quarta-feira, 25 de julho de 2012

A PAZ COMO ESTADO E COMO PROCESSO (Hierarquização e coordenação das ações)


                                                                     Por Gregorio Baremblitt
 Introdução e Advertências           
             Como já reiteradamente observado, a classificação das modalidades de violência que vigem no Brasil (e no mundo) é de muito difícil elaboração. Uma definição muito precária consiste em qualificar propriamente de violência todo ato corpóreo ou incorpóreo que não esteja a serviço - ou atue contra - a sobrevivência e a melhoria da qualidade de vida da espécie humana como um todo. Por outro lado, chamamos de violência ao conjunto aberto de atos corporais ou incorporais extremados, cujos fins e meios estão destinados a contrariar o objetivo mais próximo que acabamos de definir.
         Em primeiro lugar, é preciso considerar as formas de violência já caracterizadas pela Lei e as que não o estão, apenas como introdução ao tema, e que, entre as que a Lei não contempla estão a natureza e o conteúdo da Lei mesma, que, sendo um produto histórico, envolve violências constitutivas de acordo com a vaga definição acima insinuada. Além dessas violências essenciais, o problema da Lei é a insuficiência e a parcialidade vergonhosa com que é aplicada.
         Em segundo lugar, e com similar imprecisão, talvez se possa falar de micro e macro violências, medindo-as em tempo e espaço convencional, sendo que, desde logo, essa divisão não é sinônima de maior ou menor gravidade dos atos praticados ou omitidos. A possibilidade de tratar a questão em termos de violência molar e molecular (e isto se repetirá com alguma freqüência neste texto) emprega uma terminologia esquizoanalítica cujo esclarecimento excede os limites deste escrito conjuntural; da mesma, só podemos dizer que, de modo geral, a violência molecular está imperceptível e predominantemente, ainda que não exclusivamente, a serviço da "Biolência".
         Em terceiro momento, e apenas como reflexão acerca de um aspecto da discutida “violência simbólica”, permitimo-nos aludir a alguns autores que afirmam que a violência no Brasil não pode ser qualificada de Guerra Civil porque um dos lados em conflito não quer implantar outra ordem ou projeto social, apenas transgredir o vigente. Esta tese é bastante questionável porque:
a) Não existem apenas dois lados, mas muitos deles, em luta.
b) Se, como parece provável, esses autores se referem a um dos lados como o conjunto artificialmente reunido do “crime organizado”, o fato duvidoso de que essa facção “não quer mudar a ordem constituída” se deve a que a natureza e a efetivação do atualmente operante é por ele considerada favorável. Não obstante, caso se tome o conjunto amplo e difuso da violência em curso como se fosse “um lado” e se lhe atribua uma intenção, o mesmo tem, sim, uma proposta de organização social; tal projeto é o de levar ao extremo compatível com uma democracia formal, nominal e indireta a impunidade relativa que hoje o protege e propicia suas ações.
c) Como conclusão, cremos haver, sim, no Brasil, um estado de Guerra Civil não declarada, não totalizável, fragmentária, dispersa, com episódios isolados ocasionais, outros notórios e organizados, porém com persistência e magnitude registradas e não registradas, assim como enquadradas e não enquadradas juridicamente, que nos permitem caracterizá-las como uma guerra interna.
d) Uma das peculiaridades que favorecem o não reconhecimento da citada condição é a infiltração mútua entre “as partes” (atravessamento) que, dito de uma maneira simplista, consiste na cumplicidade passiva ou ativa das instituições, organizações, equipamentos, agentes e práticas sociais “legais” ou “morais” (especialmente as que têm o direito ao uso monopolista da violência) com os grupamentos e ações mais ostensivas e ilegalmente violentas.
e) A questão sobre se essa contenda não ser uma Guerra Civil por ausência de conteúdo político depende, obviamente, do que se entende por política e de se acreditar ou não que a guerra “é a continuação da política por outros meios”.
         A guerra, seja qual for a modalidade adotada, é um ato notadamente político e a política, especialmente nos períodos de totalitarismo ou ditadura (e também nos de pseudodemocracia) é um estado de guerra dissimulado.  Guerra e política são imanentes entre si. Paz e política também. Suas simultâneas e sucessivas modalidades e a distribuição e dominância das mesmas em um processo incessante cujo direcionamento evolutivo e a chegada a um estado de equilíbrio estável e desejável não estão nunca garantidos.
         A violência, delituosa ou não, permeia todas os setores da sociedade brasileira, sendo a mais preocupante para o capital, o governo, a imprensa, as igrejas e os setores “mais favorecidos” da Sociedade Civil aquela que ocorre nas favelas, cidades pobres do interior e nas lutas pela reforma agrária e contra ela.


Resumo do panorama mais ou menos relacionado originalmente ao que se costuma considerar como peculiaridades e causas da violência, especialmente da violência armada

(ou: "De Como As Coisas São" - I):


1)            Pouca produtividade relativa ao tamanho, riqueza natural, benevolência climática, homogeneidade idiomática e história escassa de guerras do país.
2)            Oligopólios latifundiários, financeiros, industriais, comerciais, comunicacionais de conhecimentos e oligarquias políticas.
3)            Dívida externa e interna, renovadas e impagáveis, por empenhos e serviços de destino duvidoso.
4)            Extrema desigualdade na distribuição da renda, nos modos de consumo e na propriedade e uso de bens semiduráveis e duráveis.
5)            Estado hipertrofiado e organizacionalmente redundante, fisiológico, nepótico, patrimonialista, eleitoreiro, incompetente e corrupto, quase sempre ameaçado de golpe militar.
6)            Estrutura partidária excessivamente numerosa e não representativa, com livre trânsito de um grupo para o outro e com todas as características que enunciamos para o Estado.
7)            Forças Armadas obsoletas e ociosas.
8)            Polícias separadas, numericamente insuficientes, mal equipadas, mal treinadas, mal pagas e, muitas vezes, cúmplices do crime ou protagonistas do mesmo.
9)            Poder Judiciário antiquado, conservador e corporativo, também insuficiente em pessoal, equipamentos e atualização, além de moroso, chegando a incompetente e venal.
10)       Sistema carcerário absolutamente inadequado, composto por estabelecimentos centralizados, enormes e superpovoados, com péssima alimentação e condições de saúde e higiene, nas quais se mesclam, delinqüentes mais “leves” com “inimigos públicos” de grande porte, detidos “saudáveis” com portadores de doenças infecto-contagiosas em total promiscuidade. Como se sabe, esses grandes criminosos dirigem seus “negócios” e suas guerras a partir do cárcere e saem deles quando e como querem valendo-se do suborno ou das tomadas por assalto dos estabelecimentos.
11)       Cumprimento insuficiente ou descumprimento das políticas públicas como deveres de Estado em: alimentação, educação, saúde, habitação, transporte, seguridade, comunicações, energia, saneamento básico, planejamento urbano, preservação ecológica etc.
12)       Descumprimento da Reforma Agrária, migração massiva do campo para a cidade, formação de cidades-satélites precárias e de grupos de sem-teto correspondentes a cada bairro das grandes e médias cidades.
13)       Miséria, pobreza, hiponutrição, desnutrição, analfabetismo, insalubridade, alcoolismo, tóxicodependência, desemprego, subemprego, emprego informal, mendicância.
14)       Comércio, Contrabando e/ou tráfico de:
a)     Armas (protagonizado pelos narcotraficantes, contrabandistas e até pela Polícia, Forças Armadas e as de Segurança Privada);
b)     Tóxicos e medicamentos ilegais;
c)      Crianças, púberes e adolescentes (para o trabalho escravo, a prostituição, a pornografia, o transplante de órgãos e a adoção ilegal);
d)     De todo tipo de produtos, desde cigarros até eletrodomésticos, automóveis e, como já dissemos, drogas e armas;
e)     Imigração e emigração ilegal com diversos fins ilícitos.
15)       Fraudes, furtos, roubos, assaltos, raptos, estupros, assassinatos encomendados ou ocasionais, castigos brutais, especialmente em mulheres e crianças, subornos e desvio de fundos oficiais por funcionários de Estado de toda a escala hierárquica, amplo emprego da máquina estatal com fins privados ou partidários. Cumplicidade com as empresas servidoras ou provedoras do Estado. Grande morbi-mortalidade por hipoalimentação, falta de saneamento básico, enfermidades cardiovasculares e tumorais sem tratamento precoce adequado, especialmente por enfermidades parasitárias e infecto-contagiosas (mesmo as preveníveis), abortos autopraticados e falta de assistência materno-infantil, por absoluta insuficiência do Sistema Unificado e os altos custos do Sistema Privado de Saúde, por acidentes de trânsito, de trabalho e atos criminosos.
16)       Incremento notável, nos últimos cinco anos, das mortes chamadas violentas, em sua maior proporção por armas de fogo e em maior quantidade entre indivíduos menores de 25 anos. Ao que parece, existe um alto número de armas curtas de fogo em poder das organizações criminosas além de outras de maior potência, como fuzis, metralhadoras, granadas, bazucas e até mísseis. Por outro lado, a população civil possui, registradas ou não, armas de fogo com fins de defesa e também entre as classes “mais favorecidas”, como colecionadores, desportistas ou caçadores... Estima-se que, no Brasil, o volume financeiro mobilizado pelo tráfico de drogas, somado ao de armas, ao da prostituição e diversas modalidades da pornografia, além da lavagem do dinheiro proveniente dessas práticas implica num capital equivalente a perto de 5 a 10 % de PIB nacional. É importante recordar que o Brasil é, de fato, um parque nada desprezível de consumo e, mais que isso, constitui importantíssima estação de passagem para os EEUU e Europa das drogas produzidas na Colômbia, Peru e Bolívia e, em menor proporção, em outros países latinomericanos além do próprio território nacional. Não saberíamos dizer, do montante de drogas que chega por avião às pistas clandestinas de aterrissagem na Amazônia, por terra, na “tríplice fronteira” ao sul do país ou por mar, nos oito mil quilômetros de costa, o quanto é consumido pela sociedade brasileira e a quantidade “exportada”. Sabe-se, porém, que o lucro dessas operações é extraordinário.  Os Organismos e o quantitativo de fundos destinados pelos EEUU ao controle da entrada e consumo de drogas no país reconhecem pública e recentemente seu fracasso relativo no alcance dos objetivos propostos.
17)       Racismo mais ou menos dissimulado (mais “suave" que em outros países) com uma certa publicidade de tolerância e orgulho por uma hibridação supostamente assumida, reforçada pelo êxito das raças “não brancas” nos esportes, na arte (sobretudo a popular), no Carnaval, na beleza das mulheres, nas fantasias de extraordinária virilidade nos homens etc.
18)       É verdade que na famosa escala de medição do racismo idealizada e aplicada por Mac Dougall (ver “A natureza do prejuízo”) é bem provável que o racismo brasileiro estaria entre os menos virulentos.  A questão, porém, se complica quando, por exemplo, à condição de negro, mulato, caboclo ou “nordestino”, se soma à do marginalizado, excluído, desinserido, analfabeto absoluto ou relativo, desempregado, pobre, desasseado, mal vestido. Esse conjunto de características leva quase imediatamente à atribuição de marginal ao portador de tais condições, o que significa dizer, de qualquer das categorias delituosas antes mencionadas. Um aspecto curioso é que a mesma figura, com idênticas peculiaridades, que leva ao delírio a juventude branca como cantor popular, inspira pânico em um encontro casual ocorrido em lugar pouco freqüentado, não sendo necessário que a hora seja considerada de risco (tarde, noite etc).
19)    Em conseqüência global e imprecisa do panorama que acabamos de descrever (determinar com exatidão a incidência de cada uma das “invariantes” e das “variáveis” na causalidade do emprego violento de armas de fogo só é possível fazer de forma sempre parcial e provisoriamente), cremos que uma certa classificação é viável. Na posse e uso de armas curtas de fogo (revólveres, pistolas, automáticas ou não, fuzis comuns, escopetas, carabinas etc) - omitimos aqui as mais sofisticadas-, é preciso distinguir:
a)     Os membros de organizações ou quadrilhas criminais dedicadas ao tráfico de drogas, de armas, ao assalto à mão armada, ao rapto com exigência de resgate;
b)     Os membros de tríades, duplas, ou solitários que praticam delitos similares aos citados no ponto anterior;
c)      Os profissionais de segurança privada ou pública;
d)     Os cidadãos proprietários legais de arma adquirida por vias lícitas e com autorização para portá-las ou apenas a mantê-la guardada em seu domicílio ou local de trabalho.
e)     Aqueles que possuem, portando ou não, armas ilegalmente adquiridas de quem, por sua vez, as obteve através de contrabando, roubo levado a efeito no comércio do ramo ou em residências civis, ou de compra ilícita.
20)          Excetuando as categorias c) e a d), citadas no ponto anterior, que requerem tratamento à parte, todas as demais podem configurar os casos de crianças, púberes ou adolescentes, usuários de armas curtas de fogo. Nos casos c) e d), a criança ou o jovem podem apropriar-se eventual ou duradouramente da arma, subtraindo-a de suas casas e, não  muito raramente, com autorização do adulto proprietário legal.
  

Os dispositivos de produção de crianças, púberes ou adolescentes munidos com armas de fogo

(ou: "De Como As Coisas são" - II )


Restringindo-nos, pelo menos neste texto, à versão urbana e suburbana do problema que nos ocupa, digamos que, em uma primeira aproximação, quase descritiva, o uso de armas de fogo por menores parece estar constituído de maneiras molares gritantemente perceptíveis.
Algumas das peças dessas máquinas são universais, ainda que atuem de maneira diferente na produção de subjetividades, valores, ideais, funções psicomotoras etc. dos afetados. Elas são: a desintegração das famílias comparada com o modelo da família nuclear burguesa e sua substituição (ou não) por famílias sui generis, muitas das quais são funcionais e verdadeiras invenções, enquanto outras mandam seus filhos pedirem esmolas ou venderem guloseimas nas esquinas, ou incentivam suas filhas a se prostituírem ou cedem (na maioria das vezes involuntariamente) suas crianças e jovens ao tráfico ou às gangues de ladrões ou assaltantes, todos fortemente armados; o predomínio do uso de armas nos scripts da televisão, os cinematográficos, as revistas de quadrinhos, os periódicos amarelos ou marrons, as rádios do mesmo tipo, a prevalência bélica do tipo de jogos e brincadeiras existentes na atualidade, a intensa e permanente incitação ao consumo (tanto quando o mesmo é viável e mais ainda quando não o é), a incitação à competitividade, ao individualismo, à ambição insaciável por bens materiais e status, a suscitação da “agressividade” (dito no sentido de um otimismo, de uma afirmatividade e audácia que chegam à temeridade em todas as atividades), a inculcação do maniqueísmo: êxito-fracasso, segundo o qual quem tem é e quem não tem não é nada; a falta absoluta de ética e a despolitização utilitária do ensino, a desmoralização do Estado como Governo, dos Guardiões da Ordem, da honestidade e o sentido social da propriedade e do  trabalho, a crise dos grandes meta-relatos orientadores como a Religião, as concepções filosóficas e/ou políticas do mundo, a confiança na ciência e no progresso etc.
Em suma: os vícios próprios do Modo de Produção Capitalista Neoliberal, do Regime de Governo Democrático Formal ou Nominal e do Sistema de Produção de Representações e Subjetividade do Cinismo.
Apenas como ilustração desse Cinismo (nem sequer uma das piores), recorde-se, a propósito do problema do desarmamento da população, que o governo brasileiro acaba de tomar uma série de medidas para promover a fabricação em massa de armas curtas de fogo para exportar para outros países.
Falando algo mais singularmente, por exemplo, para os menores das classes altas, a vivência de que sua família vive em condomínios fortemente guardados por homens armados, que esses homens acompanham a ele e a seus familiares em suas “saídas para o exterior”, ou seja, para a cidade, que os automóveis da família são blindados, que suas escolas, clínicas etc. tendem cada vez mais a se constituir dentro dos condomínios etc. não pode senão fundar nesses pequenos sujeitos a certeza de estarem em permanente perigo de rapto ou morte. Sua capacidade de aderir à parafernália de medidas defensivas e de protagonizá-las pessoalmente, somada às facilidades de que desfrutam para adquirir armas ainda que através de seus guarda-costas, é muito grande. Alguns progenitores desses grupos sociais propiciam para seus filhos a prática de tiro ao alvo, assim como inumeráveis técnicas de defesa pessoal. Os jovens de classe alta e média-alta adotaram uma figura a que chamam de Pity Boy (por referência a essa raça de cão de extraordinária e imprevisível ferocidade), preparados em todas as artes marciais e até armados.
Outros jovens das camadas médias e médias-baixas, ou aqueles portadores de transtornos de personalidade ou que têm conexões de parentesco com policiais ou militares ou  fazem parte de organizações políticas de extrema direita ou esquerda que propugnam a luta armada ou outras facciosas, fanáticas, sectárias de cultos violentos possuem e portam armas de fogo.
Nesses níveis sociais, o pretexto para essa aquisição de instrumentos de violência é, invariavelmente, a autodefesa, mas, muito freqüentemente, por razões banais, por alcoolização, por vicissitudes da relação com as jovens ou até por domínio sobre territórios, os recursos violentos são usados de maneira espontânea e ativamente agressiva.
É conhecido e, com freqüência, esquecido que, em vários lugares, especialmente no Rio de Janeiro, os administradores de grandes shows, em combinação com a polícia, organizam grandes simulacros de batalhas campais, distribuindo aos “combatentes” bastões de isopor e cadeias de goma-espuma com a finalidade de se atacarem mutuamente sem causar-se  dano (depois de haver-lhes retirado, na entrada, todas as armas que traziam consigo).
No caso dos favelados, a situação varia bastante de um conglomerado ao outro, não obstante seja possível fazer certas hipóteses sobre algumas constantes com base em experiências e pesquisas limitadas.
Ao que parece, a maioria das favelas é território de uma facção de traficantes de drogas, que deve defendê-lo do ataque de outra proveniente de outro morro ou de outra cadeia nacional de bandos. Às vezes, duas facções coexistem no mesmo local e lutam continuamente entre si pela ocupação das “bocas” de comercialização dos tóxicos.
No geral, pode ocorrer que a polícia esteja completamente ausente desses locais e não responda às denúncias e pedidos de ajuda da população ou, ao contrário, tenha alguma sede próxima ou dentro do território e o patrulhe com certa freqüência.
No primeiro caso, os moradores legais e pacíficos das favelas afirmam que os traficantes não se intrometem com eles, a não ser para tentar recrutar “agentes”, coisa que fazem regularmente entre as crianças, púberes e adolescentes. Para consegui-lo não costumam usar a violência, mas a sedução da droga, do dinheiro e do poder das armas. Os moradores sustentam que os traficantes têm terríveis batalhas entre si, durante as quais toda a população corre o perigo de ferimento por balas perdidas. Por outro lado, os traficantes atuam como uma espécie de justiceiros, punindo quem ofende ou prejudica os moradores de sua favela, especialmente para evitar que alguma denúncia policial dê resultado e a polícia “suba o morro”. O que as quadrilhas não perdoam à vizinhança é a delação, a competição “desleal” com o tráfico ou o não pagamento de dívidas eventualmente contraídas com os chefes do tráfico.
Por outro lado, as facções, por exemplo, assaltam caminhões nas rotas, roubam eletrodomésticos e os revendem à população da favela por um quarto de seu valor, criando uma imagem de benfeitores e justiceiros. A relação entre traficantes, contraventores ou “bicheiros”, a população favelada, a alta ou média “sociedade civil” e os funcionários municipais, estaduais e federais, incluídos os vereadores, deputados, secretários, governadores, agentes de cartórios, advogados, juízes etc. é um capítulo demasiado complexo para ser tratado neste texto. Mas a ninguém escapa o fato de que compõem intrincadas redes de desvirtuação das mais excelsas instituições e personalidades do país.
A população, em proporções difíceis de precisar, se queixa de que a polícia é cúmplice ou chantagista dos traficantes, que os provê de armas e pratica com eles tráfico de influência ou de proteção. Por outro lado, os moradores afirmam que a polícia é mais torpe e indiscriminada que os traficantes durante as confrontações, de modo a ferir e matar muito mais civis que o fazem os criminosos. Uma recente chacina, aparentemente realizada por elementos corruptos da polícia militar, chegou ao extremo de matar ao acaso civis inocentes em represália, não se sabe por qual desobediência de suas imposições.
A polícia (em todos os seus segmentos) se queixa, como é sabido, de falta de contingente, de baixos salários, insuficiência de veículos e sistemas de comunicação, assim como reconhecem que os traficantes possuem armas de última geração frente às dos policiais que são antiquadas. Os agentes de polícia completam seu salário com prestação de serviços particulares podendo trabalhar até 16 horas seguidas. Sem entrar na validade e magnitude de sua suposta corrupção, cabe assinalar que são freqüentes, entre eles, casos de alcoolismo, transtornos mentais e suicídio, obviamente relacionados com os percalços de sua profissão.
Em certos casos, o inquérito e julgamento de alguns acusados bem defendidos dura mais de cinco anos sendo benignas as condenações e existindo para eles tratamento preferencial. Um dos argumentos para não imposição da pena de morte no Brasil não é exatamente que a mesma não se demonstrou eficaz em outros países, mas que “todos os condenados seriam pobres e negros”.
A possibilidade de implantação no Brasil de uma campanha nacional do tipo da realizada pelo prefeito de Nova York, Juliani, a chamada “Tolerância Zero”, é, segundo a opinião dos experts, absolutamente impossível. O país do “jeitinho”, do carnaval, do futebol e das religiões afro-cristãs, considera a aplicação rigorosa da Lei como “sacanagem” (perversão), dada a inviabilidade de se aplicar as penas, o que talvez seja razoável de se pensar. Considera-se que, atualmente, existem mais de duzentos mil condenados em liberdade por falta de espaço nas penitenciárias.
Para não nos estendermos demasiado, digamos que as últimas medidas tomadas pelo Ministério da Educação (modificação do sistema de provas, de promoção de período, quota obrigatória de inscrição de alunos negros etc.) estão longe de dissimular a existência de um grande número de analfabetos absolutos e outro, talvez maior, de analfabetos relativos, sem contar que, nas provas dos exames vestibulares, se observa que uma quantidade importante de candidatos não entende os textos que lê, bem como não se ignora a freqüência de todas essas deficiências entre vereadores e outras autoridades.      

Algumas idéias óbvias acerca do “que fazer"

(ou: "De Como As Coisas Deveriam Ser")


Apenas para recordá-las, digamos que as medidas ideais (e, por serem ideais, claramente irrealizáveis, todas juntas e em um futuro imediato), seriam as seguintes, enfatizando que a ordem de exposição não implica em nenhuma prioridade:
1)         Uma efetiva Reforma Agrária que permita o retorno dos migrantes do campo para a cidade a seus lugares de origem, com garantias de trabalho e de uma vida digna.
2)         Uma ampla negociação para reformar inteiramente a estrutura urbana das favelas, construindo conjuntos habitacionais, seja nos mesmos terrenos ou em outros, diferentes, sempre que se garantisse infra-estrutura básica e transporte adequado. Para dar apenas um exemplo: no Rio de Janeiro, segunda população em favelas do país, a Colônia Juliano Moreira (hospital psiquiátrico arcaico governamental situado em um bairro residencial) dispõe de mais de quarenta hectares de bosque, completamente desabitado, perfeitamente utilizável para a construção de qualquer projeto de urbanização popular.
3)         Criação de uma rede de escolas de capacitação técnica com prática em produções simples (Por exemplo: todo tipo de alimentos hortigranjeiros e frutíferos já processados, artigos de limpeza, certas embalagens, instrumentos de cozinha, mesa e jardim, tudo o que tenha a ver com cerâmica, móveis e jóias rústicas, instrumentos musicais elementares, trabalhos com couro, imagens folclóricas e religiosas feitas com diversos materiais como pedra, madeira entre outros, colchas, toalhas etc.). Facilitar não só a distribuição e venda local e no território nacional, senão a exportação realizada por agências de Estado. Outra sugestão é a qualificação para, por exemplo, serviços de apoio, domésticos ou empresariais, tais como limpeza, pequenos consertos elétricos, de alvenaria, hidráulica, vigilância de ruas e residências etc. Já em outra escala, apoio preferencial a todas as iniciativas de economia solidária, quando as mesmas são em maior escala ou atividades mais complexas.
4)         Habilitação de uma ampla linha de crédito, a baixíssimos juros, para favorecer a fundação de micro-empresas, cooperativas, ou uma nova categoria de empresas populares coletivas destinadas à fabricação e serviços citados no ponto anterior, com prévia negociação da formação necessária para esse trabalho e do destino que será dado aos produtos.
5)         Legalização das drogas e fiscalização estatal de sua produção, venda e consumo.
6)         Proibição da venda de armas a todo aquele que não se saia bem num exame que demonstre amplamente sua competência para usá-la, além de passar também por um estudo de seu currículo social e demonstração convincente de para quê pretende empregá-la.
7)         Unificação, profundo treinamento, adequado armamento, equipamento geral (por exemplo, aumento da patrulha aérea) e digna remuneração de todas as forças policiais e também de um importante contingente das Forças Armadas. Vigilância contínua das fronteiras e costas, assim como do espaço aéreo; localização e destruição das pistas de aterrissagem clandestinas. Colaboração estreita com a Interpol e outros organismos internacionais de combate ao narcotráfico e ao contrabando.
8)         Instalação de “minicomplexos” formados por: postos policiais bem equipados e seguros e estreitamente conectados entre si e com suas centrais, com contingentes de segurança circulando continuamente por: creche, escola de primeiro grau, escola técnica, posto de saúde, agência bancária, escritório governamental de recepção de reivindicações e propostas coletivas (mutirões etc), pequeno centro esportivo, segundo um cálculo de X quilômetros quadrados de território das favelas, número de habitantes e presença de tráfico ou de outras organizações delituosas. Redes de Assistência Social e de Saúde da Família e Comunitária continuada, a partir dos citados “minicomplexos”.
9)         Reforma do Poder Judiciário com tribunais específicos sobre o tema, agilização das gestões, julgamentos sumários, facilitação dos concursos, diminuição e redistribuição de privilégios e altos salários.
10)     Reformulação do sistema penitenciário com desativação ou reconstrução dos grandes estabelecimentos carcerários divididos em pequenas unidades de máxima segurança e edificação de outras novas alijadas dos centros urbanos excessivamente povoados. Cuidadoso re-treinamento do pessoal, especialmente dos guardiões, implantação obrigatória de treinamento para um trabalho e de trabalho remunerado, assim como de alfabetização, exercício de esportes, cuidados com a saúde para os detentos etc. Seleção e separação dos presidiários em estabelecimentos diferentes segundo o tipo e gravidade de seus delitos. Especialmente, reformulação do aparato de justiça infanto-juvenil para torná-lo, realmente, um dispositivo de realização de programas sócio-educativos.
11)     Multiplicação dos centros de saúde, hospitais-dia e comunidades terapêuticas especialmente destinadas à prevenção, tratamento e reabilitação de tóxico-dependentes, com uma ativa reinserção social dos mesmos, que contemple todas as operações necessárias para esses efeitos. Formação de equipes transdisciplinares capazes de oferecer visitas periódicas assíduas de prevenção e atenção a todos os aspectos da vida familiar, tenham elas já apresentado ou não alguma queixa definida.
12)     Implantação de um rigoroso sistema misto, governamental e civil, de controle de todo tipo de meio de difusão que obrigue os mesmos a difundir, exclusivamente em horários muito avançados, imagens que possam favorecer tendências à promiscuidade, ao delito, à violência ou à tóxico-dependência.
13)     Insistência em que os textos do currículo escolar dediquem uma parte estipulada para se referirem aos Direitos Humanos, à Democracia Direta, à Paz, à Justiça Social, à moderação do consumo e à preferência por jogos pacíficos. Igualmente importante é que as crianças e jovens estudem os resultados adversos das guerras, da criminalidade, do consumo de tóxicos e álcool, dos acidentes de trânsito e da promiscuidade sexual sem precauções.
14)     Implantação por Lei da exigência de que todos os meios de difusão destinem uma porcentagem substancial de sua programação ao espaço da difusão de mensagens que defendam os Direitos Humanos e combatam o crime e os hábitos perniciosos para a dignidade e a saúde.
15)     Fomento e todo tipo de apoio concreto a iniciativas populares do tipo de formação de frentes, movimentos, associações e atos públicos, cujo objetivo seja a união, a solidariedade e a colaboração cívica, seja em campanhas e tarefas concretas de defesa do coletivo e sua qualidade de vida, seja de informação e reivindicação, frente aos poderes de Estado, de suas necessidades ou dos perigos que os ameaçam. Reforço e ampliação da existência e dos poderes das Conferências e Conselhos Mistos (Governamentais e Populares) de toda especificidade e alçada.
16)     Multiplicação de iniciativas em rede que reúnam diretamente a população ou seus órgãos não necessariamente dotados de pessoa jurídica com setores do Governo Federal, Estadual e Municipal, com as organizações Não-Governamentais Internacionais, com os Tribunais Internacionais de Direitos Humanos e de Crimes de Guerra, com a Unesco, OPAS, PNUD etc. e todas as Entidades do chamado Terceiro Setor dentro do país.
17)     Aceitação da participação das Empresas através dos aportes da chamada Responsabilidade Social, sempre que suas contribuições sejam planejadas, geridas e executadas com a fiscalização dos organismos de Estado e das Entidades populares já mencionadas.
18)     Inclusão, em todas as iniciativas de caráter econômico, educacional, de saúde, de segurança, seguridade, justiça, urbanização, saneamento básico, transporte, cultura, arte, esporte, religião, Direitos Humanos e Civis etc., um componente de análise crítica das causas chamadas estruturais e históricas devido às quais o povo brasileiro chegou às situações que se tenta reparar e da necessidade de uma participação política ativa, não exclusivamente partidária nem sindical, para eleição e controle dos políticos e da sua performance. Conhecimento crítico do funcionamento da micropolítica não convencional nas idéias e práticas profissionais e técnicas e nas as Corporações com fins lucrativos.
19)     Um ponto delicado e sujeito rigorosamente ao bom alvitre dos pesquisadores é a pesquisa sigilosa de sistemas de mútua ajuda que a população inventa e realiza em estrito segredo e, às vezes, até com a ajuda de setores “não santos”, como, por exemplo, a contravenção. Da mesma maneira é possível, quando se consegue despertar a confiança dos moradores, ter notícia, invariavelmente anônima, de dispositivos de denúncia às autoridades policiais de feitos criminosos, especialmente perpetrados contra os moradores, por parte das facções delinqüenciais ou de delinqüentes avulsos. Amiúde, castigados pelas próprias quadrilhas.

Outros aspectos importantes a serem pesquisados, sempre com a maior garantia de anonimato e sigilo são:
a)     O conceito que o tipo e origem da violência , sobretudo a armada, merece dos moradores, dentro de alguma forma de classificação dos mesmos, segundo uma tipologia baseada em traços como emprego, nível de moradia, nível de ingressos, atividade comercial ou outras lucrativas sediadas dentro da favela, sexo, idade, pertencimento ou não dos indivíduos a uma família etc.;
b)     A imagem e o grau de aceitação ou rechaçamento que os moradores têm das diversas polícias, dos outros programas e campanhas realizados, sua opinião acerca de quais deles devem ser incrementados ou corrigidos e quais os que resultam relativa ou absolutamente inoperantes. Igualmente é importante prestar especial atenção às sugestões ou invenções dos próprios entrevistados, algumas das quais podem ter insólito valor, sobretudo, se são capazes de suscitar uma colaboração ativa por parte dos usuários.

Fundamentalmente, toda essa investigação tem por finalidade saber:
1)        O número e tipo de iniciativas afins, sua proveniência, suas descobertas, seus êxitos e fracassos, seus recursos principais, os dados por eles recolhidos, visando evitar, ao máximo possível, a superposição de empreendimentos, a repetição de erros e ainda para ativar a possibilidade de propostas para uma ação conjunta. Com base no processamento dos dados obtidos, durante um passo que não pode ser demasiado prolongado e, havendo probabilidade, é conveniente que seja realizado em dispositivos coletivos os quais, ao mesmo tempo em que servem para recolher a citada informação, se prestam à catarse, à expressão, ao mútuo conhecimento, ao fortalecimento dos vínculos comunitários etc. Nesse sentido, são interessantes os esquizodramas familiares, grupais, por setor de vivenda, escolares, nos estabelecimentos locais, os eventos desportivos com reuniões festivas posteriores, nas quais pesquisadores e pesquisados se mesclam de maneira aparentemente informal e as conversações, ao mesmo tempo em que amistosas e humorísticas, se orientem eventualmente no sentido de levantar dados sobre a problemática investigada. Os shows de porte não demasiado grande, as festas do tipo das juninas, as assembléias, praticadas em lugares do tipo de escolas ou locais religiosos ou desportivos com temas lateralmente conectados com a problemática em questão, seguidas por dramatização em pequenos grupos; ainda a montagem de concursos de redação, desenhos, grafites ou confecção de joguinhos caseiros, todos relacionados com uma Cultura da Paz e premiados de diversas maneiras. É interessante sugerir que os autores desses produtos sejam coletivos ou grupais, o que não descarta que também seja aceitável a produção individual. A participação das organizações religiosas segue tendo uma enorme importância em todas as etapas desta campanha, sempre que se leve em conta que o espectro de religiões exitosas no Brasil se ampliou enormemente nas últimas duas décadas e nem sempre as mesmas mantêm relações cordiais.
2)        Nossa impressão preliminar é de que as primeiras organizações a serem contatadas com fins de colaboração são as pertencentes à Secretaria de Segurança, os Organismos Municipais e do Terceiro Setor de Direitos Humanos, as Promotorias e o Poder Judiciário, os departamentos de Imprensa, Difusão e Relações Públicas das Polícias, as diferentes Congregações Eclesiásticas que têm ou tiveram presença na área, diferentes empresas cujos interesses estão relacionados com as proximidades geográficas do lugar ou com o consumo de seus produtos no Conglomerado, mas, muito especialmente, com as Frentes, Associações e Grupos de Bairro, sejam os mesmos com alguma especificidade relacionada  ao tema ou não, com os quais deve-se assinalar um papel importante tanto no planejamento, como na gestão e execução das ações.
3)        Podemos resumir o espírito da intervenção dizendo que se trata de:
a)           Propiciar ao máximo o protagonismo dos usuários;
b)           Localizar e intensificar ao máximo o que já existe e funciona;
c)            Favorecer ao máximo a invenção e criatividade, tanto dos agentes como dos usuários e sua permanente colaboração.
4)        Com respeito à constituição das equipes que realizarão os diversos passos deste Programa, a duração total do mesmo, seus diversos passos, a ordem em que se dêem, a amplitude do universo abordado etc, não nos é possível pronunciar-nos neste momento por carecermos dos dados necessários, mas podemos adiantar que, segundo nossas convicções, as equipes devem: 
a)           ser transdisciplinares;
b)           incluir em todos ou em alguns dos momentos do trabalho os líderes comunitários;
c)            envolver aliados e colaboradores de toda organização ou equipe pré-existente, técnica, governamental, não-governamental ou popular que haja trabalhado a respeito do tema que os convoca.
 buscado em: cooperação.sem.mando

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