por José
Saramago
20 de Abril
Esta manhã, quando acordei, veio-me a ideia
do Ensaio sobre a cegueira, e durante uns minutos tudo me pareceu claro
- excepto que do tema possa vir a sair alguma vez um romance, no sentido mais
ou menos consensual da palavra e do objecto. Por exemplo: como meter no relato
personagens que durem o dilatadíssimo lapso de tempo narrativo de que vou
necessitar? Quantos serão precisos para que se encontrem substituídas, por
outras, todas as pessoas vivas num momento dado? Um século, digamos que um
pouco mais, creio que será bastante. Mas, neste meu Ensaio, todos os
videntes terão que ser substituídos, por cegos, e estes, todos, outra vez, por
videntes... As pessoas, todas elas, vão começar por nascer cegas, viverão e
morreram cegas, a seguir virão outras que serão sãs da vista e assim vão
permanecer até a morte. Quanto tempo requer isto? Penso que poderia utilizar,
adaptando a esta época, o modelo “clássico” do “conto filosófico”, inserindo
nele, para servir as diferentes situações, personagens temporárias, rapidamente
substituíveis por outras no caso de não apresentarem consistência suficiente
para uma duração maior da história.
21 de Junho
Dificuldade resolvida. Não é preciso que as
personagens do Ensaio sobre a Cegueira tenham que ir nascendo cegas, uma
após a outra, até substituírem, por completo, as que tem visão: podem cegar em
qualquer momento. Desta maneira ficará encurtado o tempo narrativo.
2 de Agosto
Escrevi as primeiras linhas do Ensaio
sobre a Cegueira.
15 de Agosto
Continuo a trabalhar no Ensaio sobre a
Cegueira. Após um princípio hesitante, sem norte nem estilo, à procura das
palavras como o pior dos aprendizes, as coisas parecem querer melhorar. Como
aconteceu em todos os meus romances anteriores, de cada vez que pego neste,
tenho que voltar a primeira linha, releio e emendo, emendo e releio, com uma
exigência intratável que se modera na continuação. É por isso que o primeiro
capítulo de um livro é sempre aquele que me ocupa mais tempo. Enquanto essas poucas páginas iniciais não me
satisfizerem, sou incapaz de continuar. Tomo como um bom sinal a repetição
desta cisma. Ah, se as pessoas soubessem o trabalho que me deu a página de
abertura do Ricardo Reis, o primeiro parágrafo do Memorial,
quanto eu tive que penar por causa do que veio a tornar-se o segundo capítulo
da História do Cerco, antes de perceber que teria de principiar com um
diálogo entre Raimundo Silva e o historiador... E um outro segundo capítulo, o
do Evangelho, aquela noite que ainda tinha muito para durar, aquela
candeia, aquela frincha da porta...
17 de Agosto
Decidi que não haverá nomes próprios no Ensaio,
ninguém se chamará António ou Maria, Laura ou Francisco, Joaquim ou Joaquina.
Estou consciente da enorme dificuldade que será conduzir uma narração sem a
habitual, e até certo ponto inevitável, muleta dos nomes, mas justamente o que
não quero é ter de levar pela mão essas sombras a que chamamos personagens,
inventar-lhes vidas e preparar-lhes destinos. Prefiro, desta vez, que o livro seja
povoado por sombras de sombras, que o leitor nunca saiba de quem se
trata, que quando alguém lhe aparece na narrativa se pergunte se é a primeira
vez que tal sucede, se o cego da página cem será ou não o mesmo da página
cinquenta, enfim, que entre, de facto, no mundo dos outros, esses a quem
não conhecemos, nós todos.
20 de Agosto
Uma hipótese: talvez essa necessidade
imperiosa de organizar uma lembrança coerente do meu passado, dessa sempre,
feliz ou infeliz, única infância, quando a esperança ainda estiva intacta, ou,
ao menos, a possibilidade de vir a tê-la, se tenha constituído, sem que eu o
pensasse, como uma resposta vital para contrapor ao mundo medonho que estou a
caminho de imaginar e descrever no Ensaio sobre a Cegueira.
30 de Agosto
Terminado o primeiro capítulo do Ensaio.
Um mês para escrever quinze páginas... Mas Pilar, leitora emérita, diz que não
me saí mal da empresa.
17 de Dezembro
Voltei - timidamente - ao Ensaio.
Modifiquei algumas quantas coisas, e o capítulo ficou bastante melhor: a
importância que pode ter usar uma palavra em vez da outra, aqui, além, um verbo
mais certeiro, um adjectivo menos visível, parece nada e afinal é quase tudo.
15 de Fevereiro de 1994
Regresso a um tema recorrente. Todas as
características da minha técnica narrativa actual (eu preferiria dizer: do meu
estilo) provêm de um princípio básico segundo o qual todo o dito de
destina a ser ouvido. Quero com isso significar que é como narrador oral
que me vejo quando escrevo e que as palavras são por mim escritas tanto para
serem lidas como para serem ouvidas. Ora, o narrador oral não usa pontuação, fala como se estivesse a compor
uma música e usa os mesmo elementos que o músico: sons e pausas, altos e
baixos, uns, breves ou longas, outras. Certas tendências, que reconheço e
confirmo (estrutura barroca, oratória circular, simetria de elementos), suponho
que me vêm de uma certa ideia de um discurso oral tomado como música.
Pergunto-me mesmo se não haverá mais do que uma simples coincidência entre o
carácter inorganizado e fragmentário do discurso falado de hoje e as expressões
“mínimas” de certas músicas contemporâneas.
27 de Fevereiro
Pergunto-me se o que move o leitor à leitura
não será a secreta esperança ou a simples possibilidade de vir a descobrir,
dentro livro, mais do que a história contada, a pessoa invisível, mas
omnipresente, que é o autor. O romance é uma máscara que oculta e ao mesmo
tempo revela ao traços do romancista. Se a pessoa que o romancista é não
interessa, o romance não pode interessar. O leitor não lê o romance, mas o
romancista.
8 de Julho
O Ensaio saiu do atoleiro em que
tinha caído há já não sei quantos meses. Pode vir a cair noutro, mas deste
safou-se. Há uns poucos dias eu tinha decidido deixar de lado dois capítulos
que se haviam convertidos numa daquelas armadilhas onde se pode entrar com toda
facilidade, mas donde não se sai. O novo parecia-me animador, abria
perspectivas. Em todo o caso ainda não sentia completamente seguro. Foi então
que andando por aí, hoje, ao vento, me sucedeu algo muito semelhante ao
episódio de Bolonha, quando, meses sem saber o que poderia fazer com a ideia de
Evangelho, nascida em Sevilha, toda a sequência do livro - enfim, quase
toda - se me apresentou com uma claridade fulgurante. Estava na pinacoteca, vira
a pintura da primeira sala à esquerda da entrada, e foi entrar na segunda (ou
teria sido na terceira?) que os pilares fundamentais da narrativa se me
definiram com tal simplicidade que ainda hoje me pergunto como foi que ainda
não tinha visto antes o que ali me parecia óbvio. Não era nada de complicado,
basta ler o livro. Neste caso, o do Ensaio - a “revelação” não foi tão
completa, mas sei que vai determinar um desenvolvimento coerente da história,
antes atascada e sem esperanças. Todos os motivos que vinha dando, a mim mesmo
e aos outros, para justificar a inacção em que me achava - viagens,
correspondências, visitas -, podiam, afinal das contas, ter sido resumido desta
maneira: o caminho por onde estava a querer a ir não me levaria a lado nenhum.
A partir de agora, o livro, se falhar, será por inabilidade minha. Antes, nem
um génio seria capaz de salvá-lo.
22 de Março
Só escrevo sobre aquilo que não sabia antes
de o ter escrito. Deve ser por isso que meus livros não se repetem. Vou-me
repetindo eu neles, porque, ainda assim, do pouco que continuo a saber, o que
melhor conheço é este que sou.
18 de Junho
Voltei ao Ensaio. Com a disposição
firme de levá-lo desta vez ao fim, custe o que custar. Durante todo o tempo que
andei por fora, amigos e conhecido não pararam de perguntar pelos meus cegos.
Chegou a altura de eles responderem por si mesmos.
9 de Agosto
Terminei ontem o Ensaio sobre a Cegueira,
quase quatro anos após o surgimento da ideia, sucesso ocorrido no dia 6 de
setembro de 1991, quando, sozinho, almoçava no restaurante Varina de Madregoa,
do meu amigo António Oliveira(apontei a data e a circunstância num dos meus
cadernos de capa preta). Exactamente três anos e três meses passados, em 6 de
dezembro de 1994, anotava no mesmo caderno que, decorrido todo esse tempo, nem
cinquenta páginas tinha ainda conseguido escrever: viajara, fui operado a uma
catarata, mudei-me para Lanzarote... E lutei, lutei muito, só eu sei o quanto,
contra as dúvidas, as perplexidades, os equívocos que a toda hora se me iam
atravessando na história e me paralisavam.
Como se isto não fosse bastante, desesperava-me o próprio horror do que
ia narrando. Enfim, acabou, não terei que sofrer mais. Seria agora a altura de
fazer a pergunta que nenhum escritor gosta: “Que ficou dessa primeira ideia?”
(Não gostamos porque preferiríamos que o leitor imaginasse que o livra nos saiu
da cabeça armado e equipado.) Da ideia inicial direi que ficou tudo e quase
nada: é verdade que escrevi o que queria, mas não o escrevi como
tinha pensado. Basta comparar a inspiração de há quatro anos com aquilo
que o Ensaio veio a ser. Eis o que então anotei, com nenhumas
preocupações de estilo: “Começam a nascer crianças cegas. Ao princípio sem
alarme: lamentações, educação inicial, asilos. À medida que se compreende que
não vão mais nascer mais crianças de
visão normal, o pânico instala-se. Há quem mate os filhos à nascença. Com o
passar do tempo vão morrendo os ‘visuais’ e a proporção ‘favorece’ os cegos.
Morrendo todos que ainda tinham vista, a população da terra é composta de cegos
apenas. Um dia nasce uma criança com a vista normal: reacção de estranheza,
algumas vezes violenta, morrem algumas dessas crianças. O processo inverte-se
até que - talvez - volte ao princípio uma vez mais.” Compare-se... Quanto à
palavra inspiração que aí ficou atrás, reconheço que a empreguei em
sentido estrictamente pneumático e fisiológico: a ideia andava a flutuar por
ali, no oloroso ambiente da Varina Mandragoa, eu inspirei-a, e foi assim
que o livro nasceu... Depois pensá-lo, fazê-lo, sofrê-lo, já foi, como tinha de
ser, obra de transpiração..
Copyright© 1996
Companhia das Letras
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