quais se mesclam,
delinqüentes mais “leves” com “inimigos públicos” de grande porte, detidos
“saudáveis” com portadores de doenças infecto-contagiosas em total
promiscuidade. Como se sabe, esses grandes criminosos dirigem seus “negócios” e
suas guerras a partir do cárcere e saem deles quando e como querem valendo-se
do suborno ou das tomadas por assalto dos estabelecimentos.
11)
Cumprimento insuficiente ou descumprimento das
políticas públicas como deveres de Estado em: alimentação, educação, saúde,
habitação, transporte, seguridade, comunicações, energia, saneamento básico,
planejamento urbano, preservação ecológica etc.
12)
Descumprimento da Reforma Agrária, migração
massiva do campo para a cidade, formação de cidades-satélites precárias e de
grupos de sem-teto correspondentes a cada bairro das grandes e médias cidades.
13)
Miséria, pobreza, hiponutrição, desnutrição,
analfabetismo, insalubridade, alcoolismo, tóxicodependência, desemprego, subemprego,
emprego informal, mendicância.
14)
Comércio, Contrabando e/ou tráfico de:
a)
Armas (protagonizado pelos narcotraficantes,
contrabandistas e até pela Polícia, Forças Armadas e as de Segurança Privada);
b)
Tóxicos e medicamentos ilegais;
c)
Crianças, púberes e adolescentes (para o
trabalho escravo, a prostituição, a pornografia, o transplante de órgãos e a
adoção ilegal);
d)
De todo tipo de produtos, desde cigarros até
eletrodomésticos, automóveis e, como já dissemos, drogas e armas;
e)
Imigração e emigração ilegal com diversos fins
ilícitos.
15)
Fraudes,
furtos, roubos, assaltos, raptos, estupros, assassinatos encomendados ou
ocasionais, castigos brutais, especialmente em mulheres e crianças, subornos e
desvio de fundos oficiais por funcionários de Estado de toda a escala hierárquica,
amplo emprego da máquina estatal com fins privados ou partidários. Cumplicidade
com as empresas servidoras ou provedoras do Estado. Grande morbi-mortalidade
por hipoalimentação, falta de saneamento básico, enfermidades cardiovasculares
e tumorais sem tratamento precoce adequado, especialmente por enfermidades
parasitárias e infecto-contagiosas (mesmo as preveníveis), abortos
autopraticados e falta de assistência materno-infantil, por absoluta
insuficiência do Sistema Unificado e os altos custos do Sistema Privado de
Saúde, por acidentes de trânsito, de trabalho e atos criminosos.
16)
Incremento notável, nos últimos cinco anos,
das mortes chamadas violentas, em sua maior proporção por armas de fogo e em
maior quantidade entre indivíduos menores de 25 anos. Ao que parece, existe um
alto número de armas curtas de fogo em poder das organizações criminosas além
de outras de maior potência, como fuzis, metralhadoras, granadas, bazucas e até
mísseis. Por outro lado, a população civil possui, registradas ou não, armas de
fogo com fins de defesa e também entre as classes “mais favorecidas”, como
colecionadores, desportistas ou caçadores... Estima-se que, no
Brasil, o volume financeiro mobilizado pelo tráfico de drogas, somado ao de
armas, ao da prostituição e diversas modalidades da pornografia, além da
lavagem do dinheiro proveniente dessas práticas implica num capital equivalente
a perto de 5 a 10 % de PIB nacional. É importante recordar que o Brasil é, de
fato, um parque nada desprezível de consumo e, mais que isso, constitui
importantíssima estação de passagem para os EEUU e Europa das drogas produzidas
na Colômbia, Peru e Bolívia e, em menor proporção, em outros países
latinomericanos além do próprio território nacional. Não saberíamos dizer, do
montante de drogas que chega por avião às pistas clandestinas de aterrissagem
na Amazônia, por terra, na “tríplice fronteira” ao sul do país ou por mar, nos
oito mil quilômetros de costa, o quanto é consumido pela sociedade brasileira e
a quantidade “exportada”. Sabe-se, porém, que o lucro dessas operações é
extraordinário. Os Organismos e o
quantitativo de fundos destinados pelos EEUU ao controle da entrada e consumo
de drogas no país reconhecem pública e recentemente seu fracasso relativo no
alcance dos objetivos propostos.
17)
Racismo mais ou menos dissimulado (mais
“suave" que em outros países) com uma certa publicidade de tolerância e
orgulho por uma hibridação supostamente assumida, reforçada pelo êxito das
raças “não brancas” nos esportes, na arte (sobretudo a popular), no Carnaval,
na beleza das mulheres, nas fantasias de extraordinária virilidade nos homens
etc.
18)
É verdade que na famosa escala de medição do
racismo idealizada e aplicada por Mac Dougall (ver “A natureza do prejuízo”) é
bem provável que o racismo brasileiro estaria entre os menos virulentos. A questão, porém, se complica quando, por
exemplo, à condição de negro, mulato, caboclo ou “nordestino”, se soma à do
marginalizado, excluído, desinserido, analfabeto absoluto ou relativo,
desempregado, pobre, desasseado, mal vestido. Esse conjunto de características
leva quase imediatamente à atribuição de marginal ao portador de tais condições, o que significa dizer, de qualquer das
categorias delituosas antes mencionadas. Um aspecto curioso é que a mesma
figura, com idênticas peculiaridades, que leva ao delírio a juventude branca
como cantor popular, inspira pânico em um encontro casual ocorrido em lugar
pouco freqüentado, não sendo necessário que a hora seja considerada de risco
(tarde, noite etc).
19)
Em conseqüência global e imprecisa do panorama que
acabamos de descrever (determinar com exatidão a incidência de cada uma das
“invariantes” e das “variáveis” na causalidade do emprego violento de armas de
fogo só é possível fazer de forma sempre parcial e provisoriamente), cremos que
uma certa classificação é viável. Na posse e uso de armas curtas
de fogo (revólveres, pistolas, automáticas ou não, fuzis comuns, escopetas,
carabinas etc) - omitimos aqui as mais sofisticadas-, é preciso distinguir:
a)
Os membros de organizações ou quadrilhas
criminais dedicadas ao tráfico de drogas, de armas, ao assalto à mão armada, ao
rapto com exigência de resgate;
b)
Os membros de tríades, duplas, ou solitários que
praticam delitos similares aos citados no ponto anterior;
c)
Os profissionais de segurança privada ou
pública;
d)
Os cidadãos proprietários legais de arma
adquirida por vias lícitas e com autorização para portá-las ou apenas a
mantê-la guardada em seu domicílio ou local de trabalho.
e)
Aqueles que possuem, portando ou não, armas
ilegalmente adquiridas de quem, por sua vez, as obteve através de contrabando,
roubo levado a efeito no comércio do ramo ou em residências civis, ou de compra
ilícita.
20)
Excetuando as categorias c) e a d),
citadas no ponto anterior, que requerem tratamento à parte, todas as demais
podem configurar os casos de crianças, púberes ou adolescentes, usuários de
armas curtas de fogo. Nos casos c) e d), a criança ou o jovem podem
apropriar-se eventual ou duradouramente da arma, subtraindo-a de suas casas e,
não muito raramente, com autorização do
adulto proprietário legal.
Os dispositivos de produção
de crianças, púberes ou adolescentes munidos com armas de fogo
(ou: "De Como As Coisas
são" - II )
Restringindo-nos,
pelo menos neste texto, à versão urbana e suburbana do problema que nos ocupa,
digamos que, em uma primeira aproximação, quase descritiva, o uso de armas de
fogo por menores parece estar constituído de maneiras molares gritantemente
perceptíveis.
Algumas das
peças dessas máquinas são universais, ainda que atuem de maneira diferente na
produção de subjetividades, valores, ideais, funções psicomotoras etc. dos
afetados. Elas são: a desintegração das famílias comparada com o modelo da
família nuclear burguesa e sua substituição (ou não) por famílias sui generis, muitas das quais são
funcionais e verdadeiras invenções, enquanto outras mandam seus filhos pedirem
esmolas ou venderem guloseimas nas esquinas, ou incentivam suas filhas a se
prostituírem ou cedem (na maioria das vezes involuntariamente) suas crianças e
jovens ao tráfico ou às gangues de ladrões ou assaltantes, todos fortemente
armados; o predomínio do uso de armas nos scripts da televisão,
os cinematográficos, as revistas de quadrinhos, os periódicos amarelos ou
marrons, as rádios do mesmo tipo, a prevalência bélica do tipo de jogos e
brincadeiras existentes na atualidade, a intensa e permanente incitação ao
consumo (tanto quando o mesmo é viável e mais ainda quando não o é), a
incitação à competitividade, ao individualismo, à ambição insaciável por bens
materiais e status, a suscitação
da “agressividade” (dito no sentido de um otimismo, de uma afirmatividade e
audácia que chegam à temeridade em todas as atividades), a inculcação do maniqueísmo:
êxito-fracasso, segundo o qual quem tem é e quem não
tem
não é nada; a falta absoluta de ética e a despolitização utilitária do ensino, a
desmoralização do Estado como Governo, dos Guardiões da Ordem, da honestidade e
o sentido social da propriedade e do
trabalho, a crise dos grandes meta-relatos orientadores como a Religião,
as concepções filosóficas e/ou políticas do mundo, a confiança na ciência e no
progresso etc.
Em
suma: os vícios próprios do Modo de Produção Capitalista Neoliberal, do Regime
de Governo Democrático Formal ou Nominal e do Sistema de Produção de
Representações e Subjetividade do Cinismo.
Apenas
como ilustração desse Cinismo (nem sequer uma das piores), recorde-se, a
propósito do problema do desarmamento da população, que o governo brasileiro
acaba de tomar uma série de medidas para promover a fabricação em massa de
armas curtas de fogo para exportar para outros países.
Falando algo
mais singularmente, por exemplo, para os menores das classes altas, a vivência
de que sua família vive em condomínios fortemente guardados por homens armados,
que esses homens acompanham a ele e a seus familiares em suas “saídas para o
exterior”, ou seja, para a cidade, que os automóveis da família são blindados,
que suas escolas, clínicas etc. tendem cada vez mais a se constituir dentro dos
condomínios etc. não pode senão fundar nesses pequenos sujeitos a certeza de
estarem em permanente perigo de rapto ou morte. Sua capacidade de aderir à
parafernália de medidas defensivas e de protagonizá-las pessoalmente, somada às
facilidades de que desfrutam para adquirir armas ainda que através de seus
guarda-costas, é muito grande. Alguns progenitores desses grupos sociais
propiciam para seus filhos a prática de tiro ao alvo, assim como inumeráveis
técnicas de defesa pessoal. Os jovens de classe alta e média-alta adotaram uma
figura a que chamam de Pity
Boy (por
referência a essa raça de cão de extraordinária e imprevisível ferocidade),
preparados em todas as artes marciais e até armados.
Outros
jovens das camadas médias e médias-baixas, ou aqueles portadores de transtornos
de personalidade ou que têm conexões de parentesco com policiais ou militares
ou fazem parte de organizações políticas
de extrema direita ou esquerda que propugnam a luta armada ou outras facciosas,
fanáticas, sectárias de cultos violentos possuem e portam armas de fogo.
Nesses
níveis sociais, o pretexto para essa aquisição de instrumentos de violência é,
invariavelmente, a autodefesa, mas, muito freqüentemente, por razões banais,
por alcoolização, por vicissitudes da relação com as jovens ou até por domínio
sobre territórios, os recursos violentos são usados de maneira espontânea e
ativamente agressiva.
É
conhecido e, com freqüência, esquecido que, em vários lugares, especialmente no
Rio de Janeiro, os administradores de grandes shows, em combinação com a polícia,
organizam grandes simulacros de batalhas campais, distribuindo aos
“combatentes” bastões de isopor e cadeias de goma-espuma com a finalidade de se
atacarem mutuamente sem causar-se dano
(depois de haver-lhes retirado, na entrada, todas as armas que traziam
consigo).
No
caso dos favelados, a situação varia bastante de um conglomerado ao outro, não
obstante seja possível fazer certas hipóteses sobre algumas constantes com base
em experiências e pesquisas limitadas.
Ao
que parece, a maioria das favelas é território de uma facção de traficantes de
drogas, que deve defendê-lo do ataque de outra proveniente de outro morro ou de
outra cadeia nacional de bandos. Às vezes, duas facções coexistem no mesmo
local e lutam continuamente entre si pela ocupação das “bocas” de
comercialização dos tóxicos.
No
geral, pode ocorrer que a polícia esteja completamente ausente desses locais e
não responda às denúncias e pedidos de ajuda da população ou, ao contrário,
tenha alguma sede próxima ou dentro do território e o patrulhe com certa
freqüência.
No
primeiro caso, os moradores legais e pacíficos das favelas afirmam que os
traficantes não se intrometem com eles, a não ser para tentar recrutar
“agentes”, coisa que fazem regularmente entre as crianças, púberes e
adolescentes. Para consegui-lo não costumam usar a violência, mas a sedução da
droga, do dinheiro e do poder das armas. Os moradores sustentam que os
traficantes têm terríveis batalhas entre si, durante as quais toda a população
corre o perigo de ferimento por balas perdidas. Por outro lado, os traficantes
atuam como uma espécie de justiceiros, punindo quem ofende ou prejudica os
moradores de sua favela, especialmente para evitar que alguma denúncia policial
dê resultado e a polícia “suba o morro”. O que as quadrilhas não perdoam à
vizinhança é a delação, a competição “desleal” com o tráfico ou o não pagamento
de dívidas eventualmente contraídas com os chefes do tráfico.
Por
outro lado, as facções, por exemplo, assaltam caminhões nas rotas, roubam
eletrodomésticos e os revendem à população da favela por um quarto de seu
valor, criando uma imagem de benfeitores e justiceiros. A relação entre
traficantes, contraventores ou “bicheiros”, a população favelada, a alta ou
média “sociedade civil” e os funcionários municipais, estaduais e federais,
incluídos os vereadores, deputados, secretários, governadores, agentes de
cartórios, advogados, juízes etc. é um capítulo demasiado complexo para ser
tratado neste texto. Mas a ninguém escapa o fato de que compõem intrincadas
redes de desvirtuação das mais excelsas instituições e personalidades do país.
A
população, em proporções difíceis de precisar, se queixa de que a polícia é
cúmplice ou chantagista dos traficantes, que os provê de armas e pratica com
eles tráfico de influência ou de proteção. Por outro lado, os moradores afirmam
que a polícia é mais torpe e indiscriminada que os traficantes durante as
confrontações, de modo a ferir e matar muito mais civis que o fazem os
criminosos. Uma recente chacina, aparentemente realizada por elementos
corruptos da polícia militar, chegou ao extremo de matar ao acaso civis
inocentes em represália, não se sabe por qual desobediência de suas imposições.
A
polícia (em todos os seus segmentos) se queixa, como é sabido, de falta de
contingente, de baixos salários, insuficiência de veículos e sistemas de
comunicação, assim como reconhecem que os traficantes possuem armas de última
geração frente às dos policiais que são antiquadas. Os agentes de polícia
completam seu salário com prestação de serviços particulares podendo trabalhar
até 16 horas seguidas. Sem entrar na validade e magnitude de sua suposta
corrupção, cabe assinalar que são freqüentes, entre eles, casos de alcoolismo,
transtornos mentais e suicídio, obviamente relacionados com os percalços de sua
profissão.
Em
certos casos, o inquérito e julgamento de alguns acusados bem defendidos dura
mais de cinco anos sendo benignas as condenações e existindo para eles
tratamento preferencial. Um dos argumentos para não imposição da pena de morte
no Brasil não é exatamente que a mesma não se demonstrou eficaz em outros
países, mas que “todos os condenados seriam pobres e negros”.
A
possibilidade de implantação no Brasil de uma campanha nacional do tipo da
realizada pelo prefeito de Nova York, Juliani, a chamada “Tolerância Zero”, é,
segundo a opinião dos experts, absolutamente impossível. O país do “jeitinho”,
do carnaval, do futebol e das religiões afro-cristãs, considera a aplicação
rigorosa da Lei como “sacanagem” (perversão), dada a inviabilidade de se aplicar
as penas, o que talvez seja razoável de se pensar. Considera-se que,
atualmente, existem mais de duzentos mil condenados em liberdade por falta de
espaço nas penitenciárias.
Para
não nos estendermos demasiado, digamos que as últimas medidas tomadas pelo
Ministério da Educação (modificação do sistema de provas, de promoção de
período, quota obrigatória de inscrição de alunos negros etc.) estão longe de
dissimular a existência de um grande número de analfabetos absolutos e outro,
talvez maior, de analfabetos relativos, sem contar que, nas provas dos exames
vestibulares, se observa que uma quantidade importante de candidatos não
entende os textos que lê, bem como não se ignora a freqüência de todas essas
deficiências entre vereadores e outras autoridades.
Algumas
idéias óbvias acerca do “que fazer"
(ou:
"De Como As Coisas Deveriam Ser")
Apenas
para recordá-las, digamos que as medidas ideais (e, por serem ideais,
claramente irrealizáveis, todas juntas e em um futuro imediato), seriam as
seguintes, enfatizando que a ordem de exposição não implica em nenhuma prioridade:
1)
Uma efetiva Reforma
Agrária que permita o retorno dos migrantes do campo para a cidade a seus
lugares de origem, com garantias de trabalho e de uma vida digna.
2)
Uma ampla negociação para
reformar inteiramente a estrutura urbana das favelas, construindo conjuntos
habitacionais, seja nos mesmos terrenos ou em outros, diferentes, sempre que se
garantisse infra-estrutura básica e transporte adequado. Para dar apenas um
exemplo: no Rio de Janeiro, segunda população em favelas do país, a Colônia
Juliano Moreira (hospital psiquiátrico arcaico governamental situado em um
bairro residencial) dispõe de mais de quarenta hectares de bosque,
completamente desabitado, perfeitamente utilizável para a construção de
qualquer projeto de urbanização popular.
3)
Criação de uma rede de
escolas de capacitação técnica com prática em produções simples (Por exemplo:
todo tipo de alimentos hortigranjeiros e frutíferos já processados, artigos de
limpeza, certas embalagens, instrumentos de cozinha, mesa e jardim, tudo o que
tenha a ver com cerâmica, móveis e jóias rústicas, instrumentos musicais
elementares, trabalhos com couro, imagens folclóricas e religiosas feitas com
diversos materiais como pedra, madeira entre outros, colchas, toalhas etc.).
Facilitar não só a distribuição e venda local e no território nacional, senão a
exportação realizada por agências de Estado. Outra sugestão é a qualificação
para, por exemplo, serviços de apoio, domésticos ou empresariais, tais como
limpeza, pequenos consertos elétricos, de alvenaria, hidráulica, vigilância de
ruas e residências etc. Já em outra escala, apoio preferencial a todas as
iniciativas de economia solidária, quando as mesmas são em maior escala ou
atividades mais complexas.
4)
Habilitação de uma ampla
linha de crédito, a baixíssimos juros, para favorecer a fundação de
micro-empresas, cooperativas, ou uma nova categoria de empresas populares
coletivas destinadas à fabricação e serviços citados no ponto anterior, com
prévia negociação da formação necessária para esse trabalho e do destino que
será dado aos produtos.
5)
Legalização das drogas e
fiscalização estatal de sua produção, venda e consumo.
6)
Proibição da venda de armas
a todo aquele que não se saia bem num exame que demonstre amplamente sua
competência para usá-la, além de passar também por um estudo de seu currículo
social e demonstração convincente de para quê pretende empregá-la.
7)
Unificação,
profundo treinamento, adequado armamento, equipamento geral (por exemplo,
aumento da patrulha aérea) e digna remuneração de todas as forças policiais e também de
um importante contingente das Forças Armadas. Vigilância contínua das
fronteiras e costas, assim como do espaço aéreo; localização e destruição das
pistas de aterrissagem clandestinas. Colaboração estreita com a Interpol e
outros organismos internacionais de combate ao narcotráfico e ao contrabando.
8)
Instalação de
“minicomplexos” formados por: postos policiais bem equipados e seguros e
estreitamente conectados entre si e com suas centrais, com contingentes de
segurança circulando continuamente por: creche, escola de primeiro grau, escola
técnica, posto de saúde, agência bancária, escritório governamental de recepção
de reivindicações e propostas coletivas (mutirões etc), pequeno centro
esportivo, segundo um cálculo de X quilômetros quadrados de território das
favelas, número de habitantes e presença de tráfico ou de outras organizações
delituosas. Redes de Assistência Social e de Saúde da Família e Comunitária
continuada, a partir dos citados “minicomplexos”.
9)
Reforma do Poder Judiciário
com tribunais específicos sobre o tema, agilização das gestões, julgamentos
sumários, facilitação dos concursos, diminuição e redistribuição de privilégios
e altos salários.
10)
Reformulação do sistema penitenciário
com desativação ou reconstrução dos grandes estabelecimentos carcerários
divididos em pequenas unidades de máxima segurança e edificação de outras novas
alijadas dos centros urbanos excessivamente povoados. Cuidadoso re-treinamento
do pessoal, especialmente dos guardiões, implantação obrigatória de treinamento
para um trabalho e de trabalho remunerado, assim como de alfabetização,
exercício de esportes, cuidados com a saúde para os detentos etc. Seleção e
separação dos presidiários em estabelecimentos diferentes segundo o tipo e
gravidade de seus delitos. Especialmente, reformulação do aparato de justiça
infanto-juvenil para torná-lo, realmente, um dispositivo de realização de
programas sócio-educativos.
11)
Multiplicação dos
centros de saúde, hospitais-dia e comunidades terapêuticas especialmente
destinadas à prevenção, tratamento e reabilitação de tóxico-dependentes, com
uma ativa reinserção social dos mesmos, que contemple todas as operações
necessárias para esses efeitos. Formação de equipes transdisciplinares capazes
de oferecer visitas periódicas assíduas de prevenção e atenção a todos os
aspectos da vida familiar, tenham elas já apresentado ou não alguma queixa
definida.
12)
Implantação de um
rigoroso sistema misto, governamental e civil, de controle de todo tipo de meio
de difusão que obrigue os mesmos a difundir, exclusivamente em horários muito
avançados, imagens que possam favorecer tendências à promiscuidade, ao delito,
à violência ou à tóxico-dependência.
13)
Insistência em que os
textos do currículo escolar dediquem uma parte estipulada para se referirem aos
Direitos Humanos, à Democracia Direta, à Paz, à Justiça Social, à moderação do
consumo e à preferência por jogos pacíficos. Igualmente importante é que as
crianças e jovens estudem os resultados adversos das guerras, da criminalidade,
do consumo de tóxicos e álcool, dos acidentes de trânsito e da promiscuidade
sexual sem precauções.
14)
Implantação por Lei da
exigência de que todos os meios de difusão destinem uma porcentagem substancial
de sua programação ao espaço da difusão de mensagens que defendam os Direitos
Humanos e combatam o crime e os hábitos perniciosos para a dignidade e a saúde.
15)
Fomento e todo tipo de
apoio concreto a iniciativas populares do tipo de formação de frentes,
movimentos, associações e atos públicos, cujo objetivo seja a união, a
solidariedade e a colaboração cívica, seja em campanhas e tarefas concretas de
defesa do coletivo e sua qualidade de vida, seja de informação e reivindicação,
frente aos poderes de Estado, de suas necessidades ou dos perigos que os
ameaçam. Reforço e ampliação da existência e dos poderes das Conferências e
Conselhos Mistos (Governamentais e Populares) de toda especificidade e alçada.
16)
Multiplicação de
iniciativas em rede que reúnam diretamente a população ou seus órgãos não
necessariamente dotados de pessoa jurídica com setores do Governo Federal,
Estadual e Municipal, com as organizações Não-Governamentais Internacionais,
com os Tribunais Internacionais de Direitos Humanos e de Crimes de Guerra, com
a Unesco, OPAS, PNUD etc. e todas as Entidades do chamado Terceiro Setor dentro
do país.
17)
Aceitação da
participação das Empresas através dos aportes da chamada Responsabilidade
Social, sempre que suas contribuições sejam planejadas, geridas e executadas com
a fiscalização dos organismos de Estado e das Entidades populares já
mencionadas.
18)
Inclusão, em todas as iniciativas de caráter
econômico, educacional, de saúde, de segurança, seguridade, justiça,
urbanização, saneamento básico, transporte, cultura, arte, esporte, religião,
Direitos Humanos e Civis etc., um componente de análise crítica das causas
chamadas estruturais e históricas devido às quais o povo brasileiro chegou às
situações que se tenta reparar e da necessidade de uma participação política
ativa, não exclusivamente partidária nem sindical, para eleição e controle dos
políticos e da sua performance. Conhecimento crítico do funcionamento da micropolítica não convencional nas
idéias e práticas profissionais e técnicas e nas as Corporações com fins lucrativos.
19)
Um ponto delicado e sujeito
rigorosamente ao bom alvitre dos pesquisadores é a pesquisa sigilosa de
sistemas de mútua ajuda que a população inventa e realiza em estrito segredo e,
às vezes, até com a ajuda de setores “não santos”, como, por exemplo, a
contravenção. Da mesma maneira é possível, quando se consegue despertar a
confiança dos moradores, ter notícia, invariavelmente anônima, de dispositivos
de denúncia às autoridades policiais de feitos criminosos, especialmente
perpetrados contra os moradores, por parte das facções delinqüenciais ou de
delinqüentes avulsos. Amiúde, castigados pelas próprias quadrilhas.
Outros aspectos
importantes a serem pesquisados, sempre com a maior garantia de anonimato e
sigilo são:
a) O conceito que o tipo e origem da violência ,
sobretudo a armada, merece dos moradores, dentro de alguma forma de
classificação dos mesmos, segundo uma tipologia baseada em traços como emprego,
nível de moradia, nível de ingressos, atividade comercial ou outras lucrativas
sediadas dentro da favela, sexo, idade, pertencimento ou não dos indivíduos a
uma família etc.;
b) A imagem e o grau de aceitação ou rechaçamento que os
moradores têm das diversas polícias, dos outros programas e campanhas
realizados, sua opinião acerca de quais deles devem ser incrementados ou
corrigidos e quais os que resultam relativa ou absolutamente inoperantes.
Igualmente é importante prestar especial atenção às sugestões ou invenções dos
próprios entrevistados, algumas das quais podem ter insólito valor, sobretudo, se
são capazes de suscitar uma colaboração ativa por parte dos usuários.
Fundamentalmente,
toda essa investigação tem por finalidade saber:
1)
O número e tipo de iniciativas afins, sua
proveniência, suas descobertas, seus êxitos e fracassos, seus recursos principais,
os dados por eles recolhidos, visando evitar, ao máximo possível, a
superposição de empreendimentos, a repetição de erros e ainda para ativar a
possibilidade de propostas para uma ação conjunta. Com base no processamento
dos dados obtidos, durante um passo que não pode ser demasiado prolongado e,
havendo probabilidade, é conveniente que seja realizado em dispositivos
coletivos os quais, ao mesmo tempo em que servem para recolher a citada
informação, se prestam à catarse, à expressão, ao mútuo conhecimento, ao
fortalecimento dos vínculos comunitários etc. Nesse sentido, são interessantes
os esquizodramas familiares, grupais, por setor de vivenda, escolares, nos
estabelecimentos locais, os eventos desportivos com reuniões festivas
posteriores, nas quais pesquisadores e pesquisados se mesclam de maneira
aparentemente informal e as conversações, ao mesmo tempo em que amistosas e
humorísticas, se orientem eventualmente no sentido de levantar dados sobre a
problemática investigada. Os shows de porte não demasiado
grande, as festas do tipo das juninas, as assembléias, praticadas em lugares do
tipo de escolas ou locais religiosos ou desportivos com temas lateralmente
conectados com a problemática em questão, seguidas por dramatização em pequenos
grupos; ainda a montagem de concursos de redação, desenhos, grafites ou
confecção de joguinhos caseiros, todos relacionados com uma Cultura da Paz e
premiados de diversas maneiras. É interessante sugerir que os autores desses
produtos sejam coletivos ou grupais, o que não descarta que também seja
aceitável a produção individual. A participação das organizações religiosas
segue tendo uma enorme importância em todas as etapas desta campanha, sempre
que se leve em conta que o espectro de religiões exitosas no Brasil se ampliou
enormemente nas últimas duas décadas e nem sempre as mesmas mantêm relações
cordiais.
2)
Nossa impressão preliminar é de que as primeiras
organizações a serem contatadas com fins de colaboração são as pertencentes à
Secretaria de Segurança, os Organismos Municipais e do Terceiro Setor de
Direitos Humanos, as Promotorias e o Poder Judiciário, os departamentos de
Imprensa, Difusão e Relações Públicas das Polícias, as diferentes Congregações
Eclesiásticas que têm ou tiveram presença na área, diferentes empresas cujos
interesses estão relacionados com as proximidades geográficas do lugar ou com o
consumo de seus produtos no Conglomerado, mas, muito especialmente, com as
Frentes, Associações e Grupos de Bairro, sejam os mesmos com alguma
especificidade relacionada ao tema ou
não, com os quais deve-se assinalar um papel importante tanto no planejamento,
como na gestão e execução das ações.
3)
Podemos resumir o espírito da intervenção
dizendo que se trata de:
a)
Propiciar ao máximo o protagonismo dos usuários;
b)
Localizar e intensificar ao máximo o que já
existe e funciona;
c)
Favorecer ao máximo a invenção e criatividade,
tanto dos agentes como dos usuários e sua permanente colaboração.
4)
Com respeito à constituição das equipes que
realizarão os diversos passos deste Programa, a duração total do mesmo, seus
diversos passos, a ordem em que se dêem, a amplitude do universo abordado etc,
não nos é possível pronunciar-nos neste momento por carecermos dos dados
necessários, mas podemos adiantar que, segundo nossas convicções, as equipes
devem:
a)
ser transdisciplinares;
b)
incluir em todos ou em alguns dos momentos do
trabalho os líderes comunitários;
c)
envolver aliados e colaboradores de toda
organização ou equipe pré-existente, técnica, governamental, não-governamental
ou popular que haja trabalhado a respeito do tema que os convoca.
buscado em: cooperação.sem.mando
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