quarta-feira, 25 de julho de 2012

Introdução à Esquizoanálise

 Introdução à Esquizoanálise
Gregório Baremblitt

Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p

2.edição 
Baremblitt, Gregório [2003]. Introdução à Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p 

Apresentação – 2.a Edição
É com gratidão e satisfação que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta a segunda edição do "Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt.
Os exemplares da primeira edição se esgotaram com uma rapidez que não esperávamos, e os leitores, especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e outros interessados na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da mesma. Essa estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero limitado de exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira, muito mais extensa, que está no prelo.
O autor considerou necessário acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual se trata de temas, preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco desenvolvidos na primeira.
Fazemos presente aqui nosso agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela eficiente e generosa colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do presente texto, assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do mesmo: Oalva A . Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli, Neuza Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha.
  
In Memoriam de Felix Guattari*
Este evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari têm sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em minha vida cotidiana, pessoal.
Mas também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para prestar homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que, fazia-nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva. Por outro lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi a gestora de todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente inesperada, vítima de um acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui para falar a vocês no marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos transformar esta situação de luto em, pelo menos, um encontro produtivo, que nos permita superar essa tristeza.
Felix Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver tantas atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um tempo curto, é uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas e de cada uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as, enumerando-as. Eu acho que, entre todos os méritos que Guattari tem ou teve, o fundamental é o de fazer ver ao mundo, este mundo um tanto cético, um tanto decepcionado no qual nós vivemos, este mundo utilitarista, pragmatista (no mal sentido da palavra), este mundo, em muitos sentidos, medíocre e cínico, que é possível viver de uma maneira produtiva, de uma maneira brilhante, de uma maneira heróica. Não dentro das modalidades do heroísmo revolucionário clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de heroísmo... um heroísmo mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o chamou, em algum livro, "uma nova suavidade". Então, parece-me importante detalhar tudo o que Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei que muitas pessoas formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer grandes coisas. É interessante poder
Conferência proferida por Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92, como homenagem póstuma a Felix Guattari.

exaltar, poder examinar a vida de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que nós. E, sem dúvida, foi capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o mundo diferente depois de ele ter passado por onde passou.
Guattari faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto passado, no hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas clínicas. Ele nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes, França. Sua escolaridade foi muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia, mas não conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra Mundial participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis, moradias para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas políticas, ele teve contato com muitas figuras intelectuais da França, e se encontrou com duas especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental de orientação anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha, no tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês. Por outro lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra, Franz Fannon, um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro da Saúde Pública da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da Terra".
Jean Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo uma reforma do mesmo, construíram uma célebre clínica psicoterapêutica e psiquiátrica denominada "La Borde", que se transformou em um verdadeiro campo experimental para uma série de propostas psiquiátricas modernas, alternativas e até revolucionárias, que continua existindo e sendo uma fonte de inspiração para todos os movimentos alternativos psiquiátricos do mundo.
Guattari militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua oposição aos acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na Argélia. Participou na organização de ajuda à "Frente de Libertação Nacional Argelina". Escreveu para um periódico comunista relacionado com a Liga Comunista e com as organizações marxistas e anarquistas. Interessou-se p-ela Psicanálise e se analisou com o professor Jacques Lacan durante sete anos. Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como veremos mais para a frente, teve vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a questionar a razão da existência dessa escola,
ou seja, a Psicanálise em si mesma. Guattari fundou a Federação de Grupos de Estudo e Pesquisa Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de diferentes disciplinas, antropólogos, sociólogos, economistas, etc., que se ocupavam em estudar as instituições. Guattari fundou também a revista "Recherche", que teve um papel importantíssimo na, divulgação das idéias institucionalistas. Em 1966, organizou um jornal e um grande agrupamento que se denominou "Oposição de Esquerda". Participou também da redação das novas teses da "Oposição de Esquerda", propondo uma ética militante que reunia os descontentes de todos os partidos políticos de esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francês. Participou na operação de ajuda ao povo do Vietnã na guerra contra os Estados Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organização de Solidariedade com a Revolução Latino-americana, organização esta do intelectual Régis Debray, que estava preso na Bolívia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vários setores protagonistas desse impQrtantíssimo fato histórico e participou, pessoalmente, de uma das manobras táticas que foi a ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI – Centro de Estudos e Pesquisas de Formação Institucional, centro esse que publicou obras tais como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos", "O ideal militante", etc. Dentre suas publicações na Revista "Recherche", uma em particular se referia aos movimentos homossexuais, o que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard d'Estaign. A partir de 1970, militou ativamente pela implantação da rede de rádios livres, a primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL – Comitê de Iniciativa pelos Novos Espaços da Liberdade, organização que defendeu os extremistas autônomos italianos e que lutou pela libertação do intelectual italiano Tony Neri, preso ná Itália, por sua. vinculação com as Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da candidatura do célebre cômico francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma grande organização ecológica chamada "Geração Ecológica" e, finalmente, fundador da Rede de Alternativa Psiquiátrica, um Movimento com propostas psiquiátricas críticas que se estendeu pelo mundo inteiro.
Bem, tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não apenas da cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a História durante o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro lado, Guattari escreveu os seguintes livros:
"Psicanálise e Transversalidade", que pertence ao período em que ainda era psicanalista; "A Revolução Molecular", um belo livro que resume suas propostas de militância política; "O Inconsciente Maquínico", onde expõe a reformulação que fez da idéia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles Deleuze, o grande filósofo e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo", um livro que foi expressivo do movimento político e cultural de maio de 68. Fez um estudo com Deleuze sobre o escritor Kafka, a quem eles consideram uma das maiores expressões de um gênero que seria "uma literatura menor"; depois, escreveu, também com Deleuze, "Mil Platôs", que é algo assim como o segundo tomo de "O Anti-Édipo". MaIs recentemente ele publicou um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes deste, um belo livro sobre Ecologia, chamado "As Três Ecologias", e depois, com Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso sem mencionar inúmeros artigos publicados em todos estes órgãos que acabamos de expor. Por outra parte, publicou, em português, em colaboração com S. Rolnick,o livro "Cartografias do Desejo", e, na mesma língua, foi editado um pequeno volume de suas conversas com Lula.
Então, encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual, praticamente autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título universitário, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das últimas duas ou três décadas, que militou política e ativamente, tanto nas organizações tradicionais, como na maioria das alternativas importantes deste período, e, além do mais, foi criador de uma série de movimentos, fundador de uma série de dispositivos políticos que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de transformação do que é o mundo moderno e pós-moderno. Eu acho que uma figura deste tipo, desta magnitude, desta transcendência, estamos acostumados a descrever e a encontrar antes de 1920, de 1930. Estas são figuras do porte de um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se extinguido. Como também parece ter-se extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o impulso – firme, ambicioso, entusiasta para a construção de uma existência decididamente mais digna. Por isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não se trata de destacar um ideal, porque a obra de Guattari está toda encaminhada a demonstrar que os ideais não
existem, que os ideais são "idéias puras", que ninguém tem por que reproduzir ou copiar. Por este motivo, não diríamos que Guattari é um ideal, não diríamos que Guattari é um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um exemplo de como se pode viver de forma que a vida seja a realização de um bem, de uma forma de criação e de inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito completamente de nosso cotidiano.
Bem, se só fazer este detalhamento da militância política, da produção bibliográfica, da atividade científico-societária de Guattari já toma tanto tempo, e espero ter dado pelo menos uma imagem panorâmica, como é que nós podemos sintetizar essa fulgurante produção teórica de Guattari, difícil de dissociar da sua produção unida a Gilles Deleuze? Essa união produtiva com Gilles Deleuze já configura uma espécie de milagre intelectual que é absolutamente insólito na História da Cultura. Um comentarista francês, um jornalista, afirma que essa obra é uma "filosofia a duas cabeças", fórmula que não me parece afortunada. Para começar, creio que a obra de Deleuze e Guattari não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o fantástico, o assombroso, é que essas obras escritas pelos dois já não são de "duas cabeças". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Que é a Filosofia?" (este, o último livro que publicaram), é impossível saber de quem são as idéias, se de um ou de outro. Então, é muito mais que criar uma filosofia a duas cabeças, é criar um conhecimento, um saber, que faz os dois, não devir um, mas devir muitos. É a transformação de um dueto em um enorme coral, em que não apenas não se sabe se isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas também que neste coral cantam as vozes mais revoluciomirias, mais críticas, mais escolhidas de nosso século.
Como se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra inclui as ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências naturais, a física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a antropologia, a história, a economia política, a semiótica, a psicanálise, e contém também muitos elementos da literatura, da pintura, da música; contém as melhores idéias de toda a tradição filosófica do ocidente, preferencialmente um ramo da filosofia representada fundamentalmente pelas idéias dos estóicos, de Espinoza, de Nietzsche, de Bergson, de Hume. E até contém alguns momentos do discurso cotidiano, do saber popular, do senso comum. Então – para
quem pretende expô-lo em meia hora –, o que é isto? Se nós a chamamos de filosofia, é um pouco injusto e limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de Espinoza, que é uma filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. É uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo. Então, o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta política. Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode ser utilizada por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido, em uma igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um discurso propriamente político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer de suas dimensões. O que resta para dizer é que essas idéias são, segundo a velha fórmula, uma concepção do mundo, uma weltanschauung, como diziam os alemães. Eu não gostaria de dizer isso na presença de algum guattariano ou deleuziano assumido, porque seguramente não estaria de acordo. Uma concepção do mundo é uma série de idéias, de crenças, de convicções acerca de como o mundo é e de como devemos nos comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora esteja feita com representações, pois está escrita com palavras, não é uma ideologia. Não é um pensamento discursivo, mas segundo a própria definição deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo, que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos. Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de criar. E é curioso que isto que eu acabei de dizer, costuma-se dizer, por exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os discursos ideológicos. E não se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari não tenha, em certo sentido, uma vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição de re-ligare, de unir novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as partes dos homens que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos. Esse discurso, como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e Guattari, é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma literalidade nas citações, que

chega a ser um tanto desesperador. Porque a gente não consegue saber como é que dois intelectuais conseguem ler tantas coisas, entendê-las tão bem e extrair delas estritamente aquela parte que eles podem integrar no discurso próprio, com essa vocação revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda essa severa lógica, toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante dessa obra. O mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa capacidade de capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mágico, um mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os discursos acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas religiosas, ou que as promessas políticas. É importante destacar essas características dos textos e dos discursos de Deleuze e Guattari, porque eles estão sempre integrados a um tipo particular de militância. Eles sempre têm um "pé" numa ação concreta que se exprime e se inspira nesses escritos, dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação política que acompanha a proposta analítica desses autores, que se chama "Esquizoanálise". A Esquizoanálise é uma leitura do mundo, praticamente de "tudo" o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu livro sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma "episteme" que compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um saber sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a diversificação, a potenciação da vida. É importante saber que essa micropol ítica não está instrumentada por partidos políticos, embora não seja proibido exercê-la dentro deles. Não toma, como lugar privilegiado de atuação, a academia, com suas produções ortodoxas e rígidas. Não propõe a formação de uma igreja, mais ou menos despótica. Não necessita atuar dentro dos âmbitos do Estado, apesar de não se negar a fazê-lo. Não precisa dos partidos políticos tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se eles são corporativos. Não define um campo de esquerda mais ou menos global, que seria melhor do que o de direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em todo e qualquer pequeno, médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a política dos movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a política feminista, a política dos movimentos homossexuais, a política das minorias raciais, a política

dos imigrantes, a política dos sem-terra, a política de todos aqueles que sofrem a exploração, a dominação, a mistificação do mundo atual, mas que não pertencem necessariamente aos organismos, às entidades molares respeitadas e consagradas pelo mundo em que vi vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar como está. É uma política baseada em uma proposta básica que diz que a essência da realidade é a imanência do desejo e da produção. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o desejo inconsciente, dito no sentido não apenas de um espaço do psiquismo, de uma força do psiquismo, mas dito no sentido da essência, da substância de tudo aquilo que existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de funcionamento que Freud descreve no inconsciente psíquico, particularmente em seu processo primário. E, por outro lado, esse mesmo processo é um processo substancialmente produtivo, é a permanente criação do diferente, a geração constante do novo. Então, quando Deleuze e Guattari dizem que o processo último da realidade é produtivo e desejante, eles introduzem a idéia de desejo na materialidade produtiva, e a idéia de produção neste processo criativo que é o desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo do psíquico ou às esferas mais ou menos ultraterrenas do metafísico. Esta proposta da substância da realidade como repetição do diferente, do diferente radical, esta, chamemo-la assim, ontologia de Deleuze e Guattari, é o pilar de sua proposta ética. Porque é uma afirmação acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, é uma fonte inesgotável de criação, é uma potência incoercível de transformação. Não existe, na realidade, nenhuma força definitória que equivalha a essa famosa "pulsão de morte" freudiana ou a qualquer processo entrópico como os físicos o descrevem nos sistemas fechados. É uma ontologia, uma teoria do devir que, desde a base (se isto se pode chamar "base"), propõe um tipo de vida que confie nisto, que acredite que somos portadores de uma energia criativa que nos faz formar parte de um mundo que é simultaneamente físico, natural, humano e maquínico. As separações que se estabelecem neste mundo, e as hierarquias que se postulam nessas relações são produto de uma concepção autoritária do universo, que sempre tem que ter algum setor da realidade que seja mais respeitáv.el, mais temível, mais poderoso que o outro. Deleuze e Guattari dizem que em tudo que existe há uma imanência que faz com que cada um dos campos seja igualmente importante.

Não descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para ser dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que devem servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro, procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por outro lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que não precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de alguma entidade sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos acreditar que somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona exclusivamente guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este afazer que estas duas figuras têm criado e promovido através de suas vidas militantes e de suas produções teóricas, são feitos por um procedimento epistemológico, digamos assim, que os autores assumem valente e quase humoristicamente.
Eles postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles pegam de cada teoria, de cada práxis, aquela parte que lhes parece mais inspirada, aquela engrenagem que eles poderão colocar no interior de sua máquina teórica e militante, sem interessar-se por completo pelo rótulo geral que possa ter essa disciplina da qual pinçaram e "roubaram" um conceito.
Assim como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo subjetivo e o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos consagrados, textos adoráveis e discursos insignificantes.
Um dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem Órgãos", foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco, Antonin Artaud, de um mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões orientais que se chama "o Ovo Cósmico". Acontece que esta categoria, "Corpo sem Órgãos", criada tomando elementos de um discurso "psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de uma religião oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo parecida com o que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a teoria das catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluído na físico-química atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e Guattari é feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para fazerem seus quadros e obras de
arte cotidianas. Eles se declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo juntadores de elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum.
Isto, à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de palavras. E não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um discurso fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente inventivo. Então, esses ladrões ­bricoleurs fazem depender essa criatividade justamente da sua irreverência. Porque, apesar de fazerem citações com uma precisão assombrosa e com um cuidado bibliográfico surpreendente, eles conseguem fazer com que aquilo que roubaram diga alguma coisa nova, de tal forma que, se o autor que foi vítima do roubo chegasse a lê-lo, não se reconheceria nele. Há uma passagem no livro de Deleuze que se chama "Diálogos", onde o autor define seu método de criação teórica de uma maneira metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de aproximar­-se sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho monstruoso, onde ele não se reconheceria. Só que monstruoso, neste caso, não quer dizer teratológico, não quer dizer ridículo, absurdo, disforme. Quer dizer maravilhoso, quer dizer absolutamente impensável para o próprio autor deste conceito.
Sem poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum período destinado ao diálogo entre este amável público e eu ­gostaria de concluir referindo-me a uma das tantas relações que estes textos de Deleuze e Guattari estabelecem, e que é interessante: a relação com a Psicanálise. Eu a escolho quase que por um vício profissional, porque eu sou psicanalista, e a escolho também por ter uma certa suspeita da presença de vários especialistas na matéria, aqui, no público. Mas poderia falar também da relação crítica da Esquizoanálise com o Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação crítica da Esquizoanálise com a Lingüística estruturalista, com a Antropologia estruturalista, ou com as concepções capitalistas da Economia. Mas vou escolher provisoriamente a relação com a Psicanálise.
Os textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a minha leitura, vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à Psicanálise. Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e Transversalidade", é um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do significante, da concepção estrutural do psiquismo,
etc. Mas manifesta uma franca preocupação política e social, que, como se sabe, estava ausente na obra de Lacan e na da maioria de seus continuadores. Já quando Guattari escreve, junto com Deleuze, "O Anti­-Édipo", faz neste livro uma crítica radical à Psicanálise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a ciência que dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de produção do sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no seio da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram única, eterna e universal, que se gera "o sujeito psíquico". Toda outra forma é considerada incompleta e aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do sujeito psíquico, afirmam que não existe um modo de produção deste que seja universal e eterno. Mas sim, que existe um modo historicamente dominante de produção do sujeito psíquico que, obviamente, é o edipiano. E se pode dizer que o modo edipiano de produção do psiquismo – vamos dizê-lo de uma maneira um tanto vulgar – é a produção de homens narcisistas, egoístas, ciumentos, invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis, majoritariamente heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso modo de ser, que é universal. Mas não é universal no sentido de que seja o único. Não é universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal no sentido de que continuará sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um modo de produção do sujeito psíquico que teve sucesso em sua capacidade de impor-se aos outros, e até na sua capacidade de produzir uma teoria que seja própria para descrevê-l o tal como ele é: a Psicanálise. Mas também é universal no sentido de que ele tem sido capaz de produzir elementos teóricos que lhe permitem fazer sua autocrítica. E descobrir que não é eterno, descobrir que não é o único possível, e descobrir que essa dominação que ele impõe sobre os outros é um imperialismo, como existe o imperialismo político, o imperialismo ideológico, o imperialismo econômico e até um imperialismo ecológico. Em "O Anti-­Edipo", então, o psicanalista é qualificado de algo assim como um mecânico especialista na restauração, na reparação de um aparelhinho eletrodoméstico que cumpre uma função pobre, mas muito difundida.
No percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais, uma reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari dizem que o inconsciente da Psicanálise ou é um teatro antigo, com Édipo, Jocasta, Laio e companhia, ou está
estruturado como uma linguagem, e então parece um jogo de palavras cruzadas, dessas que saem nos suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado como uma fábrica, como um lugar de produção, pura e exclusivamente de produção, de uma produção desejante, de uma produção que ao mesmo tempo que cria, goza. E que só é abafada, só sofre, só entra em conflito com aquelas estruturas sócio-econômico­políticas e psíquicas que vivem da reprodução e não toleram a produção do novo.
Nota-se também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em relação à Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a Filosofia?" Nestas duas obras está colocado, com toda a clareza, que a teoria, o método, a técnica e o campo clínico psicanalítico são uma espécie de "valor do nosso mundo", da nossa cultura, e que o fato de que tenha sido enfatizada nele toda uma ética de resignação, de castração, de falta, de morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos vitais, os aspectos produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem, apesar de ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem de vivo, de produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com a metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que as fez acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social onde duas pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo das formas mais grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder criativo de seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois realizados em uma dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.
Bom, eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e porque aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria concluir dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma instituição que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro de Psicanálise, Grupos e Instituições ­que no ano de 1978 fez um congresso no Rio de Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari, as máximas figuras da psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve Castel, esteve Thomas Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E também, os colegas desta orientação do Brasil e da América Latina. Posteriormente a essa vinda de Guattari, eu tive ocasião de conviver e conversar com ele
em várias oportunidades, quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras organizações o trouxeram. Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece que o Brasil, também, pelas idéias de Guattari. Penso que as idéias de Guattari nunca encontraram um campo tão fértil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele. Tivemos polêmicas públicas, em alguns congressos, porque tínhamos algumas divergências no que se refere à estratégia e à tática no processo de transformação do panorama da saúde mental. Mas, transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar que minhas opiniões a respeito eram aparentemente mais realistas que as de Guattari. Eu prognostiquei, em várias ocasiões, para Guattari, que as transformações que ele propunha e que pareciam estar se realizando aqui no Brasil, particularmente no campo da saúde mental, e que outros companheiros haviam trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, não se iam realizar tão rápida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso já tem uns doze a treze anos. E quando examinamos o panorama da saúde mental aqui, o que se vê ainda é uma dominância da proposta psiquiátrica clássica, da administração excessiva de psicodrogas, da terapia biológica com choques e insulina, um tratamento carcerário feito ao doente mental. E vê-se que os movimentos deflagrados por Guattari e por Basaglia, por Castel, Foucault e por nós mesmos não têm tido o sucesso que se esperava. Aliás, eu faço questão de insistir em que, pode ser que eu tenha tido razão quando adverti que a coisa não iria ser tão fácil, porque junto com essa permanência da Psiquiatria clássica, também vemos a proliferação de um tipo de Psicanálise que, justamente, Deleuze e Guattari criticaram de maneira irrefutável. Mas devo confessar que não sinto nenhuma satisfação em ter tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari uma força, um entusiasmo, uma vontade e um desejo, que realmente se despertaram em mim com a leitura de sua obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas as dificuldades passadas não conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou muito grato a meu amigo, e prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por isto que me acompanhe, porque não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da organização, pode-se fazer a crítica dos resultados, como disse Guattari, mas não se pode fazer a crítica do desejo. E este desejo é o que Guattari fez viver em muitos e que continuará vivendo. Muito obrigado.

Debate
Pergunta: Qual é a proposta da Ecosofia?
Baremblitt: A relação entre o gênero humano e esse campo denominado natureza é uma relação que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase sempre de forma assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-se que o homem não é, ou pelo menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se com a natureza submetendo­a, colocando-a a seu serviço, e utilizando-a, segundo um conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo a razão ocidental, que seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de justiça. Acontece que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida que não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser natural e que sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser uma relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua forma à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um saber que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização que os homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para qualquer modo de produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer especialmente para o capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização das relações humanas que está baseado na exploração do homem pelo homem, na dominação do homem pelo homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma concepção assim, se faz isso com o homem, como não iria fazer o mesmo com a natureza? A conclusão é que esse sistema, que contém em sua estrutura, em sua essência, a racionalidade, o saber científico, a consciência, tem conduzido o mundo a uma situação como a atual, em que, dentro do gênero humano, a riqueza, o peso da miséria, são distribuídos de forma cada vez pior. No mundo atual temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais analfabetos, cada vez mais enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a natureza a um ponto tal, que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo capitalista teve que parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o risco de perder o lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos



ou como for. E por outro lado, o mundo da máquina é um mundo que já tem sido acusado, em diversos graus, de demoníaco, ou tem sido idealizado como a salvação do universo. Deleuze e Guattari dizem que o mundo das máquinas é um mundo que tem muito para ensinar-nos também. Mas que é um mundo que não pode ser isolado dos interesses da humanidade em seu conjunto e não pode ser utilizado na exploração destrutiva da natureza, que é imanente com a vida humana.
Então, a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da sociedade, do mundo da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da sociedade a vida maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia nosológica: tudo tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo e tudo pode ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse trabalho de conhecer e de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma entidade que seja considerada superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma transcendência. Esta é mais ou menos uma forma de resumir essa questão.
P.: Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari fala muito sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de conhecimento.
B.: Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de Deleuze e Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de Teoria do Ser, de como as coisas são. Essa Ontologia afirma que a essência última é produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o mais substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente desordenada, é constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que já diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica certificam. O que a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política se baseia é o estudo da regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se dão tanto no campo da natureza, como no campo da vida social, e no campo do psiquismo. Pequenas ilhotas em que o que predomina é uma repetição, uma regularidade, que a ciência estuda e que formaliza em leis. Mas, a rigor, toda a potência produtiva da realidade em qualquer âmbito de que se trate depende mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso, das pequenas partículas (como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse planejamento racional e

exploratório que se faz daquelas áreas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari propõe, tanto como tema de investigação, de pesquisa, como forma de atuação ética, como forma de militância política, é a construção de dispositivos que tenham em conta essa potência produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratégias e técnicas destinadas a produzir forrmações complexas no seio do acaso. Isto quer dizer formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma ordem fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergência do caos criador. Nesse sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discussão, Deleuze e Guattari têm muito a ver com a tradição anarquista e com a tradição autogestiva de todos os movimentos históricos dessa característica. Mas esta afirmação é feita não apenas desde uma leitura política, mas também de uma leitura das afirmações da física das nebulosas, ou da física do comportamento das partículas atômicas, ou de certa característica das combinatórias biológicas, pelas proteínas alos­téricas, ou dos sistemas tipo cadeia de Markoff ou da matemática de Riemann, enfim, de todos aqueles campos do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza caótica do ser e a importância de construir dispositivos que não sejam rigidamente ordenados, mas sim que dêem possibilidade da emergência criativa do caos. Deleuze havia produzido o termo Caosmos, que é essa combinação de cosmos com caos. Isto não quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituída e mantida rigidamente. Guattari acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que não se refere tanto a esse universo caótico e ao mesmo tempo cosmótico, mas sim ao procedimento pelo qual se pode viver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, então, eu imagino que é uma metáfora tomada daí – caos e cosmos articulados e propostos como procedimento.
P.: Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é uma ordem que não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a gente sente perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído?
B.: Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia socrática, platônica; ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme influência de Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a uma característica essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias freudianas da angústia, a que

predomina, nestas leituras, é a de que a angústia é uma espécie de percepção da ação da pulsão de morte. Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da angústia que era produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em encontros criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma filosofia por detrás. Então, se nós pensamos que a angústia é a percepção de uma força no nosso interior, que é a pulsão de morte, e que é constitutiva da realidade no mesmo nível, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angústia adquire um estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angústia é promovida como necessária, como inevitável e como "atendível", no sentido de que uma certa dose de angústia é um elemento indicador para levar-nos a um comportamento adequado, apropriado. Na concepção de Deleuze e Guattari, a angústia é produto da antiprodução, que o mundo do instituído e do organizado exerce sobre nossas forças físicas, psíquicas e sociais. Em conseqüência, é um efeito indesejável e contornável. Agora, não há receita contra a angústia. Mas, se sabemos que essa angústia exprime um mal-estar perante a possibilidade da perda e da destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita contra a angústia é o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a plena certeza de que o que está sendo libidinalmente feito vai ser melhor, porque é novo. Não é que se desconheça, nessa teoria, a existência da angústia, mas eu acho que se poderia resumir dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque considera que "a propaganda é a alma do negócio".
P.: O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto eu acredito que a ética que ele traz é de um desejo decidido ­e não vejo como essa ética de um desejo decidido de final de análise faça contraposição ou entre em contradição com a ética da Psicanálise a partir de Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan, esse termo, ciência do real, que está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição dele do real como algo que é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo – isso está em Lacan. Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo do final de análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo que é totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor estava dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da falta, da morte... Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda, talvez, com

pressupostos anteriores aos que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud? Onde justamente ele resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na estrutura? Eu gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de uma análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu final de análise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor falasse um pouquinho sobre isto.
B.: Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder. Porque, por exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele produziu uma teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de articulação entre a técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente diferente de todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano. Tausk, por exemplo, também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto Rank,também. Jung, que também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanálise. Toda a Psicanálise anglo-saxônica, e particularmente a norte-americana, é qualificada por Lacan, depreciativamente, de human engineering, para significar que é uma análise que só serve para a "adaptação", e que o único retomo verdadeiro a Freud é o de Lacan. Então, esse problema de atribuir os méritos produtivos de Guattari ao fim de uma boa análise, pelo menos, é discutível.
P.: Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo novo. Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final de análise – é um desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não vejo aí nenhuma contradição.
B.: Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o que foi como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos, eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio, digamos, deixemos entre parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por exemplo, Deleuze, que provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta obra, jamais se analisou. Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito aos pressupostos, isso é mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto, eu acho que se pode fazer passar a questão por isto que você mencionou. Por exemplo, na teoria dos três registros, para Lacan, o Real é impossível. Esse real impossível é o que exige uma produção
imaginária, que, por sua vez, subordinada ao simbólico, vai ser o pré-requisito de toda a produção do novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste em colocar-se em um lugar de suporte da transferência e da não resposta à demanda, para que o mecanismo imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o simbólico. Para Deleuze e Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte do real. Não existe essa diferença entre o mundo da subjetividade, que é o mundo de negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte da coisa", não existe o pré-requisito da castração, não existe a submissão à lei, não existe a identificação com a metáfora paterna; o que existe é o funcionamento do psíquico que tem a mesma essência do real. Então, a proposta não é a de uma repetição diferencial, como em Lacan, mas a proposta é a de uma pura diferença, de uma multiplicação diferencial incoercível. Não se precisa de um procedimento que nos convença de que o real é impossível, e que, por esse motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo, "depois" simbolizá-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria do Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosófica que é a que enfatiza o Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e Deleuze, isso não existe, a não ser no molar. Para estes autores nada é mais absurdo do que afirmar que houve um retomo "verdadeiro" a Freud. A Freud, houve milhares de retornos. E o que há é um retomo de moda, ultimamente. Mas, utilizando Freud como matéria-prima teórica, pode-se fundamentar a proposta de um desejo como produção e não de um desejo como insistência em reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental aí é o estatuto do nada, da ausência, da falta, e a ética não é a ética heideggeriana, não é a ética do ser para o nada, mas é a ética de Nietzsche, é a ética de um ser para a luta, de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superação da dificuldade, não a de um ser para a resignação.
P.: No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro conceitos fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como pura diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso, porque Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação nestes conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao conceito de Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era estruturado como uma

linguagem", ele não havia dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse apenas que o inconsciente era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai extrair toda uma ciência do Real, vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os falsos maternas, e vai trazer toda uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser Real. Então, ele vai fazer um corte aí nessa primeira leitura dele, anterior, e vai privilegiar o registro do real.
B.: Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para Deleuze e Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de regularidade, das quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que é verdadeiramente produti vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o reverso da estrutura. Então, falam de dois reais totalmente diferentes, distintos. O problema é que, quando Lacan formula as estruturas, em realidade, ele é , digamos assim, mais platônico que nunca. Porque você se lembra da famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o mundo todo em espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta lacaniana é uma forma matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e Guattari dizem é que, quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma subjetivação, ela é produzida como componente de um acontecimento. E não existe uma forma estrutural que dê conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma variação de uma forma, pelo contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não tem comparação possível. São dois reais diferentes.
P.: Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil noventa e dois?
B.: Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como foi que me entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que considerava o Brasil como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os mais incríveis inventos. É claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns ou muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao mesmo tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo, o Brasil com a Comunidade Européia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu acho que (bom, é uma .opinião pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as possibilidades de uma desordem produtiva no Japão, ou no Mercado Comum Europeu, ou nos Estados Unidos, são, no mínimo, menos prováveis que na América Latina. Eu viajo
freqüentemente para a Europa e vejo que, neste momento, a luta política convencional na Europa, na Espanha, suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista, Partido Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional – consiste em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os democratas cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou menos nisso consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde este ponto de vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de vinte anos e que, em pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição direta, tem a desgraça de perder o presidente que escolheu, inicia um novo processo eleitoral e escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhões de votos, sobre um parque eleitoral de setenta milhões; que consegue, de uma forma ou outra, visualizar seu eno e, através de seus representantes, duvidosos ou não, afastar seu presidente do cargo – além disso, ainda existe um partido político que não tem similar em nenhum outro lugar na América Latina... eu acho que é um país interessante. Eu não digo que seja para ser otimista, mas pelo menos entusiasta se pode ser.
P.: Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma estético. Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse paradigma estético.
B.: Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do paradigma estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida em que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido seguem Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o transformador, isso vem de qualquer tipo de produção. E particularmente da produção artística. Em diversas passagens da obra eles fazem questão de tomar contribuições literárias, musicais, pictóricas, estéticas, como lógicas que inteligibilizam o processo do real e propiciam as mudanças com muito maior antecipação do que outros paradigmas. Então, como críticos que são do paradigma científico, que é característico da modernidade, essa proposta de adotar um paradigma estético tem a ver com essa potência que eles atribuem à produção artística.
P.: Como antecipadora?
B.: Como antecipadora e como preservadora da criação, da vida, da harmonia. E também como receptora da desordem criativa, como se
vê, por exemplo, na música moderna, na música abstrata... enfim, a arte sempre está além de qualquer descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo. Provavelmente o único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse famoso pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura.
Bom, agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra ocasião menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.
Livros de autoria de Felix Guattari:
·         Psicanálise e Transversalidade
·         Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo
·         Inconsciente Maquínico
·         Cartographies Schizoanalitiques
·         As Três Ecologias
·         Caosmose. Um Novo Paradigma Estético
Em colaboração com Gilles Deleuze:
·         Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
·         Poli tique et Psychanalyse
·         Kafka. Por uma Literatura Menor
·         Mil Platôs
·         O que é a Filosofia?
Em colaboração com Suely Rolnik:
·         Micropolítica – Cartografias do Desejo
Em colaboração com Antonio Negri:
·         Novos Espaços de Liberdade
Outros:
·         Felix Guattari entrevista Lula


A Última Viagem do Capitão Guattari*
Nos últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de                trabalho no Hospital La Borde, em Paris, o militante político, psicanalista e intelectual francês, Felix Guattari.
A notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de outra maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas extraordinárias idéias e iniciativas.
A cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos últimos quarenta anos.
Ainda é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícil falar sem associá-la à de seu inseparável companheiro, o filósofo Gilles Deleuze (co-autor de boa parte de sua obra), apesar da projeção quase planetária que lhe atribuímos.
Guattari morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma formidável vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto esplêndida.
Outro importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault, disse em certa ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou célebre: – "O século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida distância que separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me afirmar que todas as práxis libertárias das próximas décadas serão, assim denominadas ou não, guattarianas.
Não é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte que, seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de uma filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente mencionados, Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao mesmo tempo, poucos escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e morte nada se saberá publicamente, Guattarianos de fato.
É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras intelectuais (algumas delas brasileiras), porém,
* Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.
cabe ressaltar que toda sua obra contém certas características, que é imperioso pontuar.
Em primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a movimentos e ações concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a qualquer forma de exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem pelo homem.
Em segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado em uma especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificá-las de científicos, literários, ideológicos... ainda que contenham elementos do que de melhor há em cada um destes campos do saber.
Em terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu é repetição, continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de algum mandarim teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja considerado. Invariavelmente, as idéias do extinto amigo são autênticas invenções, em que o essencial é a novidade radical, surpreendente, isólita, audaz, produto de uma erudição e de um rigor assombrosos, porém empregados com força, leveza e entusiasmo plenos de inspiração e refratários a qualquer pretensão de sistematicidade doutrinária destinada a formar igrejas, partidos, corporações ou sociedades multinacionais de epígonos, adeptos ou iniciados.
Por último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o humor que percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições descartáveis") não impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como proposições de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a serviço de todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de iniciação para adquiri-las e sem dívida nenhuma a pagar pela "paternidade" dos conceitos. Seu único motivo é o incremento da Produção e do Desejo em todos os domínios da realidade e para todos "os homens de boa vontade", que, como dizia Nietzsche, somente pode ser a Vontade de Potência.
O capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de mundos desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não tiveram a .sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário.
Mas as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das novas gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o sinistro universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado.
Os amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados, os "homens cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence, um dos favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão Guattari.
Porém nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha.








































In Memoriam de Gilles Deleuze*
Filósofo Nômade
Senhoras e Senhores,
Desejo começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de Belo Horizonte e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por haverem-me dado a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze. Igualmente sou grato ao auditório por sua presença.
Essa homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo inteiro, e não sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido nos parece tão discreta quanto necessária e insuficiente.
Como uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o seguinte: supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em circunstâncias tão solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente.
Por razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa conferência, devo reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse monumento do saber é limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de expositor. Não obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm estudado Deleuze mais e melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de um trânsito exaustivo por esse pensamento, que, por sua própria natureza, é inesgotável.
Resulta tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso com a famosa sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que esse formidável intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO".
Os comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e escandalizou muitos, poderiam ocupar toda essa conferência.
Que pretendia dizer Foucault com tal afirmação?

* Palestra organizada pelo Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995
O mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que sempre lhe foi própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e humorístico.
Sem descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados, por minha vez, como interrogações:
Trata-se de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a reconhecer a obra de Deleuze como a máxima expressão do século XX? Ou, talvez, trata-se de manifestar a esperança de que o período que falta para completar este século, ou, quem sabe, todo o curso do século XXI, será, em sua realidade, expressão concreta das idéias de Deleuze?
Permito-me sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a isso me referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente que a obra de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo.
E quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor segurança sobre o assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos antecipa, não apenas não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer sabemos se será, de maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve exposição, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu nome à história de nossa época, é uma tarefa árdua.
Devemos, inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas dificuldades: é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto amigo, também recentemente falecido.
Se bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar os textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e Guattari provavelmente é a única em seu gênero, dado que a mesma é a prova coerente de toda uma teoria assumida não-autoral da escrita.
Ainda que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica obra desse autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta enumeração da bibliografia deleuziana.
Deleuze nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia em 1948, tendo sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou Filosofia em um liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre Klossowsky, Michel Butor e Jean
Paulhan. Em 1957 obteve o título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de agregado de pesquisas no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).
A partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de 1969 a 1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se aposentou.
Segundo Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida intelectual. O primeiro com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix Guattari, em 1969.
Sintetizando humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se possa traduzir assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio de 68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988).
Essa oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às quais, tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente, acrescentar:
"Nunca me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a dos acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant, nem a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente existencialista, nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me aconteceu científica e artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure, Weber, Wittgenstein, Lacan, Lévi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a conhecê-los tanto como a Sófocles, Leonardo ou Shakespeare.
Meus personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem estranhos, ou pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente marginais. Heráclito, Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas, os hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich, Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist, Duchamps... e tantos outros".
Essa larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo, a fabulosa erudição e versatilidade de Deleuze e, em
segundo lugar, dois tipos de relação heurística com as obras e com seus criadores.
Ao primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como seu projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e fazer-lhe um filho monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a ressalva de que "para fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar absolutamente seguro de que o havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso" deve entender-se de acordo com o que Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem... ou seja, como o anômalo, aquilo que está nos limites, ou até mais além de sua própria espécie. Por outra parte, esse afã de certeza é o que explica a insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos.
Ao segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica, muito mais empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos comentários e teses acadêmicas que Deleuze detestava.
Essa capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de conhecer e circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo saber popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros editados, cuja extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão esmagadora como indispensável:
·         Instinto e Instituição
·         Empirismo e Subjetividade
·         Nietzsche e a Filosofia
·         A Filosofia de Kant
·         Proust e os Signos
·         NÜ::tzsche
·         O Bergsonismo
·         Apresentação de Sacher-Masoch
·         Espinoza e o Problema da Expressão
·         A Lógica do Sentido _
·         Diferença e Repetição
·         Espinoza, Filosofia Prática
·         Espinoza e os Signos
·         Francis Bacon: Lógica da Sensação
·         Cinema I – A Imagem-Movimento
·         CinemaII – A Imagem-Tempo
·         Foucault
·         Péricles e Verdi. A Filosofia de François Chatelet
·         A Dobra – Leibniz e o Barroco
·         Conversações
·         Crítica e Clínica
Em colaboração com Felix Guattari escreveu:
·       O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
·       Kafka. Por uma Literatura Menor
·        Mil Platôs
·       O que é a Filosofia?
·       Politique et Psychanalyse
Em colaboração com Carmelo Bene:
·        Superposições
Em colaboração com Claire Parnet:
·        Diálogos
Obs: esclarecemos que esta lista não está ordenada cronologicamente
A esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros textos. Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas publicações. Segundo uma classificação leve e algo ingênua, os livros de Deleuze podem ser divididos em três grupos.
O primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato aparentemente acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia.
O segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais adiante me referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal. Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de "Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta.
O terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às Ciências e às Artes.
Mas há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é inadequada e insuficiente.
Por um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um sistema anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e turbulências, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e do qual se pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas direções e que é reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas apresenta uma alternância de mesetas de intensidade homogênea em que se pode transitar passando de uma a outra por saltos, às vezes perceptíveis, às vezes desapercebidos.
Por outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada, porque, segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade última a que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção bibliográfica do que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na realidade na qual se insere. Para esses autores, um livro é uma máquina engendrada por máquinas heterogêneas, heteromorfas e heterólogas a ele mesmo, sendo que seu sentido depende de como atravessa a outras (literárias ou não), ou seja, de como estão funcionando dentro dele, e ele dentro daquelas.
Assim sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico de outro, e dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si?
Finalmente, não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que todo texto ou discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa apenas por como afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre os conceitos filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas, apelam à teoria da Música. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos ressoam entre si, nos espaços da Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em dimensões tais como a Harmonia, a Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a Fuga, o Contraponto, o Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos ou discursos estanques. Inútil confundir essa concepção com alguma que postule deslizamentos de cadeias de significantes, elos ordenados como anéis, que por sua vez são elos de anéis maiores, etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa e difícil, é composta de fluxos, pode incluir paradoxos e aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda adivinhações, hermetismos ou mistérios.


Talvez este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar uma opinião pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada.
Tudo leva a supor que Gilles Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor de livros de Filosofia.
O título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo nômade", aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por itinerários absolutamente insólitos e sem compromisso algum com Escolas ou Doutrinas.
Um de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é a Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma precisão e beleza incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos.
Não obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto, com toda clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as questões que se deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que é?" – fosse um bom enunciado para formular um problema.
Não é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando uma vez mais, quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um Ente, ou seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por seu funcionamento, por sua Diferença em Ato.
De um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que pensar exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de novas maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica, nem mais nem menos, que criar novos pensares, ou seja, responder àquilo que "dá a pensar", o que "faz pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares diferentes, originais, inéditos.
É por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou bem acabou não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre outras coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram... e que se chamou esquizoanálise ou pragmática universal. Esses dois termos estão definidos respectivamente, no primeiro e no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e Esquizofrenia". O que estou afirmando é que Deleuze e

Guattari engendraram algo que é Filosofia mas, que também é Ciência e também é Arte... e Política... e Saber Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente.
Por que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de "chegada"?
A rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade tenham incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides, Averroes, Cassirer, Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos.
Tampouco é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o inverso), como são os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.
Igual coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes, Maquiavel, Hobbes, etc.
Mas meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas sociais em geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de Deleuze e Guattari.
Talvez o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault, não por casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se era filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista. 
Agora, bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho introduzir o que alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise, não consigo fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas ramificações com as quais se costuma dividir a Filosofia.
Refiro-me à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer) e à Axiologia (Teoria dos Valores).
Mas como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma maneira suportável para o público em geral?
Apesar de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar esta tarefa como irrealizável.
Peço antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e obscuridades do que se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue.

Na Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a culminação de duas célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia Ocidental.
A primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e idêntico, do qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides), contra o Ser como dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo paradigma seria Heráclito, que sustentava que o Ser Devém).
"Que é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais perguntas ou do Fim da Metafísica... terá suas diversas formulações na Filosofia Antiga, na Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e Contemporânea.
O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos, Materialismos, Agnosticismos, etc.
O como transcorre pelos inumeráveis avatares da Linearidade, da Circularidade e da Dialética.
Mas aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que o Ser (seja qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da Substância e da Essência) contra os que, principalmente desde Descartes, identificam o Ser com o Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual seja o papel que se atribua à linguagem nessa identidade ou distinção.
Ante essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são indissociáveis da Gnoseologia), Deleuze postula:

1)      o ser é devir.
2)       o devir devém como repetição incessante, infinita e não totalizável da diferença.
3)       a essência das diferenças consiste em puras intensidades.
4)       por sua posição nos mundos, sua composição interna proteiforme e seus limites externos difusos, o devir devém como multiplicidades.
5)       pela condição única e irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades, estas se expressam como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim chamá-las) são virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, pré-biológicas, pré-sociais, pré-subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e pré-impossíveis, até serem atualizadas.
6)       o surgimento por atualização das novidades ontólogicas absolutas, assim entendidas, denomina-se individuações.
7)       as individuações resultam do encontro entre complexos de intensidades, multiplicidades e singularidades sintetizadas como corpos, e a emergência, a partir desses encontros, de uma dimensão incorporal dos mesmos, denominada incorporais-sentidos-acontecimentos.
8)       as individuações não podem reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por idéias, substâncias ou essências previamente diferen­ciáveis em espécies ou gêneros.
9)       as ações e paixões que se exercem ao acaso nos encontros entre corpos e incorporais-sentidos-­acontecimentos que deles surgem, assim como as individuações resultantes, não se relacionam como causas e efeitos e não obedecem a leis.
10)   a realidade, assim integralmente entendida, compreende três superfícies imanentes entre si. A primeira, a da produção, que é a que acabamos de conceitualizar, composta por funcionamentos protagonizados pelas singularidades intensivas que mencionamos (máquinas desejantes), dispostas sobre o corpo sem órgãos (que é seu "suporte" e o grau zero das intensidades). Nela se dá o processo puro de produção de produção. A segunda é a superfície de registro-controle, em que se distribuem as entidades já identificadas, ordenadas, determinadas em causas e efeitos, dotadas de funções específicas em que predominam os processos de reprodução e de antiprodução. A terceira é a superfície de consumação, em que culminam e/ou consomem a potências das individuações de toda índole.
 Este imenso "fluxograma" transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma extraordinária reformulação das definições e das relações dos continentes da Natureza, da Sociedade, da Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade, assim como da História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das práxis que os metamorfoseiam e os destroem.
Em absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos Filosóficos, como de Funções Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes Espontâneos. Tal inventiva tem como proposta "Metodológica" sui generis a Intuição, o uso disjunto das Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a plena consideração do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem Sistemática, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas rigorosos, de realidades pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre "princeps" de transmigrações e conjuntos difusos.
Para concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da resolução e do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da Vontade de Potência e da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da inovação permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categórico Universal ou Eterno, nem baseado em Princípios Transcendentes.
É nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes de Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados a propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua brusca interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da Reprodução e da Antiprodução... nisso consiste a esquizoanálise ou pragmática universal.
Mas se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num andaime filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas mais delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente exposto?
Porque a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e reinvenções dos Universais mais caros ao saber do


Ocidente. Apenas como exemplo, mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço, de Todo e de Partes, de Razão e Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, de Potência e de Poder, de Vida e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda, de História, de Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, Etologia, de Lingüística-Semiótica, de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia, de Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por diante.
Não pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa simplificação, a comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e Guattari, principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a medula desse livro imortal: "introduzir o desejo na produção e a produção no desejo". Sem pretender ignorar a larga trajetória desses dois conceitos gigantescos, não se pode negar que, nas acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari partiram basicamente de Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx, não a restringindo à geração de bens materiais indispensáveis para a vida, processo ligado à força de trabalho, que o criador do Materialismo Histórico atribuía à infraestrutura dos Modos de Produção. Deleuze e Guattari estenderam essa idéia à Produção de Produção em "todos" os domínios da Realidade. Igualmente, tomaram a idéia de Freud, de Libido e Desejo, não como sendo apenas a energia-­força que anima exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura do Aparato Psíquico freudiano, cujas características são, como é sabido, em última instância, repetitivas e conservadoras.
Deleuze e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-­funções, assim como do Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características do chamado Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e tornando-os imanentes ao processo de produção de produção da realidade inteira.
Devo concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras acerca de Gilles Deleuze como "homem".
Ao considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano", encontramo-nos comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser uma fiel expressão de suas idéias.


Pessoa de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu empreendimento, de uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma abertura e de uma falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de um reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que levarão décadas para se consumar.
Aliado incondicional de todo movimento das singularidades produtivo-revolucionárias, particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas, foi um amante da Liberdade, da Amizade e da Vida.
Há duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu pensar e sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados com as Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a que é capaz de propor e resolver cada problema.
A segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não se interessam por acumular nem por consumir mercadorias.
Humildade, modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem essas foram as singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir bondoso.








































INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 1
A Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix Guattari.
Gilles Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes do século.
            Felix Guattari, recentemente falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde Mental, criador da prática denominada Análise Institucional e um militante político de esquerda, que pertenceu a numerosos grupos políticos convencionais e os abandonou para fundar ou unir-se a Movimentos Populares de cunhos os mais diversos.
Gilles Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira sempre original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre cinema, política, estética, literatura, pintura, música, história, etc.
Felix Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito peculiar que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral do mundo atual. Também foi jornalista e músico.
Esses dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração adquiriu características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra idéia.
Entre esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma Literatura Menor" e "Que é a Filosofia?".
A obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos. Como se pode apreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus escritos, trataram de quase todas as "especialidades" importantes, mas sempre de maneira original, buscando interpenetrações dos campos e dos conhecimentos, mas sem abandonar nunca um matiz

*Introdução à Esquizoanálise, apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminário realizado em Barcelona (1993).
político, que perpassa toda sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia, para elesjá obsoleta, sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de Mundo", mas várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos fundamentos desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar conta desse monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se encontrar alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros, mas sempre haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não enquadráveis.
O encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de 1968, na França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses têm muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época sustentavam, "A Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos realistas, peçamos o impossível". Essa orientação política, de diversas maneiras, segundo seus entusiastas, rechaçava tanto os vícios da Democracia Burguesa Capitalista como os da Ditadura do Proletariado vigentes, estes últimos, nos ensaios de transição ao Socialismo.
Em realidade, pode-se afirmar que a orientação política que mais influenciou esses autores, apesar de não ser uma referência demasiado explícita em seus escritos, é o Anarquismo, como aconteceu com uma série de investigadores que integram o que se denominou Movimento Instituinte Internacional.
Entre os autores mais afins a Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche, Bergson e Marx, assim como, entre os contemporâneos, Foucault. Mas a lista de seus favoritos é interminável, e inclui, em lugares privilegiados, uma série de artistas que reúnem em si a condição de loucos e de gênios. O exemplo mais característico é Artaud. Também é notável sua preferência por certos novelistas anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry Miller.
O texto mais conhecido e impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida, "O Anti-Édipo", publicado em 1972.
Trata-se de um texto de difícil leitura, não porque o estilo seja particularmente retorcido, senão devido à soma de conhecimentos que é preciso dominar para entendê-la, posto que o conteúdo que se refere a todos eles é estonteante. Em um sentido um tanto melodramático, pode­
se afirmar que "trata de tudo" . Verdadeiramente, é uma grande reformulação das relações existentes entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a política, a linguagem, as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religião, a família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a verdade, os valores em geral, a sexualidade, etc.
O título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica edipiana do Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos e dos desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída entre muilas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir.
Impossível sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna", mas, arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que postulam:
- Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados pela modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos, consubstanciais entre si).
- Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto heterogêneo, está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à outra. A saber, a Superfície de Produção, a Superfície de Registro-Controle e a Superfície de Consumação. A Superfície de Produção é aquela responsável pela geração de tudo quanto existe, está formada por elementos constituídos por matérias ainda não formadas e por energias ainda não orientadas como forças. Esses elementos ainda não apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais é difícil pensar porque não estamos acostumados a conceber algo que ainda não tem nem tempo nem espaço convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais) consiste em uma singularidade absolutamente diferente de todas as outras, e o dizer "todas" é metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se. Outra abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como substantivos, não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"... fórmula essa na qual o múltiplo não


é senão a multiplicação do que é um, ou seja, muitos do mesmo. Multiplicidade se refere a unidades, cada uma das quais é absolutamente diferente das outras: não há nenhum um que sirva de base para multiplicar-se nos múltiplos que são suas réplicas.
A rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de Produção não são, quer dizer, não têm uma essência, mas consistem em um puro devir, estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza" desses elementos, caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo, está tomado no sentido dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em que a energia "flui livremente pelas representações", onde não há tempo, não há espaços clássicos e, sobretudo, onde só há positividades, não há noção de ausência, de falta, de morte, de castração, etc.
Produção, está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma matéria prima, trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho, gera um produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e Guattari acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se produz a si mesma", seus elementos se produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que, no caso da Superfície de Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades, que são caóticas e imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de Produção são o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes. Para não complicar as coisas, direi a respeito que o Corpo sem Órgãos é uma espécie de rede sobre a qual se dispõem ao acaso as intensidades... e as intensidades podem ser pensadas como máquinas inespecíficas e indeterminadas que se conectam de maneira binária em todas as direções. As máquinas desejantes se dividem em máquinas fonte e máquinas órgão. Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o corta e o modula. Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo incoercível é o que gera a produção de tudo quanto existe. Outra característica das máquinas desejantes é serem infinitamente pequenas, por isso se denominam moleculares, e elas permanecem como tais no seio das entidades macro, que se chamam molares, e que são as que estamos



acostumados a reconhecer, seja qual seja a materialidade de que se trate, por exemplo: um homem, uma planta, uma montanha, um país, uma máquina mecânica, uma instituição, etc.
A Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de Produção quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e capturar, ou bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da Superfície de Produção Desejante. A Superfície de Registro está constituída por todas as entidades destinadas a diferenciar, em um sentido convencional, e a utilizar, tudo o que se produz, para colocá-lo a serviço da reprodução, da natureza e da sociedade, tal como estão estruturadas, ou seja, o que tende à reprodução do mesmo e à manutenção do status quo. A Superfície de Registro e de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem se transformar radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de Controle é o denominado socius, ou seja, a forma que tem adquirido a Sociedade ordenada em cada civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo que precisa para evoluir, pelas novidades da superfície de produção.
Deleuze e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um funcionamento que pode ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o dizem referindo-se à Esquizofrenia entendida como enfermidade mental, senão à Esquizofrenia como a característica essencial desse processo de produção caótico que caracteriza a Superfície de Produção, e que tem algo a ver com a "loucura".
Entretanto, a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos ver nas Neuroses, nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas denominações não se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento que as caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a Instituição paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente centralizadoras. repressivas e antiprodutivas.
A Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido pela Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que escapa ao controle e se manifesta como

novidade radical, invenção e revolução... são realizados e/ou consumidos, quer dizer, usados e gozados pelos agentes históricos.
Toda essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para apresentar as tarefas da Esquizoanálise.
A Esquizoanálise será um processo de investigação, de produção de conhecimentos e de aplicação dos mesmos, para transformar o Mundo (entendido no sentido tanto da organização social, como política, econômica, da subjetividade dos homens e ainda das máquinas que modificam por completo a relação homem-natureza). A Esquizoanálise, que não tem por que ser feita por especialistas e que, além disso, cada um faz à sua maneira, a partir da inserção social que tenha e da Causa em que esteja envolvido nas lutas do mundo (sexual, artística, política alternativa, industrial, militar, etc.) se compõe de duas tarefas fundamentais.
A primeira consiste em uma raspagem, quer dizer, em um trabalho destrutivo das entidades da Superfície de Registro-Controle que afetem (e da maneira especial em que afetam) o território em que se movem os interessados. Por exemplo, digamos, na luta pelo direito à existência de uma singularidade sexual: "os homossexuais". Aí se tratará de entender e denunciar a lógica de dois valores com a qual o Socius define o que é normal e o que não é normal em matéria de sexo. Mas isso também inclui um trabalho de destruição das leis que justificam o império da sexualidade pautada em dois valores, os preconceitos que afetam as singularidades sexuais no trabalho e na política, etc. As tarefas negativas se superpõem e intrincam as positivas, por exemplo, a invenção de modos de viver, de critérios de valor, de obras artísticas, técnicas ou políticas, que são peculiares da singularidade cujo direito à existência se está procurando reivindicar.
Toda e qualquer montagem que se invente para realizar a esquizoanálise de toda e qualquer singularidade desejante produtiva, que se denomina agenciamento ou dispositivo, é aceitável. Todo dispositivo desse tipo terá de ter um componente pelo qual se constitui em uma "máquina de guerra", ou seja, em um agenciamento que tem por objetivo defender-se dos ataques da superfície de registro e/ou destruir os equipamentos com os


quais a maquinaria repressiva tende a reprimir, eliminar ou capturar as singularidades produtivo­desejantes.
A Esquizoanálise tem ilustrações interessantíssimas de dispositivos montados, tanto por singularidades sexuais, raciais, nacionais, etárias, lingüísticas, como classistas, profissionais, artísticas, ecológicas, etc.
É de se esperar que essa introdução abra caminho para poder explicar em que consiste o esquizodrama, que também temos denominado proliferação dramática inventiva. Cabe apenas adiantar que se trata da montagem de dispositivos técnicos que têm por objetivo uma Esquizoanálise praticada com recursos tomados da Arte, do Teatro, da Pedagogia e da Psicoterapia, tal como eu tenho podido e entendido.

















































INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 2


No Apontamento n.1 tratei de começar a resumir o que chamei, figuradamente, a "Concepção do Mundo" dos pensadores Deleuze e Guattari. Cheguei a expor suas idéias acerca do que poderíamos chamar uma antologia da Realidade. Pelo menos tratei de esboçar os conceitos mais inclusivos. Resulta, porém, que quando se trata de sintetizar a obras destes autores, tropeça-se em graves dificuldades, não só devido à fecundidade numérica das publicações (são muitos livros e artigos), mas também ao processamento que se dá dos termos e noções inventados, à heterogeneidade alucinante dos saberes ou dos gêneros que se usam como fontes de "importação" dos conceitos ao seio da Esquizoanálise como "episteme", a transformação constante da bateria conceitual durante a aparição dos sucessivos textos, as diferenças de estilo de um texto para outro, etc.
Uma breve referência à questão do estilo já é interessante. Por exemplo: no primeiro capítulo do Segundo Tomo de "Capitalismo e Esquizofrenia" (o primeiro tomo é o famoso "O Anti-Édipo", o segundo se chama "Mil Platôs"), cujo título é "Rizoma", os autores explicam o que é para eles um livro. Apenas como aproximação, recordemos que, em meu texto anterior, falei da "Totalidade" da Realidade e de sua composição por três superfícies imanentes entre si: a de Produção, a de Registro e a de Consumação. Digo totalidade entre aspas porque essa é uma das primeiras categorias filosóficas que Deleuze e Guattari se propuseram reformular. Como a realidade é infinita, "cada totalização pensada ou prática que se faz dela agrega-se a esse todo infinito como uma parte a mais". Segundo me parece, essa definição já é um bom começo para que aqueles que nunca leram Deleuze e Guattari comecem a "sentir" a novidade e, ao mesmo tempo, a estranheza que essa imensa reformulação do pensamento provoca.
Creio que se pode dizer que principalmente a Superfície de Produção devém segundo o Modelo de um Rizoma.   Rizoma é um

*Ver nota na página 49
vegetal de tipo tubérculo, que cresce subterrâneo, mas muito próximo à superfície, e que se compõe essencialmente de uma raiz. Esta raiz é estranhíssima porque, quando o exemplar alcança grandes proporções (há pouco li em um dos jornais diários que nos Estados Unidos havia sido encontrado um que media vários quilômetros de extensão), é difícil saber quais são seus limites externos; quer dizer, não há separação entre "uma planta" que constitui essa rede e a outra que também a integra. Entretanto, no seu interior, o complexo, digamos, radicular, está composto por células que não têm membrana, e que só podem ser supostas como unidades porque têm núcleos ao redor dos quais se distribuem trocas metabólicas e áreas energéticas. Então, pelo menos no sentido tradicional, o Rizoma não tem limites internos que o compartimentalizem. Aquilo que circula nesse interior circula em "toda e qualquer" direção, sem obstáculos morfologicamente materiais que o Impeçam.
Em várias mitologias orientais, sumamente antigas, podem-se encontrar reiteradamente representações do Universo que essas civilizações denominam "Ovo Cósmico". Curiosamente, modelos similares podem ser encontrados nas mitologias americanas, por exemplo, na tribo Dogon. O que estes modelos têm em comum é que o Universo está desenhado como um corpo oval, de limites exteriores muito tênues, e em cujo interior não se vêem compartimentos definidos senão algo assim como "áreas" insinuadas por ocupações de forças, permanentemente mutantes, cujo fluxo incessante mostra "momentos" que podem marcar-se com limiares que sinalizam configurações fugazes de diferenças de intensidade.
Muitas ramificações ultramodernas das Ciências contempo­râneas, particularmente da micro e macro Física, mas também da Biologia Molecular, da Matemática e da Geometria, etc., têm descoberto ou inventado universos reais ou formais que funcionam dessa maneira.
Em certo sentido se pode dizer que para Deleuze e Guattari a Superfície de Produção desse "todo" real funciona assim, e cada realidade circunscrita de maneira mais ou menos ortodoxa na Superfície de Registro (por exemplo, um Corpo Biológico, uma Organização, um Sujeito Psíquico... e o que é mais surpreendente, um livro) também tem um pólo ou uma dimensão produtiva que funciona dessa maneira. ou não tem... ou tem "pouco", ou seja, a potência rizomática de

sua composição depende de como estão "construídos interiormente" e de como conseguem conectar-se e fluir com as forças do "exterior" com as quais se articulam.
Voltando à questão do "estilo" (que a rigor, não é um termo que Deleuze e Guattari usam demasiadamente), trata-se dessa composição interna rizomática que um livro pode chegar a ter e que o torna uma espécie de máquina (depois tratarei de aclarar o que entendem por máquina), que o possibilita fluir interna e externamente, conectar-se com outras máquinas que podem ser completamente heterogêneas (máquinas técnicas, sociais, libidinais, biológicas, psíquicas, etc.) e fluir com elas e entre elas, "formando máquina", "maquinando" com elas novas realidades produtivas e revolucionárias. Em conseqüência, um livro, como todas as outras "entidades" ou devires que integram a realidade, não é importante pelo que "quer dizer", senão pelo que consegue "fazer", ou seja, pelos modos pelos quais se agencia ou se dispõe com outras "máquinas" que transformam (ou melhor, metamorfoseiam, criam o novo radical) a realidade.
Desta maneira, o que chamamos estilo é, a rigor, o regime de funcionamento da "máquina livro", seu movimento, sua velocidade, sua longitude e latitude, sua densidade, sua intensidade, que o permite ou não, contribuir para inventar mundos. Estes mundos podem ser relatados por espécies de "Diários de Bordo" teóricos, que não são exatamente "mapas". Melhor dito, são "Cartografias". É sabido que uma carta de navegação é um "mapa relato", não apenas "objetivo", mas também "subjetivo", "político", etc., que só serve para uma viagem, que só expressa a singularidade única e irrepetível dessa viagem, o que não impede que outros viajantes dele se sirvam para construir sua própria trajetória, sempre experimental, sempre aventureira ..
Por isso, cada livro de Deleuze e Guattari é uma "Cartografia", e está construído de maneira que supostamente haverá de servir ao maior número de viajantes possível, a empreender e elaborar sua própria travessia. Ainda que amiúde os livros de Deleuze e Guattari apresentem recursos (editoriais, semânticos, sintáticos, retóricas, etc.) convencionais, a idéia primordial é que podem ser utilizados, sem sistematicidade alguma, por partes ou por totalizações aleatórias, por quem queira e possa fazê-la. Uma peculiaridade que a obra esses autores apresenta e


que, com toda certeza é ilustrativa e fiel a esses "princípios", é que eles jamais se citam a si mesmos, e autorizam os leitores a fazerem a mesma coisa.
Apesar de ser uma obra monumental, com uma quantidade de referências bibliográficas que chega a ser monstruosa por sua amplitude, versatilidade e rigor, Guattari escreveu um artigo que se intitulou algo assim como "Dez proposições descartáveis para expor a Esquizoanálise". O descartável implica que não aspiram a nenhuma permanência, nem paternidade autoral, nem exigência escolástica ou acadêmica, mas que cada um pode usá-la à vontade, segundo lhe pareça que lhe vai ser fecundo no que está por fazer ou escrever, ou para as duas coisas, que segundo Deleuze e Gllattari, sempre ocorrem simultaneamente.
Em outra parte deste primeiro capítulo do Segundo Tomo ("Mil Platôs"), Deleuze e Guattari explicam que assinaram seus livros pelo "prazer de falar em primeira pessoa", "como todo mundo", dizer que "hoje saiu o sol" ou qualquer coisa desse tipo, mas que, para serem coerentes, deveriam ter escrito de maneira anônima, para poder descartar qualquer influência do que Foucault denomina "a função autor", que é um recurso de Poder que, ainda que se possa usar de maneira estratégica a serviço da produção, geralmente é empregado para gerar certa subordinação à imagem do intelectual ou do "professor" prestigioso, etc.
Isso nos permite voltar à única proposta de "Método" que esses autores se permitem e que, sem que haja referência explícita, tem muito a ver com o que um grande epistemólogo, Feyerhabend, sustenta em seu livro "Contra o Método", em que ele faz uma feroz crítica da "Metodologia das Ciências" e afirma algo como uma "Inventiva Radical". Deleuze e Guattari sustentam que o único "método" é o do bricoleur, ou seja, o do selvagem que solitariamente limpa o solo em uma clareira da selva e se põe a juntar galhos, penas, pedras, e acaba construindo um "quadro" que pode ou não ser apreciado por um "degustador" ou espectador, e cujo grau de beleza depende do índice em que seus componentes "não têm nada que ver entre si". Dito de outra maneira, Deleuze e Guattari propõem que em todo empreendimento, aventura, viagem ou obra, o verdadeiramente importante é a novidade, a diferença e a singularidade absolutas, que de uma forma ou outra


subvertem a maior Instituição de uma civilização, que é a forma em que esta define o "Horizonte do Possível".
Uma das maneiras de entender, em um sentido amplo, a importância dessa proposta, é a de referi-la a algumas idéias do filósofo Bergson, particularmente àquelas que se referem à essência da Realidade.
Bergson diz que a Realidade se compõe do Real (o que já existe), do Possível (o que pode vir a existir) e do supostamente Impossível, o que, coerentemente com o que se sabe do existente e do ainda inexistente, não pode ser nem Real nem Possível. Mas Bergson acrescenta que existe uma dimensão da Realidade que ele denomina Virtual. O Virtual não existe (não é Real), nem se pode dizer que seja Possível e Impossível, simplesmente porque não se pode pensá-Io, nem antecipá-Io, nem predizê-Io, nem negá-Io. O Virtual só é conhecido quando se torna atualizado, ou seja, quando devém Atual. O que sucede é que o Virtual ainda não atualizado é a parte mais importante da realidade, mas só se sabe dele quando se Atualiza, e sempre o faz como a novidade, a diferença absoluta, que não era pensá vel, dizível, nem previsível com as categorias do real, do possível ou do impossível.
Essa atualização do Virtual que Deleuze e Guattari apresentam com o nome de acontecimento, termo tomado dos filósofos estóicos, tem uma valor incalculável como orientador de toda prática, porque o objetivo principal em Deleuze e Guattari é o de produzir pensamentos e atos (que sempre terão imanentemente uma dimensão Ética, Estética, Ontológica, Gnoseológica, Política, etc.), montar DISPOSITIVOS, agenciamentos, sempre complexos, heterólogos (compostos de diferentes saberes), heterogêneos (compostos de diferentes material idades), heteromorfos (compostos de formas diversas) e até heteróclitos (bizarros, estranhos, etc.)... que geram e são eles mesmos partes de acontecimentos singulares.
Por sua vez, essa proposta está estreitamente ligada à idéia do filósofo Nietzsche, de que se deve viver "Desejando os Acontecimentos", como afirmação radical da "Vontade de Potência", ou seja, do cultivo, da propiciação daquelas forças que procuram criar o Novo Absoluto. Em Deleuze e Guattari esse Novo é a característica da atividade da Superfície de Produção, que sempre é simultaneamente Revolucionária, Desejante e Produtiva.

Deleuze e Guattari tomaram de Marx a idéia de Produção, de todos os Utopistas a idéia de Revolução, e da Psicanálise freudiana a idéia do Desejo Inconsciente. Não obstante, não tomaram essas idéias sem crítica, posto que as reformularam de tal modo que é difícil sintetizar no presente escrito. Apenas para dizer algo a respeito, bastaria explicar, por exemplo, que, em Freud, existem dois conceitos claros de Desejo. Em um deles o Desejo é definido como uma espécie de força inconsciente que impulsiona os sujeitos a buscarem objetos de prazer que supostamente tiveram alguma vez e perderam. Essa concepção do Desejo em Freud sustenta que o que mobiliza essa força é a Falta desse objeto que, a rigor, não existe. Mas há outras passagens de Freud nas quais o Desejo se define pelas características daquilo que o criador da Psicanálise denomina Processo Primário, um funcionamento com base na pura positividade, numa espécie de vontade de invenção, de criação, ou como se queira chamar, que não se mobiliza pela Falta de Objeto nem pela nostalgia do Bem perdido, nem pela tentativa de Repetição do Mesmo, senão por um puro impulso ao Novo Absoluto, ao Retorno da Diferença Essencial que, segundo toda uma linha da Filosofia, é o único que retoma na Realidade Última, que é a Virtual.















INTRODUÇAO A ESQUIZOANALISE
Apontamento N° 3
Nesta oportunidade, gostaria de me referir, como sempre muito sinteticamente, ao lugar que ocupa na Teoria Esquizoanalítica a questão da subjetividade.
É sabido que na História da Filosofia Ocidental podem-se reconhecer dois períodos fundamentais. Durante o largo curso do primeiro deles, o pensamento filosófico se interrogou persistentemente em torno do Ser. Apesar de que essa reflexão estivesse sempre matizada, quando não francamente contraposta, ao problema do Devir, pode-se afirmar provisoriamente que a questão do Ser resultou sempre vitoriosa, porque, ainda que reconhecesse alguma importância ao Devir, o fez sempre incluindo o Devir como uma das características ou atributos do Ser.
Já desde Parmênides, um ilustre pré-socrático, a fórmula predileta para referir-se ao Ser era tautológica ou pleonástica, como dizer que do Ser só se pode predicar que É. Essa identidade do Ser consigo mesmo adquiria em Parmênides também a condição da imobilidade e da eternidade. A essa concepção pode-se contrapor a idéia de Heráclito, de que o Ser devém, ou seja, que se transforma constantemente; daí a famosa frase que afirmava que "não se pode banhar duas vezes no mesmo rio".
A interminável sucessão de importantes escolas filosóficas foi-se inclinando a buscar algo assim como um substrato do Ser, e ainda que tenha havido várias tentativas a respeito, foi-se impondo a convicção de que a "medula"do Ser era a Substância (Osia).
Com respeito à Substância, foram-se introduzindo importantes variações, cujo estudo é do maior interesse, mas, para os efeitos do que aqui quero expor, daremos um largo salto e diremos que é com o filósofo René Descartes que se gera uma transformação no centro da problemática filosófica, posto que esse pensador substitui a preocupação sobre o Ser por uma prioritária acerca do Conhecer, e particularmente acerca da
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"sede" ou do protagonista do conhecer, que é o Sujeito do Pensamento. Como é sabido, Descartes cunha a famosa fórmula "Penso, logo Sou", fazendo o Sujeito do Pensar o único que pode ter uma certeza, pelo menos inicial, de que é Ele quem está pensando e, portanto, Sendo.
Essa mudança permanece fundamental para toda a Filosofia pós­cartesiana, ainda que não de uma maneira exclusiva. Uma de suas vicissitudes posteriores consiste em que a Psicologia implícita nas considerações filosóficas, assim como a Psicologia experimental das Faculdades, que é a primeira Psicologia "científica" que aspira a fundar essa disciplina como tal, desvinculando-a da Filosofia, continua definindo esse Sujeito autocentrado, coerente, único e homogêneo, como sendo o objeto principal do estudo psicológico e o protagonista de todas as funções e atos psicológicos.
Tem-se insistido reiteradamente que, com a Psicanálise, genial invenção freudiana, essa Imagem de Sujeito foi definitivamente colocada em questão. Atribui-se à Psicanálise, no campo do psíquico, uma revolução similar à que havia operado Copérnico com sua teoria Heliocêntrica do Universo, a Darwin com sua Teoria da Evolução das Espécies, e a Marx com sua Teoria dos Modos de Produção históricos.
Todos esses "descobrimentos" operaram verdadeiras revoluções, e um de seus efeitos característicos no saber universal consistiu em um descentramento, ou seja, no destronamento de uma entidade que ocupava um lugar axial nos campos respectivos, que resultou questionada por esses novos conhecimentos. A Terra não é mais o centro do Universo, assim como o Homem não é mais que um descendente dos mamíferos superiores, e os Homens não são, tampouco, os fazedores incondicionais da História, senão que os modos em que as sociedades se estruturam determina a influência relativa que os homens podem ter sobre seu funcionamento.
De igual maneira, o Eu, entidade psicológica que, em geral, toma-se sinônimo do Sujeito consciente, dono do saber acerca de si mesmo, de seus desejos e de sua vontade, é evidenciado como sendo só uma parte da "personalidade", e não certamente a mais importante. O Sujeito é conhecido como irreversivelmente dividido em um Eu consciente e voluntário, por um lado, e em outras instâncias, entre as quais se destaca o Id, impessoal, inconsciente e involuntário.

Muitos psicanalistas modernos insistem em que o descobrimento freudiano, que sem dúvida adquiriu uma considerável hegemonia em seu campo específico, ainda não foi suficientemente adotado e aproveitado, tanto no seio de outras disciplinas científicas, como inclusive no da Filosofia, Política, etc.
Esse descobrimento problematizou, entre outras convicções, a certeza da coincidência irrestrita entre termos tais como indivíduo, pessoa e sujeito.
Esse complexo de denominações reiteradamente tem sido entendido como um conjunto de sinônimos, ou seja, cada um desses vocábulos designa mais ou menos a mesma coisa, ou, pelo menos, são perfeitamente articuláveis entre si, de maneira tal que, sua agrupação denomina quase tudo o que é a unidade elementar ou fundamental do ser humano.
Ainda que existam muitas diferenças a respeito, para uma visão um tanto mais rigorosa, costuma-se fazer certas distinções que já ajudam a discriminar um pouco essa problemática.
Reserva-se o termo Indivíduo para a unidade mínima elementar de um exemplar da espécie biológica humana (ou de outras), sendo que a mesma, como seu nome indica, "não pode ser dividida sem desnaturalizar-se". Tem-se o hábito de usar a palavra Pessoa para a unidade social e jurídica, igualmente mínima, capaz, por exemplo, de contrair deveres e direitos e de ocupar lugares e hierarquias sociais estabelecidas. Por sua vez, costuma-se denominar Sujeito, tanto a essa unidade mínima homogênea autônoma psíquica a que nos referíamos anteriormente (e assim também em Lingüística e em Semiótica), como a uma função essencial dentro dos textos ou discursos (Sujeito do enunciado, Sujeito da enunciação).
Desde logo podemos encontrar muitos outros usos e sentidos do termo Sujeito (em Teoria Literária, em Estética, em Política, etc.). Mas em todos esses âmbitos encontramos também uma dualidade ou uma ambigüidade essencial pela qual Sujeito pode designar tanto o agente, o protagonista, o ator, o causador dos processos, como igualmente algo ou alguém "sujeitado", ou seja, ignorante, conduzido, submetido ao efeito de forças e mecanismos que não conhece nem domina.
Obviamente, a anteriormente mencionada relação entre Indivíduo, Pessoa e Sujeito     fica radicalmente relativizada pela postulação de um sujeito essencialmente dividido, como acabamos de caracterizá-lo. Se já estava claro que esses termos não são sinônimos e não designam a mesma realidade, a isso devemos acrescentar que essa condição dividida do Sujeito psíquico exerce influências incalculáveis sobre a constituição e o funcionamento dos Indivíduos biológicos (seus "corpos"), assim como sobre as pessoas sociais e jurídicas e os desempenhos de seus "papéis", "status", concepções, atitudes, etc.
Um aspecto essencial deste assunto consiste em que, desde já, todas essas unidades, às quais nos referimos, não são concebíveis apenas como entidades separadas. Seja qual for a condição que se atribua à sua associação, é evidente que a vida humana, tanto biológica, como social, como psiquicamente, desenvolve-se na forma coletiva.
Essa coletividade ou comunidade essencial, em geral é concebida como a conexão, relação, interação, ou como se queira chamar-lhe, entre as citadas unidades, em conjuntos de pequena, média ou grande dimensão.
Daí a importância que têm adquirido diversas agrupações denominadas intermediárias, tais como o casal, a família, os grupos "secundários" (lúdicos, escolares, esportivos, etc.), assim como as organizações, os povos, até chegar à Sociedade ou à Humanidade em seu conjunto.
Apesar de diversos investigadores terem intentado propor a existência de entidades que não consistem exatamente na associação destas unidades elementares (muitos já falaram, por exemplo, de Consciência ou Inconsciente Coletivo, de Ideologia ou de Culturas, Tradições, etc.), em geral as tendências científicas dominantes atuais parecem adotar ainda essa idéia de uma associação de Sujeitos (p.ex.), coletivização esta que, ainda que possa engendrar estruturas e processos sui generis, em última instância tem como substratos as citadas unidades elementares. Essa posição se enfatiza em algumas postulações psicanalíticas atuais, que sustentam que tal conexão é, a rigor, ilusória e impossível, ainda que possa estabelecer-se para fins de criar efeitos de unificação coletiva, dado que os Sujeitos divididos de que se trata são radicalmente narcisistas, e seu real vínculo com outros é inviável. Para esses autores, a pseudo-conexão só se produz através de nexos simbólicos, cujo conjunto constitui a cultura, mas à condição de serem mediatizados e abstraídos pela linguagem. Desta maneira, os Sujeitos

estariam marcados por uma "solidão essencial", que não é realmente superável por interrelação alguma.
Explicar a proposta Esquizoanalítica a este respeito não é uma tarefa fácil, particularmente fazê-lo para aqueles que ainda não estão inteirados dos meandros da Teoria de Deleuze e Guattari.
Uma tentativa que posso fazer sobre o assunto pode basear-se em algumas premissas básicas, apenas enunciáveis, ainda que difíceis de se fundamentar em poucas linhas.
Em primeiro lugar, como já adiantamos nas outras comunicações, para esses autores a separação entre Natureza, Cultura, Psiquismo, Sociedade, Máquinas, etc., dá-se apenas em um dos níveis ou Superfícies em que a Realidade está organizada.
                Esta superfície ou nível é imanente, ínsita, coextensiva, concomitante, coexistente – ou qualquer outro termo que possa tentar passar a idéia de que uma é interna à outra –, com a Superfície da Produção Desejante, em que essas realidades definidas e organizadas não o são como tais, senão como o que eles chamam (entre outras maneiras) de realidades Pré: 'pré-biológicas, pré-­psíquicas, pré-sociais, etc. Como dissemos em outras aulas, o nível organizado (chamado Superfície de Registro, Controle, Identidade, etc.) caracteriza-se por se compor de entidades macro, cujos limites são geralmente perfeitamente definidos e variavelmente articulados entre si. As diferenças entre essas entidades, se bem existem, não são tão importantes como as semelhanças ou as igualdades, analogias, similitudes, etc. Por isso é que se pode dizer que as coletividades são, a rigor, multiplicações. Se o Um é Indivíduo, Pessoa ou Sujeito, a coletividade é o Múltiplo, muitos... ou bem do Mesmo, ou bem de pequenas diferenças.
Na Superfície da Produção Desejante, se é que se pode falar de unidades micro, estas são multiplicidades ou singula­ridades absolutas, o que quer dizer que cada uma delas é absoluta e infinitamente diferente das outras. De outro lado, é bastante difícil entender que essas singularidades não têm extensão nem qualidade, senão apenas intensidade, por isso é que também podem denominar-se Singularidades Intensivas.
O poliverso dessas singularidades intensivas, que em outras exposições dissemos sinônimos da Virtual idade Bergsoniana, ainda
não existem como entidades macro ou moleculares da superfície de registro ou controle, mas nem por isso deixam de formar a parte potencialmente inovadora radical da Realidade.
Quando esta Virtualidade Molecular se atualiza, opera sem respeito algum pelas identidades, limites, territórios, estratos, instituições, organizações ou unidades elementares da Superfície de Registro.
Isto sucede quando emergem novos efeitos e processos, em geral irreconhecíveis, impensáveis, inclassificáveis e incontroláveis (segundo as leis, normas e interesses da Superfície de Registro). Essas revoluções, que podem ser grandes ou pequenas, mas que se caracterizam por serem insólitas, efetuam-se como encontros entre os corpos materiais e energéticos (isto dito em um sentido muito amplo) e entre os sentidos e valores como acontecimentos incorporais.
Estes Encontros – Acontecimentos geram transfor­mações que se efetuam simultaneamente em qualquer ou em todos os domínios instituídos, organizados ou estabelecidos molares, e podem assim gerar (isto dito incorretamente, por razões pedagógicas) indivíduos que não pertencem a espécie alguma, novas pessoas que não coincidem com indivíduos nem se enquadram em categoria social ou jurídica de nenhuma índole e, para o que aqui nos interessa particularmente, subjetivações que não se apóiam em indivíduos biológicos delimitados, nem em pessoas sociais convencionais... nem coincidem com o lugar, perímetro ou condição das unidades elementares-sujeito, sejam estas divididas como a psicanálise diz ou homogêneas, como a psicologia tradicional diria.
Essa produção de subjetivações se "materializa" associando "partes" de cada uma das unidades elementares citadas, em articulações completamente irreconhecíveis, e com características de funcionamento insólitas, acerca das quais, apenas para dar um exemplo ilustrativo (ainda que de maneira alguma exaustivo), pode dizer-se que amiúde se apresentam com rendimentos do tipo do que denominamos "paranormal", "parapsicológico", ou, com uma terminologia pouco recomendável, francamente prodigiosos.
Trata-se de verdadeiras invenções, inspirações, criações, ou como se queira chamá-las para melhor entendê-las, e o fato de que

apareçam tomando como cenário um Sujeito clássico, um Grupo, uma Organização, Movimento ou Massa Social, tem muito mais a ver com a originalidade da subjetivação criada que com os limites e as expectativas que habitualmente se atribuem a esses conjuntos.
Para concluir, provisoriamente, não se deve esquecer que essas "montagens", "dispositivos" ou "agenciamentos" geradores de subjetivações (que podem ser predominantemente artísticos, políticos, industriais, etc.), sempre são tudo isso ao mesmo tempo, ainda que, amiúde, seja difícil precisar como cada um desses domínios macro intervém em cada um deles.
Finalmente, retomando a polêmica pré-socrática, não se trata aqui de que o Ser seja imóvel àu eterno, nem tampouco que o Ser devenha, mas de que o Ser é Devir... ou o Devir é o Ser.
Dito de outro modo: O SER DO DEVIR É A INCESSANTE PRODUÇÃO DO NOVO ABSOLUTO.













































A REALIZAÇÃO DA REALIDADE *




A Esquizoanálise de Deleuze e Guattari pode ser considerada um saber "novo", não enquadrável em nenhum dos gêneros anteriormente conhecidos. Ao mesmo tempo, cabe considerá-la como contendo também parcialmente dimensões destes gêneros: Filosofia, Ciências, Artes, Política, etc.
Do ponto de vista filosófico convencional, pode-se dizer que a Esquizoanálise é um materialismo, neo-funcionalista, maquínico. O sentido desta fórmula irá se aclarando no percurso destas aulas; por hora, trataremos de ver o que é para Deleuze e Guattari a Realidade, e como a mesma se "faz".
Para Deleuze e Guattari a Realidade é tudo o que na Filosofia Convencional compreendia o Ser e o Existir, inclui tanto as essências como as aparências, a matéria, a energia, o espírito, o pensamento e a subjetividade. Segundo uma terminologia tomada e reformulada do filósofo Bergson, pode-se dizer que compõem o Real: o Possível, o Impossível, o Virtual e o Atual.
Portanto, deve ser pontualizado que, para Deleuze e Guattari, a "substância" da Realidade é o Ser do Devir (e não apenas o Ser ou o Devir do Ser). Em outras palavras, a Realidade consiste em "todos" os devires (processos) que a integram.
O conceito de Todo está colocado entre aspas porque, a rigor, não há Todo no sentido habitual do termo. Não há um Todo finito, definido e pré-estabeIecido, cujo interior compreende – e está diversificado – em partes. Os processos da Realidade, em seu devir, vão constituindo todos. Cada um desses todos vai se agregando sem totalizar-se nem unificar-se inteiramente nunca, e incluem a subjetividade e a práxis desde as quais são construídos. Essa definição provém, dentre outras variadas fontes, da Teoria Física Geral da Relatividade.

*Este texto e os 10 que se seguem referem-se a aulas do Programa Âmago de Formação Contínua em Esquizoanálise, Instituto Felix Guattari, Belo Horizonte, 1996/1998.
A modalidade com que os processos vão realizando a Realidade se denomina produção. Este conceito está tomado de numerosas fontes teóricas e tem sido reformulado de maneira a não esgotar-se no sentido que tem em nenhuma delas em particular. Provisoriamente podemos destacar a origem industrial do termo, tal como tem sido formulado por Marx, como "prática" ou "processo produtivo de trabalho". Estes processos exigem: Força de Trabalho, Matérias-Primas, Meios de Produção, Execução do Trabalho, Produto. Mas, em Deleuze e Guattari, esse processo tem sido conceitualmente ampliado e complexizado até tomar-se sinônimo de todos os devires que produzem a Realidade. Essa reformulação inclui especialmente a Imanência e a Consubstancialidade entre a Produção e o Desejo. Também o conceito de Desejo está tomado de diversas fontes. Provisoriamente destacaremos entre elas a definição do Processo Primário, postulado por Freud para o funcionamento do Inconsciente subjetivo. Mais adiante nos dedicaremos especialmente a esse conceito.
O conceito de Produção em Deleuze e Guattari parte, sem dúvida, da importância atribuída por eles à Máquina como componente constitutivo presente em todas as organizações históricas. O conceito de máquina não se limita às características dos instrumentos primitivos, nem às grandes máquinas hidráulicas, nem às eólicas, nem às mecânicas, a vapor, a explosão, às elétricas, eletrônicas, cibernéticas, etc. As máquinas não estão pensadas apenas como extensões dos "membros" ou do sensório do indivíduo, do sujeito ou das sociedades humanas. Os conjuntos "difusos" da Natureza, das Sociedades, das Subjetividades, dos Sistemas Semióticos e das Maquinárias (propriamente ditas) formam grandes Mega-Máquinas (molares) compostas por infinitas Micro­-Máquinas (moleculares, atômicas e subatômicas) em permanente processo autoprodutivo.
A produção, assim entendida, de alguma maneira inclui e reformula categorias que vão assumindo o "comando" ou a hegemonia em diferentes Momentos e Imagens do Pensamento acerca da Realização da Realidade, correspondentes às respectivas Mega-Máquinas históricas. O conceito de Produção (e mais ainda o de Produção Desejante) incorpora criticamente as idéias de Criação, Emanação, Irradiação, Plasmação, Expressão, Manifestação, Processão, etc. Essas significações, se bem

sejam consideravelmente polívocas, denotam ou conotam, em geral, sentidos predominantemente divinos, sobrenaturais, ultraterrenos, míticos, místicos, religiosos, teológicos e metafísico-transcendentais. Mais adiante trataremos delas em detalhe.
O conceito de Produção também inclui todas as modalidades de produção Natural (poiesis, concepção, geração, mutação, transformação, evolução, emergência, etc.), assim como as de produção humana, industrial, artística, social, mental e "simbólica", em um sentido amplo (invenção, fabricação, construção, edificação, inspiração, legiferação, institucionalização, etc.) e ainda outras, particularmente mágicas ou imaginárias, tais como transmutação, metamorfose, etc.
No que se refere ao capítulo epistemológico do Determinismo, cabe supor que o conceito de Produção pode incluir todas as modalidades do Determinismo, tanto as Causalistas como as Não-Causalistas. Como veremos nas aulas seguintes, o Processo Produção pode ser de Produção de Produção, de Produção de Registro-Controle, de Produção de Consumação. Também, em outro sentido, falaremos de Produção de Reprodução e de Produção de Antiprodução. De acordo com as características de cada um desses Processos, a Produção opera com todas as modalidades de Determinismo conhecidas. Mas é na Produção de Produção que apresenta suas novidades mais insólitas, pensadas com originais derivações, Determinismo Subatômico, Quântico, etc. Recordemos apenas algumas formas de Determinismo tais como linear, circular, espiral, interacional, fatorial, estrutural, dialético, probabilístico, organísmico, teleológico, aleatório, etc. Com respeito à Causalidade, recordemos que é Conveniente diferenciar: a) a Causação (que se refere à conexão causal geral e particular); b) o Princípio Causal, que é o enunciado da Causação como Lei Causal (a mesma causa produz sempre o mesmo efeito) e enuncia a forma do vínculo causal; c) o Determinismo Causal, que afirma a validade geral do Princípio Causal, ou seja, que TUDO ocorre de acordo com o Princípio Causal.
O conceito de Produção não se reduz à Causação, nem ao Princípio, nem ao Determinismo Causal, ainda que, como di"zíamos, os inclui em alguns de seus processos.
Em geral, a categoria antiga e clássica de Causa era própria do pensamento mítico, místico e teológico, havendo sido substituída na Modernidade pela Lei e na Esquizoanálise pela Produção.
Se tomamos como paradigma o termo Criação, veremos que se costuma analisá-la em quatro sentidos:

1.       Produção Humana de algo a partir de uma realidade preexistente, mas de tal forma que o produzido não se encontra necessariamente nessa realidade prévia.
2.       Produção Natural de algo preexistente, mas sem que o efeito esteja necessariamente incluído na causa, ou sem que haja necessidade de tal efeito.
3.       Produção Divina de algo a partir de uma Realidade preexistente que pode ser um Caos, ou um Cosmos que teve como origem um Caos prévio.
4.       Produção Divina de algo a partir do Nada ou Creatio Ex ­Nihilo.

Para muitos filósofos gregos, a Criação era pensada como um ato de um Fazedor finito produtor de coisas finitas. O mesmo atuava por procedimentos que eram, enunciados por analogia com diversas produções humanas (Demiurgo). Para outros, a Criação é pensada como a produção de algo por parte de um Ser Superior (O Uno) que se translada e degrada em sua obra (Emanação) ou cuja natureza imutável é comunicada por inteiro a várias pessoas ou produtos "à sua imagem e semelhança" (Procissão). Quando nesse procedimento, a parte de Si, preexistente ou não, que o Ser Superior delega, translada-se como forças energéticas, o faz pela Irradiação, sem perder nada de sua própria substância. Quando o Ser Superior opera sobre uma matéria já existente modificando-a, o faz por Transformação. Quando as criações do Ser Superior são entendidas como um ato de pensamento ou de discurso em que Aquele é considerado como um Sujeito emissor, se diz que se Expressa em seus produtos ou efeitos, ou que se torna visível ou inteligível neles (Manifestação), ou que envolve a apresentação ou que envia uma certa delegação (Representação), ou é uma abstração que se materializa (Plasmação).
Para a Teologia Negativa, pejo contrário, Deus se manifesta por sua Ausência em suas Obras.
Em todos esses processos criativos, há um vínculo de relativa exterioridade ou uma sucessão de antecedência e conseqüência entre o Criador e o Criado. Para filósofos como Guillermo de Occam e Espinoza,

há um contato direto, imediato e permanente entre ambos os termos, ou seja, uma imanência entre o Criador e o Criado, sendo a criação um ato contínuo (Panteísmo).
Para boa parte da tradição judaico-cristã, a Produção por Criação não pode ser entendida com nenhuma das analogias racionais das que nos valemos para pensá-la e só pode ser acedida por Revelação. Trata-se de um Ato de um Ser separado e diferente de suas obras, as quais se extraem do Nada, em que não preexistiam. Seja que se trate de um ato pontual ou contínuo, o mesmo não atua por nenhum dos meios e procedimentos conhecidos. Pelo contrário, as produções naturais e humanas podem ser entendidas como quase-criações, ou como réplicas imperfeitas e limitadas da Criação Divina.
Em suma: o que trato de destacar nesta revisão se pode resumir dizendo-se que, na Esquizoanálise, a Idéia de Produção conceitualiza uma MULTIPLICIDADE de processos pelos quais toda a realidade se realiza a si mesma como auto-criação permanente, ou seja, que é seu próprio agente, seus próprios meios e seus próprios produtos. Entre tais efeitos estão incluídas as realidades transcendentes, míticas, mágicas, misticas e teológicas, assim como as naturais, as subjetivas, as sociais e as técnicas.
É a Produção, dita nesse sentido, o que produz "de fato", e produz os conceitos para pensar, "de direito", a "Criatividade" e as "Criações" ultramundanas... E NÃO O INVERSO.








































REALIDADE E PRODUÇÃO*


Para compreender a importância e o lugar do conceito de Produção na obra de Deleuze e Guattari, é preciso ir introduzindo alguns outros conceitos que são seus atributos e propriedades. O principal, por ora, é entender que realidade é "tudo" que há e existe (Natureza, Sociedade, Subjetividade, Parque Maquínico), mas com os seguintes agregados. Para Deleuze e Guattari, a realidade última não consiste nas citadas categorias de Ser e de Existir, senão no Ser do Devir. Se na ontologia antiga, clássica e moderna dominante, a essência da Realidade é pensada como o Ser (já que o mesmo é entendido como eternamente imóvel e igual a si mesmo, Idêntico), ou seja, que lhe admita alguma transformação ou movimento (O Ser que passa a existir nos Entes ou o Ser que devém), em Deleuze e Guattari se afirma que o Ser é Devir (pura diferença, permanente movimentomudança). Em conseqüência, para Deleuze e Guattari, a "medula" da realidade é devir, a realidade está em incessante realização e essa realização recebe o nome de produção.
Mas como tal produção é Autoprodução, ou seja, não é gerada por nenhuma entidade exterior à realidade mesma, diz-se que é imanente. O termo Imanência tem outros valores na obra de Deleuze e Guattari, mas esse primeiro sentido é o mais importante.
Imanente é um conceito que se opõe radicalmente a Transcendente. Transcendente é um termo que admite vários significados, mas o que interessa no sentido de sua oposição com Imanente, consiste em que Transcendente se diz como sendo "superior" a Imanente, em especial no que se refere à superioridade de toda e qualquer entidade divina, sobrenatural, ultraterrena, etc., supostamente criadora, com respeito ao criado por ela.
A idéia é que a divindade transcende o criador, está "mais além", "sobressai" e, mais ainda:     DEUS É TRANSCENDÊNCIA



• Segunda aula do Curso Âmago.
Uma dessas significações é particularmente importante. Refiro-me à que diz que o Mundo é essencialmente incompleto, que lhe falta Deus. Essa concepção admite variedades do tipo de que "entre Deus e o Mundo existe um abismo intransponível", ou que existem "graus de transcendência do Mundo e do Homem que os aproximam de Deus".
Uma modalidade extrema da Transcendência Absoluta, que é a da Teologia Negativa (contrária à crença comum de que "Deus está em todas as partes"), é a que sustenta que o Ser e a Existência de Deus se definem por sua ausência, ou seja, porque "não está presente em nenhuma parte do Mundo".
Contudo, é preciso recordar que os pensadores panteístas afirmavam que Deus é "Causa Imanente de todas as coisas", Deus é sua obra; ou seja, sustentam a Identidade entre o Criador e o criado. Essa posição já pode ser considerada um antecedente do Materialismo Imanentista Produtivo de Deleuze e Guattari. Algo parecido acontece com várias Filosofias ou Mitologias primitivas e orientais.
É necessário distinguir entre Transcendente e Transcendental. Apesar de haver vários significados, no sentido que nos interessa, Transcendental é uma categoria kantiana, compatível com o pensamento de Deleuze e Guattari. Kant, na "Crítica da Razão Pura", dedica-se ao empreendimento colossal de estudar quais são as condições necessárias que fazem possível o pensamento correto, ou seja, os a priori ou pré-requisitos para pensar a Realidade, independentemente de que Realidade em particular esteja sendo pensada (p.ex., "Sujeito", "Objeto", etc.). Esses são os Transcendentais Kantianos, alguns dos quais são adotados por Deleuze e Guattari. Os Transcendentais fazem possível o conhecimento da Experiência do pensador. O transcendente é o que pretende pensar mais além de toda experiência, o qual Kant reserva para a teologia ou para a religião, e Deleuze e Guattari rejeitam por completo. Neste momento, digamos que a Produção em Deleuze e Guattari, na medida em que é o único processo de realização da realidade, divide-se em Produção de Produção,




Produção de Reprodução, Produção de Consumo e Consumação, e Produção de Antiprodução.
A PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO é o processo de incessante geração do novo como engendramento de diferenças-singularidades absolutas de toda e qualquer realidade (mais adiante definiremos estes termos).
A PRODUÇÃO DE REPRODUÇÃO compreende os processos que tendem à geração do que já foi produzido e já existe, tal como foi produzido: produção do mesmo, repetição. Os mesmos tendem a identificar, selecionar, adequar e reprimir as produções a serviço da manutenção rela tiv a de uma ordem já produzida.
A PRODUÇÃO DE CONSUMO compõe os processos de uso, usufruto e gozo das realidades produzidas; enquanto produção de consumação consiste, ao mesmo tempo, no "apogeu" final e na extinção da trajetória das realidades produzidas.
A PRODUÇÃO DE ANTIPRODUÇÃO pode definir-se como o processo de destruição das realidades produzidas ou do impedimento de sua produção.

Todos esses processos são concomitantes, simultâneos, ínsitos, coextensivos (termos estes, apenas ilustrativos pedagogicamente)... Imanentes, e, segundo as superfícies, territórios ou estratos da realidade da qual se trata, predominam uns ou outros.
Muito sintética e provisoriamente, digamos que as idéias de Deleuze e Guattari tendem a inverter o célebre esquema de Platão, segundo o qual a realidade estava dividida em três níveis. O nível das Idéias Puras, que são entidades ideais, eternas e invariáveis, dotadas fundamentalmente de Identidade Absoluta, ou seja, de um Ser imóvel e igual a si mesmo, modelos de Bem e de Virtude. O nível das Cópias, que tiveram uma convivência com as idéias puras, as quais lhes davam uma imagem e semelhança com elas, a perderam, conservando apenas a imagem e perdendo a semelhança. Estas Cópias, que aspiram voltar a Ser como as idéias, podem consegui-lo através do processo Maiêutico, que é um diálogo com o Filósofo, capaz de fazer-

lhes recuperar seu amor à Verdade e a sua semelhança com as IDÉIAS-­MODELOS. As que o conseguem serão Boas Copias, as que não, serão Más Cópias. O nível dos Simulacros, sombras demoníacas que carecem de todo Ser, de toda Identidade e Permanência, de toda Imagem e Semelhança com as Idéias Puras, assim como não aspiram a recuperar a condição de boas cópias. Assim, Platão os considera o Mal propriamente dito.
Como se pode entender, os SIMULACROS SÃO PURO DEVIR, seu fluir está produzindo permanentemente o novo absoluto, a Pura Diferença, a pura Invenção-Produção.
A proposta de Deleuze e Guattari, baseada nas idéias do filósofo Nietzsche, consiste em inverter ou subverter o plato­nismo, ou seja, pensar e propiciar uma Realidade na qual a dominância seja a dos simulacros (em termos de Deleuze e Guattari, A Produção) e não a dos modelos vigentes que tendem à reprodução-do-que-está-aí, mediante a seleção de Boas Cópias e a destruição das Más Cópias e dos Simulacros.
Para concluir, provisoriamente (há outros conceitos que teremos de deixar para as aulas seguintes), digamos que a proposta consiste em questionar e desconstruir as superfícies, territórios, estratos e práticas da realidade em que predomina a Reprodução e a Antiprodução, para uma transformação revolucionária da Realidade.
Mais adiante veremos os conceitos que definem como estão compostas as Superfícies ("regiões") da Realidade, especialmente as que consistem na Pura Produção, ou, poderíamos dizer, a reformulação que Deleuze e Guattari fazem do conceito de SIMULACROS: Singularidades, Intensidades, Multiplicidades, Estidades, Etc.







O DESEJO*


O desejo é um termo de larga tradição no pensamento ocidental.
Uma linha dominante na Filosofia antiga e clássica distinguia, por exemplo, entre DESIDERO, proveniente do substantivo SIDUS, que se referia às estrelas, ao ALTO – e a seu plural SIDERA (Constelação), no sentido da configuração cósmica que determinaria o DESTINO de cada um ..
Por esse motivo, era conveniente estar sempre atento ao SIDERA TUS, ou sejá, à cuidadosa CON-SIDERAÇÃO ou indagação acerca do que os astros reservavam aos homens. Ao contrário, DESIDERARE consistia em algo assim como "fechar os olhos" a essa suposta influência – e assumir a própria sorte (Boulesis). Isto requeria poder lidar com o vazio (Hormé) e correr o perigo (entre outros) de ser SIDERADO, alcançado por um raio.
Nos Diálogos de Platão, fala-se do célebre Andrógino (que era por sua vez homem e mulher) e que, por um acidente, se dividiu, sendo que, a partir desse momento, cada metade continuaria eternamente buscando sua outra parte perdida. Também nesta Filosofia, a procura da Verdade exigia desprender o Desejo de sua atração pelos corpos belos, para poder encaminhá-lo em direção às Idéias Puras.
Em Espinoza, o DESIDERIUM consistia no impulso provocado pela nostalgia correspondente ao objeto de um bom encontro, que foi posteriormente perdido. A memória do mesmo gera tristeza e a vontade de recuperá-lo é o DESEJO. Mas, essa paixão triste deve ser corrigida pelo Entendimento, que é capaz de analisar os novos encontros e escolher, entre eles, os que sejam capazes de aumentar a alegria e a potência de nossos corpos, evitando os que nos envenenam ou debilitam. Se, ao contrário, substituímos o Entendimento pela Imaginação, nos entregamos a encontros fantásticos que obscurecem nossa eleição adequada.
Em Hegel, o Desejo se diferencia da Consciência e é entendido como uma luta de Consciências (Dialética do Amo e do Escravo). O
• Terceira aula do curso Âmago.
Desejo aponta o que cada ser deseja por si mesmo sem tomar em consideração o Desejo do outro. Coloca-se assim em uma contradição o que deseja ser reconhecido pelo outro e não aceita, por sua vez, reconhecê-lo. Esta figura que se estabelece entre o Amo e o Escravo é resolvida dialeticamente, porque o Amo que deseja ser reconhecido apenas como Senhor da Guerra, não tem medo da Morte, deve aceitar reconhecer o Desejo do Escravo, enquanto este for imprescindível para a vida, por sua potência de Trabalho.
Em geral, pode-se dizer que existe uma oposição entre certas filosofias pré e pós socráticas que entendem o Desejo como uma força vinculante própria do mundo da Physis (Natureza, Matéria), que se estende ao mundo da Psyche (Alma, Espírito) e outras, nas quais o Desejo é pensado como próprio do Sujeito ou do Pensamento, seja do Homem ou da Divindade.
Algo dessa oposição é conservado na polêmica mais moderna entre o Mecanicismo (para o qual tudo o que existe pode ser entendido como máquina) e o Vitalismo (para o qual tudo que existe pode ser entendido como organismo vivo); ou a que opõe diversos Materialismos a diferentes Idealismos e Espiritualismos. Mas, para entender o conceito de DESEJO na ESQUIZOANÁLISE é importante partir da significação que adquire na Psicanálise Freudiana.
Freud critica a idéia de que o Sujeito (elemento central da reflexão filosófica desde Descartes, assim como em muitas psicologias), seja uma entidade unitária, consciente, racional e voluntária. Para Freud, o sujeito está dividido em um território consciente-racional-voluntário (sistema pré-consciente – consciente), e outro, INCONSCIENTE, IN­VOLUNTÁRIO e IRRACIONAL, ou dotado de uma RACIONA­LIDADE diferente. A parte pré-consciente – consciente está radicalmente separada da inconsciente pela barreira da Repressão (Recalque), de forma tal que o sujeito consciente não tem acesso cognoscitivo, nem dorrúnio voluntário sobre esta última.
O Aparato Psíquico freudiano está· instalado sobre o corpo biológico, que é seu suporte, mas se diferencia essencialmente dele, em sua natureza e nas leis de seu funcionamento. Por outro lado, o citado Aparato é uma espécie de conector entre o corpo biológico e os sistemas culturais ou simbólicos, entre os quais se destaca a Linguagem. Dito de
uma maneira simples, o psiquismo é o dispositivo que se encarrega de que o animal FALE e por esse meio se socialize.
As forças que animam o organismo biológico ou INDIVÍDUO são os INSTINTOS, tendências estas, indispensáveis à vida, como a fome e a sede (instintos de conservação do indivíduo) e o sexo (ou instinto de reprodução da espécie). As exigências dos instintos para serem satisfeitos se denominam NECESSIDADE e a privação dos objetos capazes de satisfazê-la é vivida como TENSÃO DE NECESSIDADE. Os objetos da necessidade são relativamente fixos, e não se pode prescindir deles de forma duradoura, sem comprometer a sobrevivência do indivíduo. Os instintos sexuais são relativamente adiáveis.
As forças que mobilizam o Aparato psíquico são denominadas PULSÕES; quando as pulsões se inscrevem ou carregam sistemas de marcas ou de representações psíquicas inconscientes recebem o nome de DESEJO, assim como quando carregam representações pré-conscientes ­conscientes são chamadas de INTERESSE OU ATENÇÃO.
Um dos modelos freudianos mais simples e antigo para caracterizar o DESEJO (embora depois tenha sido corrigido e ampliado), consiste em dizer que se trata de uma força que recarrega alucinatoriamente as marcas de memória, deixadas pelas primeiras experiências de satisfação da necessidade no psiquismo. Dessa forma, se entende que se o objetivo do instinto é a satisfação, o do desejo é o prazer.
O desejo, assim definido, não tem objeto real, porque seu objeto é uma representação imaginária; por outro lado, pode-se afirmar que o desejo pode deslocar-se de uma "alucinação" para outra, ou seja, que não tem objeto fixo, que a rigor nunca se "realiza" ou satisfaz, e que seu objetivo pode ser consideravelmente postergado.
O Desejo, para ser pseudo-satisfeito ou para tentar infruti­feramente ser realizado, precisa ativar uma cena imaginária inconsciente que se defj.ne em Psicanálise como FANTASMA. Só mediante uma série de operações e mecanismos, o Desejo pode se transformar em interesse ou atenção pré-consciente – consciente e animar atos mentais, lingüísticas ou comportamentais úteis e sociáveis.
Lacan diferenciou com precisão DEMANDA, de DESEJO, e de NECESSIDADE. A demanda é uma formulação verbal que leva implícito um pedido de amor e sua decepção se chama FRUSTRAÇÃO. O desejo
anseia a reativação alucinatória de um fantasma, na qual, de uma forma ou de outra, se tenta apagar a separação entre sujeito e objeto, restaurando, assim, um estado narcísico; sua decepção se chama CASTRAÇÃO. A necessidade exige os objetos materiais específicos capazes de satisfazê-la, e sua insatisfação se chama PRIVAÇÃO.
Em um sujeito psíquico, já não se pode especificar as exigências de sua necessidade (como em um animal) sem considerar a influência que a demanda e o desejo têm sobre ela.
Como pode ser apreciado, tanto no discurso filosófico como no psicanalítico, como no sentido comum, é bastante possível encontrar o termo Desejo dotado dos seguintes atributos: 1) É uma força impulsora ou animadora de processos em um indivíduo-sujeita-pessoa. 2) Essa força induz o sujeito a obter objetos (que ainda que também sejam reais ou simbólicos, no fundo, são imaginários, ou seja, que em um sentido específico, não existem). 3) Os objetos procurados tentam reencontrar um objeto supostamente tido e perdido, ou seja, anseiam reativar a marca com a qual esse objeto ficou na memória (consciente ou inconsciente). A vivência que caracteriza o Desejo é uma espécie de nostalgia. 4) A aparente obtenção de um objeto de Desejo dá um prazer transitório, mas, como o Desejo não tem, a rigor, objeto, é insaciável. 5) Tais características fazem com que o Desejo continue interminavelmente sua busca do objeto, e que essa procura, processada por outras instâncias do sujeito, se transforme em animadora de outros rendimentos psíquicos e culturais superiores.
Quando Freud descreve as características das instâncias, espaços e sistemas pré-conscientes e inconscientes, constata que em cada um deles acontecem funcionamentos, que são chamados de PROCESSOS, que funcionam com peculiaridades diferentes.
O pré-consciente – consciente funciona segundo o Processo Secundário. Neste funcionamento, as forças animam representações de acordo com uma lógica que coincide com a lógica aristotélica, que todos costumamos reconhecer como sendo A ÚNICA LÓGICA POSSÍVEL. Esta caracteriza-se pelo Princípio de Identidade (A = A), Princípio de Contradição ( A não é = B), Princípio de Terceiro Excluído ( se A não é = B e B não é = C, C não é = A). Como se pode ver, no Processo Secundário, existe afirmação ou positividade, mas também existe negação ou negatividade. É em função disso que existe idéia e sentimento
de falta, de ausência, de morte, de diferenças quantitativas e qualitativas, de sucessão temporal, etc.
A partir de uma leitura Esquizoanalítica, é possível distinguir na Obra de Freud duas caracterizações diversas de Inconsciente e de Processos Primários. Uma delas (que chamaremos estrutural ou edipiana), parece mostrar algumas peculiaridades originais que não são as mesmas que as do pré-consciente – consciente e do processo secundário, mas também outras bastante parecidas. Por exemplo, A pode ser A e NÃO/A, assim como certa Ordem que lhe é própria. Mas também em Freud (em suas teorizações a respeito na primeira Tópica e na Segunda – Conceito de Id, Ello ou Isso), encontramos uma conceitualização segundo a qual o Inconsciente – Processo Primário é DRASTICAMENTE diferente do outro.
O inconsciente – Id – Processo Primário tem a seguinte composição e funcionamento:
1) Compõe-se de um conjunto infinito de positividades, não tem negação nem negatividade.
2) Não reconhece falta, ausência, nem nostalgia alguma.
3) Não tem Ordem alguma, é um "caos" que Freud compara a um "caldeirão fervente de estímulos".
4) Cada um de seus elementos constitutivos é uma "unidade" absolutamente diferente das outras, que se caracteriza por sua INTENSIDADE (não por sua qualidade nem por sua quantidade), sendo que sua intensidade pode se definir como a potência que tem de gerar, a partir dela e de suas combinações com as outras, algo COMPLETAMENTE NOVO. Essas unidades nem "são" nem "existem", são puro devir e pura diferença.
5) Não funciona de acordo com um tempo cronológico, nem com uma lógica aristotélica, nem com nenhuma outra das já conhecidas e aceitas.
6) Se se quer relacionar esse processo com o DESEJO, só se pode dizer (alegoricamente) que seu único "desejo" é o de PRODUZIR O NOVO.
AGORA ESTAMOS EM MELHORES CONDIÇÕES PARA ENTENDER A IDÉIA DE DESEJO DE DELEUZE E GUATTARI:
1) o Desejo é o que anima um processo que não é próprio de uma instância, sistema ou território do
sujeito, senão da realidade mesma e de sua realização.
2) esse processo é o que pre-cede (não lógica nem cronologicamente, senão ontologicamente) a tudo o que reconhecemos como territórios, ou entidades reais circunscritas e definidas (na­tureza, sociedade, linguagem e, inclusive, sujeitos) .
3) a este processo, não lhe falta nada, não pode ser completo nem incompleto porque não é totalizável , mas sim, infinito, e transcorre intem­pestiv amente.
4) este processo está protagonizado por elementos que são: intensidades, diferenças , multiplicidades, "estidades" (depois explicaremos estes termos), puros.
5) este processo (que a partir do ponto de vista de que estamos tratando pode ser chamado de desejante), "não é outra coisa", "nada mais é", "não é diferente", é imanente, com o que em outras aulas conceitualizamos como processo produtivo – "essência da realidade e de sua auto-realização permanente" ou ser do devir.
6) Em conseqüência, talvez se possa entender melhor a idéia Esquizoanalítica de introduzir o Desejo (assim redefinido) na Produção, e a Produção (redefinida, como já fizemos) no Desejo.

A realidade, em especial sua Superfície da Produção, consiste, "essencialmente", neste proces­so Produtivo-Desejante... Desejante-Produtivo .











DIFERENÇA E REPETIÇÃO*



Nesta aula trataremos de resumir o que na obra de Deleuze e Guattari significam os conceitos de Diferença e Repetição, relacionando-os com os de Ser e Devir, Desejo e Produção. Pode-se dizer, sinteticamente, que toda a tradição filosófica do Ocidente está atravessada pela oposição entre duas categorias, a de Ser e a de Devir. Se recordarmos os pré-socráticos, diremos que, para Parmênides, o Ser se define como eterno, invariável e idêntico a si mesmo. Em conseqüência, o Ser é igual a si mesmo e sua duração se evidencia como a repetição do mesmo.
Ao contrário, Heráclito sustentava que o Ser devém, ou seja, que flui constantemente, de forma tal que "não podemos nos banhar duas vezes em um mesmo rio". Apesar disso, Heráclito aceita que o Ser tem uma duração e uma continuidade que o torna reconhecível através de sua constante variação. Há no Ser algo que se mantém igual a si mesmo durante o Devir.
Diversas tradições mitológicas e religiosas oscilam entre sustentar que tudo se repete igual a si mesmo em ciclos temporais de diferente duração, e outras insinuam que existem trocas de maior ou menor magnitude, muitas das quais se produzem ao acaso. Se recordarmos o que já tratamos com respeito à estratificação proposta por Platão, saberemos que as Idéias Puras, que são o Ser, são em número limitado, idênticas a si mesmas e se repetem eternamente iguais. As Boas e Más Cópias aspiram a recuperar ou alcançar as características das Idéias Puras, sem jamais' alcançá-lo plenamente. Por sua vez, os simulacros são Puras Diferenças, sempre diversas e carentes de toda identidade, ou seja, são o Puro Devir, e não aspiram à identidade, eternidade ou igualdade.
Demócrito, os Sofistas, os Estóicos e os Epicuristas, cada um a sua maneira, apresentam modalidades de categorizar o Devir como

• Quarta aula do curso Âmago.
prevalecente com respeito ao Ser, especialmente no campo da Physis, que mais ou menos corresponde ao que chamaríamos Natureza.
Dando um grande salto na história da filosofia, digamos que Hegel sustenta a idéia de que o Ser, cuja Totalidade é o Espírito Absoluto, protagoniza um processo pelo qual no princípio é o Ser em Si. Este Ser sai de Si e em todos os campos do real inicia uma grande trajetória, que se processa de maneira dialética (Afirmação, Negação – e Negação da Negação, ou Tese, Antítese e Síntese), para recuperar-se ao final, plenamente realizado, como Espírito para Si. Como se vê, em Hegel, o Ser é, mas Devém dialeticamente, para concluir sendo plenamente Si Mesmo.
Com Kierkgaard e os filósofos existencialistas, o Ser continua tendo algo de estável e de idêntico, mas devém em um ir-se fazendo a si mesmo constantemente. Privilegiam, portanto a Existência e não a Essência.
Mas é com o Panteísmo Espinoziano (em que o Ser é imanente à Substância e se auto-realiza sem parar nunca), assim como no permanente fluir da Vontade de Potência em Nietzsche – e na incessante atualização do Virtual em Bergson (que vai mais além do Real, do Possível e do Impossível), que podemos dizer que se prepara o conceito de Deleuze e Guattari sobre a questão.
Já dissemos que estes autores tomam principalmente a idéia de Processo Primário em Freud e a de Produção como Trabalho Abstrato em Marx. A partir delas encontram que a "essência universal" da Realidade é a variação incessante, que o que se repete é Diferença Absoluta, o que os leva a afirmar não só que o Ser não é estático, nem sequer que devém, senão QUE O SER É O DEVIR.
A rigor, esse Devir, como geração contínua do Novo Absoluto e da Pura Diferença, acontece incessantemente no que eles chamam Superfície da Produção, e se manifesta em todos os campos da Realidade com características caóticas. Não obstante, devemos recordar que para Deleuze e Guattari, esse Caos produtivo é imanente a um Caos ordenado, que é produto da atividade produtiva, ou de outra maneira, que a Produção também produz a Reprodução (aquilo que se repete como O Mesmo), assim como a Antiprodução (aquilo que destrói o produzido ou impede ou seleciona a Produção). Conseqüentemente, a chamada Superfície de Registro detecta, localiza e identifica as produções da

Superfície de Produção, reprime o que não conseguira Incorporar, captura o que lhe é tolerável e destrói o que poderia exceder sua capacidade de manter-se segundo a ordem que ela domina.
Recordaremos também que isto acontece tanto no nível da subjetividade, como da sociedade, da política, da história, dos sistemas semióticos, da natureza e do parque maquínico técnico. A emergência do Novo Absoluto, efeito da Superfície da Produção, expressa-o por linhas de fuga que escapam ao controle da Superfície de Registro, ou melhor, por estalos, acontecimentos, revoluções e grandes metamorfoses dos territórios e estratos da superfície de Registro (em outras palavras, do Instituído, Organizado, Estabelecido, etc.)
A importância destas postulações é de incalculável valor e de difícil exposição sintética, mas podemos resumir dizendo que se trata de uma Ontologia que fundamenta uma Gnoseologia, uma Ética, uma Estética e, sobretudo, uma Política, ou seja, uma orientação de Vida, uma Práxis, isso dito no sentido mais amplo possível.
O valor Supremo da mesma consiste na certeza de que a "essência" última da Realidade é o Retomo da Diferença, a Produção e o Devir e que, conseqüentemente, se trata de viver "apostando" na invenção, na "criação" e na luta, ou como diria Nietzsche, em "viver perigosamente", se por perigosamente se entende a desmistificação da "segurança", da "estabilidade" e da "conservação" do já consagrado.
Nas próximas aulas tentaremos ver como está composta essa Superfície da Produção, "por quê" a de Registro tende ao Controle, e dentro de certos limites muito precisos, "como se pode fazer para viver inventivamente" .





































O MAQUÍNICO*


Na última aula do semestre anterior, deixamos colocada a denominada Tópica da Realidade, ou seja, uma das cartografias que Deleuze e Guattari elaboraram para dar conta da Realidade. Recordamos que se tratava de três superfícies, que, para fins pedagógicos, desenhamos separadamente, mas que, a rigor, são imanentes entre si: Superfície da Produção, de Registro-Controle e de Consumo­Consumação.
Dissemos que os processos nessas três superfícies eram diferentes, ou, dito de outra maneira, que os predominantes em cada uma das superfícies tinham prevalência de Produção, de Reprodução e de Antiprodução. O que hoje começarei a fazer é uma tentativa de caracterizar os "elementos" (por assim dizer) que compõem o processo da Superfície de Produção. Isto de "elementos" é apenas uma concessão pedagógica, porque quando virmos os sinônimos ou as diversas maneiras de definir esses elementos, compreenderemos que se trata mais de movimentos que de elementos, ou seja, são "unidades" que não se podem "fixar" ou "deter" como o faríamos com uma fotografia.
Em outros momentos destas aulas nos referimos à polêmica entre duas correntes filosóficas, o Vitalismo e o Mecanicismo. Falamos que cada uma delas tratava de propor um Modelo Universal para as diferentes regiões e componentes da Realidade. Para os Mecanicistas, o Modelo era a Máquina, e dada a época em que essa corrente teve sucesso, tratava-se da Máquina Mecânica (a vapor, p.ex.). De sua parte, os Vitalistas diziam que o Modelo geral devia ser o de um Organismo Vivo, tal como a Biologia dos Séculos XVIII-IX os havia estudado.
Apesar de uma série de diferenças que justificavam a discussão, ocorria que, considerados no nível "macroscópico", estes Modelos tinham muito em comum. Ambos postulavam que uma Unidade, mecânica ou orgânica, estava composta de peças ou de órgãos que tinham que ter um contato entre si, que transmitisse o movimento e as funções, e devia ter limites externos bem definidos, que permitissem separar essa

*Quinta aula do curso Âmago
unidade de outras similares ou do resto da realidade. Essa unidade devia estar animada por uma energia-força, que no caso das máquinas mecânicas podia ser, p.ex., a da combustão, a da explosão, etc. Por seu lado, o Vitalismo dizia que essa energia-força estava dada por um "Elã" (expressão tomada de Bergson), ou seja, uma energia vital que era impulsora de todo movimento e troca.
Como também é óbvio, p.ex., que uma máquina mecânica não era produzida pela conjugação de duas máquinas iguais a ela. Entretanto, um organismo biológico superior, p.ex., um mamífero, geralmente era engendrado pela cópula entre dois animais muito similares a ele.
Para o Mecanicismo, os organismos vivos eram tão máquinas como as demais, apenas mais complexos, e para o Vitalismo, no caso do Animal Superior de todas as espécies, o Homem, as máquinas eram prolongações de seus membros ou de suas funções mentais.
                 Deleuze e Guattari, estudando as contribuições de várias filosofias, constroem uma proposta que reúne e transforma as duas posições antes descritas. Também incluem nessa revisão as contribuições de todas as disciplinas constituídas, na medida em que as mesmas começam a "descobrir", em seus respectivos campos, o que se passou a chamar "Novo Paradigma".
Em geral, este consiste em que, no nível microscópico ou sub­microscópico das respectivas materialidades com as quais trabalham, aparece uma série de insuspeitávies peculiaridades. Resumindo ao máximo, as mesmas passam pelo fato de que, subjazendo a todas as "entidades" "macro" que eles investigam, encontram-se com um "Caos" "preliminar" de átomos ou partículas, onde não têm vigência as leis do determinismo causal, e que está composto por minúsculos "elementos" que se combinam a velocidades enormes, que se convertem de matéria em energia e o inverso, e que comportam uma força de auto-produção que lhes permite gerar as entidades "macro" que compõem. Em termos filosóficos, poder-se-la dizer que se trata de um Materialismo Neo-­Funcionalista Molecular. Basicamente consiste em que, se tomarmos as unidades naturais, viventes ou não – e as máquinas de qualquer característica, a nível molecular ou "micro", chega-se à conclusão de que o "Modelo" da Realidade consiste em que esta é constituída por minúsculas "Máquinas" que se formam por si mesmas ao mesmo tempo em que funcionam, que estão completamente
dispersas, embora conectadas por sínteses peculiares, e que ainda não estão caracterizadas como as especificidades que vão vir a formar no nível "macro".
Esses "elementos" micro não são perceptíveis nem pensáveis em termos de extensão, quantidade e qualidade, como o são as entidades "Macro". São pensáveis e detectáveis porque dotadas de uma série de propriedades que fomos estudando no curso destas aulas, a partir de uma série de conceitos especulativos filosóficos. São Puras Intensidades, são Multiplicidades, são Hecceidades ou Estidades, são Devires, são Fluxos.
Deleuze e Guattari as designam pelo nome de Máquinas Desejantes, que estão dotadas de todas as peculiaridades que os conceitos antes expostos detêm.
Essa denominação de máquinas desejantes está tomada de um estudioso das esculturas modernas animadas, chamadas gadgets, que são maquininhas elétricas ou eletrônicas, organizadas ciberneticamente, cujo funcionamento persegue apenas um efeito estético. Entre essas maquininhas estão algumas denominadas "Celibes" ou também "Máquinas de não-fazer-nada", etc. Nestas máquinas o traço essencial é que funcionam apenas "por funcionar", ou seja, o funcionar é seu único e último sentido.
Mas Deleuze e Guattari vêem no funcionamento das Micro­-Máquinas que compõem essa Realidade pluripotencial – "Pré-liminar" à sua integração molar, que constitui as unidades "Macro", o processo de "Realização da Realidade". Algumas das características desse Processo são as do Processo Primário descoberto por Freud no Inconsciente do Sujeito Psíquico, a que já nos referimos. Daí provém a denominação de Desejantes (que não tem nada a ver com que "algo" ou "alguém" deseje seu funcionamento), cujo único sentido é a Produção.
As máquinas desejantes podem diferenciar-se em Máquinas Fontes (que geram um fluxo energético) e Máquinas Órgão (que o cortam). As máquinas Desejantes se conectam entre si (baseados nessas duas operações de Fluxo e Corte), em infinitas direções e combinações, segundo sínteses diversas, que acabam dando os processos macro de Produção, Registro e Consumação-Consumo.
Estas sínteses se realizam sobre uma superfície chamada "Corpo sem Órgãos", que veremos nas aulas seguintes. Por hora,só deixaremos colocadas as denominações de tais sínteses: Síntese Conectiva de

Produção, Síntese Disjuntiva de Registro e Síntese Conjuntiva de Consumo-Consumação. O processo Produtivo que protagonizam as Máquinas Desejantes é denominado Processo Esquizoonte, em homenagem ao funcionamento "psíquico" dos esquizofrênicos, mas entendido não como uma entidade nosográfica já deteriorada e doente que a Psiquiatria classifica e trata, mas sim considerado como um funcionamento que, pelo menos a princípio, se dá na experiência e vivência esquizofrênica.























AS MÁQUINAS DESEJANTES*


Em aulas anteriores estivemos falando das três superfícies que compõem a Tópica da Realidade, segundo Deleuze e Guattari. Também conversamos em diferentes contextos sobre alguns temas que são típicos destes autores. Nesta oportunidade tentaremos uma introdução acerca dos "elementos" que integram a superfície da Produção. Estes elementos, de difícil compreensão, apreendem as características que comentamos acerca da diferença, dos simulacros, das intensidades, dos devires, das estidades, das multiplicidades, etc. De forma que, apesar de ser complicado definir os mencionados elementos, não o é tanto se recordarmos todos esses termos explicados em aulas anteriores.
A Superfície da Produção está "povoada" por duas "entidades" (muito estranhas por certo). Elas são as MÁQUINAS DESEJANTES e o CORPO SEM ÓRGÃOS. As MÁQUINAS DESEJANTES (MD) são elementos de regime binário e de "natureza" intensiva e singular. São multiplicidades cuja combinação se efetua como sendo tudo o que compõe a realidade. Nesse sentido é que se pode dizer que são "Pré": "Pré-naturais", "Pré-sociais", "Pré-subjetivas", "Pré-semióticas", "Pré­Maquinárias ou Tecnológicas".
Esse termo foi tomado de um livro de M. Courreges, um especialista em crítica Estética, e se refere às esculturas modernas e pós­modernas, que freqüentemente se formam com maquininhas cibernéticas, animadas elétrica ou eletronicamente. Um nome que essas maquininhas recebem é o de gadgets. Entre essas esculturas estão algumas muito curiosas, como "A máquina de não fazer nada", "A máquina Celibe", etc. O interessante dessas máquinas é que, usando elementos da tecnologia moderna, produzem exclusivamente um efeito estético, que entre outras peculiaridades possui a capacidade de desvinculá-las por completo de suas finalidades "práticas" ou utilitárias no mundo contemporâneo. Por outro lado, algumas delas são capazes de construir-se ou destruir-se a si mesmas, de "formar-se" ou de "transformar-se" ao mesmo tempo em que funcionam.

• Sexta aula do Curso Âmago
É preciso, para pensar as MD, tratar de descartar por completo as imagens de forma, estrutura, conteúdo e função que todos evocamos quando pensamos em uma máquina qualquer de nossa cultura. As MD se dividem em dois tipos: máquina "fonte" e máquina "órgão". A máquina fonte extrai e emite um fluxo "energético", a máquina órgão o corta. Mas a máquina que funcionou como cortadora de fluxo na primeira combinação pode, por sua vez, converter-se em uma máquina fonte de fluxo em uma segunda combinação. As MD podem, então, combinar-se em todas as direções e em um tempo que é próprio a elas e que não se confunde com o tempo cronológico, nem com o retroativo. Como se pode imaginar, as Máquinas Desejantes formam um Rizoma (rede vegetal da qual já falamos). A rigor, sua conceituação pode ser entendida como uma tentativa de pensar modalidades de Ordem próprias do Caos, sobretudo apontando que desse Caos vão surgir todas as "entidades claramente ordenadas" das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-­Consumo, que já conhecemos e que habituamos a considerar como sendo a realidade em si mesma.
As Máquinas Desejantes, na Superfície da Produção, se acoplam pela Síntese Conectiva de Produção e é por meio delas que geram todas as realidades "pré" àsquais já nos referimos. Esse regime de acoplamento pode ser verbalizado por meio da conjunção "E". É isto "E" o outro "E" os demais, etc. Também cada MD é, assim, uma singularidade, e integra um poliverso infinito de diferenças positivas absolutas. Não só que o que as une são fluxos, mas que elas também se formam e se transformam na medida em que funcionam (devires). Seu conjunto, então, integra esse poliverso aberto de infinitos todos, a que cada nova parte produzida se agrega como "uma parte a mais". Nesta superfície é que se dá o tipo de "organização" que Deleuze e Guattari denominam "Molecular" ou "Micro".
Este tipo não tem a ver exatamente com "o pequeno", entendido como uma dimensão extensiva e temporal da Superfície de Registro. Mas são as mesmas máquinas que, quando integram a Superfície de Registro­Consumo, fazem-no mudando seu regime, por meio de Síntese Disjuntiva, pelas quais geram territórios, meios, estratos, assim como todas as entidades que conhecemos clara e separadamente. Neste plano, as sínteses funcionam separada e optativamente. As entidades da

Superfície de Registro são "ou" isto, "ou" aquilo, "ou"... assim sucessivamente.
Esta conceituação está tomada da Filosofia de Kant. Kant disse que a entidade suprema desta Superfície é Deus, como "Senhor do Silogismo Disjuntivo" que é o recurso básico para pensar as coisas do mundo separada e ordenadamente. Algo similar ocorre na Superfície de Consumação-Consumo, em que as MD funcionam em base às Sínteses Conjuntivas. Nela, as entidades chegam à sua realização total ou a seu consumo umas pelas outras, o qual fecha seu ciclo. Este nível, das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo é o "Macro" ou "Molar", que não tem a ver, necessariamente, com o que é "grande", mas com um modo de organização dos conjuntos chamados, na física, "Molares", que obedecem às leis dos grandes números, assim como a um determinismo causal preciso.
As MD na Superfície de Produção se dispõem sobre um "sustentáculo" (ou poderíamos dizer, um "não-espaço") denominado Corpo sem Órgãos. O CsOs (Corpo Sem Orgãos) é o "Grau Zero das Intensidades", o "improdutivo", o "incriado" da Produção. Seu conceito está construído a partir das Idéias previstas pelas religiões hinduístas, que falam de um "Ovo Tântrico". Também contribui a mitologia de uma comunidade primitiva, os Dogon, que falam do Universo como um "Ovo Cósmico". Finalmente, intervêm também os descobrimentos da Biologia Molecular Moderna, que fala do Ovo Genético. Todo estes "ovos" têm a peculiaridade de gerar tudo, mas de estar, em si mesmos, compostos não de "partes" morfologicamente determináveis, mas de "eixos", "limiares", "graus" de força gerativa pluripotente. Dessa maneira, é impossível saber que "região" destes virá gerar cada parte das realidades circunscritas que são capazes de produzir.
Como veremos mais adiante, as relações entre o CsOs e as MD são complexas (atração, repulsão). De acordo com o predomínio de algumas delas, o papel do CsOs na Superfície de Produção é diferente da de Registro. Na Superfície de Registro, o CsOs funciona como "Corpo Cheio", uma entidade que se apropria de toda a Produção e a faz aparecer como gerada exclusivamente por ele de uma maneira milagrosa. O CsOs não se opõe conceitualmente ao Corpo (biológico, p.ex.) nem aos orgãos, senão ao "organismo", ou seja, ao Corpo já ordenado da Superfície de Registro.

As relações na Superfície de Produção entre o CsOs e as MD concluem por produzir tudo o que existe. No nível da Superfície de Registro essas produções se evidericiam como "linhas de fuga", "desterritorializações" e "acontecimentos" de qualquer "natureza", que são os responsáveis por todas as mudanças revolucionárias-desejantes que metamorfoseiam a realidade tal como podemos vê-la na Superfície de Registro-Controle. Essas "novidades" radicais se apresentam como "Individuações", ou seja, como novas entidades que não pertencem a nenhuma espécie conhecida. São o "anômalo", o que não é nem normal, nem anormal.






















CORPO SEM ÓRGÃOS*



Temos falado prevalentemente, nas aulas anteriores, das Máquinas Desejantes (MD); nesta, trataremos sinteticamente do Corpo sem Órgãos (CsOs).
O CsOs, usando uma metáfora pedagógica, é uma espécie de "suporte" das MD. Também pode-se dizer, mais corretamente, que é um Pré-plano sobre o qual se agenciam as MD, é dizer, sobre o qual efetuam suas sínteses.
Cada dispositivo ou agenciamento, tanto quanto grandes configurações como o Estado, se "maquinam" sobre um CsOs. Cada uma delas constrói um, e ainda que Deleuze e Guattari sustenham que pode haver um CsOs que reúne a todos, esse ponto não parece inteiramente esclarecido. Também se diz que o CsOs é o "grau zero" de intensidade. Talvez essa afirmação possa ser entendida como significando que o CsOs é o que ainda não começou a desdobrar-se como MD.
Em princípio, a Idéia de CsOs está tomada de um poema de Artaud, no qual o genial autor critica tudo aquilo que seja organismo, dito no sentido de organizado. Refere-se principalmente ao corpo bio­psíquico, mas parece aludir a tudo o que é ordenado e organizado. Artaud postula construir um corpo composto de "sangue e de ossos"; obviamente, é um corpo impossível, mas contribui para sugerir a Idéia de que existe um corpo potencial, que não é inimigo dos órgãos, senão da organização, considerada como inapelável ou única.
Em segunda instância, Deleuze e Guattari tomam a Idéia de CsOs das religiões hinduístas (Corpo Tântrico) e da mitologia da comunidade Dogon (Ovo Cósmico). Estes "corpos" se caracterizam por estarem percorridos por fluxos, que cursam de acordo com eixos, que se distribuem em gradientes e que formam áreas energéticas móveis caracterizadas por graus de intensidade. É a partir desses "ovos" que vai diferenciar-se tudo aquilo que integra o que chamamos "Realidade", mas isso não implica que no nível do Ovo vigore propriamente uma indiferenciação. Pelo contrário, as diferenças intensivas do CsOs são as

• Sétima aula do Curso Âmago
puras e reais diferenças, apenas não estão dadas nas dimensões da temporal idade e da espacial idade, senão na dimensão da potência.
O ovo genético também pode ser entendido dessa maneira; apesar de que o repertório genético já tenha sido identificado e classificado pontualmente, em SEU CONJUNTO, opera como um CsOs, dado que, por exemplo, a partir dele, não se pode determinar que "parte" do ovo irá dar em cada órgão ou membro. Primeiro se diferencia, digamos, um braço, e só depois se decide se haverá de ser direito ou esquerdo. Também o funcionamento do Cérebro, p.ex., pode ser entendido desta maneira.
Na Filosofia de Espinoza, a Substância é o conceito que parece reunir características similares. A Substância é geradora de tudo o que É. Ela tem infinitos atributos (que são traços que definem a Substância), que se vão realizar como um número limitado de Modos. A Substância é onipotente, e nela estão potencialmente incluídas suas produções. Por isso é que se qualifica a Filosofia de Espinoza como panteísta, dado que uma Substância tem os mesmos poderes que Deus, é Deus.
O filósofo Leibniz afirma que a realidade está composta por unidades incomunicáveis entre si, cada uma das quais "vê o mundo" desde seu "ponto de vista". Dentro dessa pluralidade de mundos (mundos a-paralelos) vão adquirir realidade os mundos que serão "compossíveis" ou "co-possíveis". A unidade dessas mônadas se faz em Deus, Mônada das mônadas, que é quem decide qual dos mundos compossíveis é o melhor. As mônadas estão distribuídas em capas, cada uma delas infinitamente dobrada. Deleuze tem estudado como a arte Barroca tem uma modalidade típica perfeitamente articulável com a Filosofia de Leibniz.
O filósofo Kant escreveu que a Matéria tem quantidade e qualidade, mas que existe uma "terceira dimensão" que são as "qualidades intensivas". É o que Deleuze e Guattari tomam para postular as Intensidades Puras, que só se realizam como "individuações" inusitadas, cuja originalidade só pode ser medida como um "grau", por exemplo, uma cor, ou um som, ou um verão. Cada uma dessas realizações tem uma singularidade que só pode ser identificada como sendo um "grau de si mesma".
Nietzsche sustentava que a toda realidade subjaz uma capacidade, que denomina Vontade de Potência. Não se trata de que esta

Vontade seja de algum Sujeito. A Vontade de Potência pode até constituir sujeitos, animais, etc. A Vontade de Potência se distribui em Forças (Forças Ativas e Forças Reativas). As Forças Ativas tendem a gerar o Novo. As Forças Reativas se opõem a esta produtividade. Nietzsche faz uma formidável crítica dos valores vigentes no Ocidente, especialmente na medida em que os considera como expressões do triunfo das Forças Reativas que podem conduzir a Vontade de Potência ao extremo de ser V ontade de "Nada". Propõe uma trans-valoração de todos os valores a serviço dessa invenção e dessa Vida.
Do filósofo Bergson já temos falado em várias oportunidades. Sua idéia é que a Realidade é mais que o Real (admitido por todos), o Possível e o Impossível. Diz que o Impossível se define como o que não é Possível, e este se define como o que "pode vir a ser Real", quer dizer, define-se desde o Real. Real e Possível têm assim um mesmo conceito. Mas a Realidade está composta também pelo Virtual, ou seja, pelo que ainda não se atualizou. Sendo que, ao atualizar-se, transforma radicalmente o que se considerava Real, Possível e Impossível. Acontece que o Virtual, ainda sendo a parte mais importante da Realidade, é impensável, impredizível, dado que tem outro conceito que o de Real, o de Possível, etc.
Como se vê, todas estas Idéias são aplicáveis à construção do conceito de CsOs. Em suma, o CsOs, em Deleuze e Guattari, é outro dos recursos para tratar de pensar o Caos e sua relação com o Cosmos. O Caos vai ser pensado como positividade, e não apenas como falta ou ausência das características do Cosmos-Ordem.
O CsOs, no nível da Superfície de Registro-Controle, vai ser modulado como Corpo Cheio, ao qual nos referiremos, mais detalhadamente, nas aulas seguintes.




































SUPERFÍCIES*


Nas aulas anteriores temos deixado caracterizadas as Superfícies de Produção, de Registro Controle e de Consumo Consumação.
Temos explicado como estas superfícies são imanentes entre si e compreendem tudo o que pode ser incluído na Realidade.
Nas diversas Superfícies transcorrem diferentes Processos, ou seja, o andamento ou movimento próprio de cada uma delas.
Os diferentes Processos também são imanentes entre si, de maneira que, no nível de alguns de seus efeitos circunscritos, o que se pode detectar é o predomínio relativo de um ou outro dos Processos com suas respectivas peculiaridades.
Na Superfície da Produção, acontece um Funcionamento que é próprio do chamado Processo Produtivo-Desejante. Os "elementos" que estão em jogo nesse processo, como já é sabido, são as Máquinas Desejantes e o Corpo sem Órgãos. O processo Produtivo-Desejante corresponde a uma dimensão que Deleuze e Guattari chamam de Molecular. A rigor, à nossa maneira de ver, o termo Molecular não é exatamente o mais apropriado, talvez fosse melhor falar de "subatômico" ou de "particulário". Esse processo reúne certas características que são próprias do mundo das partículas subatômicas (elétron, neutrino, neutron, próton, etc.). De toda forma, nessa dimensão se operam fenômenos que são inteiramente insólitos, tanto para a Macrofísica, como para o observador leigo. É sabido que, a essa escala, é impossível determinar, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de uma partícula (princípio de Indeterminação de Heisemberg). É conhecido que nessa dimensão pode-se constar a transformação entre massa material e energia, a existência de "paquetes" de energia, chamados "Quantas", a coexistência e interconversibilidade de "corpúsculos" e de "ondas", etc. Também a experimentação com esses sub-microelementos permite afirmar que os mesmos "se formam ao mesmo tempo em que funcionam ou operam" e que "carecem" da especificidade que adquirem nos Conjuntos Molares da Superfície de Registro-Controle ou de Consumo-Consumação. Neste

*Oitava aula do curso Âmago
nível Molecular, existem super-catalisadores (ou seja, elementos tais como a chamada, em Biologia Molecular, "Proteína Alostérica", que é capaz de propiciar combinações entre elementos que não têm, normalmente, afinidade química, de maneira que essas uniões podem produzir substâncias superiores que são "quimicamente impossíveis".
Outra característica surpreendente do Processo Molecular é que, nos espaços em que este se desenvolve, pode se dar um fenômeno local, que gere outro que lhe é correlativo a uma considerável distância, sem que se possa determinar qual é o veículo ou o substra to condutor dessa influência causal (ação à distância). Por outra parte, as conexões entre os mencionados "elementos" são realizadas em todas as direções e de maneira incessante, de forma tal que estão produzindo infinitas novidades materiais sem interrupção.
Por sua parte, o Processo Molar está regido pelo que se conhece em estatística como leis dos Grandes Números. Como são os Processos próprios da Superfície de Registro-Controle e de Consumo-Consumação, os "elementos" se agrupam para constituir as unidades amplamente conhecidas como constituindo as partes dos grandes conjuntos molares com suas respectivas especificidades (Naturais, Sociais, Subjetivas, Maquinais ou Tecnológicas). Neste processo regem perfeitamente as leis da causalidade e do determinismo (Causalidade Linear, Monocausalidade, Policausalidade, Causalidade Circular, Interacional, Fatorial, Dialética, etc.). Esses conjuntos são totalizáveis e reconhecem limites bem circunscritos. Os conjuntos podem estar delimitados como Estratos, Substratos, Paraestratos, Territórios, etc. Como se vê, os termos usados são de origem Geológica e Etológica. O andamento do processo Molar, no nível de cada uma das entidades circunscritas da Superfície de Registro-Controle, nós o temos denominado Função. As funções são eminentemente reprodutivas e antiprodutivas, tanto quanto os funcionamentos moleculares são produtivos.
Ao funcionamento do Molecular, Deleuze e Guattari o chamam Inconsciente (pensamos que como alegoria do Sistema Inconsciente do Aparato Psíquico, segundo a Psicanálise). Cada dispositivo que se pode montar como invenção na Realidade tem um Inconsciente, dado pelo processo desejante-produtivo molecular, que se produz a si mesmo, na

forma de um Ciclo em que só se repetem as diferenças. Isto é, "cada Inconsciente" é diferente do outro.
O que estudamos como Corpo sem Órgãos forma, no nível das entidades predominantes da Superfície de Registro-Controle, um Corpo Pleno. Este subjaz a uma entidade chamada Eminente, que varia em cada formação histórica de soberania, a qual se apropria de todo o Desejo e de toda a Produção de uma Era ou de uma Época. Nas Formações Primitivas era a Terra; nas Imperiais, o Corpo Pleno do Imperador-Divino; no Capitalismo é o Corpo Pleno do Capital Dinheiro. A entidade correspondente ao Corpo Cheio de cada Era propicia certa produção da Superfície de Produção e dela se apropria; no entanto, inibe ou destrói todas as outras que não possa detectar, classificar e incorporar.
Quando predomina o funcionamento sobre a função, ou seja, a Superfície de Produção sobre a de Registro-Controle, as entidades da Superfície de Registro-Controle se desterritorializam e desestratificam, dando lugar à aparição de novidades como linhas de fuga e acontecimentos que, em suma, são emergências do Novo Absoluto, que sempre tem um caráter Revolucionário, seja qual for a peculiaridade que adquiram segundo o campo do Registrado em que surjam.
Brevemente nos referiremos à Representação, dizendo que é o processo pelo qual uma realidade considerada ausente se re-apresenta em outra, que supostamente a substitui. Bons exemplos desse processo estão dados por certa concepção da linguagem falada ou escrita, assim como das Artes, que afirmam que os sistemas semióticos ou estéticos são formas de EXPRESSÃO de um sujeito ou de REPRESENTAÇÃO da realidade. Outro exemplo são os sistemas políticos em que se supõe que as bases ou o "povo" participam na condução política através de seus "representantes", escolhidos eleitoralmente ou não. Daí o termo Democracias Representativas, que, segundo podemos ver, não são autenticamente representativas de seus representados, seus desejos e interesses. Deleuzee Guattari formam parte de um conjunto de pensadores que criticam a idéia de representação e são partidários de pensar em termos de como cada entidade funciona, e não o que representa.
































CAOS E COSMOS*



A proposta Esquizoanalítica, como já reiteramos, é a de uma composição de fragmentos tomados de diversos saberes e de diferentes práticas. Estes fragmentos são tomados de seus Sistemas de origem, sem preocupação pelo significado exato que têm dentro da citada sistematicidade. Amiúde, esses fragmentos inseridos no contexto dos escritos Esquizoanalíticos conservam certa similitude com o sentido que tinham primeiramente, mas já funcionam de uma maneira diferente nesse novo contexto. Outras vezes, essa inserção lhes proporciona um valor completamente diferente, e, sobretudo, inteiramente novo. Como já dissemos também, o texto Esquizoanalítico tem uma vocação que podemos resumir, muito precariamente, como enfatizado no TRANS e no PRÉ.
É PRÉ no sentido de Pré-ontológico, ou seja, trata-se de um enorme esforço para conseguir pensar e expressar como funciona "a realidade", "antes" de constituir-se como tal, segundo as formas materiais ou ideais que conhecemos e aceitamos e segundo as energias já vetorizadas como forças, que animam essas formas.
É Transdisciplinar porque trabalha com uma transversalidade conceitual que interpenetra as diversas disciplinas epistemologicamente consagradas como tais. Também é TRANS no sentido de incluir fragmentos filosóficos, literários, místicos e até leigos, dito no sentido muito amplo, que chega até no aproveitamento de elementos dos discursos e escritos "delirantes".
De toda forma é importante entender que o texto Esquizoanalítico não se propõe como um META ou um SUPRA MODELO, que seria válido para reger quaisquer dos territórios do saber estabelecido. Poderíamos dizer que se coloca "ao lado", ou penetrando nos mesmos para infundir-lhes novas dimensões.
No campo das disciplinas científicas constituídas como tais, é sabido que existe o momento da Fundação de uma Ciência, que algumas Epistemologias denominam de Ruptura ou Corte Epistemológico,

• Nona aula do Curso Âmago
segundo o qual uma Ciência começa – e o faz diferenciando-se da Ideologia pré-científica que a precedia.
Logo chegam períodos de re-fundação ou de desenvolvimento e aperfeiçoamento da citada ciência, que pode chegar até a ser substituída, por uma Nova Ruptura e nascimento de uma outra Ciência. Alguns historiadores da Ciência e da Epistemologia sustentam que o devir do panorama científico, considerado em geral, permite reconhecer uma espécie de Modelo Geral ou Paradigma que resulta de uma abstração das características principais e sui generis que apresenta o conjunto das ciências em determinado momento. Esse Paradigma se estabelece em etapas nas quais as ciências parecem coincidir em certos traços lógicos de seus esquemas teóricos. Estas eras são consideradas revolucionárias porque o novo Paradigma que se impõe vem substituir criticamente um anterior. Logo, o devir das ciências entra em períodos que se podem chamar "normais", durante os quais se aprofundam, se detalham e se aplicam os novos achados, mas nos quais as transformações não chegam a ser de uma magnitude que altera o Paradigma estabelecido.
É freqüente que o Novo Paradigma se estabeleça a partir das invenções de UMA das ciências da Época, que opera uma ruptura pregnante e que influi sobre as outras ciências que lhe são contemporâneas, contribuindo notavelmente na implantação do Novo Paradigma Geral.
Já destacamos que, a partir das chamadas grandes revoluções científicas, tais como a Copemicana (completada por Galileu e Newton), assim como a Darwiniana, a Marxista, a Freudiana, a Saussureana, dentre outras, formou-se um Paradigma determinista predominantemente causal, que tem regido há quase quatrocentos anos o panorama disciplinar mundial.
Há mais ou menos cinco décadas, e especialmente nas últimas duas, os avanços da Macro e da Microfísica, tanto quanto os da Biologia Molecular, da Microquímica e das Ciências Exatas (Matemática, Geometria e Lógica), assim como suas repercussões nas Ciências Humanas, vêm formando um Novo Paradigma. Pela via da chamada causalidade fatorial, da probabilística e da aleatória, se vêm abrindo outras formas de pensar a Produção, que, sem chegar a ser totalmente Indeterministas, questionam seriamente as formas clássicas da causalidade.

Essa metamorfose tem ido bastante mais além até chegar a caracterizações transdisciplinares que adquirem a peculiaridade que Deleuze e Guattari atribuem a vários saberes, dentre eles a Esquizoanálise mesma. Trata-se de teorizações e de modos de operar "Anexactos, mas rigorosos". Um pequeno exemplo tomado da Geometria pode ilustrar essa idéia. Um círculo, por exemplo, é uma entidade geométrica formal abstrata perfeita. Uma circunferência, já objetivamente traçada, é um caso formal concreto que não tem a "perfeição", nem admite um tratamento puramente formal como o primeiro. Agora, um redondel é uma singularidade única e irrepetível, que só admite uma abordagem relativamente única, que pode chegar a ser "anexacta, mas rigorosa". Rigorosa, digo, no sentido de inteligível, comunicável, mas não repetível com total exatidão.
O universo do Novo Paradigma, essa individuação, esse "concretado" ou "objetivado", questiona o Modelo de funcionamento totalmente calculável, ordenado, previsível e explicável causalmente. Trata-se de reconhecer o Poder criativo das Realidades ou das Pré­-Realidades caóticas ou caósmicas, que, vistas desde os territórios convencionais, seriam irregulares, desordenadas, imprevisíveis, inexplicáveis, indeterminadas, a-racionais, etc.
Tanto nas Ciências Exatas, como nas Naturais e, por extensão, nas chamadas Humanas e Sociais, tem-se desenvolvido, desde há mais de vinte anos, uma série de estudos sobre o funcionamento acidental, incidental, ocasional, catastrófico, turbulento, etc. Esses termos, mais ou menos, explicam por si mesmos a natureza e o tema dessas investigações.
Por exemplo, na dinâmica dos fluidos ou dos gases, das correntes elétricas ou das magnéticas, assim como nas passagens de estado, de gasoso para líquido, líquido para sólido, de regular e ordenado para turbulento, etc., os cientistas; têm-se dedicado a estudar o que chamam de Interface, ou seja, a passagem de uma condição ordenada e determinista a uma desordenada e caótica, e vice-versa. Têm encontrado, assim, em diferentes áreas da realidade, que é durante essa passagem que se destroem entidades específicas e que surgem outras qualitativamente novas. Têm compreendido que é a partir do Caos ou do semi-caos, onde os elementos estão animados de um movimento turbulento e de velocidades incalculáveis, que acabam se produzindo as formas, substâncias e forças que geram entidades inéditas.
Muitas neo-disciplinas (setoriais de outras convencionaIs ou inteiramente originais) têm emergido desta inspiração, tais como a teoria das Catástrofes, as teorias dos Jogos, a teoria dos Objetos Fractais, as teorias do Caos, etc. Em outras palavras, tem-se aprendido a revalorizar, dentro da oposição Cosmos-Caos, a importância geradora do Caos, tanto quanto as funções seletivas e repressoras do Cosmos e a importância dos estados intermediários entre uma e outra destas realidades.
É claro que os pesquisadores procuram formas determinísticas de dar conta das vicissitudes de tais relações, pois a peculiar essência do Caos os vem obrigando a pensar outros conceitos, funções e variáveis que permitam entender essa dinâmica, e que carecem da exatidão postulada pelo Paradigma da Ordem e do Determinismo.
Um dos fenômenos estudados se denomina Autopoiesis, que, apesar de ser originário da Biologia, tem-se transladado a outros campos para denominar os fenômenos de autoprodução e de auto-crescimento que muitas entidades demonstram. Isso tem influenciado também a idéia de Tempo, sendo que o Tempo atribuído a esses processos funciona como uma flecha irreversivelmente progressiva que não obedece, por exemplo, às leis da Inércia nem da Entropia, leis clássicas da Termodinâmica.
Só para concluir, digamos que, na Esquizoanálise, a Superfície da Produção está animada por esse tipo de funcionamento que o "Novo Paradigma" e estes novos ramos da ciência estão "descobrindo". Neste ponto cabe colocar que, quando falamos que o Corpo Sem Órgãos se converte, no nível da Superfície de Registro Controle de algumas formações históricas, em Corpo Cheio, o mesmo funciona como o que Deleuze e Guattari chamam de Quase-Causa. Isso está dito no sentido de que esse Corpo Cheio, na realidade, tem sido produzido pela Superfície de Produção e em si mesmo é bastante improdutivo, pois como se apropria da Produção de toda uma Época, se atribui a si mesmo toda a Produção e acaba sendo considerado como se fosse uma Causa ou uma Com-Causa ou Quase-Causa de tudo o que existe.






SUJEITO E SUBJETIVAÇÃO*




Nas aulas anteriores temos explicado que a Esquizoanálise parte, para definir o Sujeito, principalmente das postulações Psicanalíticas a respeito.
Na obra freudiana, sucessivos Modelos do Psiquismo são expostos, desde o "Projeto de uma Psicologia para Neurólogos" até a "Segunda Tópica", passando pela Primeira Tópica, a Teoria Pulsional e, principalmente, pelo Complexo de Édipo. Sabemos que, atravessando todos esses modelos, há duas operações que são as principais constituintes do Sujeito, segundo a Psicanálise: A IDENTIFICAÇÃO E O INVESTIMENTO. O investimento é a aplicacão da Libido aos objetos que lhe vão correspondendo durante a chamada "Evolução Psicossexual" do Sujeito. A partir dessa etapa inicial do chamado Estado Autoerótico (em que o pré-sujeito é um conjunto não unificado de zonas erógenas, cada uma das quais gera uma pulsão parcial que se descarrega na própria fonte ou em qualquer das outras), o sujeito entra no Narcisismo Primário, que é a primeira forma da unificação que conquista. Nesta forma, o Sujeito se identifica com uma imagem que se denomina "materna", à qual atribui todas as potências e com a qual se confunde. Esse primeiro Ego Ideal é separado da imagem materna pelo Complexo de Castração e só a partir desse momento é que se inicia a seqüência do Complexo de Édipo, que se compõe do Complexo da Mãe, do Complexo do Pai e do de Castração. Em suma, todo esse processo se dá sobre a constante de que, em cada etapa, houve investimento nos respectivos objetos, é preciso renunciar aos mesmos, e, cada vez que se opera uma renúncia, o objeto é incorporado ao Sujeito, formando sua própria "substância".
Por isso é que se diz em Psicanálise que "onde houve um investimento, resta uma identificação". O aparato psíquico do Sujeito é, assim, um precipitado, um decantado, de investimentos e de objetos perdidos .


• Decima aula do curso Âmago
Em cada um desses modelos, existe uma parte, um sistema, uma região e um processo que denominamos Inconsciente.
A formulação Estruturalista do Sujeito Psíquico consegue separar definitivamente a confusão que se estabelece, amiúde, entre os lugares que integram a estrutura e os agentes empíricos ou papéis sociais que eventualmente a ocupam. Recorde-se a polêmica entre o antropólogo Malinowsky e o psicanalista Jones, que foi a primeira versão dessa discussão. A Psicanálise estruturalista afirma que a estrutura é especificamente "psíquica" e que as imagens ou figuras que eventualmente podem desempenhar suas funções são variáveis e não determinantes.
De toda forma, o que Deleuze e Guattari vão tratar de demonstrar é que, mesmo tomando em conta essa distinção, a estrutura do sujeito está "calcada" dos lugares constitutivos da ORGANIZAÇÃO FAMILIAR, mais ainda, da modalidade burguesa nuclear da família. Sabemos que, historicamente, existem inúmeras modalidades de composição familiar e que a forma Nuclear Burguesa é uma forma dominante que a civilização ocidental capitalista vem consagrando como universal. A formulação estrutural do Aparato Psíquico não consegue desvincular-se por completo dessa estrutura da organização familiar e assim reproduz as limitações de sua consagração como universal.
Isso faz com que a formulação psicanalítica não possa evitar uma série de erros teóricos, que depois se objetivam em erros técnicos de manejo. Por exemplo, quando se trata de responder à pergunta acerca de "como a forma edipiana-familiarista" começou (mas não no caso de um sujeito individual atual), ou seja, no caso dos começos históricos dessa estrutura, a Psicanálise responde projetando especulativamente a forma edipiana-familiarista contemporânea em uma suposta pré-história mítica, em que o proto-pai da horda primitiva excluía seus filhos do comércio sexual com as mulheres (conservando-as para si), e aqueles se reuniram, mataram o pai e o comeram. Tal "fato", real ou miticamente acontecido, foi introjetado, deixando como resultado a implantação das leis de proibição do incesto e do parricídio que compõem o sistema totemista de organização social, que é o primeiro conhecido, e que seria o de passagem da natureza à cultura humana .
Por outra parte, quando a Psicanálise propõe explicar as formações coletivas de socialidade, nada mais faz que multiplicar o
Sujeito edípico, postulando conexões em "série" ou em "paralelo" entre uma coletividade de sujeitos e seu líder. Essa dimensão social, e portanto política, cultural, da subjetividade, acontece em um tempo cronológico posterior à dinâmica familiar, que seria o conteúdo das primeiras vicissitudes da vida do Sujeito. É dizer que o social sempre vem "depois". O mesmo acontece com as produções sublimadas do sujeito, ou seja, a geração de obras socialmente valiosas, distanciadas da problemática edipiana; a esse respeito a Psicanálise insiste em que se trata de efeitos dessexualizados ou neutralizados da libido que se geram tardiamente no desenvolvimento do sujeito.
A estas peculiaridades da explicação psicanaiítica, a Esquizoanálise chama "Paralogismos", ou seja, deformações lógicas que resultam de premissas erradas.
O Inconsciente psicanalítico, apesar de incluir entre suas explicações teóricas recursos energéticos (economia e dinâmica), centra­se principalmente nas representações, ou seja, nos significados ou significantes que compõem os fantasmas reprimidos. Assim, então, o Inconsciente psicanalítico, principalmente construído como metáfora da Tragédia Edipiana, por sua vez tomada por Sófocles de uma versão do Mito edipiano da Grécia Antiga, é um inconsciente "teatral" antigo. No caso dos estruturalistas, o que eles dizem não é demasiado diferente do que afirmar que o inconsciente está estruturado, por sua vez, pelas coordenadas formalizadas do drama edipiano. Esse Inconsciente deve ser, então, interpretado, decifrado, como se tratasse de um manuscrito arcaico. Esse Inconsciente é uma entidade representativa, tanto no sentido de que está composto por representações linguísticas como no sentido de que sua dinâmica se modeliza como uma representação teatral antiga. Todos os outros territórios da realidade podem até se articular com o psíquico-inconsciente, mas lhe são externos, lhe são alheios, e justamente têm de ser colocados entre parêntesis pelo dispositivo teórico-­técnico psicanalítico para poder entender o psíquico, em si e por si mesmo*.




* A mudança de "representações" por "significantes" não soluciona o citado problema, apenas o abstrai.
Para a Esquizoanálise, tanto o aparato psíquico como o resto da Realidade estão constituídos como máquinas, com a peculiaridade de que não se trata de máquinas mecânicas, nem cibernéticas, nem elétrico­eletrônicas. Trata-se de máquinas maquínicas, que, como já sabemos, têm as peculiaridades de certas máquinas estéticas, ou, melhor ainda, da "maquinaria microfísica" das partículas atômicas ou da biologia molecular.
O Inconsciente Esquizoanalítico não é especificamente psíquico, nem de nenhuma outra material idade "última", sendo que é pré­ontológico, dito em um sentido amplo. É na Superfície de Registro que, no sujeito convencional, o Inconsciente vai tornar-se psíquico, mas já não será propriamente o Inconsciente Esquizoanalítico, senão um pré­consciente de uma entidade subjetiva já instituída e dominante. Por outra parte, o Inconsciente Esquizoanalítico estará pensado como um Processo Produtivo Puro, não formado de representações nem de forças econômico-dinâmicas que mobilizam as representações ou papéis, seja de um Teatro ou de uma Linguagem, sendo como um incessante produzir caótico que, ademais, se produz a si mesmo e produz a realidade como renovados Todos.
É um Inconsciente Virtual, no sentido que já estudamos e que Bergson dava a esse termo. É um Inconsciente pluripotencial, no sentido que Espinoza atribuía à Substância Universal, ou é um Inconsciente composto de Vontades de Potência, no sentido que Nietzsche dava a esse conceito ..
Para a Esquizoanálise, então, uma "Psiquiatria Materialista" terá que pensar a "normalidade" ou os quadros psicopatológicos em função desse Inconsciente Maquínico e não do Inconsciente Representativo – Teatral ou Estrutural.








A HISTÓRIA*



A Esquizoanálise tem uma leitura muito especial da História. Capítulos tais como "Bárbaros, Selvagens e Civilizados", de "O Anti-­Édipo", assim como capítulos de "Mil Platôs": "Micropolítica e Segmentaridade" e "A Máquina de Guerra", configuram uma extraordinária síntese da História Universal. A História Universal é um saber imperiosamente necessário para entender a situação na qual o mundo está contemporaneamente e para intentar prever quais são as tendências de seu futuro. Isto, por sua vez, é indispensável para se poder desenhar as estratégias de vida e de militância que sejam propícias para a realização de nossas Utopias Ativas.
Agora bem: existem tantas versões da História, orientadas no sentido que convém aos setores sociais que as fazem, que é preciso encontrar uma certa "inocência" para poder ver a História de uma maneira inovadora e revolucionária.
A Esquizoanálise propõe que a História Universal deve ser feita tomando os seguintes cuidados: em primeiro lugar é preciso que esteja claro que a História é feita desde nossos dias para um suposto passado e que, nessa medida, leremos uma História que está inevitavelmente sujeitada a como nos situamos no panorama atual, ou seja, a História não é cronológico-genético-evolutiva, senão retrospectiva, é lida a partir de suas instâncias ativas no panorama presente. Em segundo lugar, se uma formação social como a nossa está em condições de fazer História Universal, é porque tem chegado a um grau de aperfeiçoamento e de universalidade que lhe dá os instrumentos e os critérios para fazê-la; mas isso só será fecundo se nossa atualidade for capaz de tomar uma certa distância de si mesma que lhe possibilite fazer sua alltocrítica e assim tendê-la ao passado.
Por outra parte, e talvez como componente dessa capacidade crítica, a História Universal tem que ser irônica, ou seja, capaz de um certo sentido de humor que consiga dessacralizar o ocorrido, sem atribllir­lhe nenhum caráter solene, infalível ou divino. Marx dizia que a História

*Décima primeira aula do curso Âmago
se repete "a primeira vez como Tragédia e a segunda como Comédia". Por último, é importante destacar que, assim como é preciso estudar a parte da História que obedece a leis, ou seja, que está regulada por um certo determinismo, não é menos importante recordar que o que realmente constitui o motor da História como devir permanente é o Acaso, são os grandes encontros e acontecimentos inesperados, imprevisíveis, radicalmente novos. Acrescentemos que não existe Uma História Universal Unitária, sendo que a mesma é uma abstração destinada a dar coerência a um transcurso que na realidade está composto de inumeráveis processos diferentes, cada um dos quais tem seu Tempo sui generis, e cujas correlações mútuas às vezes é possível e outras vezes é impossível efetuar; são intempestivos. Por último, é preciso diferenciar claramente o que é a Historiografia, ou seja, uma pretensão de DESCREVER os fatos históricos "tal como ocorreram", do verdadeiro trabalho do historiador, que invariavelmente é uma interpretação de dados e uma invenção de conceitos e versões do acontecido.
É completamente inviável resumir aqui a enorme quantidade de conhecimentos e de postulações originalíssimos que estão incluídas nos capítulos mencionados. Trataremos apenas de deixar pontualizados alguns aspectos que nos parecem ser os mais importantes.
Em primeiro lugar, digamos que a conceitualização usada por Deleuze e Guattari está tomada das mais diversas fontes, mas que, a nosso entender, as mais importantes provêm do Materialismo Histórico, de algumas obras de Nietzsche e de valiosas contribuições de antropólogos heterodoxos.
Em suma, e muito pobremente sintetizado, a Esquizoanálise reconhece a existência de uma Formação Territorial Primitiva, de uma Imperial-Bárbara, Asiática, Despótica ou Escravocrata; depois a Formação dos Impérios "constitucionais" gregos ou de sua peculiar "Democracia"; logo de uma Medieval, Feudal ou Servil, assim como a correspondente nas Monarquias Absolutas Européias, para culminar no Capitalismo e na Democracia Burguesa Incipiente, no Capitalismo Industrial Clássico e no Capitalismo Transnacional Globalizado ou Fase Superior do Capitalismo Mundial Integrado. Em alguns momentos, é possível encontrar em Deleuze e Guattari a referência a formações de difícil colocação (que se demonstraram essenciais), tais como o Modo Comum ou Comunal Germânico e uma divisão geral entre Nômades e

Sedentários (esta última configura uma redefinição geral de toda a História Universal).
Dentro dos limites desta aula, o que podemos resumir é que cada uma dessas formações Histórico-Sociais se caracteriza pela distribuição que nelas se realiza das relações e da configuração das Superfícies de Produção, de Registro-Controle e de Consumo-Consumação. Os diversos aspectos de cada formação compõem, principalmente, os processos de produção de bens materiais indispensáveis para a vida, de meios de produção, a produção de formas sui generis de governo, assim como as peculiaridades da produção de subjetividades, individualidades, pessoas e agentes de todos os processos. Segundo esta postulação, TODOS os componentes da História de cada uma dessas formações sociais são PRODUZIDOS, REPRODUZIDOS E ANTIPRODUZIDOS SEGUNDO MODALIDADES SUI GENERIS. Em outras palavras, não tem nada que seja eterno e dado de uma vez para sempre e apenas modulado pelas peculiaridades, segundo se costumava dizer, do "contexto" histórico.
É importante considerar, também, que toda Formação Histórica é uma maneira de produzir um Socius que "ordene e controle" o Processo Produtivo-Desejante, que tende permanentemente à desterritorialização absoluta. O problema consiste em como e quanto cada socius consiga aproveitar produtivamente, e paralisar reprodutivamente ou destruir antiprodutivamente suas potências produtivas. A Superfície de Registro­Controle de cada Formação Histórica está regida por uma entidade chamada "Corpo Cheio", que varia de uma na outra e que tem a peculiaridade de atribuir-se todas as forças produtivas e aproveitar esse mecanismo para dominar toda a realidade de cada Formação. Na Formação Territorial Primitiva é o Corpo Cheio da Terra, na Imperial é o Corpo Cheio do Imperador e no Capitalismo é o Corpo Cheio do Capital Dinheiro, que configura uma Axiomática que torna todos os elementos da realidade histórica como equivalentes na forma dinheiro.
Por último, é importante destacar que as modalidades da subjetividade também varia de uma formação social a outra. A estrutura do "Sujeito Edipiano", tal como a Psicanálise a encontra no Capitalismo e que insiste em declarar universal, ubíqua e invariável, não é assim nas diferentes Formações Sociais.
Em realidade, prepara-se como tal no Modo Territorial Primitivo, instala-se como tal no Sujeito Imperador e na Família Imperial das

Formações Despóticas na "pessoa" do Imperador, e EMIGRA na interioridade do sujeito burguês privado da Modernidade, compondo o "Homem Íntimo", que nós cremos como sendo a única imagem universal e eterna do "Homem". Assim lida, a História abre a possibilidade de outras Formações Históricas e outras subjetivações desejantes­revolucionárias, não sujeitadas à reprodução e à antiprodução dos Corpos Cheios Históricos vigentes.
























AS KLÍNICAS ESQUIZOANALÍTICAS*



Respeitamos sinceramente as denominações (que pretendem "determinar" um estatuto) e as periodizações (que atribuem uma ou outra ordem seqüencial) à Obra de Deleuze e Guattari. Mas sabemos que se trata de um Rizoma não totalizável, sendo que cada um lhe dá o nome que lhe é mais expressivo, e cada um o percorre segundo itinerários cartográficos únicos e irrepetíveis.
Para nós, o Nome é: Esquizoanálise ou Pragmática Universal (segundo constam em "O Anti-Édipo" e em "Mil Platôs", respectivamente), volumes que consideramos como sendo os dois vórtices desse oceano turbulento de máquinas-livros. E que TAMBÉM pode-se dizer deles que são Filosofia... e Ciência... e Arte (sobretudo Literatura)... e Política... e Clínica... e... não nos estranha: o importante é que "depois" desse Acontecimento... já nada será como "antes"... e que esse Advento merece, além de "todos os nomes da História", um Nome Próprio. Algo assim como "O Efeito Clínico D e G". Mas, além disso, é preciso perguntar-se: "depois" desta INDIVIDUAÇÃO, "todos" os nomes-estatutos e os "inventários de diferenças", tanto quanto suas "periodizações-hierarquizações" (p.ex., as "Especificidades" e as "Profissionalidades") não tendem a tornarem-se irreversíveis e transversalmente mutantes ?
O que denominamos habitualmente (Psico) Clínica, pode SER Esquizoanalítica? Parece evidente que NÃO; mas pode DEVIR ou já TERÁ DEVIDO Esquizoanalítica? POR QUE NÃO? E ainda, se DEVEIO e se seguirá DEVINDO Esquizoanalítica, o fará, inevi­tavelmente, de maneiras SINGULARES, e como MULTIPLICIDADES, ou seja, sempre como O OUTRO de uma suposta ESQUIZOANÁLISE PRINCEPS.
Por isso, os Deleuzianos-Guattarianos "de carteirinha", assim como os pudorosos reativos a essa presuntiva ortodoxia impossível, podem dormir tranqüilos. O problema não é esse. A questão consiste em como aprender a sonhar acordados.

• Artigo inédito. 1997.
As Klínicas Esquizoanalíticas, que obviamente têm tudo a ver com o Klinamen e quase nada com o Klinos, não serão importantes demais para constituir um patrimônio dos clínicos convencionais?... Particularmente dos que ostentam antigos e diversos títulos que os consagram como tais? E em especial, os que se proclamam, digamos, Psicanalistas... Holistas Sistêmicos... ou-não- sei-o-quê?
Não se pode desconhecer que muitos desses clínicos devêm ocasionalmente Esquizoanalistas sem sabê-lo ( e que talvez nem precisem inteirar-se disso). A partir da Idéia de Heterogênese, jamais conseguiremos ignorar a infinita variedade dos dispositivos Klínicos, assim como a dos efeitos Klínicos dos agenciamentos que, desde a superfície de Registro-Controle, não se identificam como Klínicos. Mas tampouco cabe desconhecer que há quem se acha Esquizoanalista e se apresenta p.ex., como Psicanalista, o qual não aparenta propriamente ser o disfarce segundo o qual um Simulacro se fantasie de "Boa Cópia"; mais parecem ser "Más Cópias" que aspiram aos benefícios que, na "República", estão reservados aos "autênticos pretendentes".
Tudo isso, será que "não dá a pensar" que, devir um Klínico Esquizoanalista, não passa pelos títulos que legitimam ou "autorizam" essa condição, mas que passa muito mais por um modo de klinicar, por um modo de viver... desejante, produtivo, revolucionário? Será que para conceitualizar esse modo de viver, basta a, indubitavelmente magnífica, fórmula: "Não Fascista"? Ou é preciso acrescentar, p.ex.: "Não Neo­-Liberal" e até "Não Social-Democrata? Ou seja, "Não-Heterogestor" e "Não- Heteroanalítico"?
Será que para um viver assim, fazer Klínica Esquizoanalítica exige delimitar qual parte do afetar e ser afetado da existência do "expert" corresponde ao "ofício" de klínico?
Nós já ouvimos e até escrevemos que na formulação das perguntas estão implícitas as respostas. Mas gostaríamos muito que o leitor não tomasse estas interrogações, pelo menos, como deliberadamente retóricas. Porque, é acaso "ponto pacífico" como devêm e devirão as "ofertas", as "demandas", os "contratos", as "implicações", as "caixas de ferramentas", os "diagnósticos" e as "curas" nas Klínicas Esquizoanalíticas? É por acaso "ponto pacífico" quais serão os "espaços" e os "tempos", os "personagens klinicais" (tanto por parte dos "agentes", como pela dos "pacientes"): "individuais, "coletivos", "equipes",
"grupos", "organizações", "civilizações"? Como seria a Formação de um Klínico esquizoanalista, como seriam suas "Sociedades Científicas ou Acadêmicas", suas "Comunicações Bibliográficas", seus "Conselhos e Sindicatos"?
Por um lado: faz sentido colocar estas perguntas, boa parte de cujas formulações, que já começam obsoletas para a Nova Klínica (tanto como conceitos como enquanto recursos) são, exatamente, o que há que criticar e recriar? E, não obstante: faz sentido tratar de prever o imprevisível, de dizer o indizível, de conceitualizar o Virtual recém Atualizado ou por Atualizar? As Klínicas Esquizoanalíticas como transmutação?... ou como elegante aggiornamento subliminar homeopático, mais ou menos assumido?
Mais substancialmente: as Klínicas Esquizoanalíticas – estarão destinadas às Elites Pagantes... ou ao Povo... embora seja um ,"Povo que está Por Vir"?
Sabemos que "Máquina de Guerra" não significa "Artefato Bélico", mas, assim como os "Mundos" estão genocidas: vale a pena qualquer Maquinação, que não tenha, pelo menos, UMA dimensão guerreira?
Interessa, p.ex., interrogar-se o QUE NÃO seria Klínica Esquizoanalítica, embora a negação não seja um recurso "criativo"?
É bom recordar que das proposições indecidíveis surgem as conexões inventivo-revolucionárias e TAMBÉM pode surgir a geléia Pós-Moderna.
Nessa Catedral flutuante, chamada "O Anti-Édipo", construída por dois geniais compagnons, estão prescritos dois tipos de Tarefas para a Esquizoanálise: as Negativas e as Positivas. Será arbitrário demais imaginar que todos os escritos "anteriores" e "posteriores" (enfatizando Mil Platôs), não fazem outra coisa mais que cumprir "Lisa" e "Aionicamente" com essas duas tarefas? Que outra coisa podemos fazer, os Klínicos Esquizoanalíticos, que continuar reinventando esses trabalhos?
Uma Klínica com um Paradigma Estético, uma Estética Klínica, ou uma Klínica Estética sem Paradigma algum? Uma Ciência Menor dita em uma Língua Menor, que se transversalize com uma Literatura Menor... uma Filosofia sem Fundamento, um Pensamento sem Imagem, uma Micropolítica do Desejo... uma Práxis da Diferença, de conexões


que parem as Singularidades Intensivas, da Proliferação de Multiplicidades incapturáveis, da geração de Estidades irredutíveis, da concepção de Individuações inclassificáveis... o certo é que todos esses Conceitos, Funções e Variações são para nós, contemporâneos, um inapreciável "presente dos Deuses"... a condição de que nos inteiremos de que as valiosas instruções acerca de "Como fazer um Corpo sem Órgãos"(ou "Como montar Dispositivos Caósmicos") são capítulos maravilhosos que narram o "Que se passou"... mas não o que "está se passando", nem o que "está por passar",
Uma Klínica como uma Desabituação dos Hábitos e uma Canalização das Afinidades? Uma Klínica como uma desmitificação das Semelhanças, das Analogias, das Contradições, da Representação e do Conceito, assim como da Afirmação da Diferença? Uma Klínica como a promoção de um Novo Entendimento para gestar "Bons Encontros"? Uma Klínica como uma Nova Arte do uso Disjunto das Faculdades? Uma Klínica como geração do Sentido? Uma Klínica como uma Nova Lógica da Sensação? Uma Klínica como assunção da univocidade do Ser e do Eterno Retorno da Diferença, tanto quanto como da Transvalorização dos Valores? Uma Klínica como reformulação de "falsos problemas" e como "estratégias" para a Atualização do Virtual? Uma Klínica com a inclusão de Semióticas A-significantes? Uma Klínica Nômade dos Espaços Lisos, das Dobras Infinitas, do Pensamento do Fora, do Diagrama e não do Programa, da Desterritorialização, das Linhas de Fuga, do Acontecimento, dos Novos Ritornelos, contra a brusca interrupção ou a aceleração ao infinito do Processo Esquizofrênico, contra as Reterritorializações Normais, Neuróticas, Perversas (de divã), Paranóicas, Melancólicas e Esquizofrênicas (de Manicômio), contra o Edipismo, o Familiarismo, o Estatismo... o Organismo? Uma Klínica Maquínica? Uma Crítica e Klínica... uma Noologia Klínica... uma Klínica do Devir Animal, do Devir Célula, do Devir Imperceptível, do Devir Cérebro?...

"ARS LONGA, VITA BREVIS",




Introdução à Esquizoanálise Apêndice – Segunda Edição



O propósito essencialmente pedagógico que guia esta introdução nos leva a acrescentar, nesta segunda edição, este breve apêndice panorâmico. Trata-se de uma nova tentativa de síntese cuja intenção é facilitar ao máximo possível o trânsito do leitor pelo complexo rizoma que constitui a Esquizoanálise. Escolhemos a modalidade expositiva de uma seqüência de pontos numerados, assim como formulações simplificadas, com uma expectativa esquemática que supomos didática. Não comentaremos todos os capítulos dos livros (o Anti-édipo e Mil Platôs) e a escolha dos sintetizados deve-se apenas à importância que lhes atribuímos segundo nosso critério cartográfico:
1.  No percurso da obra de G, Deleuze e F. Guattari, os mesmos autores lhe dão denom inações diversas que podem ser consideradas complementares, embora não sejam sinônimas: Esquizoanálise, Pragmática Universal, Ecosofia, Nomadologia, Micropolítica, etc. De nossa parte, temos sugerido outras, tais como: Concepção da Realidade, Ecopraxe, Nomadopraxe, etc.
2.   Quanto a uma "classificação disciplinar" dessa obra, que consideramos irredutível às especificidades conhecidas, temos optado por empregar uma expressão disjuntiva inclusa, dizendo que se trata de filosofia... e também de ciência .. , e também de arte e literatura... e também de crítica estética... e também de política... e também de mitologia... e também de um certo delírio... e assim sucessiva e não conclusivamente. Seja como for, a Esquizoanálise afirma, como seu valor principal, o uso que se faz dela.
3.   Como um ensaio, tão discutível como o do ponto anterior, de nos aproximarmos de uma classificação gnosiológica da Esquizoanálise, propomos que se trata de um realismo, materialista, diferencialista e imanentista, molecular, intensivista, neofuncionalista maquínico. Realismo porque o "Ser" (em toda a sua diversidade e infinitude) é realidade e não aceita nem se opõe a um não-ser. Materialista porque a "natureza" desse ser inclui toda entidade ideal ou espiritual. Diferencialista porque trabalha sobre e desde o Ser das diferenças e o Ser
como diferença. Imanentista porque as diferentes realidades que define não estão em uma relação de separação e nenhuma é transcendente nem eminente com respeito a outra. Molecular porque o campo da realidade ao qual atribuem essa condição é o de maior potência em termos de metamorfose. Intensivista porque essa dimensão da realidade é a geradora da potência citada no ponto anterior. Neofuncionalista porque problematiza como essa realidade (material, diferencial, intensiva etc) funciona, e não o que é. Maquínico porque atribui à tecno-esfera uma realidade própria, imanente às outras e constitutiva de um modo de funcionamento antes citado, e digna de formar parte privilegiada de um metamodelo da realidade.
4. A Esquizoanálise é um vastíssimo e interminável estudo acerca de como os processos de produção de produção, de reprodução e de antiprodução, imanentes à realidade antes definida, interrelacionam-se para gerá-la inovadoramente, para repeti-la ou para destruí-la em todos seus campos, potências, forças, estratos, territórios, códigos, sobrecódigos, axiomáticas etc. Tais estudos são imanentes aos atos e ações revolucionárias e inventivas, que os exigem para assim poder "desmontar" o que inibe, distorce ou impede a produção, escapar desses limites e deflagrar o novo a serviço da diversidade infinita da Vida, contra toda forma de exploração, dominação e mistificação.
5.     Os livros que compõem a obra esquizoanalítica passam dos quarenta volumes, sem contar numerosos artigos e até gravações fonomagnéticas, vídeos etc. Seus autores insistem que esse conjunto pode ser percorrido na ordem e na direção que cada leitor escolher, configurando sua cartografia singular e irrepetivel. Respeitando essa recomendação, consideramos que os tomos do livro "Capitalismo e Esquizofrenia" são, dentro da multiplicidade que a obra constitui, algo como um conglomerado principal do qual, ou bem se parte, ou bem se deve fazer uma passagem preferencial. Temos essa convicção não apenas porque se trata de duas exposições especialmente panorâmicas e abrangentes, mas também porque, se como Deleuze e Guattari afirmam que "uma coisa é louvar a multiplicidade, outra coisa é fazê-la", acreditamos que esse escrito é o mais bem sucedido nesse sentido. Por outra parte, segundo nossa "paixão" própria, acreditamos que é nesses livros onde fica mais enfática e indissoluvelmente imanente a vertente política da Esquizoanálise: a revolução molecular.


6.     No "Anti-édipo", que nos permitimos denominar a primeira dessas topologias e processualísticas da realidade:
a) Os campos da mesma são as superfícies de produção, registro-controle e consumo, consumação.
b)    Seus "povoadores" são as máqu inas desejantes (elementos intensivos que se autoproduzem, s.e diferenciam e se acoplam incessante e comutativamente em máquina-fonte e máquina-órgão, segundo síntese: conectivas de produção (superfície da produção), disjuntivas inclusas e exclusas (superfície de registro-controle) e de conjunção (superfície de consumo-consumação). Em cada superfície, a energia que anima os processos se denomina respectivamente libido, numen e voluptas. Como as superfícies são imanentes entre si, cada uma delas funciona em uma tônica molar e em uma molecular, simultaneamente.
c) A "entidade" típica da superfície da produção é o Corpo sem Órgãos (ao mesmo tempo continente virtual de todas as potências produtivas e grau zero de intensidade sobre o qual se montam e se acoplam as máquinas desejantes). Recordamos que a idéia de superfície em esquizoanálise é vital para a proposta de tratar a realidade como conjuntos difusos de diferenças, fazendo mostrar-se e funcionar todas as singularidades de sentido e de devir num mesmo plano. Essas diferenças, que implicam novidades absolutas de individuação por hecceidade ou de atualização do virtual, são negligenciadas pelo pensamento e a praxe da representação. Ou bem são excluídas e colocadas na obscuridade do indefinido, indeterminado e indecidível, ou bem são declaradas sem­sentidos, "nadas" ou vazios, entendidos como faltas. A esquizonálise não espera que essas diferenças adquiram sentido ou sejam atualizadas por nenhum fundamento residente nas alturas transcendentes, nem nas profundezas românticas, nem nas estruturas "estruturantes".
d)    A "entidade" típica da superfície de registro-controle é o Corpo Cheio (que se pseudo apropria de todas as potências produtivas e as captura, efetua, inibe ou acelera ao infinito segundo a complexão do modo de produção, da formação de soberania e do sistema da representação histórica de que se trate. A superfície de registro-controle tem como operadores característicos da sua função normatizante ou legalizadora a

nível do sistema de representação os códigos, sobrecódigos e axiomáticas.
e)     A superfície do consumo-consumação tem a seu cargo tanto o acabamento dos produtos como seu consumo, ambos modulados por determinações do Corpo Cheio em pauta.
7. O interjogo dos processos de produção de produção, de reprodução e de antiprodução, em e entre cada superfície, anima os movimentos de estratificação e desestratificação, de territorialização e desterritorialização, de codificação e descodificação, de sobrecodificação e des-sobrecodificação, de axiomatização e desaxiomatização, as segmentações, as linhas de fuga, as emissões de subpartículas, quantas, vibrações e fluxos cuja distribuição e dinâmica determina a "natureza" e os destinos variáveis do interjogo dos processos. Como sabemos, a Esquizoanálise não separa nessas realidades as "naturezas" e denominações das diferentes entidades e movimentos da realidade. Desse modo atribui aos movimentos "objetivos" as características e nomes de uma Clínica Universal que redefine e emprega para isso os nomes da nosologia psicopatológica.
8.     No limite da realidade com o "fora" absoluto, os processos podem se dirigir para a esquizofrenia, com predomínio da produção de antiprodução, ou para uma direção esquizonte, ou seja, para a Nova Terra ou a Utopia Ativa da revolução molecular. Perante essas tendências, o conjunto da realidade pode regredir para a reprodução, em qualquer ou em todos os seus âmbitos, de configurações melancólicas, maníacas, paranóicas, perversas, neuróticas ou "normativizadas". Nesse sentido, a Esquizoanálise entende a loucura e o delírio como reveladores, não tanto de conflitos familiares ou edipianos, mas sim como cartografias históricas universais.
9.     No segundo volume de "Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia ", a topologia e a dinâmica da realidade está composta não pelas três superfícies, mas por inúmeras "plataformas" intensivas que se conectam através de fluxos de intensidades em inúmeras direções. Tanto os capítulos do livro como os conjuntos de realidades têm essa mesma configuração e funcionamento. Cada Platô é uma multiplicidade (ou




seja, seus elementos e movimentos não correspondem a categorias do Uno nem do Múltiplo). As multiplicidades podem serde diversas índoles (um livro mesmo pode ser uma muItiplicidade), mas o exemplo que Deleuze e Guattari preferem é o de um vegetal do tipo dos tubérculos denominado rizoma. Uma multiplicidade é um conjunto que cresce por divisões não dicotômicas e que não se divide sem mudarde "natureza". O rizoma, por exemplo, não tem um centro ou tronco a partir do qual se desenvolve, seus tubérculos estão disseminados e intrincados com suas prolongações, talos e raizinhas. Seus limites externos não são passíveis de serem circunscritos, suas células não têm membranas e seus processos metabólicos apresentam causas que se expressam em efeitos à distância sem que seja possível determinar os mecanismos e veículos de transmissão. O rizoma serve como modelo contraposto à arvore (com raízes, tronco, folhagem), e os autores mostram como esses modelos penneiam toda a realidade entendida como molecular ou como molar.
10. Cada capítulo-platô de "Mil Platôs" contêm parcialmente os outros, e o leitor pode passar de um para qualquer outro, segundo a trajetória da cartografia escolhida, ou melhor dito, inventada por cada viajante. Não obstante, cada platô tem uma certa ênfase em algum tema em especial. Listaremos e caracterizaremos muito sucintamente os mais importantes:

a) Os rizomas de todo tipo e o livro como um deles.
b)     A partir da Esquizoanálise do "Homem dos Lobos" (célebre caso clínico de Sigmund Freud) reformula-se a produção de subjetividade e subjetivação, entendida como multiplicidades das quais os sujeitos, seja o da psicologia ou o da psicanálise, são apenas "peças" visíveis. O inconsciente é reafirmado como sendo um "conjunto n" de elementos cuja nota em comum é não ter nada em comum " (ou seja, nada em comum entre si segundo a especificidade de uma disciplina, por exemplo os componentes estruturais edipianos).
c)     Escrita como a crônica de uma conferência proferida por um extravagante professor, surge uma cartografia de formidável abrangência, como uma das versões da imanência entre as distintas regiões da realidade. Essa crônica mostra a distinção e interpenetração entre as distintas esferas segundo a divisão molar das mesmas: geo-esfera (físico-química), bio-
esfera (vegetal, animal), noosfera ("humana", social, subjetiva, "comunicacional", política, econômica etc) e tecno-esfera (científico­-técnica). Destaca-se a coexistência entre todas elas e a inconveniência de se estabelecer uma ordem hierárquica entre as mesmas. Trabalha-se especialmente a geo e a biosfera e os processos de passagem da uma a outra. Mas, por outra parte, estuda-se a imanência entre essas esferas e a realidade molecular intensiva que Ihes é imanente. Descrevem-se as formações molares e moleculares parcialmente próprias de cada esfera, responsáveis tanto pela estabilidade como pela mutação, tais como estratos, paraestratos, subestratos e metaestratos. Define-se, por exemplo, os cristais como focos de passagem do inorgânico ao orgânico. Expõe-se uma notável concepção da produção das espécies, baseando-se numa célebre polêmica entre os biólogos Geoffrey de Saint Hillaire e Cuvier. Nessa discussão, o primeiro defende a idéia de um mundo biológico composto por um "animal único" que, por dobras e desdobras moleculares e redistribuição de órgãos, compõe a diversidade molar das espécies. Hillaire abre, assim, a perspectiva da constante produção de interespécies simbióticas "anômalas" e da "involução criativa", segundo a qual traços e funções aparentemente menos desenvolvidas se compõem para dar organismos "mais competentes para sobreviver". Cuvier opõe a essa idéia a de uma seqüência evolutiva na qual cada espécie é uma transformação estanque em relação às outras. Destaca-se a contribuição do "papel" das "populações" micro e macroscopicamente consideradas e da relação das mesmas com o meios (externos e internos) que elas contêm e que as contêm na determinação das transformações específicas. Igualmente se privilegia a função determinante das "manadas" sobre as características de cada um de seus exemplares. Mostra-se como um elemento trazido de um campo ou "nível" para outro detennina a conversão dos conjuntos de estratos em territórios e como os territórios constituem seus animais de território, e não o inverso. Destaca-se como recursos e traços morfológicos e funcionais elementares e de reprodução ou de sobrevivência dos espécimes (cores, cantos, cerimoniais) deslocam­se e transformam-se em recursos expressivos (como os ritornelos) que acrescentam às suas diversas finalidades a de marcar o território como maneira de conjurar o caos que sempre ameaça a constituição meta-estável da suas realidades. Essas produções preparam o tratamento que novos platôs (e também capítulos· do livro) vão dar à "natureza" e à função da linguagem e das semióticas não lingüísticas, aos regimes sociais de signos.
d)    O capítulo-platô destinado à crítica dos postulados da lingüística cons­titui um profundo questionamento à primazia outorgada pelo Ocidente à linguagem falada e escrita e às disciplinas que dela tratam. Deleuze e Guattari se baseiam na confrontação entre autores como Saussure e seus seguidores, entre eles Martinet, por uma lado, e Hjemlev, Bathkine, Labove, Ducrot e Searle por outro. Mostra como, a partir dos ritornelos etológicos, são constituídos sistemas de expressão semióticos de enorme variedade, entre os quais a linguagem, ao que denominam semiologia do significante, que é apenas um a mais e não deve atribuir-se-lhe nenhuma eminência evolutiva. Mostra como a Lingüística científica (especialmente a de inspiração estruturalista) privilegia o tratamento da sintaxe (relações gramaticais entre signos) e a semântica (relações entre signos e referentes ou significados), procurando nessas áreas as constantes da linguagem que explicariam todas as suas variáveis expressivas. De acordo com essa leitura, a pragmática (que é o estudo do emprego concreto da língua em circunstâncias particulares) se mostra insuficiente. Assim, essa leitura atribui o funcionamento da língua a instâncias exteriores à linguagem, buscando sua solução nas contribuições de outras disciplinas (psicolingüística, sociolingüística etc). Essa concepção da lingüística atribui à linguagem funções de informação, comunicação, intercâmbio etc. Deleuze e Guattari mostram que toda linguagem se origina no discurso indireto, e dizer se compõe do que se diz acerca do que foi ouvido, e ainda que, em última instância, a principal função da linguagem é transmitir palavras de ordem, consignas, mandatos. Mas essa transmissão, devido ao caráter performativo e ilocutório da linguagem, realiza a ordem no mesmo ato de transmiti-la, como acontece, por exemplo, com a sentença de um juiz. A sociedade inclui em si montagens que são agenciamentos coletivos de enunciação que emitem essas ordens para ser enunciadas pelos sujeitos de enunciados (os falantes), que assim as obedecem de jure e de fato. A Esquizoanálise postula, assim, que a pragmática é a abordagem essencial da Lingüística, e que as chamadas constantes sintáxicas e semânticas são variáveis a serviço circunstancial das funções pragmáticas. Destaca que a Lingüística convencional e seu objeto, a linguagem, têm por finalidade normatizar, qualificando a correção gramatical ou a a-gramatical idade da imensa diversidade das línguas, que sempre são invenções pragmáticas. Os autores distinguem, assim, línguas maiores ou de Estado, e línguas menores, que são as criadas pelas minorias singulares.

Não se trata exatamente das lutas entre línguas "oficiais" e dialetos, mas da capacidade das minorias e dos literatos de colocar em estado de variação contínua sua língua "natal" ou outra adquirida, de maneira a escapar por linhas de fuga expressivas aos mandatos dos agenciamentos coletivos de enunciação e regulação dos poderes da gramatical idade. Por outra parte, Deleuze e Guattari insistem na origem imperial da linguagem falada e escrita e reivindicam a liberdade e a valorização de todas as semióticas não significantes (corporais, dramáticas, pictóricas etc), revalorização essa que culmina na profunda importância atribuída pelos autores à música como semiótica expressiva, assim como modelo teórico para analisar as semióticas e semiologias em geral.
e)     Um importante capítulo-platô refere-se à segmentação do socius e à pra­xe micropolítica que a Esquizoanálise pode aportar nesse campo. Todas as sociedades, seus agentes, grupos, organizações etc (como se antecipava na teorização da Superfície de Registro) estão divididas e ordenadas segundo várias modalidades de delimitação. Tais formas de segmentação se resumem a três: as binárias, as circulares e as lineares. Exemplo das primeiras são as duplas homem/mulher, humano/animal, menores/adultos etc. Exemplo das segundas são os espaços locais, os provinciais, os nacionais, os regionais, a sociedade civil, o Estado etc, que se costuma pensar como círculos incluídos em outros, com seus respectivos centros subordinados entre si. A terceira modalidade é a linear, cujo exemplo poderia ser todo tipo de seqüências, desde as temporais etárias às sucessões de pertencimento organizacional etc, as linhas de montagem etc. Todos esses segmentos podem ser, segundo o complexo histórico onde são encontrados, duros ou moles, rígidos ou flexíveis. Os segmentos binários são característicos das formações primitivas territoriais por serem flexíveis, tendentes à fusão, facilmente comunicáveis ainda entre os segmentos mais heterogêneos. Já nas sociedades modernas, são duramente binarizados, embora opcionais, e homogeneizados por uma equivalência mercantil generalizada. O segmento circular existe nas sociedades primitivas, mas não unificado, hierarquizado, centralizado, concêntrico, e os centros que existem não ressoam entre si. Nas sociedades modernas, esta segmentação é unificada, hierarquizada, centralizada, concêntrica e todos os centros ressoam entre sim, sendo o Estado sua "caixa de ressonância" principal. O segmento de tipo linear e flexível nas sociedades primitivas e rígido

nas modernas. Mas em todas as sociedades, entre os termos formalmente segmentados, acontecem e devém incessantemente processos moleculares produtivo-desejantes que tendem às micro e (nos momentos propícios) às macromudanças extraordinárias. Fluxos, subpartículas, partículas, quantas, linhas abstratas que não determinam contornos, linhas de fuga escapam de todas as unidades de segmentação, apesar de que devem evitar os buracos negros de absorção e recuperação, os muros de compactação com os que o registro-controle tende a neutralizá-los. Igualmente existe o perigo de que, por exemplo, as linhas de fuga se transformem em linhas de escapismo e de marginalidade, ou ainda de pura abolição ou morte.
f)     Como veremos um pouco mais adiante, as sociedades primitivas são atualizações de Máquinas Abstratas de Guerra (que não têm a guerra por finalidade) e que não precisam do dispositivo Estado para realizar-se. Nas sociedades modernas, a Máquina Abstrata do Capitalismo se realiza através do Estado, que se apropria da Máquina de Guerra primitiva para colocá-la a seu serviço, através de Forças Armadas profissionais visando a guerra (entre outras funções) como objetivo em si mesmo.
g)     Neste platô, fica especialmente claro que haveria macro e micro: economia, sociologia, antropologia, semiótica etc, destacando-se a macro e micro-história e a macro e micropolítica. Neste capítulo, as tarefas da Esquizoanálise são caracterizadas como: traçar planos (conjuntos cartográficos e não cópias), traçar diagramas (caracterizar jogos de forças ainda não vetorizadas e de materiais ainda não formados) e dizer que não são programas, diagnosticar os tipos de segmentação e propiciar as linhas de fuga, as emissões quânticas, a conexão de fluxos etc.
h)    Devido aos limites deste apêndice, apenas condensaremos uma quantidade de outros capítulos-cartografias, esperando poder desenvolvê-los mais adequadamente em futuras publicações. Por exemplo, em "Como se fazer um Corpo Sem Órgãos", os autores voltam a definir essa "entidade":

i. Como sinônimo de plano de consistência da montagem de dispositivos.
ii. Como campo de intensidade sinônimo do inconsciente em Esqui-

zoanálise, recorrido por intensidades que constituem órgãos intensivos pré-biológicos, pré-subjetivos e pré-sociais que preparam as individuações por hecceidade, os devires-acontecimentos. Esses corpos singulares não se confundem com o corpo erógeno da Psicanálise, nem com o esquema corporal neuropsicológico, nem com o corpo vivido dos fenomenólogos.
iii  Como grau zero das intensidades e como limite de todo corpo (social, subjetivo etc). Num sentido biológico, trata-se do plano de composição virtual de todos os seres vivos e constitui um rizoma no qual todas as conexões transversais entre espécies são viáveis e não vigoram as diferenças evolutivas incompatíveis, de maneira que se podem produzir novas convivências além ou aquém das possíveis.
iv. No campo social, o CsO é também o limite de toda formação social, e consiste num plano de imanência (planômeno) no qual podem ser gestadas as mais extraordinárias organizações sociais (ecúmenos), dependendo do grau de afin idade que exista entre o corpo social vigente e o CsO que lhe e imanente.
Tentaremos concluir provisoriamente, definindo como se compõem e funcionam os dispositivos e agenciamentos e as máquinas abstratas. Se voltamos a uma distinção essencial dentro da teoria esquizoanalítica, a de caos, caosmos e cosmos, procuraremos caracterizar os conceitos de dispositivo ou agenciamento e o de máquinas abstratas e concretas, relacionando-as com a tríade antes mencionada.
Acreditamos poder sintetizar esses complexos conceitos dizendo que, no campo do caosmos, podem-se instalar dois tipos de máquinas que processam a passagem de caos a cosmos, extraindo componentes heterogêneos desses domínios e operando conexões insólitas que podem gerar o novo revolucionário e inventivo. Trata-se das máquinas abstratas e das concretas.
As máquinas concretas são os dispositivos agenciamentos. As máquinas abstratas podem ser entendidas num sentido propriamente dito ou apresentam os dois tipos: Máquinas de Guerra e Máquina de Estado.
Um dispositivo agenciamento ou máquina concreta é uma rede múltipla e heterogênea de conexões, montada sobre um plano de consistência. Tal plano é o que "com pactua" os componentes do dispositivo e confere ao mesmo persistência, insistência etc. O dispositivo conecta e faz funcionar fragmentos tomados dos estratos (biológicos) chamados halo-
plásticos, que são, por assim dizer, os que são capazes de efetuar translações que mudam sua "natureza". Mas o dispositivo extrai dos meios onde estão submersos os organismos outros fragmentos, montando-os com esses dois tipos de componentes territórios. O território é uma composição que excede na sua essência ao organismo e ao meio e às suas relações, mas que permanece ligado a eles. Os componentes decodificados de estratos (órgãos funções) assim como os dos meios (por exemplo, ritmos ou compassos que afetam os meios) tornam-se assim "propriedades" do dispositivo. Com eles o dispositivo constrói seus aspetos de conteúdo e de expressão. Mas esses dois aspectos já adquirem uma condição diferencial e nova, tornam-se respectivamente sistemas semióticos ou de signos e sistemas de ações e paixões ou pragmáticos. Por isso, todo agenciamento é, por um lado, agenciamento de enunciação, e pelo outro, de conteúdo. O que se faz é o que se diz. Mas neste momento, os enunciados ou expressões exprimem transformações incorporais ou sentidos que se atribuem aos conteúdos­-corpos. Aqui nos tem parecido viável uma formulação nossa que é a seguinte: se, segundo o que acabamos de expor, o dispositivo, por um aspecto, continua ligado aos estratos e aos territórios (que são componentes do cosmos), por outro lado, continua também permeável às peculiaridades do caos, e é por isso que o consideramos uma "entidade" típica do caosmos. O caos continua operando sobre ele, decodificando os enunciados e desterritorializando os conteúdos. Tal potência é a que consegue incidir para voltar a fazer indistintos expressões e conteúdos e introduzir neles matérias não formadas, energias inespecíficas, forças não vetorizadas. Esse movimento leva o dispositivo a seu máximo de decodificação, desestratificação e desterritorialização que é o que constitui a Máquina Abstrata que o dispositivo efetua, sendo que, por outro lado, essa Máquina Abstrata pode ser considerada também como um dos aspectos do dispositivo.
Mas uma Máquina Abstrata que, em um sentido, é o quarto aspecto do dispositivo, seu máximo de decodificação e de desterritorialização, caracteriza-se por ignorar as formas e as substâncias. Essa Máquina se compõe de matérias não formadas e de funções não formais filum e diagrama). A matéria se torna matéria movimento e as funções não formadas (o diagrama) são uma expressividade movimento. As máquinas abstratas não são abstratas no sentido das idéias platônicas transcendentes, universais e eternas, nem têm o significado lógico da abstração como unificação formalizada de atributos ou caracteres comuns induzidos de um
conjunto de indivíduos. As máquinas abstratas são reais, embora não sejam ideais nem concretas, e atuais, embora não sejam efetuadas. São singulares e criativas, sendo que para se concretizarem e se efetuarem, elas precisam de conformar-se em um plano de consistência animado de uma variação intensiva contínua, a cujo nível conteúdo e expressão se tornam indiscerníveis. Mas essa máquina abstrata pura pode modular o agenciamento no sentido de uma máquina de guerra metamórfica (multiplicidade emissora de linhas de fuga e de vida, singularidades, quantas etc). Essa máquina de guerra, que como modalidade de existência e organização era típica dos nômades, pode abrir o dispositivo a outras máquinas criativas de música, escritura, amor etc.
Mas a máquina abstrata pode se transformar em máquina de morte ou de destruição, tornar-se máquina de Estado que captura a de Guerra e toma a guerra por objeto, induzindo o dispositivo a perder toda sua capacidade de metamorfose. Em nosso entender, é no seio da imprevisível e multipolar combinatória de caos, caosmos, cosmos com produção, reprodução e antiprodução que as Máquinas Abstratas e seus dispositivos efetuadores se montam, e seu valor criativo ou letal se decide.
buscado em: cooperação.sem.mando

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