Introdução à Esquizoanálise
Gregório Baremblitt
Belo
Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari, 2003, 138p
2.edição
Baremblitt,
Gregório [2003]. Introdução à
Esquizoanálise 2.ed, Belo Horizonte: Biblioteca Instituto Félix Guattari,
2003, 138p
Apresentação – 2.a
Edição
É com gratidão e satisfação
que o Instituto Felix Guattari de Belo Horizonte apresenta a segunda edição do
"Introdução à Esquizoanálise" de Gregorio F. Baremblitt.
Os exemplares da primeira
edição se esgotaram com uma rapidez que não esperávamos, e os leitores,
especialmente alunos universitários, os de nossos cursos e outros interessados
na obra de Deleuze e Guattari nos solicitaram uma ampliação da mesma. Essa
estimulante demanda fez com que a presente edição seja de um nÚmero limitado de
exemplares e possa ser considerada como preliminar de uma terceira, muito mais
extensa, que está no prelo.
O autor considerou necessário
acrescentar a essa segunda edição um apêndice no qual se trata de temas,
preferencialmente incluídos em "Mil Platôs", que foram pouco
desenvolvidos na primeira.
Fazemos presente aqui nosso
agradecimento ao staff do Instituto Felix Guattari pela eficiente e generosa
colaboração nas tarefas de tradução, correção e montagem do presente texto,
assim como por valiosas sugestões recebidas para o conteÚdo do mesmo: Oalva A .
Lima, Érika Rianni, Irene Ferreira do A . Oliveira, Luciana Tonelli, Neuza
Beatriz H. G. Pereira e Patrícia Ayer de Noronha.
In Memoriam de Felix Guattari*
Este
evento é especialmente emocionante para mim por vános motivos. Ele é
emocionante no sentido das emoções entusiásticas, porque as idéias de Guattari
têm sido fundamentais em minha formação e, como pretendo explicar, também em
minha vida cotidiana, pessoal.
Mas
também é um momento duplamente triste porque estarnos reunidos para prestar
homenagem a uma figura que faleceu em uma idade e com uma vitalidade que,
fazia-nos pensar, poderíamos aguardar muito ainda de sua capacidade produtiva.
Por outro lado, uma grande amiga nossa, Sonízia Maria de Castro Máximo, que foi
a gestora de todo esse encontro, também faleceu, de forma ãbsolutamente
inesperada, vítima de um acidente de trânsito: Sendo assim, hoje estou aqui
para falar a vocês no marco da perda de dois grandes amigos, e tentaremos
transformar esta situação de luto em, pelo menos, um encontro produtivo, que
nos permita superar essa tristeza.
Felix
Guattari, em uma vida relativamente breve, conseguiu desenvolver tantas
atividades, produzir tanto, criar tanto, que falar acerca desta vida, em um
tempo curto, é uma tarefa quase impossível. Mas faço questão de falar de todas
e de cada uma das coisas que ele fez, embora apenas mencionando-as,
enumerando-as. Eu acho que, entre todos os méritos que Guattari tem ou teve, o
fundamental é o de fazer ver ao mundo, este mundo um tanto cético, um tanto
decepcionado no qual nós vivemos, este mundo utilitarista, pragmatista (no mal
sentido da palavra), este mundo, em muitos sentidos, medíocre e cínico, que é
possível viver de uma maneira produtiva, de uma maneira brilhante, de uma
maneira heróica. Não dentro das modalidades do heroísmo revolucionário
clássico, mas abrindo a perspectiva de um novo tipo de heroísmo... um heroísmo
mais amoroso, mais moderado, como Guattari mesmo o chamou, em algum livro,
"uma nova suavidade". Então, parece-me importante detalhar tudo o que
Guattari fez, porque uma das queixas que eu formulo, e que sei que muitas
pessoas formulam em nosso meio, é de que "não têm tempo" para fazer
grandes coisas. É interessante poder
Conferência proferida por
Gregorio F. Barcmblitt na Aliança Francesa em 26/1 0/92, como homenagem póstuma
a Felix Guattari.
exaltar, poder examinar a vida
de uma pessoa que tinha tanto ou menos . tempo que nós. E, sem dúvida, foi
capaz de fazer uma quantidade de coisas que deixaram o mundo diferente depois
de ele ter passado por onde passou.
Guattari
faleceu aos sessenta e dois anos de idade, na noite de 28 de agosto passado, no
hospital onde ele trabalhava muitos anos, desempenhando tarefas clínicas. Ele
nasceu em trinta de abril de mil novecentos e trinta, em Colombes, França. Sua
escolaridade foi muito irregular e difícil. Estudou farmácia e filosofia, mas
não conseguiu formar-se em nenhum desses dois cursos. Na Segunda Guerra Mundial
participou de um movimento destinado a construir albergues juvenis, moradias
para os refugiados de guelTa. Dentro de suas tarefas políticas, ele teve
contato com muitas figuras intelectuais da França, e se encontrou com duas
especialmente importantes. Uma, a do trabalhador em saúde mental de orientação
anarquista e libertária, François Tosquelles, que tinha imigrado da Catalunha,
no tempo da guerra civil. E com Jean Oury, um grande psiquiatra francês. Por
outro lado, Guattari tinha descoberto as idéias de outro grande psiquiatra,
Franz Fannon, um psiquiatra argelino, que posteriormente chegou a ser Ministro
da Saúde Pública da Argélia, autor daquele grande livro "Os Condenados da
Terra".
Jean
Oury, Guattari e outros acharam um castelo em ruínas e, fazendo uma reforma do mesmo, construíram uma célebre clínica
psicoterapêutica e psiquiátrica denominada "La Borde", que se
transformou em um verdadeiro campo experimental para uma série de propostas
psiquiátricas modernas, alternativas e até revolucionárias, que continua existindo
e sendo uma fonte de inspiração para todos os movimentos alternativos
psiquiátricos do mundo.
Guattari
militou na Juventude Comunista, mas foi expulso por sua oposição aos
acontecimentos de Budapeste e à política do Partido Comunista na Argélia. Participou
na organização de ajuda à "Frente
de Libertação Nacional Argelina". Escreveu para um periódico comunista
relacionado com a Liga Comunista e com as organizações marxistas e anarquistas.
Interessou-se p-ela Psicanálise e se analisou com o professor Jacques Lacan
durante sete anos. Pertenceu à Escola Freudiana de Paris, que, como veremos
mais para a frente, teve vários dissidentes, mas nenhum destes chegou a
questionar a razão da existência dessa escola,
ou seja, a Psicanálise em si
mesma. Guattari fundou a Federação de Grupos de Estudo e Pesquisa
Institucional, ou seja, uma enorme corrente que reunia experts de
diferentes disciplinas, antropólogos, sociólogos, economistas, etc., que se
ocupavam em estudar as instituições. Guattari fundou também a revista
"Recherche", que teve um papel importantíssimo na, divulgação das
idéias institucionalistas. Em 1966, organizou um jornal e um grande agrupamento
que se denominou "Oposição de Esquerda". Participou também da redação
das novas teses da "Oposição de Esquerda", propondo uma ética
militante que reunia os descontentes de todos os partidos políticos de
esquerda, particularmente da Liga Trotskista e do Partido Comunista Francês.
Participou na operação de ajuda ao povo do Vietnã na guerra contra os Estados
Unidos. Em 1967 foi um dos fundadores da Organização de Solidariedade com a
Revolução Latino-americana, organização esta do intelectual Régis Debray, que
estava preso na Bolívia. Em maio de 1968, Guattari associou-se a vários setores
protagonistas desse impQrtantíssimo fato histórico e participou, pessoalmente,
de uma das manobras táticas que foi a ocupação do teatro Odeon. Fundou o CEPFI
– Centro de Estudos e Pesquisas de Formação Institucional, centro esse que
publicou obras tais como "Genealogia dos Equipamentos Coletivos",
"O ideal militante", etc. Dentre suas publicações na Revista
"Recherche", uma em particular se referia aos movimentos
homossexuais, o que motivou sua prisão, tendo sido anistiado por Giscard
d'Estaign. A partir de 1970, militou ativamente pela implantação da rede de
rádios livres, a primeira das quais se chamou "Alice". Fundou o CINEL
– Comitê de Iniciativa pelos Novos Espaços da Liberdade, organização que
defendeu os extremistas autônomos italianos e que lutou pela libertação do
intelectual italiano Tony Neri, preso ná Itália, por sua. vinculação com as
Brigade Rose. Em 1981 foi um dos artífices da candidatura do célebre cômico
francês Coluche. Foi membro ativíssimo de uma grande organização ecológica
chamada "Geração Ecológica" e, finalmente, fundador da Rede de
Alternativa Psiquiátrica, um Movimento com propostas psiquiátricas críticas que
se estendeu pelo mundo inteiro.
Bem,
tudo isto fala acerca da militância ativa de Guattari no campo, não apenas da
cultura, mas dos fatos políticos concretos, os principais que agitaram a
História durante o período de sua juventude e de sua maturidade. Por outro
lado, Guattari escreveu os seguintes livros:
"Psicanálise e Transversalidade",
que pertence ao período em que ainda era psicanalista; "A Revolução
Molecular", um belo livro que resume suas propostas de militância
política; "O Inconsciente Maquínico", onde expõe a reformulação que
fez da idéia do inconsciente freudiano; posteriormente escreveu com Gilles
Deleuze, o grande filósofo e seu amigo pessoal, "O Anti-Édipo", um
livro que foi expressivo do movimento político e cultural de maio de 68. Fez um
estudo com Deleuze sobre o escritor Kafka, a quem eles consideram uma das
maiores expressões de um gênero que seria "uma literatura menor";
depois, escreveu, também com Deleuze, "Mil Platôs", que é algo assim
como o segundo tomo de "O Anti-Édipo". MaIs recentemente ele publicou
um livro chamado "Caosmose", e imediatamente antes deste, um belo
livro sobre Ecologia, chamado "As Três Ecologias", e depois, com
Gilles Deleuze, "Que é Filosofia?". Isso sem mencionar inúmeros
artigos publicados em todos estes órgãos que acabamos de expor. Por outra
parte, publicou, em português, em colaboração com S. Rolnick,o livro
"Cartografias do Desejo", e, na mesma língua, foi editado um pequeno
volume de suas conversas com Lula.
Então,
encontramo-nos aqui evocando a figura de um intelectual, praticamente
autodidata, que não chegou a cumprir a burocracia de nenhum título
universitário, que produziu uma quantidade assombrosa de textos, que conseguiu
relacionar-se de forma produtiva com as figuras mais importantes das últimas
duas ou três décadas, que militou política e ativamente, tanto nas organizações
tradicionais, como na maioria das alternativas importantes deste período, e,
além do mais, foi criador de uma série de movimentos, fundador de uma série de
dispositivos políticos que tiveram um papel importantíssimo nas tentativas de
transformação do que é o mundo moderno e pós-moderno. Eu acho que uma figura
deste tipo, desta magnitude, desta transcendência, estamos acostumados a
descrever e a encontrar antes de 1920, de 1930. Estas são figuras do porte de
um Trotsky, de um Marx, de uma Rosa de Luxemburgo, ou um Gramsci, que, desde a
Segunda Guerra Mundial, pareciam ter-se extinguido. Como também parece ter-se
extinguido, de nossas vidas cotidianas, todo o impulso – firme, ambicioso,
entusiasta para a construção de uma existência decididamente mais digna. Por
isso, creio que ao se falar neste homem, Guattari, não se trata de destacar um
ideal, porque a obra de Guattari está toda encaminhada a demonstrar que os
ideais não
existem, que os ideais são
"idéias puras", que ninguém tem por que reproduzir ou copiar. Por
este motivo, não diríamos que Guattari é um ideal, não diríamos que Guattari é
um modelo, mas sim, diríamos que Guattari é um exemplo de como se pode viver de
forma que a vida seja a realização de um bem, de uma forma de criação e de
inspiração, que a vida pós-moderna parece ter proscrito completamente de nosso
cotidiano.
Bem,
se só fazer este detalhamento da militância política, da produção
bibliográfica, da atividade científico-societária de Guattari já toma tanto
tempo, e espero ter dado pelo menos uma imagem panorâmica, como é que nós
podemos sintetizar essa fulgurante produção teórica de Guattari, difícil de
dissociar da sua produção unida a Gilles Deleuze? Essa união produtiva com
Gilles Deleuze já configura uma espécie de milagre intelectual que é
absolutamente insólito na História da Cultura. Um comentarista francês, um
jornalista, afirma que essa obra é uma "filosofia a duas cabeças",
fórmula que não me parece afortunada. Para começar, creio que a obra de Deleuze
e Guattari não é uma filosofia. E, por outro lado, justamente o fantástico, o
assombroso, é que essas obras escritas pelos dois já não são de "duas
cabeças". Para quem estuda cuidadosamente "O Anti-Édipo",
"Mil Platôs", "Que é a Filosofia?" (este, o último livro
que publicaram), é impossível saber de quem são as idéias, se de um ou de
outro. Então, é muito mais que criar uma filosofia a duas cabeças, é criar um
conhecimento, um saber, que faz os dois, não devir um, mas devir muitos. É a
transformação de um dueto em um enorme coral, em que não apenas não se sabe se
isto foi escrito por Deleuze e aquilo por Guattari, mas também que neste coral
cantam as vozes mais revoluciomirias, mais críticas, mais escolhidas de nosso
século.
Como
se poderia qualificar essa obra? É muito complexo, porque essa obra inclui as
ciências formais, a matemática, a geometria, a lógica; contém as ciências
naturais, a física, a química, a biologia; contém as ciências humanas, a
antropologia, a história, a economia política, a semiótica, a psicanálise, e
contém também muitos elementos da literatura, da pintura, da música; contém as
melhores idéias de toda a tradição filosófica do ocidente, preferencialmente um
ramo da filosofia representada fundamentalmente pelas idéias dos estóicos, de
Espinoza, de Nietzsche, de Bergson, de Hume. E até contém alguns momentos do
discurso cotidiano, do saber popular, do senso comum. Então – para
quem pretende expô-lo em meia
hora –, o que é isto? Se nós a chamamos de filosofia, é um pouco injusto e
limitativo, a não ser que a comparemos com a ética de Espinoza, que é uma
filosofia declaradamente feita para se aprender a viver de acordo com ela. É uma disciplina? Não é. Porque serve para ser aplicada em qualquer lugar, por qualquer
pessoa, e com qualquer motivo, sempre que este motivo inclua uma proposta de
produção, de criação, de invenção, de felicidade, de transformação do mundo.
Então, o que diremos? Que é uma proposta política? Claro que é uma proposta
política. Fundamentalmente micropolítica. Mas é uma proposta política que pode
ser utilizada por um indivíduo, ou por um grupo, por um movimento, em um partido,
em uma igreja, em um jogo de futebol, em qualquer lugar. Então, não é um
discurso propriamente político, mas sim, é politicamente utilizável em qualquer
de suas dimensões. O que resta para dizer é que essas idéias são, segundo a
velha fórmula, uma concepção do mundo, uma weltanschauung, como diziam
os alemães. Eu não gostaria de dizer isso na presença de algum guattariano ou
deleuziano assumido, porque seguramente não estaria de acordo. Uma concepção do
mundo é uma série de idéias, de crenças, de convicções acerca de como o mundo é
e de como devemos nos comportar nele. E esta obra de Deleuze e Guattari, embora
esteja feita com representações, pois está escrita com palavras, não é uma
ideologia. Não é um pensamento discursivo, mas segundo a própria definição
deles, é uma máquina fundamentalmente energética, destinada a vibrar e a fazer
vibrar aqueles que dela se aproximam e a engajá-los em um movimento produtivo,
que não passa exatamente pelas idéias nem pelas palavras, passa pelos afetos.
Por afetar e ser afetado. Passa pela capacidade de vibrar em consonância, passa
pela capacidade de despertar o entusiasmo, a vontade de viver, a vontade de
criar. E é curioso que isto que eu acabei de dizer, costuma-se dizer, por
exemplo, sobre os discursos religiosos ou sobre os discursos ideológicos. E não
se pode dizer que a obra de Deleuze e Guattari não tenha, em certo sentido, uma
vocação religiosa. Mas religiosa na melhor definição de re-ligare, de unir
novamente os homens, sobretudo os homens que a merecem, ou as partes dos homens
que são capazes de unir-se para gerar produtos novos e dignos. Esse discurso,
como vocês seguramente poderão apreciar, se são leitores de Deleuze e Guattari,
é um discurso incrivelmente erudito, de um rigor e de uma seriedade, de uma
literalidade nas citações, que
chega a ser um tanto
desesperador. Porque a gente não consegue saber como é que dois intelectuais
conseguem ler tantas coisas, entendê-las tão bem e extrair delas estritamente
aquela parte que eles podem integrar no discurso próprio, com essa vocação
revolucionária e produtiva. Mas toda essa erudição, toda essa severa lógica,
toda essa ortodoxia no discurso acadêmico não é o mais importante dessa obra. O
mais importante é aquilo que fervilha por baixo, sob o discurso. É essa capacidade
de capturar o leitor e de ir integrando-o a um mundo que, aparentemente mágico,
um mundo aparentemente de ficção, é infinitamente mais real que os discursos
acadêmicos. que os discursos filosóficos especulativos, que as prédicas
religiosas, ou que as promessas políticas. É importante destacar essas
características dos textos e dos discursos de Deleuze e Guattari, porque eles
estão sempre integrados a um tipo particular de militância. Eles sempre têm um
"pé" numa ação concreta que se exprime e se inspira nesses escritos,
dentro da famosa idéia de práxis, ultimamente tão esquecida. A proposta de uma micropolítica é a ação
política que acompanha a proposta analítica desses autores, que se chama
"Esquizoanálise". A Esquizoanálise é uma leitura do mundo, praticamente
de "tudo" o que acontece no mundo, como diz Guattari em seu livro
sobre as ecologias, sendo uma espécie de Ecosofia, uma "episteme" que
compreende um saber sobre a natureza, um saber sobre a indústria, um saber
sobre a sociedade e um saber acerca da mente. Mas um saber que tem por objetivo
a vida, no seu sentido mais amplo: o incremento, o crescimento, a
diversificação, a potenciação da vida. É importante saber que essa micropol
ítica não está instrumentada por partidos políticos, embora não seja proibido
exercê-la dentro deles. Não toma, como lugar privilegiado de atuação, a
academia, com suas produções ortodoxas e rígidas. Não propõe a formação de uma
igreja, mais ou menos despótica. Não necessita atuar dentro dos âmbitos do
Estado, apesar de não se negar a fazê-lo. Não precisa dos partidos políticos
tradicionais, nem dos sindicatos, especialmente se eles são corporativos. Não
define um campo de esquerda mais ou menos global, que seria melhor do que o de
direita. A proposta é a de uma polític que se pode fazer em todo e qualquer
pequeno, médio ou grande âmbito em que transcorre a vida humana, a política dos
movimentos singulares, dos movimentos que exprimem idiossincrasias, a política
feminista, a política dos movimentos homossexuais, a política das minorias
raciais, a política
dos imigrantes, a política dos
sem-terra, a política de todos aqueles que sofrem a exploração, a dominação, a
mistificação do mundo atual, mas que não pertencem necessariamente aos
organismos, às entidades molares respeitadas e consagradas pelo mundo em que vi
vemos, e que são responsáveis pelo mundo estar como está. É uma política
baseada em uma proposta básica que diz que a essência da realidade é a
imanência do desejo e da produção. O desejo, aquele descobrimento de Freud, o
desejo inconsciente, dito no sentido não apenas de um espaço do psiquismo, de
uma força do psiquismo, mas dito no sentido da essência, da substância de tudo
aquilo que existe. Ele tem, dizem Deleuze e Guattari, o mesmo processo de
funcionamento que Freud descreve no inconsciente psíquico, particularmente em
seu processo primário. E, por outro lado, esse mesmo processo é um processo
substancialmente produtivo, é a permanente criação do diferente, a geração
constante do novo. Então, quando Deleuze e Guattari dizem que o processo último
da realidade é produtivo e desejante, eles introduzem a idéia de desejo na
materialidade produtiva, e a idéia de produção neste processo criativo que é o
desejo, e que habitualmente se atribui ou apenas ao campo do psíquico ou às
esferas mais ou menos ultraterrenas do metafísico. Esta proposta da substância
da realidade como repetição do diferente, do diferente radical, esta, chamemo-la
assim, ontologia de Deleuze e Guattari, é o pilar de sua proposta ética. Porque
é uma afirmação acerca da realidade, que diz que esta, em si mesma, é uma fonte
inesgotável de criação, é uma potência incoercível de transformação. Não
existe, na realidade, nenhuma força definitória que equivalha a essa famosa
"pulsão de morte" freudiana ou a qualquer processo entrópico como os
físicos o descrevem nos sistemas fechados. É uma ontologia, uma teoria do devir
que, desde a base (se isto se pode chamar "base"), propõe um tipo de
vida que confie nisto, que acredite que somos portadores de uma energia criativa
que nos faz formar parte de um mundo que é simultaneamente físico, natural,
humano e maquínico. As separações que se estabelecem neste mundo, e as
hierarquias que se postulam nessas relações são produto de uma concepção
autoritária do universo, que sempre tem que ter algum setor da realidade que
seja mais respeitáv.el, mais temível, mais poderoso que o outro. Deleuze e
Guattari dizem que em tudo que existe há uma imanência que faz com que cada um
dos campos seja igualmente importante.
Não
descrevem a natureza como aquele campo da realidade que existe para ser
dominado pelo homem, não descrevem as máquinas como criações do homem que devem
servi-lo, descrevem tudo isso em um nível de interpenetração, de igualdade
hierárquica, em que cada segmento desse real deve combinar-se com o outro,
procurando o crescimento harmônico de todos esses setores ao mesmo tempo. Por
outro lado, atribuem a esta conexão de potências uma natureza produtiva, que
não precisa fazer-nos acreditar que somos resultado de uma criação falida de
alguma entidade sobrenatural ou transcendente. E também não precisa fazer-nos
acreditar que somos um produto monstruoso de alguma natureza que funciona
exclusivamente guiada por leis mais ou menos fascistas. Este saber e este
afazer que estas duas figuras têm criado e promovido através de suas vidas
militantes e de suas produções teóricas, são feitos por um procedimento
epistemológico, digamos assim, que os autores assumem valente e quase
humoristicamente.
Eles
postulam o procedimento do "roubo", eles "roubam", eles
pegam de cada teoria, de cada práxis, aquela parte que lhes parece mais
inspirada, aquela engrenagem que eles poderão colocar no interior de sua
máquina teórica e militante, sem interessar-se por completo pelo rótulo geral
que possa ter essa disciplina da qual pinçaram e "roubaram" um
conceito.
Assim
como para eles não existe hierarquia entre o mundo natural, o mundo subjetivo e
o mundo maquínico e social, assim também não existem discursos consagrados,
textos adoráveis e discursos insignificantes.
Um
dos conceitos essenciais desta teoria, o conceito de "Corpo sem
Órgãos", foi tomado simultaneamente de um poema de um literato louco,
Antonin Artaud, de um mito dos Índios Dógons e de um mito das religiões
orientais que se chama "o Ovo Cósmico". Acontece que esta categoria,
"Corpo sem Órgãos", criada tomando elementos de um discurso
"psicótico", de um mito indígena e de um ideologema de uma religião
oriental, é um conceito que acaba dizendo uma coisa muitíssimo parecida com o
que diz a física quântica atual, com o que diz a teoria dos fractais, a teoria
das catástrofes de René Thom, o que tem de mais evoluído na físico-química
atual. Estas coincidem. Por outro lado, o discurso do texto de Deleuze e
Guattari é feito da mesma maneira utilizada pelos artistas primitivos para
fazerem seus quadros e obras de
arte cotidianas. Eles se
declaram bricoleurs, juntadores de idéias, sobretudo juntadores de
elementos cuja característica em comum é não ter nada em comum.
Isto,
à primeira vista, poderia fazer supor que encontraremos uma salada de palavras.
E não é uma salada de palavras o que se encontra nestes textos, mas um discurso
fulgurante, como eu dizia, revelador, crítico e, sobretudo, incrivelmente
inventivo. Então, esses ladrões bricoleurs fazem
depender essa criatividade justamente da sua irreverência. Porque, apesar de
fazerem citações com uma precisão assombrosa e com um cuidado bibliográfico
surpreendente, eles conseguem fazer com que aquilo que roubaram diga alguma
coisa nova, de tal forma que, se o autor que foi vítima do roubo chegasse a lê-lo,
não se reconheceria nele. Há uma passagem no livro de Deleuze que se chama
"Diálogos", onde o autor define seu método de criação teórica de uma
maneira metafórica ou alegórica, dizendo que se trata de aproximar-se
sigilosamente de um autor, pelas costas, e fazer-lhe um filho monstruoso, onde
ele não se reconheceria. Só que monstruoso, neste caso, não quer dizer
teratológico, não quer dizer ridículo, absurdo, disforme. Quer dizer
maravilhoso, quer dizer absolutamente impensável para o próprio autor deste
conceito.
Sem
poder ir mais além nesta introdução e supondo que haverá algum período
destinado ao diálogo entre este amável público e eu gostaria
de concluir referindo-me a uma das tantas relações que estes textos de Deleuze
e Guattari estabelecem, e que é interessante: a relação com a Psicanálise. Eu a
escolho quase que por um vício profissional, porque eu sou psicanalista, e a
escolho também por ter uma certa suspeita da presença de vários especialistas
na matéria, aqui, no público. Mas poderia falar também da relação crítica da
Esquizoanálise com o Materialismo Histórico. Ou poderia falar da relação
crítica da Esquizoanálise com a Lingüística estruturalista, com a Antropologia
estruturalista, ou com as concepções capitalistas da Economia. Mas vou escolher
provisoriamente a relação com a Psicanálise.
Os
textos de Deleuze e Guattari, a meu modo de ver, pelo menos para a minha
leitura, vêm tendo uma modificação no percurso do tempo, com relação à Psicanálise.
Quando, por exemplo, Guattari escreve "Psicanálise e
Transversalidade", é um analisado de Lacan, e assina embaixo da teoria do
significante, da concepção estrutural do psiquismo,
etc. Mas manifesta uma franca
preocupação política e social, que, como se sabe, estava ausente na obra de
Lacan e na da maioria de seus continuadores. Já quando Guattari escreve, junto
com Deleuze, "O Anti-Édipo", faz neste livro uma crítica radical
à Psicanálise, que se pode resumir da seguinte maneira: a Psicanálise seria a
ciência que dá conta de um modo de produção do sujeito psíquico. E este modo de
produção do sujeito psíquico é, sem dúvida, o modo de produção edipiano. É no
seio da estrutura edipiana, que todos os psicanalistas consideram única, eterna
e universal, que se gera "o sujeito psíquico". Toda outra forma é
considerada incompleta e aberrante. Deleuze e Guattari, no que dizem acerca do
sujeito psíquico, afirmam que não existe um modo de produção deste que seja
universal e eterno. Mas sim, que existe um modo historicamente dominante de
produção do sujeito psíquico que, obviamente, é o edipiano. E se pode dizer que
o modo edipiano de produção do psiquismo – vamos dizê-lo de uma maneira um
tanto vulgar – é a produção de homens narcisistas, egoístas, ciumentos,
invejosos, petulantes, facilmente decepcionáveis, majoritariamente
heterossexuais, enfim, o que constitui o psiquismo habitual do nosso modo de
ser, que é universal. Mas não é universal no sentido de que seja o único. Não é
universal no sentido de que sempre tenha sido assim, e não é universal no
sentido de que continuará sendo assim. Mas é universal no sentido de que é um
modo de produção do sujeito psíquico que teve sucesso em sua capacidade de
impor-se aos outros, e até na sua capacidade de produzir uma teoria que seja
própria para descrevê-l o tal como ele é: a Psicanálise. Mas também é universal
no sentido de que ele tem sido capaz de produzir elementos teóricos que lhe
permitem fazer sua autocrítica. E descobrir que não é eterno, descobrir que não
é o único possível, e descobrir que essa dominação que ele impõe sobre os
outros é um imperialismo, como existe o imperialismo político, o imperialismo
ideológico, o imperialismo econômico e até um imperialismo ecológico. Em
"O Anti-Edipo", então, o psicanalista é qualificado de algo assim
como um mecânico especialista na restauração, na reparação de um aparelhinho
eletrodoméstico que cumpre uma função pobre, mas muito difundida.
No
percurso das obras posteriores, esta severa crítica inclui, além do mais, uma
reformulação completa do que é o inconsciente (porque Deleuze e Guattari dizem
que o inconsciente da Psicanálise ou é um
teatro antigo, com Édipo, Jocasta, Laio e companhia, ou está
estruturado como uma
linguagem, e então parece um jogo de palavras cruzadas, dessas que saem nos
suplementos de jornal aos domingos), que nunca foi pensado como uma fábrica,
como um lugar de produção, pura e exclusivamente de produção, de uma produção
desejante, de uma produção que ao mesmo tempo que cria, goza. E que só é
abafada, só sofre, só entra em conflito com aquelas estruturas sócio-econômicopolíticas
e psíquicas que vivem da reprodução e não toleram a produção do novo.
Nota-se
também uma espécie de maior compatibilidade ou tolerância em relação à
Psicanálise em "Caosmose", de Guattari, e no livro "O que é a
Filosofia?" Nestas duas obras está colocado, com toda a clareza, que a
teoria, o método, a técnica e o campo clínico psicanalítico são uma espécie de
"valor do nosso mundo", da nossa cultura, e que o fato de que tenha
sido enfatizada nele toda uma ética de resignação, de castração, de falta, de
morte, não impede que, na prática cotidiana, os aspectos vitais, os aspectos
produtivos, os aspectos revolucionários que todo psicanalista tem, apesar de
ser psicanalista, se conectem, se articulem com aquilo que seu paciente tem de
vivo, de produtivo, de revolucionário e gerem curas que, uma vez analisadas com
a metapsicologia freudiana, são entendidas de uma maneira diferente daquela que
as fez acontecer. Mas isso não importa. O que importa é que é um espaço social
onde duas pessoas se encontram mais ou menos abrigadas, mais ou menos a salvo
das formas mais grosseiras de repressão do sistema. E onde, dependendo do poder
criativo de seus desejos, podem dar origem a um bom encontro, que deixe os dois
realizados em uma dimensão que nada tem a ver com os axiomas do procedimento.
Bom,
eu não posso estender-me muito mais, porque não quero cansá-los e porque
aguardo sempre, com expectativa, a participação do público. Mas queria concluir
dizendo que Guattari veio ao Brasil pela primeira vez, trazido por uma
instituição que eu fundei, junto com outros, o IBRAPSI – Instituto Brasileiro
de Psicanálise, Grupos e Instituições que no ano de 1978 fez um
congresso no Rio de Janeiro, no qual estiveram presentes, junto com Guattari,
as máximas figuras da psiquiatria alternativa do mundo. Esteve Basaglia, esteve
Castel, esteve Thomas Szasz, esteve Goffman, esteve Beker, enfim... E também,
os colegas desta orientação do Brasil e da América Latina. Posteriormente a
essa vinda de Guattari, eu tive ocasião de conviver e conversar com ele
em várias oportunidades,
quando o IBRAPSI o trouxe novamente e quando outras organizações o trouxeram.
Guattari tinha uma particular simpatia pelo Brasil e parece que o Brasil,
também, pelas idéias de Guattari. Penso que as idéias de Guattari nunca
encontraram um campo tão fértil como aqui no Brasil. Devo dizer que, nessa
convivência, eu tive umas tantas discordâncias com ele. Tivemos polêmicas
públicas, em alguns congressos, porque tínhamos algumas divergências no que se
refere à estratégia e à tática no processo de transformação do panorama da
saúde mental. Mas, transcorrido o tempo, eu tive a oportunidade de constatar
que minhas opiniões a respeito eram aparentemente mais realistas que as de
Guattari. Eu prognostiquei, em várias ocasiões, para Guattari, que as
transformações que ele propunha e que pareciam estar se realizando aqui no
Brasil, particularmente no campo da saúde mental, e que outros companheiros haviam
trazido com igual energia, por exemplo, Basaglia, não se iam realizar tão
rápida e facilmente como eles pensavam. Bom, isso já tem uns doze a treze anos.
E quando examinamos o panorama da saúde mental aqui, o que se vê ainda é uma
dominância da proposta psiquiátrica clássica, da administração excessiva de
psicodrogas, da terapia biológica com choques e insulina, um tratamento
carcerário feito ao doente mental. E vê-se que os movimentos deflagrados por
Guattari e por Basaglia, por Castel, Foucault e por nós mesmos não têm tido o
sucesso que se esperava. Aliás, eu faço questão de insistir em que, pode ser
que eu tenha tido razão quando adverti que a coisa não iria ser tão fácil,
porque junto com essa permanência da Psiquiatria clássica, também vemos a proliferação
de um tipo de Psicanálise que, justamente, Deleuze e Guattari criticaram de
maneira irrefutável. Mas devo confessar que não sinto nenhuma satisfação em ter
tido razão. Pelo contrário, devo a Guattari uma força, um entusiasmo, uma
vontade e um desejo, que realmente se despertaram em mim com a leitura de sua
obra e com meu conhecimento pessoal dele, e que todas as dificuldades passadas
não conseguiram apagar por completo. Nesse sentido estou muito grato a meu
amigo, e prometo, publicamente, e peço a quem se interesse por isto que me
acompanhe, porque não abandonaremos a luta. Pode-se fazer a crítica da
organização, pode-se fazer a crítica dos resultados, como disse Guattari, mas
não se pode fazer a crítica do desejo. E este desejo é o que Guattari fez viver
em muitos e que continuará vivendo. Muito obrigado.
Debate
Pergunta: Qual é a proposta da
Ecosofia?
Baremblitt:
A relação entre o gênero humano e esse campo denominado natureza é uma relação
que tem sido pensada e tem sido atuada, executada, quase sempre de forma
assimétrica e hierárquica. Quer dizer, supõe-se que o homem não é, ou pelo
menos não é exclusivamente um ser natural. E que ele deve relacionar-se com a
natureza submetendoa, colocando-a a seu serviço, e utilizando-a, segundo um
conhecimento ditado pela razão – por UMA razão, sobretudo a razão ocidental,
que seria sinônimo de verdade, sinônimo de eficiência e sinônimo de justiça.
Acontece que tem havido pensadores, tem havido povos, tem havido modos de analisar a vida que
não aceitam essas premissas. Que consideram que o homem é um ser natural e que
sua relação com a natureza não deve ser uma relação de domínio, deve ser uma
relação de acompanhamento, de harmonia, em que o homem não pode impor sua forma
à natureza com a suposição de que essa forma racional é sinônimo de verdade
indiscutível. Mas ele pode aprender da natureza, porque a natureza contém um
saber que não é racional, mas que é mais propício para a vida que a organização
que os homens se deram em nome da razão. Então, isso se pode dizer para
qualquer modo de produção, para qualquer organização social, mas se pode dizer
especialmente para o capitalismo. Porque o capitalismo é um modo de organização
das relações humanas que está baseado na exploração do homem pelo homem, na
dominação do homem pelo homem, na mistificação do homem pelo homem. E uma
concepção assim, se faz isso com o homem, como não iria fazer o mesmo com a
natureza? A conclusão é que esse sistema, que contém em sua estrutura, em sua
essência, a racionalidade, o saber científico, a consciência, tem conduzido o
mundo a uma situação como a atual, em que, dentro do gênero humano, a riqueza,
o peso da miséria, são distribuídos de forma cada vez pior. No mundo atual
temos cada vez mais miseráveis, cada vez mais analfabetos, cada vez mais
enfermos, cada vez mais deserdados. E temos levado a natureza a um ponto tal,
que até essa soberba da cientificidade e do produtivismo capitalista teve que
parar para examinar como as coisas estão, porque corremos o risco de perder o
lugar em que vivemos, sejamos pobres, ricos
ou como for. E por outro lado,
o mundo da máquina é um mundo que já tem sido acusado, em diversos graus, de
demoníaco, ou tem sido idealizado como a salvação do universo. Deleuze e
Guattari dizem que o mundo das máquinas é um mundo que tem muito para
ensinar-nos também. Mas que é um mundo que não pode ser isolado dos interesses
da humanidade em seu conjunto e não pode ser utilizado na exploração destrutiva
da natureza, que é imanente com a vida humana.
Então,
a Ecosofia de Guattari propõe um saber acerca do mundo da sociedade, do mundo
da natureza e do mundo da mente, incluindo no mundo da sociedade a vida
maquínica, o mundo das máquinas. É uma espécie de democracia nosológica: tudo
tem o mesmo nível de valor, tudo é forma de vida, tudo é produtivo e tudo pode
ser encaminhado no sentido de uma harmonia crescente. Mas esse trabalho de
conhecer e de transformar não pode ser feito em nome de nenhuma entidade que
seja considerada superior às outras, de nenhuma tirania, de nenhuma
transcendência. Esta é mais ou menos uma forma de resumir essa questão.
P.:
Eu queria saber o que você pensa a respeito da questão do caos. Guattari fala
muito sobre o caos que é inerente como forma de criar novas formas de
conhecimento.
B.:
Bom, nessa observação que fiz anteriormente, mostro que a obra de Deleuze e
Guattari tem um componente muito importante de Ontologia, ou seja, de Teoria do
Ser, de como as coisas são. Essa
Ontologia afirma que a essência última é produção desejante – os processos da mesma são aqueles segundo os quais o
mais substancial do existente funciona ao acaso. Ou seja, a realidade é constitutivamente desordenada, é
constitutivamente imprevisível, é constitutivamente caótica, coisa que já
diziam alguns filósofos, e coisa que hoje a microfísica e a macrofísica
certificam. O que a ciência tinha estudado e aquilo no qual a política
se baseia é o estudo da regularidade de pequenas ilhotas de ordem que se dão
tanto no campo da natureza, como no campo da vida social, e no campo do
psiquismo. Pequenas ilhotas em que o que predomina é uma repetição, uma
regularidade, que a ciência estuda e que formaliza em leis. Mas, a rigor, toda
a potência produtiva da realidade em qualquer âmbito de que se trate depende
mais dessa natureza caótica, dos encontros ao acaso, das pequenas partículas
(como diziam os estóicos, ou Demócrito), mais do que desse planejamento
racional e
exploratório que se faz
daquelas áreas de regularidade sujeitas a leis. O que Guattari propõe, tanto como tema de investigação,
de pesquisa, como forma de atuação ética, como forma de militância política, é a construção de dispositivos que tenham em conta essa
potência produtiva do caos, do acaso, e elaborem estratégias e técnicas
destinadas a produzir forrmações complexas no seio do acaso. Isto quer
dizer formações mais ou menos ordenadas, mas com uma ordem elástica, com uma
ordem fraca, que permita o efeito produtivo, que permita a emergência do caos
criador. Nesse sentido, politicamente, e este talvez seja o tema da discussão,
Deleuze e Guattari têm muito a ver com a tradição anarquista e com a tradição
autogestiva de todos os movimentos históricos dessa característica. Mas esta
afirmação é feita não apenas desde uma leitura política, mas também de uma
leitura das afirmações da física das nebulosas, ou da física do comportamento
das partículas atômicas, ou de certa característica das combinatórias
biológicas, pelas proteínas alostéricas, ou dos sistemas tipo
cadeia de Markoff ou da matemática de Riemann, enfim, de todos aqueles campos
do saber em que se tem descoberto isto mesmo: a natureza caótica do ser e a
importância de construir dispositivos que não sejam rigidamente ordenados, mas
sim que dêem possibilidade da emergência criativa do caos. Deleuze havia produzido o termo Caosmos, que é essa combinação de cosmos com
caos. Isto não quer dizer que seja a hegemonia de uma ordem constituída
e mantida rigidamente. Guattari
acrescenta CAOSMOSE. Eu suponho que não se refere tanto a esse universo
caótico e ao mesmo tempo cosmótico, mas sim ao procedimento pelo qual se pode
viver e produzir dentro dele. Existe a palavra osmose, então, eu imagino que é
uma metáfora tomada daí – caos
e cosmos articulados e propostos como procedimento.
P.:
Quando ele fala dessa ordem em um movimento de desordem – que é uma ordem que
não quer dizer normativização, o que se faz com a angústia que a gente sente
perante a perda da certeza e da segurança que é dada pelo Instituído?
B.:
Nas características que apresentam certas propostas da f'ilosofia socrática,
platônica; ou de certas correntes psicanalíticas atuais, que têm uma enorme
influência de Heidegger, de Kierkegaard, nós vemos que a angústia é atribuída a
uma característica essencial do sujeito psíquico. Quer dizer, das três teorias
freudianas da angústia, a que
predomina, nestas leituras, é
a de que a angústia é uma espécie de percepção da ação da pulsão de morte.
Entretanto, em Freud, encontramos uma primeira teoria da angústia que era
produto do recalque, do impedimento de que a libido se realizasse em encontros
criativos e prazerosos. Desde logo, nestas duas posturas, existe uma filosofia
por detrás. Então, se nós pensamos que a angústia é a percepção de uma força no
nosso interior, que é a pulsão de morte, e que é constitutiva da realidade no
mesmo nível, na mesma hierarquia que a de vida, logo, naturalmente, a angústia
adquire um estatuto, adquire uma respeitabilidade, a angústia é promovida como
necessária, como inevitável e como "atendível", no sentido de que uma
certa dose de angústia é um elemento indicador para levar-nos a um
comportamento adequado, apropriado. Na concepção de Deleuze e Guattari, a angústia é produto da
antiprodução, que o mundo do instituído e do organizado exerce sobre nossas
forças físicas, psíquicas e sociais. Em conseqüência, é um efeito
indesejável e contornável. Agora, não há receita contra a angústia. Mas, se
sabemos que essa angústia exprime um mal-estar perante a possibilidade da perda
e da destruição de coisas que não nos fazem bem, a receita contra a angústia é
o entusiasmo, e, como dizia Espinoza, as "paixões alegres". É a plena certeza de que o que está sendo
libidinalmente feito vai ser melhor, porque é novo. Não é que se desconheça,
nessa teoria, a existência da angústia, mas eu acho que se poderia resumir
dizendo que esta teoria se nega a fazer-lhe propaganda, porque considera que
"a propaganda é a alma do negócio".
P.:
O senhor trouxe para nós um Guattari de final de análise, e nesse ponto eu
acredito que a ética que ele traz é de um desejo decidido e não
vejo como essa ética de um desejo decidido de final de análise faça
contraposição ou entre em contradição com a ética da Psicanálise a partir de
Lacan. Porque me parece que a partir dé Lacan, esse termo, ciência do real, que
está descrito no L'étourd, em Lacan, essa proposição dele do real como algo que
é impossível, como algo que escapa, que é sempre novo – isso está em Lacan.
Acredito que Guattari traz esse final de análise, esse entusiasmo do final de
análise, de um sujeito que produz e que traz um desejo decidido por algo que é
totalmente novo. Então, por que essa contraposição com relação ao que o senhor
estava dizendo? Que a ética da Psicanálise seria uma ética da resignação, da
falta, da morte... Será que ainda não seria uma leitura de Freud, ainda,
talvez, com
pressupostos anteriores aos
que Lacan trouxe para nós depois desse retomo a Freud? Onde justamente ele
resgata, no texto freudiano, essa radical idade do novo na estrutura? Eu
gostaria que o senhor falasse, porque me parece que Guattari é fruto de uma
análise, ele traz esse entusiasmo próprio de alguém que pôde chegar ao seu
final de análise e trabalhar e viver e produzir... Gostaria que o senhor
falasse um pouquinho sobre isto.
B.:
Eu acho uma observação interessante e não muito fácil de responder. Porque, por
exemplo, Reich também é fruto de uma análise e, sem dúvida, ele produziu uma
teoria do psiquismo, uma teoria das pulsões, uma proposta de articulação entre
a técnica psicanalítica e a militância política, que é radicalmente diferente de
todo "retomo a Freud", e particularmente do kleiniano e do lacaniano.
Tausk, por exemplo, também foi analisado, e ficou psicótico e se suicidou. Otto
Rank,também. Jung, que também foi bem analisado, foi qualificado, por Freud, de
profeta, ironicamente, porque teria abandonado a Psicanálise. Toda a
Psicanálise anglo-saxônica, e particularmente a norte-americana, é qualificada
por Lacan, depreciativamente, de human engineering, para significar que
é uma análise que só serve para a "adaptação", e que o único retomo
verdadeiro a Freud é o de Lacan. Então, esse problema de atribuir os méritos
produtivos de Guattari ao fim de uma boa análise, pelo menos, é discutível.
P.:
Estou me referindo à ética que o senhor traz de Guattari, de um desejo novo.
Ela me faz lembrar os conceitos, inclusive, de algo que se produz em um final
de análise – é um desejo desse tipo, que é fundamentalmente novo. Então, eu não
vejo aí nenhuma contradição.
B.:
Eu sei, mas esse é o ponto seguinte. O primeiro ponto é se Guattari foi o que
foi como resultado de uma análise. Eu não afirmo o contrário, mas, pelo menos,
eu deixaria em aberto. Agora vou passar aos pressupostos. Em princípio,
digamos, deixemos entre parênteses o resultado de um procedimento. Porque, por
exemplo, Deleuze, que provavelmente é responsável por cinqüenta por cento desta
obra, jamais se analisou. Isso, deixamos entre parênteses. Mas, com respeito
aos pressupostos, isso é mais complexo de explicar. Fazendo um resumo injusto,
eu acho que se pode fazer passar a questão por isto que você mencionou. Por
exemplo, na teoria dos três registros, para Lacan, o Real é impossível. Esse
real impossível é o que exige uma produção
imaginária, que, por sua vez,
subordinada ao simbólico, vai ser o pré-requisito de toda a produção do
novo. Justamente, a famosa ética do analista consiste em colocar-se em um lugar
de suporte da transferência e da não resposta à demanda, para que o mecanismo
imaginário dispare, e para poder pontuá-lo impondo o simbólico. Para Deleuze e
Guattari, no real "tudo" é possível, porque o sujeito é parte
do real. Não existe essa diferença entre o mundo da subjetividade, que é o
mundo de negatividades, na linguagem pensada, por exemplo, como "a morte
da coisa", não existe o pré-requisito da castração, não existe a submissão
à lei, não existe a identificação com a metáfora paterna; o que existe é o
funcionamento do psíquico que tem a mesma essência do real. Então, a proposta
não é a de uma repetição diferencial, como em Lacan, mas a proposta é a de uma
pura diferença, de uma multiplicação diferencial incoercível. Não se precisa de
um procedimento que nos convença de que o real é impossível, e que, por esse
motivo, nós poderemos "primeiro" imaginá-lo, "depois"
simbolizá-lo. Isso implica uma teoria da linguagem, isso implica uma teoria do
Real, em geral, e isso se adere a toda uma linha filosófica que é a que
enfatiza o Ser como falta, ou a falta constitutiva do Ser. Para Guattari e
Deleuze, isso não existe, a não ser no molar. Para estes autores nada é mais
absurdo do que afirmar que houve um retomo "verdadeiro" a Freud. A
Freud, houve milhares de retornos. E o que há é um retomo de moda, ultimamente.
Mas, utilizando Freud como matéria-prima teórica, pode-se fundamentar a
proposta de um desejo como produção e não de um desejo como insistência em
reeditar um objeto perdido e jamais tido. Ou seja, o fundamental aí é o
estatuto do nada, da ausência, da falta, e a ética não é a ética heideggeriana,
não é a ética do ser para o nada, mas é a ética de Nietzsche, é a ética de um ser
para a luta, de um ser para a vida, que lhe vai permitir uma superação da
dificuldade, não a de um ser para a resignação.
P.:
No final do seminário onze, Lacan fala, quando trata dos quatro conceitos
fundamentais, desse desejo como uma diferença pura. Desse desejo como pura
diferença – no final, ele define desejo nesse sentido. Estou insistindo nisso,
porque Lacan, nesse seminário, lá pelos anos setenta, faz uma retificação
nestes conceitos de Real, Simbólico e Imaginário, e ele dá uma prevalência ao
conceito de Real, dizendo que, quando afirmou que o "inconsciente era
estruturado como uma
linguagem", ele não havia
dito que o inconsciente era uma linguagem. Ele disse apenas que o inconsciente
era estruturado COMO uma linguagem. E daí ele vai extrair toda uma ciência do
Real, vai estabelecer uma lógica, que vai desestimular os falsos maternas, e
vai trazer toda uma concepção do real. A rigor, a estrutura vai ser Real.
Então, ele vai fazer um corte aí nessa primeira leitura dele, anterior, e vai
privilegiar o registro do real.
B.:
Mas acontece que esse é um Lacan para o qual o Real é estrutura. Para Deleuze e
Guattari, a estrutura é uma dessas "ilhotas de ordem", de
regularidade, das quais a ciência produz as leis. Mas a essência do Real, o que
é verdadeiramente produti vo, não são as estruturas, são os fluxos, são o
reverso da estrutura. Então, falam de dois reais totalmente diferentes,
distintos. O problema é que, quando Lacan formula as estruturas, em realidade,
ele é , digamos assim, mais platônico que nunca. Porque você se lembra da
famosa farmácia de Platão, a famosa tentativa de ordenar o mundo todo em
espécie, gênero, etc., ou seja, o método da divisão. A proposta lacaniana é uma
forma matêmica, de fazer a mesma coisa. Então, o que Deleuze e Guattari dizem é
que, quando um sujeito é produzido, quando é produzida uma subjetivação, ela é
produzida como componente de um acontecimento. E não existe uma forma
estrutural que dê conta desse sujeito. Porque esse sujeito não é uma variação
de uma forma, pelo contrário, é uma forma radicalmente nova. Então, não tem
comparação possível. São dois reais diferentes.
P.:
Como Guattari poderia se entusiasmar com a situação ética do Brasil noventa e
dois?
B.:
Bom, eu não sei como poderia não se entusiasmar, eu apenas sei como foi que me
entusiasmou a mim. Guattari disse, textualmente, uma vez, que considerava o
Brasil como um imenso laboratório social, de onde podiam surgir os mais
incríveis inventos. É claro que a gente sabe que é um laboratório onde alguns
ou muitos dos experimentos acabam em resultados socialmente trágicos. Mas ao
mesmo tempo eu acho que talvez se trate simplesmente de comparar, por exemplo,
o Brasil com a Comunidade Européia, ou com os Estados Unidos na atualidade. Eu
acho que (bom, é uma .opinião pessoal) mas eu acho que, nesse momento, as
possibilidades de uma desordem produtiva no Japão, ou no Mercado Comum Europeu,
ou nos Estados Unidos, são, no mínimo, menos prováveis que na América Latina.
Eu viajo
freqüentemente para a Europa e
vejo que, neste momento, a luta política convencional na Europa, na Espanha,
suponhamos, que tem Partido Anarquista, Partido Comunista, Partido
Social-Democrata, Partido Democrático Cristão – a luta política convencional – consiste
em que, nessas eleições, os anarquistas perdem um vereador e os democratas
cristãos ganham um. E na próxima vez acontece o contrário, e mais ou menos
nisso consiste o movimento político, digamos, clássico, visível. Bom, até desde
este ponto de vista, um país como o Brasil, que sofreu uma ditadura de mais de
vinte anos e que, em pouquíssimo tempo, consegue, digamos assim, uma eleição
direta, tem a desgraça de perder o presidente que escolheu, inicia um novo
processo eleitoral e escolhe errado, mas escolhe errado por cinco milhões de
votos, sobre um parque eleitoral de setenta milhões; que consegue, de uma forma
ou outra, visualizar seu eno e, através de seus representantes, duvidosos ou
não, afastar seu presidente do cargo – além disso, ainda existe um partido
político que não tem similar em nenhum outro lugar na América Latina... eu acho
que é um país interessante. Eu não digo que seja para ser otimista, mas pelo
menos entusiasta se pode ser.
P.:
Eu gostaria que o senhor colocasse um pouco a questão do paradigma estético.
Gostaria que o senhor falasse um pouco sobre os significados desse paradigma
estético.
B.:
Acho que esta será nossa última troca. Eu acho que essa questão do paradigma
estético está prefigurada em toda a obra de Deleuze e Guattari, na medida em
que eles consideram que o discurso, por exemplo, musical, e nesse sentido
seguem Nietzsche claramente, que diz que as verdades, ou o novo, o
transformador, isso vem de qualquer tipo de produção. E particularmente da
produção artística. Em diversas passagens da obra eles fazem questão de tomar
contribuições literárias, musicais, pictóricas, estéticas, como lógicas que
inteligibilizam o processo do real e propiciam as mudanças com muito maior
antecipação do que outros paradigmas. Então, como críticos que são do paradigma
científico, que é característico da modernidade, essa proposta de adotar um
paradigma estético tem a ver com essa potência que eles atribuem à produção
artística.
P.: Como antecipadora?
B.: Como antecipadora e como
preservadora da criação, da vida, da harmonia. E também como receptora da
desordem criativa, como se
vê, por exemplo, na música
moderna, na música abstrata... enfim, a arte sempre está além de qualquer
descobrimento praticado com outra metodologia em outro campo. Provavelmente o
único campo a que eles atribuem a mesma capacidade de gerar esse famoso
pensamento do fora, como dizia Foucault, é a loucura.
Bom,
agradeço muitíssimo a atenção de vocês e espero que, em alguma outra ocasião
menos triste, nos encontremos outra vez. Muito obrigado.
Livros de autoria de Felix
Guattari:
·
Psicanálise
e Transversalidade
·
Revolução Molecular: Pulsações Políticas do Desejo
·
Inconsciente
Maquínico
·
Cartographies
Schizoanalitiques
·
As
Três Ecologias
·
Caosmose. Um Novo Paradigma Estético
Em colaboração com Gilles Deleuze:
·
Anti-Édipo.
Capitalismo e Esquizofrenia
·
Poli
tique et Psychanalyse
·
Kafka.
Por uma Literatura Menor
·
Mil
Platôs
·
O que é a Filosofia?
Em colaboração com Suely
Rolnik:
·
Micropolítica – Cartografias do Desejo
Em colaboração com Antonio
Negri:
·
Novos Espaços de Liberdade
Outros:
·
Felix Guattari entrevista Lula
A Última Viagem do Capitão Guattari*
Nos
últimos dias de agosto, faleceu durante o expediente de trabalho no Hospital La Borde, em Paris, o militante
político, psicanalista e intelectual francês, Felix Guattari.
A
notícia deixou terrivelmente penalizados todos aqueles que de uma ou de outra
maneira foram seus amigos, companheiros de percurso e beneficiários de suas
extraordinárias idéias e iniciativas.
A
cultura mundial perdeu um dos mais originais e produtivos expoentes nos últimos
quarenta anos.
Ainda
é prematuro avaliar a estatura de Guattari, da qual é difícil falar sem associá-la
à de seu inseparável companheiro, o
filósofo Gilles Deleuze (co-autor de boa parte de sua obra), apesar da projeção
quase planetária que lhe atribuímos.
Guattari
morreu aos 62 anos de idade, de forma súbita e no pleno uso de uma formidável
vitalidade física, bem como de uma inteligência tão vigorosa quanto esplêndida.
Outro
importante pensador recentemente desaparecido, Michel Foucault, disse em certa
ocasião, referindo-se à obra de Gilles Deleuze, uma frase que se tomou célebre:
– "O século será deleuziano". Por extensão, e guardada a devida
distância que separa Foucault deste que escreve estas linhas, permito-me
afirmar que todas as práxis libertárias das próximas décadas serão, assim
denominadas ou não, guattarianas.
Não
é exagerado afirmar que a "singularidade" Guattari é de um tal porte
que, seguramente, o toma membro relevante de uma família (ou melhor dizendo, de
uma filiação intensiva) que inclui entre seus membros, arbitrariamente
mencionados, Sartre, Fanon, Basaglia e outros. Esses "outros" são, ao
mesmo tempo, poucos escolhidos... e infinitamente numerosos, de cuja vida e
morte nada se saberá publicamente, Guattarianos de fato.
É literalmente impossível listar aqui os textos escritos por Guattari, bem
como os que publicou com Gilles Deleuze, Tony Neri e outras relevantes figuras
intelectuais (algumas delas brasileiras), porém,
*
Artigo publicado no Jornal do Movimento lnstituinte de Belo Horizonte, 1993.
cabe ressaltar que toda sua
obra contém certas características, que é imperioso pontuar.
Em
primeiro lugar, todos e cada um desses escritos estão ligados a movimentos e
ações concretas de transformação do mundo, no sentido do combate a qualquer
forma de exploração, dominação e desinformação ou mistificação do homem pelo
homem.
Em
segundo lugar, nunca se reduzem a um gênero que possa ser enquadrado em uma
especificidade acadêmica ou profissional consagrada e que permita qualificá-las
de científicos, literários, ideológicos... ainda que contenham elementos do que
de melhor há em cada um destes campos do saber.
Em
terceiro plano, nada do que Guattari escreveu ou instituiu e desenvolveu é
repetição, continuação, ampliação ou comentário do discurso ou da escola de
algum mandarim teórico da moda, por mais ilustre e exitoso que este seja
considerado. Invariavelmente, as idéias do extinto amigo são autênticas
invenções, em que o essencial é a novidade radical, surpreendente, isólita,
audaz, produto de uma erudição e de um rigor assombrosos, porém empregados com
força, leveza e entusiasmo plenos de inspiração e refratários a qualquer
pretensão de sistematicidade doutrinária destinada a formar igrejas, partidos,
corporações ou sociedades multinacionais de epígonos, adeptos ou iniciados.
Por
último, convém admirar-se de que a profunda modéstia, assim como o humor que
percorrem seus textos (o que o levou a qualificá-los de "proposições
descartáveis") não impedem que os mesmos se postulem espinozianamente como
proposições de vida ou para a vida, e se coloquem, incondicionalmente, a
serviço de todo aquele que deles queira se apropriar, sem qualquer ritual de
iniciação para adquiri-las e sem dívida nenhuma a pagar pela "paternidade"
dos conceitos. Seu único motivo é o incremento da Produção e do Desejo em todos
os domínios da realidade e para todos "os homens de boa vontade",
que, como dizia Nietzsche, somente pode ser a Vontade de Potência.
O
capitão Guattari empreendeu sua última aventura de exploração de mundos
desconhecidos. Os que viajaram com ele em várias de suas expedições não tiveram
a .sorte de receber as cartas de navegação deste último itinerário.
Mas
as fascinantes cartografias que produziu até agora estão à disposição das novas
gerações que anseiam por planejar trajetórias intrépidas para metamorfosear o
sinistro universo que o Capitalismo Planetário Integrado lhes tem destinado.
Os
amantes do Poder, do Lucro e do Prestígio, os politiqueiros engomados, os
"homens cinzentos" (segundo o terrível diagnóstico de D.H. Lawrence,
um dos favoritos de Felix) ficam dispensados da leitura das memórias do Capitão
Guattari.
Porém
nunca dormirão tranqüilos... a Revolução Molecular está em marcha.
In Memoriam de Gilles Deleuze*
Filósofo Nômade
Senhoras e Senhores,
Desejo
começar essa conversação agradecendo ao Movimento Instituinte de Belo Horizonte
e às entidades que colaboraram na organização desse evento, por haverem-me dado
a honra de dissertar acerca da obra e da figura de Gilles Deleuze. Igualmente
sou grato ao auditório por sua presença.
Essa
homenagem deveria ser muito mais ampliada e reiterada no mundo inteiro, e não
sabemos se haverá de sê-lo. Por isso nossa contribuição nesse sentido nos
parece tão discreta quanto necessária e insuficiente.
Como
uma aclaração, antes de entrar no tema, creio obrigatório pontuar o seguinte:
supõe-se que, para falar acerca de um autor dessa envergadura, e em
circunstâncias tão solenes como a presente, é preciso conhecê-lo integralmente.
Por
razões que, segundo espero, ficarão explícitas no curso dessa conferência, devo
reconhecer que não tenho esse privilégio. Meu domínio desse monumento do saber
é limitado, e questiona meu direito a ocupar hoje este lugar de expositor. Não
obstante, tenho o consolo de crer que, se bem existem muitos que têm estudado
Deleuze mais e melhor que eu, ninguém pode estar seguro de ser capaz de um trânsito exaustivo por esse pensamento,
que, por sua própria natureza, é inesgotável.
Resulta
tão pouco original quanto inevitável começar esse breve percurso com a famosa
sentença pronunciada pelo talento de Michel Foucault. É sabido que esse
formidável intelectual disse: "O SÉCULO SERÁ DELEUZIANO".
Os
comentários acerca dessa frase, que encantou somente uns poucos e escandalizou
muitos, poderiam ocupar toda essa conferência.
Que pretendia dizer Foucault
com tal afirmação?
* Palestra organizada pelo
Movimento Instituinte de Belo Horizonte em dezembro de 1995
O
mesmo Deleuze, consultado sobre o assunto, e com a modéstia que sempre lhe foi
própria, lhe atribuiu um sentido ao mesmo tempo carinhoso e humorístico.
Sem
descartar esses significados, tratarei de reduzi-los a dois, formulados, por
minha vez, como interrogações:
Trata-se
de prognosticar que a cultura dos anos que virão chegará a reconhecer a obra de
Deleuze como a máxima expressão do século XX? Ou, talvez, trata-se de manifestar a esperança de que o
período que falta para completar este século, ou, quem sabe, todo o curso do
século XXI, será, em sua realidade, expressão concreta das idéias de Deleuze?
Permito-me
sustentar que a primeira interpretação é altamente provável, e a isso me
referirei a seguir, dentro das limitações dessa dissertação. Creio sinceramente
que a obra de Deleuze é, senão a única, uma das mais perfeitas do nosso tempo.
E
quanto à segunda compreensão, temo que não tenhamos a menor segurança sobre o
assunto. Assim como nosso século vai mal, e como o próximo nos antecipa, não
apenas não podemos dizer que será deleuziano, senão que nem sequer sabemos se
será, de maneira alguma. O certo é que tentar sintetizar, em uma breve
exposição, a obra e a figura desse pensador, que, segundo Foucault, dará seu
nome à história de nossa época, é uma
tarefa árdua.
Devemos,
inclusive, registrar outra peculiaridade que contribui para essas dificuldades:
é a extraordinária co-autoria de Deleuze e Felix Guattari, seu dileto amigo,
também recentemente falecido.
Se
bem a publicação a dois não seja uma novidade absoluta (basta recordar os
textos de Marx e Engels ou de Freud e Bullit), a colaboração entre Deleuze e
Guattari provavelmente é a única em seu gênero, dado que a mesma é a prova
coerente de toda uma teoria assumida não-autoral da escrita.
Ainda
que possa resultar um pouco pesado, devido à fabulosa e prolífica obra desse
autor, é nosso dever começar por uma mínima biografia e por uma sucinta
enumeração da bibliografia deleuziana.
Deleuze
nasceu em Paris em 18 de janeiro de 1925. Graduou-se em Filosofia em 1948, tendo
sido aluno de Ferdinand Alquie e Georges Canguilhelm. Ensinou Filosofia em um
liceu e freqüentou as aulas e conferências de Jacques Lacan, Pierre Klossowsky,
Michel Butor e Jean
Paulhan. Em 1957 obteve o
título de professor assistente na Sorbonne; em 1960, o de agregado de pesquisas
no CNRS (Conselho Nacional de Pesquisas Sociais).
A
partir de 1964 deu aulas por vários anos na Universidade de Lyon, e de 1969 a
1987 foi professor na Universidade de Vincennes em Paris VIII. Em 1987 se
aposentou.
Segundo
Deleuze, dois encontros foram fundamentais em sua vida intelectual. O primeiro
com Michel Foucault, em 1962, e o segundo com Felix Guattari, em 1969.
Sintetizando
humoristicamente suas tiradas, Deleuze disse algo que talvez se possa traduzir
assim: "Viajando por aí, jamais aderi ao Partido Comunista, jamais fui
fenomenólogo ou heideggeriano, nunca renunciei a Marx, nem jamais repudiei Maio
de 68". (Le Magazine Littéraire, Setembro de 1988).
Essa
oração despretensiosa resume algumas das singularidades do Mestre, às quais,
tomando a liberdade de falar em primeira pessoa, eu poderia, figuradamente,
acrescentar:
"Nunca
me preocupei em estar na moda, nem a dos círculos políticos, nem a dos
acadêmicos. Nunca venerei filosoficamente a Parmênides, nem a Sócrates, nem a
Platão, nem a Aristóteles, nem aos neo-platônicos, nem a Descartes, nem a Kant,
nem a Hegel, nem aos positivistas... assim como nunca fui propriamente
existencialista, nem estruturalista, nem materialista dialético. O mesmo me
aconteceu científica e artisticamente com Euclides, Newton, Freud, Saussure,
Weber, Wittgenstein, Lacan, Lévi-Strauss ou Toynbee... ainda que me empenhe a
conhecê-los tanto como a Sófocles, Leonardo ou Shakespeare.
Meus
personagens filosóficos favoritos têm sido, sem dúvida, ou bem estranhos, ou
pouco exitosos, ou pouco freqüentados, ou quase francamente marginais.
Heráclito, Demócrito, Arquimedes, os sofistas, os estóicos, os epicuristas, os
hedonistas, tanto quanto Duns Escotto, Espinoza, Leibniz, Hume, Nietzsche e
Bergson, assim como Pierce, Hejmlev, Clastres, Riemann, Chatelet, ou bem Reich,
Kafka, Artaud, Carroll, Beckett, Proust, Miller, Canetti, Bacon, Kleist,
Duchamps... e tantos outros".
Essa
larga e incompleta enumeração tenta apenas ilustrar, em primeiro termo, a fabulosa
erudição e versatilidade de Deleuze e, em
segundo lugar, dois tipos de
relação heurística com as obras e com seus criadores.
Ao
primeiro grupo citado, aplica-se a proposta que Deleuze enunciava como seu
projeto juvenil: "Acercar-me sigilosamente a um autor pelas costas e
fazer-lhe um filho monstruoso, em que não se possa reconhecer". Mas com a
ressalva de que "para fazer isso com o dito por esse autor, teria de estar
absolutamente seguro de que o havia efetivamente dito". Aqui, "monstruoso"
deve entender-se de acordo com o que Deleuze aprendeu de seu mestre Canguilhem...
ou seja, como o anômalo, aquilo que está nos limites, ou até mais além de sua
própria espécie. Por outra parte, esse afã de certeza é o que explica a
insuportável precisão das citações nos escritos deleuzianos.
Ao
segundo grupo mencionado, corresponde uma apropriação menos crítica, muito mais
empática, mas tampouco integralmente fiel, nem literal, típica dos comentários
e teses acadêmicas que Deleuze detestava.
Essa
capacidade de Deleuze, compartilhada por seu amigo Guattari, de conhecer e
circular pela Filosofia, pelas Ciências, pelas Artes, pela Política e até pelo
saber popular, é plenamente demonstrada pela lista de seus quase trinta livros
editados, cuja extensão prodigiosa pode resultar, nesse contexto, tão
esmagadora como indispensável:
·
Instinto
e Instituição
·
Empirismo
e Subjetividade
·
Nietzsche
e a Filosofia
·
A
Filosofia de Kant
·
Proust
e os Signos
·
NÜ::tzsche
·
O
Bergsonismo
·
Apresentação
de Sacher-Masoch
·
Espinoza e o Problema da Expressão
·
A
Lógica do Sentido _
·
Diferença
e Repetição
·
Espinoza,
Filosofia Prática
·
Espinoza
e os Signos
·
Francis Bacon: Lógica da Sensação
·
Cinema I – A Imagem-Movimento
·
CinemaII
– A Imagem-Tempo
·
Foucault
·
Péricles e Verdi. A Filosofia de François Chatelet
·
A Dobra – Leibniz e o Barroco
·
Conversações
·
Crítica
e Clínica
Em colaboração com Felix
Guattari escreveu:
·
O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia
·
Kafka. Por uma Literatura Menor
·
Mil Platôs
·
O que é a Filosofia?
·
Politique et Psychanalyse
Em colaboração com Carmelo Bene:
·
Superposições
Em colaboração com Claire
Parnet:
·
Diálogos
Obs: esclarecemos que esta
lista não está ordenada cronologicamente
A
esta lista devem se somar vários artigos, prólogos e epílogos de outros textos.
Desde logo a literatura acerca da obra de Deleuze já soma outras tantas
publicações. Segundo uma classificação leve e algo ingênua, os livros de
Deleuze podem ser divididos em três grupos.
O
primeiro consiste em Teses e Monografias Filosóficas, de formato aparentemente
acadêmico, mas que constituem verdadeiros Cavalos de Tróia.
O
segundo se compõe de grandes exposições de enorme abrangência. Mais adiante me
referirei a elas, arriscando para as mesmas uma categorização pessoal.
Momentaneamente peço que se aceite para esses escritos o qualificativo de
"Concepções de Mundo", que, por razões que veremos, é incorreta.
O
terceiro conjunto de escritos se refere aparente e prevalentemente às Ciências
e às Artes.
Mas
há pelo menos duas razões pelas quais essa classificação panorâmica é
inadequada e insuficiente.
Por
um lado, porque a obra de Deleuze e Guattari é um Rizoma, ou seja, um sistema
anti-sistema, uma espécie de rede móvel de canais, fluxos, remoinhos e
turbulências, de limites internos e externos difusos, do qual se pode entrar e
do qual se pode sair em qualquer ponto, que se pode percorrer em infinitas
direções e que é reinventado a cada viagem e por cada um que o percorre. Apenas
apresenta uma alternância de mesetas de intensidade homogênea em que se pode transitar
passando de uma a outra por saltos, às vezes perceptíveis, às vezes
desapercebidos.
Por
outro lado, não se pode considerar cada livro como uma unidade isolada, porque,
segundo a própria teoria do pensamento, da escritura, da leitura e da realidade
última a que um livro se acopla, é impossível dissociar a produção
bibliográfica do que a realidade faz fluir nela, nem do que ela faz fluir na
realidade na qual se insere. Para esses autores, um livro é uma máquina
engendrada por máquinas heterogêneas, heteromorfas e heterólogas a ele mesmo,
sendo que seu sentido depende de como atravessa a outras (literárias ou não),
ou seja, de como estão funcionando dentro dele, e ele dentro daquelas.
Assim
sendo, como seria viável separar radicalmente um tema bibliográfico de outro, e
dos Mundos com que se conectam, se todos são imanentes entre si?
Finalmente,
não cabem separações, porque Deleuze e Guattari dizem que todo texto ou
discurso é pura performance, quer dizer, pura pragmática, que importa apenas
por como afeta e como é afetado. Para ilustrar, por exemplo, as relações entre
os conceitos filosóficos, as funções científicas, as variações artísticas,
apelam à teoria da Música. Cada um dos recursos desses saberes e trabalhos
ressoam entre si, nos espaços da Realidade. Essa ressonância pode ser ouvida em
dimensões tais como a Harmonia, a Desarmonia, a Consonância, a Dissonância, a
Fuga, o Contraponto, o Ritmo, etc... mas nunca desde uma taxonomia dos textos
ou discursos estanques. Inútil confundir essa concepção com alguma que postule
deslizamentos de cadeias de significantes, elos ordenados como anéis, que por
sua vez são elos de anéis maiores, etc. A escrita de Deleuze e Guattari, densa
e difícil, é composta de fluxos, pode
incluir paradoxos e aporias, mas não metáforas ou metonímias, e menos ainda
adivinhações, hermetismos ou mistérios.
Talvez
este seja o único ponto dessa exposição no qual m aventurarei a dar uma opinião
pessoal, tão arriscada como segurament pouco compartilhada.
Tudo leva a supor que Gilles
Deleuze foi um filósofo, professor de Filosofia e escritor de livros de
Filosofia.
O
título mesmo dessa conferência qualifica Deleuze de "filósofo
nômade", aludindo a sua forma errante de viajar por todos os saberes, por
itinerários absolutamente insólitos e sem compromisso algum com Escolas ou
Doutrinas.
Um
de seus últimos livros, escrito junto com Guattari, leva por título "Que é
a Filosofia?" – e, em suas páginas, a Filosofia é definida com uma
precisão e beleza incomparáveis, como a prática de invenção de Conceitos.
Não
obstante, em várias passagens de outras obras, Deleuz havia exposto, com toda
clareza, uma crítica às perguntas com as quais se costuma propor as questões
que se deseja resolver. Nesses parágrafos rechaçava que a fórmula – "que
é?" – fosse um bom enunciado para formular um problema.
Não
é nada fácil explicar o porquê dessa impugnação, mas, simplificando uma vez
mais, quando se pergunta "que é?" se interroga acerca do Ser de um
Ente, ou seja, por sua Identidade ou sua Mesmidade – e não por seu Devir, por
seu funcionamento, por sua Diferença em Ato.
De
um outro ângulo, quando Deleuze se refere ao pensamento, sustenta que pensar
exige a incessante criação, não apenas de novos conteúdos, nem sequer de novas
maneiras do mesmo Pensamento. Deleuze dá a entender que pensar implica, nem
mais nem menos, que criar novos pensares,
ou seja, responder àquilo que "dá a pensar", o que "faz
pensar", com uma multiplicidade de Pensares singulares diferentes,
originais, inéditos.
É
por isso que me atrevo a postular que Deleuze, em seu nomadismo, ou bem acabou
não sendo mais um filósofo, ou bem foi um criador de Pensares que, entre outras
coisas, redefiniu a Filosofia, ou bem foi o Demiurgo e o agente de um novo
pensar e um novo fazer que ele e Guattari inventaram...
e que se chamou esquizoanálise ou pragmática
universal. Esses dois termos estão definidos respectivamente, no primeiro e
no segundo tomo de seu livro "Capitalismo e Esquizofrenia". O que
estou afirmando é que Deleuze e
Guattari engendraram algo que
é Filosofia mas, que também é
Ciência e também é Arte... e
Política... e Saber Espontâneo... e muito mais que tudo isso preexistente.
Por
que, então, chamá-los por nomes de "partida" e não pelos de
"chegada"?
A
rigor, não é nenhuma novidade que os cientistas de uma especialidade tenham
incursionado por pensamentos filosóficos, restritos ou não, às áreas de suas
disciplinas. Basta mencionar, rapidamente, os casos de Pitágoras, Euclides,
Averroes, Cassirer, Jaspers, Russel, Poincaré, Monod e outros tantos.
Tampouco
é insólito que grandes literatos tenham sido filósofos (ou o inverso), como são
os exemplos paradigmáticos de Kierkgaard, Novalis ou Goethe.
Igual
coisa ocorreu com grandes estadistas e políticos como Demóstenes, Maquiavel,
Hobbes, etc.
Mas
meus conhecimentos de história da Filosofia, das ciências e das práticas
sociais em geral (bastante pobres), não me permitem evocar um caso igual ao de
Deleuze e Guattari.
Talvez
o mais parecido a isso, que me ocorre, é a figura e a obra de Foucault, não por
casualidade amigo proeminente de Deleuze, de quem se tomou difícil dizer se era
filósofo, historiador, sociólogo, arquivista ou genealogista.
Agora,
bem: por razões pedagógicas, o paradoxal é que, se me proponho introduzir o que
alcanço entender como as principais contribuições da Esquizoanálise, não
consigo fazê-lo de outra maneira que abordá-las segundo as clássicas
ramificações com as quais se costuma dividir a Filosofia.
Refiro-me
à Ontologia (Teoria do Ser), à Gnoseologia (Teoria do Conhecer) e à Axiologia
(Teoria dos Valores).
Mas
como resumir os aportes dos principais trinta livros de Deleuze de uma maneira
suportável para o público em geral?
Apesar
de a palavra "impossível" ser uma das mais detestadas por Deleuze e
Guattari, este simples comentarista que lhes fala se sente a ponto de declarar
esta tarefa como irrealizável.
Peço
antecipadamente desculpas pelas insuficiências, incorreções e obscuridades do
que se segue. De todo modo, quem não tenta, nada consegue.
Na
Ontologia, creio que se pode dizer que o Pensar de Deleuze é a culminação de
duas célebres contraposições que percorrem a história da Filosofia Ocidental.
A
primeira é a que opõe o Ser como estático, eterno, invariável, imóvel e
idêntico, do qual só se pode predicar que É (cujo paradigma seria Parmênides),
contra o Ser como dinâmico, variante, móvel e em permanente transformação (cujo
paradigma seria Heráclito, que sustentava que o Ser Devém).
"Que
é, e como o Ser Devém?" – que até a declaração da Morte de tais perguntas
ou do Fim da Metafísica... terá suas diversas formulações na Filosofia Antiga,
na Patrística, na Escolástica, no Romantismo e na Filosofia Moderna e
Contemporânea.
O que do ser passa por todos os avatares do Espiritualismo, do Idealismo
Objetivo e Subjetivo, assim como por todos os Realismos, Substancialismos,
Materialismos, Agnosticismos, etc.
O como transcorre pelos inumeráveis
avatares da Linearidade, da Circularidade e da Dialética.
Mas
aí é onde entra a segunda oposição, que antagoniza os que afirmam que o Ser
(seja qual seja sua natureza) é diverso do Pensar (digamos, a Metafísica da
Substância e da Essência) contra os que, principalmente desde Descartes,
identificam o Ser com o Pensar (digamos, a Metafísica do Sujeito), seja qual
seja o papel que se atribua à linguagem nessa identidade ou distinção.
Ante
essas duas famosas oposições da Ontologia (que, como se vê, são indissociáveis
da Gnoseologia), Deleuze postula:
1)
o ser é devir.
2)
o devir devém como repetição
incessante, infinita e não totalizável da diferença.
3)
a essência das diferenças
consiste em puras intensidades.
4)
por sua posição nos mundos,
sua composição interna proteiforme e seus limites externos difusos, o devir
devém como multiplicidades.
5)
pela condição única e
irrepetível das diferenças, intensidades, multiplicidades, estas se expressam
como singularidades, tais "proto-realidades" (por assim chamá-las)
são virtuais, pré-ontológicas e, assim sendo, são pré-físicas, pré-biológicas,
pré-sociais, pré-subjetivas, pré-semióticas, pré-reais, pré-possíveis e
pré-impossíveis, até serem atualizadas.
6)
o surgimento por atualização
das novidades ontólogicas absolutas, assim entendidas, denomina-se
individuações.
7)
as individuações resultam do
encontro entre complexos de intensidades, multiplicidades e singularidades
sintetizadas como corpos, e a emergência, a partir desses encontros, de uma
dimensão incorporal dos mesmos, denominada incorporais-sentidos-acontecimentos.
8)
as individuações não podem
reduzir-se a seres ou entes individuais efetuados por idéias, substâncias ou
essências previamente diferenciáveis em espécies ou gêneros.
9)
as ações e paixões que se
exercem ao acaso nos encontros entre corpos e incorporais-sentidos-acontecimentos
que deles surgem, assim como as individuações resultantes, não se relacionam
como causas e efeitos e não obedecem a leis.
10)
a realidade, assim
integralmente entendida, compreende três superfícies imanentes entre si. A
primeira, a da produção, que é a que acabamos de conceitualizar, composta por
funcionamentos protagonizados pelas singularidades intensivas que mencionamos
(máquinas desejantes), dispostas sobre o corpo sem órgãos (que é seu
"suporte" e o grau zero das intensidades). Nela se dá o processo puro
de produção de produção. A segunda é a superfície de registro-controle, em que
se distribuem as entidades já identificadas, ordenadas, determinadas em causas
e efeitos, dotadas de funções específicas em que predominam os processos de
reprodução e de antiprodução. A terceira é a superfície de consumação, em que
culminam e/ou consomem a potências das individuações de toda índole.
Este imenso "fluxograma"
transmutante possibilita a Deleuze e Guattari uma extraordinária reformulação
das definições e das relações dos continentes da Natureza, da Sociedade, da
Subjetividade, das Semióticas e do Parque Maquínico da Realidade, assim como da
História Universal, tanto quanto dos pensares que os pensam e das práxis que os
metamorfoseiam e os destroem.
Em
absoluta coerência com essa "Ontologia", a Gnoseologia, a Ética e a
Estética de Deleuze têm como valor supremo a invenção tanto de Conceitos Filosóficos, como de Funções
Científicas, como de Variações Artísticas e de Saberes Espontâneos. Tal inventiva tem como proposta
"Metodológica" sui generis a Intuição, o uso disjunto das
Faculdades, o emprego das técnicas do Cut-up e da Colagem, e a plena
consideração do Acaso para o exercício de Pensares sem Fundamento, sem
Sistemática, sem Meta-Categorias transcendentes. Pensares inexatos, mas
rigorosos, de realidades pluripotenciais e imprevisíveis, cartografias sempre
"princeps" de transmigrações e conjuntos difusos.
Para
concluir, a Ética proposta por Deleuze é uma política da avaliação, da
resolução e do ato sempre singulares, criados para cada situação, produtos da
Vontade de Potência e da desconstrução do Valores imperantes, a serviço da
inovação permanente, jamais subordinada a algum Imperativo Categórico Universal
ou Eterno, nem baseado em Princípios Transcendentes.
É
nessa produção de pensares, na análise variável de seus "N" componentes
de Produção, Reprodução e Antiprodução, na montagem de dispositivos destinados
a propiciar a Revolução Inventiva dos Processos Produtivos e a neutralizar sua
brusca interrupção, ou sua aceleração ao infinito, dada pelos buracos negros da
Reprodução e da Antiprodução... nisso
consiste a esquizoanálise ou pragmática universal.
Mas
se por razões pedagógicas optei por essa introdução geral apoiada num andaime
filosófico clássico, como ousar sintetizar aportes mais circunscritos a temas
mais delimitados, que estão implicitamente incluídos no panorama anteriormente
exposto?
Porque
a obra de Deleuze e Guattari importa também redefinições críticas e reinvenções
dos Universais mais caros ao saber do
Ocidente. Apenas como exemplo,
mencionarei as categorias de Tempo e de Espaço, de Todo e de Partes, de Razão e
Desrazão, de Verdade e Falsidade, de Bem e de Mal, de Potência e de Poder, de
Vida e de Morte – e, em um sentido mais específico ainda, de História, de
Sociedade, de Estado, de Economia, de Antropologia, Geologia, Etologia, de
Lingüística-Semiótica, de Ciências Exatas, de Urbanismo, de Tecnologia, de
Literatura, de Cinematografia, Pintura, Escultura, Arquitetura... e assim por
diante.
Não
pude resistir, ao final desta, por sua vez, pobre e pretensiosa simplificação,
a comentar brevemente a quiçá mais célebre proposta de Deleuze e Guattari,
principalmente exposta em "O Anti-Édipo". Os autores propõem, como a
medula desse livro imortal: "introduzir
o desejo na produção e a produção no desejo". Sem pretender ignorar a
larga trajetória desses dois conceitos gigantescos, não se pode negar que, nas
acepções centrais de sua definição, Deleuze e Guattari partiram basicamente de
Freud e Marx. Mas o fizeram para ampliar a idéia de Marx, não a restringindo à
geração de bens materiais indispensáveis para a vida, processo ligado à força
de trabalho, que o criador do Materialismo Histórico atribuía à infraestrutura dos Modos de Produção.
Deleuze e Guattari estenderam essa idéia à Produção de Produção em
"todos" os domínios da Realidade. Igualmente, tomaram a idéia de
Freud, de Libido e Desejo, não como sendo apenas a energia-força
que anima exclusivamente a economia, a dinâmica e a estrutura do Aparato
Psíquico freudiano, cujas características são, como é sabido, em última
instância, repetitivas e conservadoras.
Deleuze
e Guattari recriaram e ampliaram esses conceitos-funções, assim como do
Inconsciente e do Id psicanalítico, assumindo plenamente as características do
chamado Processo Primário, dando-lhes uma essência produtivo-revolucionária e tornando-os imanentes ao processo de produção de produção da
realidade inteira.
Devo
concluir essa modesta apresentação dizendo algumas poucas palavras acerca de
Gilles Deleuze como "homem".
Ao
considerar a figura e a biografia de Deleuze como "ser humano",
encontramo-nos comuma rara ilustração da exigência de que um autor deveria ser
uma fiel expressão de suas idéias.
Pessoa
de uma imensa erudição, de uma formidável dedicação a seu empreendimento, de
uma incrível versatilidade, de uma enorme criatividade, de uma abertura e de
uma falta de preconceitos invejáveis, gozou em vida de um prestígio e de um
reconhecimento mundial, ainda que, a meu entender, ainda insuficientes, e que
levarão décadas para se consumar.
Aliado
incondicional de todo movimento das singularidades produtivo-revolucionárias,
particularmente dos das minorias exploradas, dominadas e excluídas, foi um
amante da Liberdade, da Amizade e da Vida.
Há
duas sentenças que o encantavam e que caracterizam ilustrativamente seu pensar
e sua existência. A primeira diz: "Os homens têm estado sempre preocupados
com as Idéias Justas, quando, em realidade, precisam procurar justo uma idéia" – a que é capaz
de propor e resolver cada problema.
A
segunda diz: "Os grandes homens têm poucas coisas" – quer dizer, não
se interessam por acumular nem por consumir mercadorias.
Humildade,
modéstia, generosidade, tenacidade, humor, alegria, coragem essas foram as
singularidades de Deleuze, mais que um "homem"... um devir bondoso.
INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 1
A
Esquizoanálise é um saber inventado por dois autores: Gilles Deleuze e Felix
Guattari.
Gilles
Deleuze é considerado, na atualidade, um dos filósofos mais importantes do
século.
Felix Guattari, recentemente
falecido, foi um brilhante psicanalista, analisado e aluno de Jacques Lacan, um Trabalhador da Saúde
Mental, criador da prática denominada Análise Institucional e um militante
político de esquerda, que pertenceu a numerosos grupos políticos convencionais
e os abandonou para fundar ou unir-se a Movimentos Populares de cunhos os mais
diversos.
Gilles
Deleuze é autor de numerosos livros, nos quais aborda, de uma maneira sempre
original, a obra de vários filósofos clássicos, mas também escreveu sobre
cinema, política, estética, literatura, pintura, música, história, etc.
Felix
Guattari escreveu sobre temas relacionados com a saúde mental, sobre
Psicanálise, sobre cinema, mas, fundamentalmente, sobre a concepção muito
peculiar que tinha sobre a política e a economia, a ecologia e o panorama geral
do mundo atual. Também foi jornalista e músico.
Esses
dois autores escreveram juntos vários volumes, em que sua colaboração adquiriu
características muito peculiares, devido às quais é impossível saber, nesses
escritos, a qual dos dois pertence uma ou outra idéia.
Entre
esses livros destacam-se: "O Anti-Édipo", "Mil Platôs", "Kafka: Uma
Literatura Menor" e "Que é a Filosofia?".
A
obra desses autores é muito difícil de situar em um gênero dos já conhecidos.
Como se pode apreciar por sua trajetória intelectual, e pelos títulos de seus
escritos, trataram de quase todas as "especialidades" importantes,
mas sempre de maneira original, buscando interpenetrações dos campos e dos
conhecimentos, mas sem abandonar nunca um matiz
*Introdução à Esquizoanálise,
apontamentos 1, 2 e 3 foram escritos especialmente para um seminário realizado
em Barcelona (1993).
político, que perpassa toda
sua produção. A rigor, de acordo com uma terminologia, para elesjá obsoleta,
sua obra poderia ser classiticada como uma "Concepção de Mundo", mas
várias conccitualizações que eles mesmos apartaram, de crítica aos fundamentos
desse tipo de denominação, fazem-na incorreta e insuficiente para dar conta desse
monumental trabalho. Desde logo, dentro da lista de textos, podem-se encontrar
alguns que pertencem predominantemente a um tema mais que a outros, mas sempre
haverá uma característica na abordagem que os torna insólitos e não
enquadráveis.
O
encontro desses dois autores data, prevalentemente, do famoso maio de 1968, na
França. Em certo sentido se pode dizer que suas preocupações e interesses têm
muito a ver com essa revolta, que aspirava a levar, como os lemas da época
sustentavam, "A Imaginação ao Poder", ou que postulavam "Sejamos
realistas, peçamos o impossível". Essa orientação política, de diversas
maneiras, segundo seus entusiastas, rechaçava tanto os vícios da Democracia
Burguesa Capitalista como os da Ditadura do Proletariado vigentes, estes últimos,
nos ensaios de transição ao Socialismo.
Em realidade, pode-se afirmar
que a orientação política que mais influenciou esses autores, apesar de não ser
uma referência demasiado explícita em seus escritos, é o Anarquismo, como
aconteceu com uma série de investigadores que integram o que se denominou
Movimento Instituinte Internacional.
Entre os autores mais afins a
Deleuze e Guattari, devemos mencionar, em primeiro lugar, Espinoza, Nietzsche,
Bergson e Marx, assim como, entre os contemporâneos, Foucault. Mas a lista de
seus favoritos é interminável, e inclui, em lugares privilegiados, uma série de
artistas que reúnem em si a condição de loucos e de gênios. O exemplo mais
característico é Artaud. Também é notável sua preferência por certos novelistas
anglo-saxônicos, entre eles D.H.Lawrence, Lewis Carrol e Henry Miller.
O texto mais conhecido e
impactante de Deleuze e Guattari é, sem dúvida, "O Anti-Édipo",
publicado em 1972.
Trata-se de um texto de
difícil leitura, não porque o estilo seja particularmente retorcido, senão
devido à soma de conhecimentos que é
preciso dominar para entendê-la, posto que o conteúdo que se refere a todos
eles é estonteante. Em um sentido um tanto melodramático, pode
se afirmar que "trata de
tudo" . Verdadeiramente, é uma grande reformulação das relações existentes
entre a natureza, a cultura, a sociedade, a economia, a política, a linguagem,
as relações de parentesco, os ritos, os mitos, o psiquismo, a religião, a
família, o estado, a história, a tecnologia maquínica, o saber, a verdade, os
valores em geral, a sexualidade, etc.
O
título parece centrar-se em uma crítica da concepção psicanalítica edipiana do
Inconsciente, e por certo é um questionamento profundíssimo dos acertos e dos
desacertos da Psicanálise, mas, concretamente, essa reflexão está incluída
entre muilas outras que abarcam todos os campos a que acabo de me referir.
Impossível
sintetizar o que os autores pretendem dizer nessa "Ópera Magna", mas,
arriscando-me a ser elementar e esquemático, talvez possa adiantar que postulam:
-
Que todos esses domínios do saber e da realidade, modernamente separados pela
modalidade científica do conhecimen,to, são imanentes (quer dizer, intrínsecos,
consubstanciais entre si).
-
Que a Realidade, tal como a conhecemos, configurando esse conjunto heterogêneo,
está composta por três superfícies, que, a rigor, são uma inerente à outra. A saber, a Superfície de Produção, a
Superfície de Registro-Controle e a Superfície de Consumação. A Superfície de
Produção é aquela responsável pela geração de tudo quanto existe, está formada
por elementos constituídos por matérias
ainda não formadas e por energias ainda não orientadas como forças. Esses
elementos ainda não apresentam qualidade nem quantidade, mas se caracterizam
por serem intensidades puras. Cada uma dessas intensidades (nas quais é
difícil pensar porque não estamos acostumados a conceber algo que ainda não tem
nem tempo nem espaço convencionais, nem qualidade nem quantidades diferenciais) consiste em uma singularidade
absolutamente diferente de todas as outras, e o dizer "todas" é
metafórico, porque esse "todo" é infinito, não pode totalizar-se. Outra
abordagem desses elementos os denomina multiplicidades (mas como substantivos,
não como adjetivos). habitualmente se fala de "o um e o múltiplo"...
fórmula essa na qual o múltiplo não
é senão a multiplicação do que é um, ou seja, muitos do mesmo.
Multiplicidade se refere a unidades, cada uma das quais é absolutamente
diferente das outras: não há nenhum um que sirva de base para multiplicar-se
nos múltiplos que são suas réplicas.
A
rigor, deve-se dizer que esses elementos constitutivos da Superfície de
Produção não são, quer dizer, não
têm uma essência, mas consistem em um puro devir,
estão mudando permanentemente. Se se pode falar de uma "natureza"
desses elementos, caberia dizer que se compõem de Desejo e de Produção. Desejo,
está tomado no sentido dado por Freud ao Processo Primário no Inconsciente, em
que a energia "flui livremente pelas representações", onde não há
tempo, não há espaços clássicos e, sobretudo, onde só há positividades, não há
noção de ausência, de falta, de morte, de castração, etc.
Produção,
está dito no sentido de Marx, ou seja, um processo pelo qual uma matéria prima,
trabalhada por meios específicos animados por uma força de trabalho, gera um
produto que não preexistia na matéria prima da qual se originou. Deleuze e
Guattari acrescentam a essa definição a afirmação de que a Produção "se
produz a si mesma", seus elementos se
produzem ao mesmo tempo em que funcionam, e que, no caso da Superfície de
Produção, fazem-no pelo encontro casual das intensidades, que são caóticas e
imprevisíveis. As duas entidades que integram a Superfície de Produção são o corpo sem órgãos e as máquinas desejantes.
Para não complicar as coisas, direi a respeito que o Corpo sem Órgãos é uma
espécie de rede sobre a qual se dispõem ao acaso as intensidades... e as
intensidades podem ser pensadas como máquinas inespecíficas e indeterminadas
que se conectam de maneira binária em todas as direções. As máquinas desejantes
se dividem em máquinas fonte e máquinas órgão. Uma máquina fonte gera um fluxo energético, e uma máquina órgão o corta
e o modula. Elas se conectam assim em todas as direções, e esse processo
incoercível é o que gera a produção de
tudo quanto existe. Outra característica das máquinas desejantes é serem
infinitamente pequenas, por isso se
denominam moleculares, e elas permanecem como tais no seio das entidades macro,
que se chamam molares, e que são as que estamos
acostumados a reconhecer, seja
qual seja a materialidade de que se trate, por exemplo: um homem, uma planta, uma montanha, um país, uma máquina mecânica, uma
instituição, etc.
A
Superfície de Registro é a organização que adquire a Superfície de Produção
quando entra na escala das entidades molares. A função da Superfície de
Registro-Controle é, como seu nome antecipa, a de selecionar, aceitar e
capturar, ou bem reprimir e destruir a incoercível geração de novidades da
Superfície de Produção Desejante. A Superfície de Registro está constituída por
todas as entidades destinadas a diferenciar, em um sentido convencional, e a
utilizar, tudo o que se produz, para colocá-lo a serviço da reprodução, da
natureza e da sociedade, tal como estão estruturadas, ou seja, o que tende à
reprodução do mesmo e à manutenção do status quo. A Superfície de Registro e
de Controle só aceita aquilo que pode incorporar sem se transformar
radicalmente. Um dos aspectos mais importantes da Superfície de Controle é o
denominado socius, ou seja, a forma
que tem adquirido a Sociedade ordenada em
cada civilização, e que é tanto ameaçada quanto nutrida, naquilo que precisa
para evoluir, pelas novidades da superfície de produção.
Deleuze
e Guattari sustentam que a Superfície de Produção tem um funcionamento que pode
ser ilustrado pelo pensamento Esquizofrênico, mas não o dizem referindo-se à Esquizofrenia entendida como enfermidade
mental, senão à Esquizofrenia como a característica essencial desse processo de
produção caótico que caracteriza a Superfície de Produção, e que tem algo a ver
com a "loucura".
Entretanto,
a Superfície de Registro tem as peculiaridades que costumamos ver nas Neuroses,
nas Perversões e também na Psicose Paranóica. Desde logo essas denominações não
se referem às entidades clínicas, mas à lógica de funcionamento que as
caracteriza, que aqui se pode aplicar, por exemplo, ao Estado, que é a
Instituição paranóica por excelência, por suas peculiaridades prevalentemente
centralizadoras. repressivas e antiprodutivas.
A
Superfície de Consumação é aquela em que o produzido, tanto o admitido pela
Superfície de Registro-Controle, como aquilo da Superfície de Produção que
escapa ao controle e se manifesta como
novidade radical, invenção e
revolução... são realizados e/ou consumidos, quer dizer, usados e gozados pelos
agentes históricos.
Toda
essa introdução, pelo menos no momento, nos servirá apenas para apresentar as
tarefas da Esquizoanálise.
A
Esquizoanálise será um processo de investigação, de produção de conhecimentos e
de aplicação dos mesmos, para transformar o Mundo (entendido no sentido tanto
da organização social, como política, econômica, da subjetividade dos homens e
ainda das máquinas que modificam por completo a relação homem-natureza). A
Esquizoanálise, que não tem por que ser feita por especialistas e que, além
disso, cada um faz à sua maneira, a partir da inserção social que tenha e da
Causa em que esteja envolvido nas lutas do mundo (sexual, artística, política
alternativa, industrial, militar, etc.) se compõe de duas tarefas fundamentais.
A
primeira consiste em uma raspagem, quer dizer, em um trabalho destrutivo das
entidades da Superfície de Registro-Controle que afetem (e da maneira especial
em que afetam) o território em que se movem os interessados. Por exemplo,
digamos, na luta pelo direito à existência
de uma singularidade sexual: "os homossexuais". Aí se tratará de
entender e denunciar a lógica de dois valores com a qual o Socius define o que
é normal e o que não é normal em matéria de sexo. Mas isso também inclui um
trabalho de destruição das leis que justificam o império da sexualidade pautada
em dois valores, os preconceitos que afetam as singularidades sexuais no
trabalho e na política, etc. As tarefas negativas
se superpõem e intrincam as positivas,
por exemplo, a invenção de modos de viver, de critérios de valor, de obras
artísticas, técnicas ou políticas, que são peculiares da singularidade cujo
direito à existência se está procurando
reivindicar.
Toda e qualquer montagem que
se invente para realizar a esquizoanálise de toda e qualquer singularidade
desejante produtiva, que se denomina agenciamento ou dispositivo, é aceitável.
Todo dispositivo desse tipo terá de ter um componente pelo qual se constitui em
uma "máquina de guerra", ou seja, em um agenciamento que tem por
objetivo defender-se dos ataques da superfície de registro e/ou destruir os
equipamentos com os
quais a maquinaria repressiva tende a reprimir, eliminar ou capturar as
singularidades produtivodesejantes.
A
Esquizoanálise tem ilustrações interessantíssimas de dispositivos montados,
tanto por singularidades sexuais, raciais, nacionais, etárias, lingüísticas,
como classistas, profissionais, artísticas, ecológicas, etc.
É de
se esperar que essa introdução abra caminho para poder explicar em que consiste
o esquizodrama, que também temos
denominado proliferação dramática
inventiva. Cabe apenas adiantar que se trata da montagem de dispositivos
técnicos que têm por objetivo uma Esquizoanálise praticada com recursos tomados
da Arte, do Teatro, da Pedagogia e da Psicoterapia, tal como eu tenho podido e
entendido.
INTRODUÇÃO À ESQUIZOANÁLISE*
Apontamento N° 2
No
Apontamento n.1 tratei de começar a resumir o que chamei, figuradamente, a "Concepção
do Mundo" dos pensadores Deleuze e Guattari. Cheguei a expor suas idéias
acerca do que poderíamos chamar uma antologia da Realidade. Pelo menos tratei
de esboçar os conceitos mais inclusivos. Resulta, porém, que quando se trata de
sintetizar a obras destes autores, tropeça-se em graves dificuldades, não só
devido à fecundidade numérica das
publicações (são muitos livros e artigos), mas também ao processamento que se
dá dos termos e noções inventados, à heterogeneidade
alucinante dos saberes ou dos gêneros que se usam como fontes de
"importação" dos conceitos ao seio da Esquizoanálise como
"episteme", a transformação constante da bateria conceitual durante a
aparição dos sucessivos textos, as diferenças de estilo de um texto para outro,
etc.
Uma
breve referência à questão do estilo já é interessante. Por exemplo: no
primeiro capítulo do Segundo Tomo de "Capitalismo e Esquizofrenia" (o
primeiro tomo é o famoso "O Anti-Édipo", o segundo se chama "Mil
Platôs"), cujo título é "Rizoma", os autores explicam o que é
para eles um livro. Apenas como
aproximação, recordemos que, em meu texto anterior, falei da
"Totalidade" da Realidade e de sua composição por três superfícies
imanentes entre si: a de Produção, a de Registro e a de Consumação. Digo
totalidade entre aspas porque essa é uma das primeiras categorias filosóficas
que Deleuze e Guattari se propuseram reformular. Como a realidade é infinita,
"cada totalização pensada ou prática que se faz dela agrega-se a esse todo
infinito como uma parte a mais".
Segundo me parece, essa definição já é um bom começo para que aqueles que nunca
leram Deleuze e Guattari comecem a "sentir" a novidade e, ao mesmo
tempo, a estranheza que essa imensa reformulação do pensamento provoca.
Creio
que se pode dizer que principalmente a Superfície de Produção devém segundo o
Modelo de um Rizoma. Rizoma é um
*Ver nota na página 49
vegetal de tipo tubérculo, que
cresce subterrâneo, mas muito próximo à superfície, e que se compõe
essencialmente de uma raiz. Esta raiz é estranhíssima porque, quando o exemplar
alcança grandes proporções (há pouco li em um dos jornais diários que nos
Estados Unidos havia sido encontrado um que media vários quilômetros de
extensão), é difícil saber quais são seus limites externos; quer dizer, não há
separação entre "uma planta" que constitui essa rede e a outra que
também a integra. Entretanto, no seu interior, o complexo, digamos, radicular,
está composto por células que não têm membrana, e que só podem ser supostas
como unidades porque têm núcleos ao redor dos quais se distribuem trocas
metabólicas e áreas energéticas. Então, pelo menos no sentido tradicional, o
Rizoma não tem limites internos que o compartimentalizem. Aquilo que circula
nesse interior circula em "toda e qualquer" direção, sem obstáculos
morfologicamente materiais que o Impeçam.
Em
várias mitologias orientais, sumamente antigas, podem-se encontrar
reiteradamente representações do Universo que essas civilizações denominam
"Ovo Cósmico". Curiosamente, modelos similares podem ser encontrados
nas mitologias americanas, por exemplo, na tribo Dogon. O que estes modelos têm
em comum é que o Universo está desenhado como um corpo oval, de limites
exteriores muito tênues, e em cujo interior não se vêem compartimentos
definidos senão algo assim como "áreas" insinuadas por ocupações de
forças, permanentemente mutantes, cujo fluxo incessante mostra
"momentos" que podem marcar-se com limiares que sinalizam
configurações fugazes de diferenças de intensidade.
Muitas
ramificações ultramodernas das Ciências contemporâneas, particularmente
da micro e macro Física, mas também da Biologia Molecular, da Matemática e da
Geometria, etc., têm descoberto ou inventado universos reais ou formais que
funcionam dessa maneira.
Em
certo sentido se pode dizer que para Deleuze e Guattari a Superfície de
Produção desse "todo" real funciona assim, e cada realidade
circunscrita de maneira mais ou menos ortodoxa na Superfície de Registro (por
exemplo, um Corpo Biológico, uma Organização, um Sujeito Psíquico... e o que é
mais surpreendente, um livro) também
tem um pólo ou uma dimensão produtiva que funciona dessa maneira. ou não tem... ou tem "pouco",
ou seja, a potência rizomática de
sua composição depende de como
estão "construídos interiormente" e de como conseguem conectar-se e
fluir com as forças do "exterior" com as quais se articulam.
Voltando
à questão do "estilo" (que a
rigor, não é um termo que Deleuze e Guattari usam demasiadamente), trata-se
dessa composição interna rizomática que um livro pode chegar a ter e que o
torna uma espécie de máquina (depois tratarei de aclarar o que entendem por
máquina), que o possibilita fluir interna e externamente, conectar-se com
outras máquinas que podem ser completamente heterogêneas (máquinas técnicas,
sociais, libidinais, biológicas, psíquicas, etc.) e fluir com elas e entre
elas, "formando máquina", "maquinando" com elas novas
realidades produtivas e revolucionárias. Em conseqüência, um livro, como todas
as outras "entidades" ou devires que integram a realidade, não é
importante pelo que "quer dizer", senão pelo que consegue
"fazer", ou seja, pelos modos pelos quais se agencia ou se dispõe com
outras "máquinas" que transformam (ou melhor, metamorfoseiam, criam o
novo radical) a realidade.
Desta
maneira, o que chamamos estilo é, a rigor, o regime de funcionamento da
"máquina livro", seu movimento, sua velocidade, sua longitude e
latitude, sua densidade, sua intensidade, que o permite ou não, contribuir para
inventar mundos. Estes mundos podem ser relatados por espécies de "Diários
de Bordo" teóricos, que não são exatamente "mapas". Melhor dito,
são "Cartografias". É sabido que uma carta de navegação é um
"mapa relato", não apenas "objetivo", mas também
"subjetivo", "político", etc., que só serve para uma
viagem, que só expressa a singularidade única e irrepetível dessa viagem, o que não impede que
outros viajantes dele se sirvam para construir sua própria trajetória, sempre
experimental, sempre aventureira ..
Por
isso, cada livro de Deleuze e Guattari é uma "Cartografia", e está
construído de maneira que supostamente haverá de servir ao maior número de
viajantes possível, a empreender e elaborar sua própria travessia. Ainda que
amiúde os livros de Deleuze e Guattari apresentem recursos (editoriais,
semânticos, sintáticos, retóricas, etc.) convencionais, a idéia primordial é
que podem ser utilizados, sem sistematicidade alguma, por partes ou por
totalizações aleatórias, por quem queira e possa fazê-la. Uma peculiaridade que
a obra esses autores apresenta e
que, com toda certeza é
ilustrativa e fiel a esses "princípios", é que eles jamais se citam a si mesmos, e
autorizam os leitores a fazerem a mesma coisa.
Apesar
de ser uma obra monumental, com uma quantidade de referências bibliográficas
que chega a ser monstruosa por sua amplitude, versatilidade e rigor, Guattari escreveu um artigo que
se intitulou algo assim como "Dez proposições descartáveis para expor a Esquizoanálise". O descartável
implica que não aspiram a nenhuma permanência, nem paternidade autoral, nem
exigência escolástica ou acadêmica, mas que cada um pode usá-la à vontade,
segundo lhe pareça que lhe vai ser fecundo no que está por fazer ou escrever,
ou para as duas coisas, que segundo Deleuze e Gllattari, sempre ocorrem
simultaneamente.
Em
outra parte deste primeiro capítulo do Segundo Tomo ("Mil Platôs"),
Deleuze e Guattari explicam que assinaram seus livros pelo "prazer de
falar em primeira pessoa", "como todo mundo", dizer que
"hoje saiu o sol" ou qualquer coisa desse tipo, mas que, para serem
coerentes, deveriam ter escrito de maneira anônima, para poder descartar
qualquer influência do que Foucault denomina "a função autor", que é
um recurso de Poder que, ainda que se possa usar de maneira estratégica a
serviço da produção, geralmente é empregado para gerar certa subordinação à
imagem do intelectual ou do "professor" prestigioso, etc.
Isso
nos permite voltar à única proposta de "Método" que esses autores se
permitem e que, sem que haja referência explícita, tem muito a ver com o que um
grande epistemólogo, Feyerhabend, sustenta em seu livro "Contra o
Método", em que ele faz uma feroz crítica da "Metodologia das
Ciências" e afirma algo como uma "Inventiva Radical". Deleuze e
Guattari sustentam que o único "método" é o do bricoleur, ou
seja, o do selvagem que solitariamente limpa o solo em uma clareira da selva e
se põe a juntar galhos, penas, pedras, e acaba construindo um
"quadro" que pode ou não ser apreciado por um "degustador"
ou espectador, e cujo grau de beleza depende do índice em que seus componentes
"não têm nada que ver entre si". Dito de outra maneira, Deleuze e
Guattari propõem que em todo empreendimento, aventura, viagem ou obra, o
verdadeiramente importante é a novidade, a diferença e a singularidade
absolutas, que de uma forma ou outra
subvertem a maior Instituição
de uma civilização, que é a forma em que esta define o "Horizonte do
Possível".
Uma
das maneiras de entender, em um sentido amplo, a importância dessa proposta, é
a de referi-la a algumas idéias do filósofo Bergson, particularmente àquelas
que se referem à essência da Realidade.
Bergson
diz que a Realidade se compõe do Real (o que já existe), do Possível (o que
pode vir a existir) e do supostamente Impossível, o que, coerentemente com o
que se sabe do existente e do ainda inexistente, não pode ser nem Real nem
Possível. Mas Bergson acrescenta que existe uma dimensão da Realidade que ele
denomina Virtual. O Virtual não existe (não é Real), nem se pode dizer que seja
Possível e Impossível, simplesmente porque não se pode pensá-Io, nem
antecipá-Io, nem predizê-Io, nem negá-Io. O Virtual só é conhecido quando se torna
atualizado, ou seja, quando devém Atual. O que sucede é que o Virtual ainda não
atualizado é a parte mais importante da
realidade, mas só se sabe dele quando se Atualiza, e sempre o faz como a novidade, a diferença absoluta, que não era
pensá vel, dizível, nem previsível com as categorias do real, do possível ou do
impossível.
Essa
atualização do Virtual que Deleuze e Guattari apresentam com o nome de acontecimento, termo tomado dos
filósofos estóicos, tem uma valor incalculável como orientador de toda prática,
porque o objetivo principal em Deleuze e Guattari é o de produzir pensamentos e
atos (que sempre terão imanentemente uma dimensão Ética, Estética, Ontológica,
Gnoseológica, Política, etc.), montar DISPOSITIVOS, agenciamentos, sempre complexos, heterólogos (compostos de
diferentes saberes), heterogêneos (compostos de diferentes material idades),
heteromorfos (compostos de formas diversas) e até heteróclitos (bizarros,
estranhos, etc.)... que geram e são eles
mesmos partes de acontecimentos singulares.
Por
sua vez, essa proposta está estreitamente ligada à idéia do filósofo Nietzsche,
de que se deve viver "Desejando os Acontecimentos", como afirmação
radical da "Vontade de Potência", ou seja, do cultivo, da propiciação
daquelas forças que procuram criar o Novo Absoluto. Em Deleuze e Guattari esse
Novo é a característica da atividade da Superfície de Produção, que sempre é
simultaneamente Revolucionária, Desejante e Produtiva.
Deleuze
e Guattari tomaram de Marx a idéia de Produção, de todos os Utopistas a idéia
de Revolução, e da Psicanálise freudiana a idéia do Desejo Inconsciente. Não
obstante, não tomaram essas idéias sem crítica, posto que as reformularam de
tal modo que é difícil sintetizar no presente escrito. Apenas para dizer algo a
respeito, bastaria explicar, por exemplo, que, em Freud, existem dois conceitos
claros de Desejo. Em um deles o Desejo é definido como uma espécie de força
inconsciente que impulsiona os sujeitos a buscarem objetos de prazer que
supostamente tiveram alguma vez e perderam. Essa concepção do Desejo em Freud
sustenta que o que mobiliza essa força é a Falta desse objeto que, a rigor, não
existe. Mas há outras passagens de Freud nas quais o Desejo se define pelas
características daquilo que o criador da Psicanálise denomina Processo
Primário, um funcionamento com base na pura positividade, numa espécie de
vontade de invenção, de criação, ou como se queira chamar, que não se mobiliza
pela Falta de Objeto nem pela nostalgia do Bem perdido, nem pela tentativa de
Repetição do Mesmo, senão por um puro impulso ao Novo Absoluto, ao Retorno da
Diferença Essencial que, segundo toda uma linha da Filosofia, é o único que
retoma na Realidade Última, que é a Virtual.
INTRODUÇAO A ESQUIZOANALISE
Apontamento N° 3
Nesta
oportunidade, gostaria de me referir, como sempre muito sinteticamente, ao
lugar que ocupa na Teoria Esquizoanalítica a questão da subjetividade.
É sabido que na História da Filosofia Ocidental podem-se reconhecer dois
períodos fundamentais. Durante o largo curso do primeiro deles, o pensamento
filosófico se interrogou persistentemente em torno do Ser. Apesar de que essa
reflexão estivesse sempre matizada, quando não francamente contraposta, ao
problema do Devir, pode-se afirmar
provisoriamente que a questão do Ser resultou sempre vitoriosa, porque, ainda
que reconhecesse alguma importância ao Devir, o fez sempre incluindo o Devir
como uma das características ou atributos do Ser.
Já
desde Parmênides, um ilustre pré-socrático, a fórmula predileta para referir-se
ao Ser era tautológica ou pleonástica, como dizer que do Ser só se pode
predicar que É. Essa identidade do Ser consigo mesmo adquiria em Parmênides
também a condição da imobilidade e da eternidade. A essa concepção pode-se
contrapor a idéia de Heráclito, de que o Ser devém, ou seja, que se transforma
constantemente; daí a famosa frase que afirmava que "não se pode banhar
duas vezes no mesmo rio".
A
interminável sucessão de importantes escolas filosóficas foi-se inclinando a
buscar algo assim como um substrato do Ser, e ainda que tenha havido várias
tentativas a respeito, foi-se impondo a convicção de que a "medula"do
Ser era a Substância (Osia).
Com
respeito à Substância, foram-se introduzindo importantes variações, cujo estudo
é do maior interesse, mas, para os efeitos do que aqui quero expor, daremos um
largo salto e diremos que é com o filósofo René Descartes que se gera uma
transformação no centro da problemática filosófica, posto que esse pensador
substitui a preocupação sobre o Ser por uma prioritária acerca do Conhecer, e
particularmente acerca da
• Ver nota na página 49
"sede" ou do
protagonista do conhecer, que é o Sujeito do Pensamento. Como é sabido,
Descartes cunha a famosa fórmula "Penso, logo Sou", fazendo o Sujeito
do Pensar o único que pode ter uma certeza, pelo menos inicial, de que é Ele
quem está pensando e, portanto, Sendo.
Essa
mudança permanece fundamental para toda a Filosofia póscartesiana,
ainda que não de uma maneira exclusiva. Uma de suas vicissitudes posteriores
consiste em que a Psicologia implícita nas considerações filosóficas, assim
como a Psicologia experimental das Faculdades, que é a primeira Psicologia
"científica" que aspira a fundar essa disciplina como tal, desvinculando-a
da Filosofia, continua definindo esse Sujeito autocentrado, coerente, único e
homogêneo, como sendo o objeto principal do estudo psicológico e o protagonista
de todas as funções e atos psicológicos.
Tem-se
insistido reiteradamente que, com a Psicanálise, genial invenção freudiana,
essa Imagem de Sujeito foi definitivamente colocada em questão. Atribui-se à Psicanálise, no campo do psíquico, uma
revolução similar à que havia operado Copérnico com sua teoria Heliocêntrica do
Universo, a Darwin com sua Teoria da Evolução das Espécies, e a Marx com sua
Teoria dos Modos de Produção históricos.
Todos
esses "descobrimentos" operaram verdadeiras revoluções, e um de seus
efeitos característicos no saber universal consistiu em um descentramento, ou
seja, no destronamento de uma entidade que ocupava um lugar axial nos campos
respectivos, que resultou questionada por esses novos conhecimentos. A Terra
não é mais o centro do Universo, assim como o Homem não é mais que um
descendente dos mamíferos superiores, e os Homens não são, tampouco, os
fazedores incondicionais da História, senão que os modos em que as sociedades
se estruturam determina a influência relativa que os homens podem ter sobre seu
funcionamento.
De
igual maneira, o Eu, entidade psicológica que, em geral, toma-se sinônimo do
Sujeito consciente, dono do saber acerca de si mesmo, de seus desejos e de sua
vontade, é evidenciado como sendo só uma parte da "personalidade", e
não certamente a mais importante. O Sujeito é conhecido como irreversivelmente
dividido em um Eu consciente e voluntário, por um lado, e em outras instâncias,
entre as quais se destaca o Id, impessoal, inconsciente e involuntário.
Muitos
psicanalistas modernos insistem em que o descobrimento freudiano, que sem
dúvida adquiriu uma considerável hegemonia em seu campo específico, ainda não
foi suficientemente adotado e aproveitado, tanto no seio de outras disciplinas
científicas, como inclusive no da Filosofia, Política, etc.
Esse
descobrimento problematizou, entre outras convicções, a certeza da coincidência
irrestrita entre termos tais como indivíduo,
pessoa e sujeito.
Esse
complexo de denominações reiteradamente tem sido entendido como um conjunto de
sinônimos, ou seja, cada um desses vocábulos designa mais ou menos a mesma
coisa, ou, pelo menos,
são perfeitamente articuláveis entre si, de maneira tal que, sua agrupação
denomina quase tudo o que é a unidade elementar ou fundamental do ser humano.
Ainda
que existam muitas diferenças a respeito, para uma visão um tanto mais
rigorosa, costuma-se fazer certas distinções que já ajudam a discriminar um
pouco essa problemática.
Reserva-se
o termo Indivíduo para a unidade mínima elementar de um exemplar da espécie
biológica humana (ou de outras), sendo que a mesma, como seu nome indica,
"não pode ser dividida sem desnaturalizar-se". Tem-se o hábito de
usar a palavra Pessoa para a unidade social e jurídica, igualmente mínima,
capaz, por exemplo, de contrair deveres e direitos e de ocupar lugares e
hierarquias sociais estabelecidas. Por sua vez, costuma-se denominar Sujeito,
tanto a essa unidade mínima homogênea autônoma psíquica a que nos referíamos
anteriormente (e assim também em Lingüística e em Semiótica), como a uma função
essencial dentro dos textos ou discursos (Sujeito do enunciado, Sujeito da
enunciação).
Desde
logo podemos encontrar muitos outros usos e sentidos do termo Sujeito (em Teoria
Literária, em Estética, em Política, etc.). Mas em todos esses âmbitos
encontramos também uma dualidade ou uma ambigüidade essencial pela qual Sujeito
pode designar tanto o agente, o protagonista, o ator, o causador dos processos,
como igualmente algo ou
alguém "sujeitado", ou seja, ignorante, conduzido, submetido
ao efeito de forças e mecanismos que não conhece nem domina.
Obviamente,
a anteriormente mencionada relação entre Indivíduo, Pessoa e Sujeito fica radicalmente relativizada pela
postulação de um sujeito essencialmente dividido, como acabamos de caracterizá-lo.
Se já estava claro que esses termos não são sinônimos e não designam a mesma
realidade, a isso devemos acrescentar que essa condição dividida do Sujeito
psíquico exerce influências incalculáveis sobre a constituição e o
funcionamento dos Indivíduos biológicos (seus "corpos"), assim como
sobre as pessoas sociais e jurídicas e os desempenhos de seus
"papéis", "status", concepções, atitudes, etc.
Um
aspecto essencial deste assunto consiste em que, desde já, todas essas
unidades, às quais nos referimos, não são concebíveis apenas como entidades
separadas. Seja qual for a condição que se atribua à sua associação, é evidente que a vida humana, tanto biológica,
como social, como psiquicamente, desenvolve-se na forma coletiva.
Essa
coletividade ou comunidade essencial, em geral é concebida como a conexão,
relação, interação, ou como se queira chamar-lhe, entre as citadas unidades, em
conjuntos de pequena, média ou grande dimensão.
Daí
a importância que têm adquirido diversas agrupações denominadas intermediárias,
tais como o casal, a família, os grupos "secundários" (lúdicos,
escolares, esportivos, etc.), assim como as organizações, os povos, até chegar
à Sociedade ou à Humanidade em seu conjunto.
Apesar
de diversos investigadores terem intentado propor a existência de entidades que
não consistem exatamente na associação destas unidades elementares (muitos já
falaram, por exemplo, de Consciência ou Inconsciente Coletivo, de Ideologia ou
de Culturas, Tradições, etc.), em geral as tendências científicas dominantes
atuais parecem adotar ainda essa idéia de uma associação de Sujeitos (p.ex.),
coletivização esta que, ainda que possa engendrar estruturas e processos sui
generis, em última instância tem como substratos as citadas unidades
elementares. Essa posição se enfatiza em algumas postulações psicanalíticas
atuais, que sustentam que tal conexão é, a rigor, ilusória e impossível, ainda
que possa estabelecer-se para fins de criar efeitos de unificação coletiva,
dado que os Sujeitos divididos de que se trata são radicalmente narcisistas, e
seu real vínculo com outros é inviável. Para esses autores, a pseudo-conexão só
se produz através de nexos simbólicos, cujo conjunto constitui a cultura, mas à
condição de serem mediatizados e abstraídos pela linguagem. Desta maneira, os
Sujeitos
estariam marcados por uma
"solidão essencial", que não é realmente superável por interrelação
alguma.
Explicar
a proposta Esquizoanalítica a este respeito não é uma tarefa fácil,
particularmente fazê-lo para aqueles que ainda não estão inteirados dos
meandros da Teoria de Deleuze e Guattari.
Uma
tentativa que posso fazer sobre o assunto pode basear-se em algumas premissas
básicas, apenas enunciáveis, ainda que difíceis de se fundamentar em poucas
linhas.
Em
primeiro lugar, como já adiantamos nas outras comunicações, para esses autores
a separação entre Natureza, Cultura, Psiquismo, Sociedade, Máquinas, etc.,
dá-se apenas em um dos níveis ou Superfícies em que a Realidade está
organizada.
Esta superfície ou nível é imanente, ínsita, coextensiva, concomitante, coexistente – ou
qualquer outro termo que possa tentar passar a idéia de que uma é interna à
outra –, com a Superfície da Produção Desejante, em que essas realidades
definidas e organizadas não o são como tais, senão como o que eles chamam
(entre outras maneiras) de realidades Pré:
'pré-biológicas, pré-psíquicas, pré-sociais, etc. Como dissemos em
outras aulas, o nível organizado (chamado Superfície de Registro, Controle,
Identidade, etc.) caracteriza-se por se compor de entidades macro, cujos
limites são geralmente perfeitamente definidos e variavelmente articulados entre
si. As diferenças entre essas entidades, se bem existem, não são tão
importantes como as semelhanças ou as igualdades, analogias, similitudes, etc.
Por isso é que se pode dizer que as coletividades são, a rigor, multiplicações.
Se o Um é Indivíduo, Pessoa ou Sujeito, a coletividade é o Múltiplo, muitos... ou
bem do Mesmo, ou bem de pequenas diferenças.
Na
Superfície da Produção Desejante, se é que se pode falar de unidades micro,
estas são multiplicidades ou singularidades absolutas, o que quer dizer que cada uma delas é absoluta e infinitamente diferente das
outras. De outro lado, é bastante difícil entender que essas singularidades não têm extensão nem qualidade, senão
apenas intensidade, por isso é que
também podem denominar-se Singularidades
Intensivas.
O
poliverso dessas singularidades intensivas, que em outras exposições dissemos
sinônimos da Virtual idade Bergsoniana, ainda
não existem como entidades macro ou moleculares da superfície de
registro ou controle, mas nem por isso deixam de formar a parte potencialmente inovadora
radical da Realidade.
Quando
esta Virtualidade Molecular se atualiza, opera sem respeito algum pelas
identidades, limites, territórios, estratos, instituições, organizações ou
unidades elementares da Superfície de Registro.
Isto
sucede quando emergem novos efeitos e processos, em geral irreconhecíveis,
impensáveis, inclassificáveis e incontroláveis (segundo as leis, normas e
interesses da Superfície de Registro). Essas revoluções, que podem ser grandes
ou pequenas, mas que se caracterizam por serem insólitas, efetuam-se como encontros entre os corpos materiais e
energéticos (isto dito em um sentido muito amplo) e entre os sentidos e valores
como acontecimentos incorporais.
Estes
Encontros – Acontecimentos geram
transformações que se efetuam simultaneamente em qualquer ou em
todos os domínios instituídos, organizados ou estabelecidos molares, e podem
assim gerar (isto dito incorretamente, por razões pedagógicas) indivíduos que não pertencem a espécie alguma, novas
pessoas que não coincidem com indivíduos nem se enquadram em categoria social
ou jurídica de nenhuma índole e, para o que aqui nos interessa
particularmente, subjetivações que não
se apóiam em indivíduos biológicos delimitados, nem em pessoas sociais
convencionais... nem coincidem com o lugar, perímetro ou condição das unidades
elementares-sujeito, sejam estas divididas como a psicanálise diz ou
homogêneas, como a psicologia tradicional diria.
Essa
produção de subjetivações se "materializa" associando
"partes" de cada uma das unidades elementares citadas, em
articulações completamente irreconhecíveis, e com características de
funcionamento insólitas, acerca das quais, apenas para dar um exemplo
ilustrativo (ainda que de maneira alguma exaustivo), pode dizer-se que amiúde
se apresentam com rendimentos do tipo do que denominamos
"paranormal", "parapsicológico", ou, com uma terminologia
pouco recomendável, francamente prodigiosos.
Trata-se
de verdadeiras invenções, inspirações, criações, ou como se queira chamá-las
para melhor entendê-las, e o fato de que
apareçam tomando como cenário
um Sujeito clássico, um Grupo, uma Organização, Movimento ou Massa Social, tem
muito mais a ver com a originalidade da subjetivação criada que com os limites
e as expectativas que habitualmente se atribuem a esses conjuntos.
Para
concluir, provisoriamente, não se deve esquecer que essas
"montagens", "dispositivos" ou "agenciamentos"
geradores de subjetivações (que podem ser predominantemente artísticos,
políticos, industriais, etc.), sempre são tudo isso ao mesmo tempo, ainda que,
amiúde, seja difícil precisar como cada um desses domínios macro intervém em
cada um deles.
Finalmente,
retomando a polêmica pré-socrática, não se trata aqui de que o Ser seja imóvel
àu eterno, nem tampouco que o Ser devenha, mas de que o Ser é Devir... ou o Devir é o Ser.
Dito
de outro modo: O SER DO DEVIR É A INCESSANTE PRODUÇÃO DO NOVO ABSOLUTO.
A REALIZAÇÃO DA REALIDADE *
A
Esquizoanálise de Deleuze e Guattari pode ser considerada um saber
"novo", não enquadrável em nenhum dos gêneros anteriormente
conhecidos. Ao mesmo tempo, cabe considerá-la como contendo também parcialmente dimensões destes
gêneros: Filosofia, Ciências, Artes, Política, etc.
Do
ponto de vista filosófico convencional, pode-se dizer que a Esquizoanálise é um
materialismo, neo-funcionalista,
maquínico. O sentido desta fórmula irá se aclarando no percurso destas
aulas; por hora, trataremos de ver o que é para Deleuze e Guattari a Realidade,
e como a mesma se "faz".
Para
Deleuze e Guattari a Realidade é tudo o que na Filosofia Convencional
compreendia o Ser e o Existir, inclui tanto as essências como as aparências, a
matéria, a energia, o espírito, o pensamento e a subjetividade. Segundo uma terminologia
tomada e reformulada do filósofo Bergson, pode-se dizer que compõem o Real: o
Possível, o Impossível, o Virtual e o Atual.
Portanto,
deve ser pontualizado que, para Deleuze e Guattari, a "substância" da
Realidade é o Ser do Devir (e não
apenas o Ser ou o Devir do Ser). Em outras palavras, a Realidade consiste em
"todos" os devires (processos) que a integram.
O
conceito de Todo está colocado entre aspas porque, a rigor, não há Todo no
sentido habitual do termo. Não há um Todo finito, definido e pré-estabeIecido,
cujo interior compreende – e está diversificado – em partes. Os processos da
Realidade, em seu devir, vão constituindo todos.
Cada um desses todos vai se
agregando sem totalizar-se nem unificar-se inteiramente nunca, e incluem a
subjetividade e a práxis desde as quais são construídos. Essa definição provém,
dentre outras variadas fontes, da Teoria Física Geral da Relatividade.
*Este texto e os 10 que se
seguem referem-se a aulas do Programa Âmago de Formação Contínua em
Esquizoanálise, Instituto Felix Guattari, Belo Horizonte, 1996/1998.
A
modalidade com que os processos vão realizando a Realidade se denomina produção. Este conceito está tomado de
numerosas fontes teóricas e tem sido reformulado de maneira a não esgotar-se no
sentido que tem em nenhuma delas em particular. Provisoriamente podemos
destacar a origem industrial do termo, tal como tem sido formulado por Marx,
como "prática" ou "processo produtivo de trabalho". Estes
processos exigem: Força de Trabalho, Matérias-Primas, Meios de Produção,
Execução do Trabalho, Produto. Mas, em Deleuze e Guattari, esse processo tem
sido conceitualmente ampliado e complexizado até tomar-se sinônimo de todos os
devires que produzem a Realidade. Essa reformulação inclui especialmente a Imanência e a Consubstancialidade entre a Produção
e o Desejo. Também o conceito de
Desejo está tomado de diversas fontes. Provisoriamente destacaremos entre elas
a definição do Processo Primário,
postulado por Freud para o funcionamento do Inconsciente subjetivo. Mais
adiante nos dedicaremos especialmente a esse conceito.
O
conceito de Produção em Deleuze e Guattari parte, sem dúvida, da importância
atribuída por eles à Máquina como componente constitutivo presente em todas as
organizações históricas. O conceito de máquina não se limita às características
dos instrumentos primitivos, nem às grandes máquinas hidráulicas, nem às
eólicas, nem às mecânicas, a vapor, a explosão, às elétricas, eletrônicas,
cibernéticas, etc. As máquinas não estão pensadas apenas como extensões dos
"membros" ou do sensório do indivíduo, do sujeito ou das sociedades
humanas. Os conjuntos "difusos" da Natureza, das Sociedades, das
Subjetividades, dos Sistemas Semióticos e das Maquinárias (propriamente ditas)
formam grandes Mega-Máquinas (molares) compostas por infinitas Micro-Máquinas
(moleculares, atômicas e subatômicas) em permanente processo autoprodutivo.
A
produção, assim entendida, de alguma maneira inclui e reformula categorias que
vão assumindo o "comando" ou a hegemonia em diferentes Momentos e
Imagens do Pensamento acerca da Realização da Realidade, correspondentes às
respectivas Mega-Máquinas históricas. O conceito de Produção (e mais ainda o de Produção
Desejante) incorpora criticamente as idéias de Criação, Emanação, Irradiação, Plasmação, Expressão, Manifestação,
Processão, etc. Essas significações, se bem
sejam consideravelmente
polívocas, denotam ou conotam, em geral, sentidos predominantemente divinos,
sobrenaturais, ultraterrenos, míticos, místicos, religiosos, teológicos e metafísico-transcendentais.
Mais adiante trataremos delas em detalhe.
O
conceito de Produção também inclui
todas as modalidades de produção Natural
(poiesis, concepção, geração, mutação, transformação, evolução, emergência,
etc.), assim como as de produção humana, industrial, artística, social, mental
e "simbólica", em um sentido amplo (invenção, fabricação, construção,
edificação, inspiração, legiferação, institucionalização, etc.) e ainda outras,
particularmente mágicas ou imaginárias, tais como transmutação, metamorfose,
etc.
No
que se refere ao capítulo epistemológico do Determinismo, cabe supor que o
conceito de Produção pode incluir todas as modalidades do Determinismo, tanto
as Causalistas como as Não-Causalistas. Como veremos nas aulas seguintes, o Processo
Produção pode ser de Produção de Produção, de Produção de Registro-Controle, de
Produção de Consumação. Também, em outro sentido, falaremos de Produção de
Reprodução e de Produção de Antiprodução. De acordo com as características de
cada um desses Processos, a Produção opera com todas as modalidades de
Determinismo conhecidas. Mas é na Produção de Produção que apresenta suas
novidades mais insólitas, pensadas com originais derivações, Determinismo
Subatômico, Quântico, etc. Recordemos apenas algumas formas de Determinismo
tais como linear, circular, espiral, interacional, fatorial, estrutural,
dialético, probabilístico, organísmico, teleológico, aleatório, etc. Com
respeito à Causalidade, recordemos que é Conveniente diferenciar: a) a Causação
(que se refere à conexão causal geral e particular); b) o Princípio Causal, que
é o enunciado da Causação como Lei Causal (a mesma causa produz sempre o mesmo
efeito) e enuncia a forma do vínculo causal; c) o Determinismo Causal, que
afirma a validade geral do Princípio Causal, ou seja, que TUDO ocorre de acordo
com o Princípio Causal.
O
conceito de Produção não se reduz à Causação, nem ao Princípio, nem ao
Determinismo Causal, ainda que, como di"zíamos, os inclui em alguns de
seus processos.
Em
geral, a categoria antiga e clássica de Causa era própria do pensamento mítico,
místico e teológico, havendo sido substituída na Modernidade pela Lei e na
Esquizoanálise pela Produção.
Se
tomamos como paradigma o termo Criação,
veremos que se costuma analisá-la em quatro sentidos:
1. Produção Humana de algo a
partir de uma realidade preexistente, mas de tal forma que o produzido não se
encontra necessariamente nessa realidade prévia.
2. Produção Natural de algo
preexistente, mas sem que o efeito esteja necessariamente incluído na causa, ou
sem que haja necessidade de tal efeito.
3. Produção Divina de algo a
partir de uma Realidade preexistente que pode ser um Caos, ou um Cosmos que
teve como origem um Caos prévio.
4. Produção Divina de algo a
partir do Nada ou Creatio Ex Nihilo.
Para
muitos filósofos gregos, a Criação era pensada como um ato de um Fazedor finito
produtor de coisas finitas. O mesmo atuava por procedimentos que eram,
enunciados por analogia com diversas produções humanas (Demiurgo). Para outros,
a Criação é pensada como a produção de algo por parte de um Ser Superior (O
Uno) que se translada e degrada em sua obra (Emanação) ou cuja natureza imutável é comunicada por inteiro a
várias pessoas ou produtos "à sua
imagem e semelhança" (Procissão).
Quando nesse procedimento, a parte de Si, preexistente ou não, que o Ser
Superior delega, translada-se como forças energéticas, o faz pela Irradiação, sem perder nada de sua
própria substância. Quando o Ser Superior opera sobre uma matéria já existente
modificando-a, o faz por Transformação.
Quando as criações do Ser Superior são entendidas como um ato de pensamento ou
de discurso em que Aquele é considerado como um Sujeito emissor, se diz que se Expressa em seus produtos ou efeitos,
ou que se torna visível ou inteligível neles (Manifestação), ou que envolve a apresentação ou que envia uma certa
delegação (Representação), ou é uma
abstração que se materializa (Plasmação).
Para
a Teologia Negativa, pejo contrário, Deus se manifesta por sua Ausência em suas Obras.
Em
todos esses processos criativos, há um vínculo de relativa exterioridade ou uma
sucessão de antecedência e conseqüência entre o Criador e o Criado. Para
filósofos como Guillermo de Occam e Espinoza,
há um contato direto, imediato
e permanente entre ambos os termos, ou seja, uma imanência entre o Criador e o
Criado, sendo a criação um ato contínuo (Panteísmo).
Para
boa parte da tradição judaico-cristã, a Produção por Criação não pode ser
entendida com nenhuma das analogias racionais das que nos valemos para pensá-la
e só pode ser acedida por Revelação. Trata-se de um Ato de um Ser separado e
diferente de suas obras, as quais se extraem do Nada, em que não preexistiam.
Seja que se trate de um ato pontual ou contínuo, o mesmo não atua por nenhum
dos meios e procedimentos conhecidos. Pelo contrário, as produções naturais e
humanas podem ser entendidas como quase-criações, ou como réplicas imperfeitas
e limitadas da Criação Divina.
Em
suma: o que trato de destacar nesta revisão se pode resumir dizendo-se que, na
Esquizoanálise, a Idéia de Produção conceitualiza
uma MULTIPLICIDADE de processos
pelos quais toda a realidade se realiza
a si mesma como auto-criação permanente, ou seja, que é seu próprio agente, seus
próprios meios e seus próprios produtos. Entre tais efeitos estão incluídas
as realidades transcendentes, míticas, mágicas, misticas e teológicas, assim
como as naturais, as subjetivas, as sociais e as técnicas.
É a
Produção, dita nesse sentido, o que produz "de fato", e produz os
conceitos para pensar, "de direito", a "Criatividade" e as
"Criações" ultramundanas... E
NÃO O INVERSO.
REALIDADE E PRODUÇÃO*
Para
compreender a importância e o lugar do conceito de Produção na obra de Deleuze e Guattari, é preciso ir introduzindo
alguns outros conceitos que são seus atributos e propriedades. O principal, por
ora, é entender que realidade é
"tudo" que há e existe (Natureza, Sociedade, Subjetividade,
Parque Maquínico), mas com os seguintes agregados. Para Deleuze e Guattari, a realidade última não consiste nas
citadas categorias de Ser e de Existir, senão no Ser do Devir. Se na ontologia
antiga, clássica e moderna dominante, a essência da Realidade é pensada como o Ser
(já que o mesmo é entendido como eternamente imóvel e igual a si mesmo, Idêntico), ou seja, que lhe admita
alguma transformação ou movimento (O Ser
que passa a existir nos Entes ou o Ser que devém), em Deleuze e Guattari se afirma que o Ser é Devir (pura diferença,
permanente movimento e mudança).
Em conseqüência, para Deleuze e Guattari, a "medula" da realidade é devir, a realidade está em
incessante realização e essa realização recebe o nome de produção.
Mas
como tal produção é Autoprodução, ou
seja, não é gerada por nenhuma entidade exterior à realidade mesma, diz-se que é imanente.
O termo Imanência tem outros valores na obra de
Deleuze e Guattari, mas esse primeiro sentido é o mais importante.
Imanente é um conceito que se opõe
radicalmente a Transcendente. Transcendente é um termo que admite
vários significados, mas o que interessa no sentido de sua oposição com Imanente, consiste em que Transcendente se diz como sendo
"superior" a Imanente, em
especial no que se refere à superioridade
de toda e qualquer entidade divina, sobrenatural, ultraterrena, etc., supostamente criadora, com respeito ao criado por ela.
A
idéia é que a divindade transcende o
criador, está "mais além", "sobressai" e, mais ainda: DEUS É TRANSCENDÊNCIA
• Segunda
aula do Curso Âmago.
Uma dessas significações é
particularmente importante. Refiro-me à que diz que o Mundo é essencialmente incompleto, que lhe falta Deus. Essa
concepção admite variedades do tipo de que "entre Deus e o Mundo existe um
abismo intransponível", ou que existem "graus de transcendência do
Mundo e do Homem que os aproximam de Deus".
Uma
modalidade extrema da Transcendência Absoluta, que é a da Teologia Negativa
(contrária à crença comum de que "Deus está em todas as partes"), é a
que sustenta que o Ser e a Existência de Deus se definem por sua ausência, ou seja, porque "não
está presente em nenhuma parte do Mundo".
Contudo,
é preciso recordar que os pensadores panteístas afirmavam que Deus é "Causa Imanente de todas as coisas",
Deus é sua obra; ou seja, sustentam
a Identidade entre o Criador e o
criado. Essa posição já pode ser considerada um antecedente do Materialismo Imanentista Produtivo de
Deleuze e Guattari. Algo parecido acontece com várias Filosofias ou Mitologias
primitivas e orientais.
É
necessário distinguir entre Transcendente e Transcendental.
Apesar de haver vários significados, no sentido que nos interessa, Transcendental
é uma categoria kantiana, compatível com o pensamento de Deleuze e Guattari. Kant, na
"Crítica da Razão Pura", dedica-se ao empreendimento colossal de
estudar quais são as condições necessárias
que fazem possível o pensamento correto, ou seja, os a priori ou
pré-requisitos para pensar a Realidade, independentemente de que Realidade em
particular esteja sendo pensada (p.ex., "Sujeito",
"Objeto", etc.). Esses são os Transcendentais
Kantianos, alguns dos quais são
adotados por Deleuze e Guattari. Os Transcendentais
fazem possível o conhecimento da Experiência
do pensador. O transcendente é o que
pretende pensar mais além de toda experiência, o qual Kant reserva para a
teologia ou para a religião, e Deleuze e Guattari rejeitam por completo.
Neste momento, digamos que a Produção
em Deleuze e Guattari, na medida em que é o único processo de realização da realidade, divide-se em Produção de Produção,
Produção de Reprodução, Produção de Consumo e Consumação, e Produção de
Antiprodução.
A PRODUÇÃO DE PRODUÇÃO é o processo de incessante geração do novo
como engendramento de
diferenças-singularidades absolutas de toda e qualquer realidade (mais
adiante definiremos estes termos).
A PRODUÇÃO DE REPRODUÇÃO
compreende os processos que tendem à geração do que já foi produzido e já
existe, tal como foi produzido: produção do mesmo, repetição. Os mesmos tendem
a identificar, selecionar, adequar e reprimir as produções a serviço da
manutenção rela tiv a de uma ordem já produzida.
A PRODUÇÃO DE CONSUMO compõe
os processos de uso, usufruto e gozo das realidades produzidas; enquanto
produção de consumação consiste, ao mesmo tempo, no "apogeu" final e
na extinção da trajetória das realidades produzidas.
A PRODUÇÃO DE ANTIPRODUÇÃO
pode definir-se como o processo de destruição das realidades produzidas ou do
impedimento de sua produção.
Todos
esses processos são concomitantes, simultâneos, ínsitos, coextensivos (termos
estes, apenas ilustrativos pedagogicamente)... Imanentes, e, segundo as superfícies,
territórios ou estratos da realidade da qual se trata, predominam uns ou outros.
Muito
sintética e provisoriamente, digamos que as idéias de Deleuze e Guattari tendem
a inverter o célebre esquema de Platão, segundo o qual a realidade estava
dividida em três níveis. O nível das Idéias
Puras, que são entidades ideais, eternas e invariáveis, dotadas
fundamentalmente de Identidade Absoluta,
ou seja, de um Ser imóvel e igual a
si mesmo, modelos de Bem e de Virtude. O nível das Cópias,
que tiveram uma convivência com as idéias puras, as quais lhes davam uma imagem
e semelhança com elas, a perderam, conservando apenas a imagem e perdendo a
semelhança. Estas Cópias, que
aspiram voltar a Ser como as idéias,
podem consegui-lo através do processo Maiêutico,
que é um diálogo com o Filósofo, capaz de fazer-
lhes recuperar seu amor à
Verdade e a sua semelhança com as IDÉIAS-MODELOS. As que o conseguem
serão Boas Copias, as que não, serão
Más Cópias. O nível dos Simulacros, sombras demoníacas que
carecem de todo Ser, de toda Identidade
e Permanência, de toda Imagem e Semelhança com as Idéias Puras, assim como não
aspiram a recuperar a condição de boas cópias. Assim, Platão os considera o
Mal propriamente dito.
Como
se pode entender, os SIMULACROS SÃO PURO
DEVIR, seu fluir está produzindo permanentemente o novo absoluto, a Pura Diferença, a pura Invenção-Produção.
A
proposta de Deleuze e Guattari, baseada nas idéias do filósofo Nietzsche,
consiste em inverter ou subverter o platonismo, ou seja, pensar e propiciar uma
Realidade na qual a dominância seja
a dos simulacros (em termos de
Deleuze e Guattari, A Produção) e não a dos modelos vigentes que tendem à
reprodução-do-que-está-aí, mediante a seleção de Boas Cópias e a destruição das Más
Cópias e dos Simulacros.
Para
concluir, provisoriamente (há outros conceitos que teremos de deixar para as
aulas seguintes), digamos que a proposta consiste em questionar e desconstruir
as superfícies, territórios, estratos e práticas da realidade em que predomina
a Reprodução e a Antiprodução, para uma transformação
revolucionária da Realidade.
Mais
adiante veremos os conceitos que definem como estão compostas as Superfícies
("regiões") da Realidade,
especialmente as que consistem na Pura
Produção, ou, poderíamos dizer, a reformulação que Deleuze e Guattari fazem
do conceito de SIMULACROS: Singularidades, Intensidades, Multiplicidades, Estidades, Etc.
O DESEJO*
O
desejo é um termo de larga tradição no pensamento ocidental.
Uma linha dominante na
Filosofia antiga e clássica distinguia, por exemplo, entre DESIDERO,
proveniente do substantivo SIDUS, que se referia às estrelas, ao ALTO – e a seu
plural SIDERA (Constelação), no sentido da configuração cósmica que
determinaria o DESTINO de cada um ..
Por
esse motivo, era conveniente estar sempre atento ao SIDERA TUS, ou sejá, à
cuidadosa CON-SIDERAÇÃO ou indagação acerca do que os astros reservavam aos
homens. Ao contrário, DESIDERARE consistia em algo assim como "fechar os
olhos" a essa suposta influência – e assumir a própria sorte (Boulesis).
Isto requeria poder lidar com o vazio (Hormé) e correr o perigo (entre outros)
de ser SIDERADO, alcançado por um raio.
Nos
Diálogos de Platão, fala-se do célebre Andrógino (que era por sua vez homem e
mulher) e que, por um acidente, se dividiu, sendo que, a partir desse momento,
cada metade continuaria eternamente buscando sua outra parte perdida. Também
nesta Filosofia, a procura da Verdade exigia desprender o Desejo de sua atração
pelos corpos belos, para poder encaminhá-lo em direção às Idéias Puras.
Em
Espinoza, o DESIDERIUM consistia no impulso provocado pela nostalgia
correspondente ao objeto de um bom encontro, que foi posteriormente perdido. A
memória do mesmo gera tristeza e a vontade de recuperá-lo é o DESEJO. Mas, essa
paixão triste deve ser corrigida pelo Entendimento, que é capaz de analisar os
novos encontros e escolher, entre eles, os que sejam capazes de aumentar a
alegria e a potência de nossos corpos, evitando os que nos envenenam ou
debilitam. Se, ao contrário, substituímos o Entendimento pela Imaginação, nos
entregamos a encontros fantásticos que obscurecem nossa eleição adequada.
Em
Hegel, o Desejo se diferencia da Consciência e é entendido como uma luta de
Consciências (Dialética do Amo e do Escravo). O
• Terceira
aula do curso Âmago.
Desejo aponta o que cada ser
deseja por si mesmo sem tomar em consideração o Desejo do outro. Coloca-se
assim em uma contradição o que deseja ser reconhecido pelo outro e não aceita,
por sua vez, reconhecê-lo. Esta figura que se estabelece entre o Amo e o
Escravo é resolvida dialeticamente, porque o Amo que deseja ser reconhecido
apenas como Senhor da Guerra, não tem medo da Morte, deve aceitar reconhecer o
Desejo do Escravo, enquanto este for imprescindível para a vida, por sua
potência de Trabalho.
Em
geral, pode-se dizer que existe uma oposição entre certas filosofias pré e pós
socráticas que entendem o Desejo como uma força vinculante própria do mundo da
Physis (Natureza, Matéria), que se estende ao mundo da Psyche (Alma, Espírito)
e outras, nas quais o Desejo é pensado como próprio do Sujeito ou do
Pensamento, seja do Homem ou da Divindade.
Algo
dessa oposição é conservado na polêmica mais moderna entre o Mecanicismo (para
o qual tudo o que existe pode ser entendido como máquina) e o Vitalismo (para o
qual tudo que existe pode ser entendido como organismo vivo); ou a que opõe
diversos Materialismos a diferentes Idealismos e Espiritualismos. Mas, para
entender o conceito de DESEJO na ESQUIZOANÁLISE é importante partir da
significação que adquire na Psicanálise Freudiana.
Freud
critica a idéia de que o Sujeito (elemento central da reflexão filosófica desde
Descartes, assim como em muitas psicologias), seja uma entidade unitária,
consciente, racional e voluntária. Para Freud, o sujeito está dividido em um
território consciente-racional-voluntário (sistema pré-consciente – consciente),
e outro, INCONSCIENTE, INVOLUNTÁRIO e IRRACIONAL, ou dotado de uma RACIONALIDADE
diferente. A parte pré-consciente – consciente está radicalmente separada da
inconsciente pela barreira da Repressão (Recalque), de forma tal que o sujeito
consciente não tem acesso cognoscitivo, nem dorrúnio voluntário sobre esta
última.
O
Aparato Psíquico freudiano está· instalado sobre o corpo biológico, que é seu
suporte, mas se diferencia essencialmente dele, em sua natureza e nas leis de
seu funcionamento. Por outro lado, o citado Aparato é uma espécie de conector
entre o corpo biológico e os sistemas culturais ou simbólicos, entre os quais
se destaca a Linguagem. Dito de
uma maneira simples, o
psiquismo é o dispositivo que se encarrega de que o animal FALE e por esse meio se socialize.
As
forças que animam o organismo biológico ou INDIVÍDUO são os INSTINTOS,
tendências estas, indispensáveis à vida, como a fome e a sede (instintos de
conservação do indivíduo) e o sexo (ou instinto de reprodução da espécie). As
exigências dos instintos para serem satisfeitos se denominam NECESSIDADE e a
privação dos objetos capazes de satisfazê-la é vivida como TENSÃO DE
NECESSIDADE. Os objetos da necessidade são relativamente fixos, e não se pode
prescindir deles de forma duradoura, sem comprometer a sobrevivência do
indivíduo. Os instintos sexuais são relativamente adiáveis.
As
forças que mobilizam o Aparato psíquico são denominadas PULSÕES; quando as
pulsões se inscrevem ou carregam sistemas de marcas ou de representações
psíquicas inconscientes recebem o nome de DESEJO, assim como quando carregam
representações pré-conscientes conscientes são chamadas de INTERESSE OU ATENÇÃO.
Um
dos modelos freudianos mais simples e antigo para caracterizar o DESEJO (embora
depois tenha sido corrigido e ampliado), consiste em dizer que se trata de uma
força que recarrega alucinatoriamente as marcas de memória, deixadas pelas
primeiras experiências de satisfação da necessidade no psiquismo. Dessa forma,
se entende que se o objetivo do instinto é a satisfação, o do desejo é o
prazer.
O
desejo, assim definido, não tem objeto real, porque seu objeto é uma representação
imaginária; por outro lado, pode-se afirmar que o desejo pode deslocar-se de
uma "alucinação" para outra, ou seja, que não tem objeto fixo, que a
rigor nunca se "realiza" ou satisfaz, e que seu objetivo pode ser
consideravelmente postergado.
O
Desejo, para ser pseudo-satisfeito ou para tentar infrutiferamente
ser realizado, precisa ativar uma cena imaginária inconsciente que se defj.ne
em Psicanálise como FANTASMA. Só mediante uma série de operações e mecanismos,
o Desejo pode se transformar em interesse ou atenção pré-consciente – consciente
e animar atos mentais, lingüísticas ou comportamentais úteis e sociáveis.
Lacan diferenciou com precisão
DEMANDA, de DESEJO, e de NECESSIDADE. A demanda é uma formulação verbal que
leva implícito um pedido de amor e sua decepção se chama FRUSTRAÇÃO. O desejo
anseia a reativação
alucinatória de um fantasma, na qual, de uma forma ou de outra, se tenta apagar
a separação entre sujeito e objeto, restaurando, assim, um estado narcísico;
sua decepção se chama CASTRAÇÃO. A necessidade exige os objetos materiais
específicos capazes de satisfazê-la, e sua insatisfação se chama PRIVAÇÃO.
Em
um sujeito psíquico, já não se pode especificar as exigências de sua
necessidade (como em um animal) sem considerar a influência que a demanda e o
desejo têm sobre ela.
Como
pode ser apreciado, tanto no discurso filosófico como no psicanalítico, como no
sentido comum, é bastante possível encontrar o termo Desejo dotado dos
seguintes atributos: 1) É uma força impulsora ou animadora de processos em um
indivíduo-sujeita-pessoa. 2) Essa força induz o sujeito a obter objetos (que
ainda que também sejam reais ou simbólicos, no fundo, são imaginários, ou seja,
que em um sentido específico, não existem). 3) Os objetos procurados tentam
reencontrar um objeto supostamente tido e perdido, ou seja, anseiam reativar a
marca com a qual esse objeto ficou na memória (consciente ou inconsciente). A
vivência que caracteriza o Desejo é uma espécie de nostalgia. 4) A aparente
obtenção de um objeto de Desejo dá um prazer transitório, mas, como o Desejo
não tem, a rigor, objeto, é insaciável. 5) Tais características fazem com que o
Desejo continue interminavelmente sua busca do objeto, e que essa procura,
processada por outras instâncias do sujeito, se transforme em animadora de
outros rendimentos psíquicos e culturais superiores.
Quando
Freud descreve as características das instâncias, espaços e sistemas
pré-conscientes e inconscientes, constata que em cada um deles acontecem
funcionamentos, que são chamados de PROCESSOS, que funcionam com peculiaridades
diferentes.
O
pré-consciente – consciente funciona segundo o Processo Secundário. Neste
funcionamento, as forças animam representações de acordo com uma lógica que
coincide com a lógica aristotélica, que todos costumamos reconhecer como sendo
A ÚNICA LÓGICA POSSÍVEL. Esta caracteriza-se pelo Princípio de Identidade (A = A), Princípio de Contradição ( A não é = B), Princípio de Terceiro Excluído ( se A
não é = B e B não é = C, C não é = A). Como se pode ver, no Processo Secundário, existe afirmação ou
positividade, mas também existe negação ou negatividade. É em função disso que
existe idéia e sentimento
de falta, de ausência, de
morte, de diferenças quantitativas e qualitativas, de sucessão temporal, etc.
A partir
de uma leitura Esquizoanalítica, é possível distinguir na Obra de Freud duas
caracterizações diversas de Inconsciente e de Processos Primários. Uma delas
(que chamaremos estrutural ou edipiana), parece mostrar algumas peculiaridades
originais que não são as mesmas que as do pré-consciente – consciente e do
processo secundário, mas também outras bastante parecidas. Por exemplo, A pode
ser A e NÃO/A, assim como certa Ordem que lhe é própria. Mas também em Freud
(em suas teorizações a respeito na primeira Tópica e na Segunda – Conceito de
Id, Ello ou Isso), encontramos uma conceitualização segundo a qual o
Inconsciente – Processo Primário é DRASTICAMENTE diferente do outro.
O
inconsciente – Id – Processo Primário tem a seguinte composição e funcionamento:
1)
Compõe-se de um conjunto infinito de positividades, não tem negação nem
negatividade.
2) Não reconhece falta,
ausência, nem nostalgia alguma.
3)
Não tem Ordem alguma, é um "caos" que Freud compara a um
"caldeirão fervente de estímulos".
4)
Cada um de seus elementos constitutivos é uma "unidade" absolutamente
diferente das outras, que se caracteriza por sua INTENSIDADE (não por sua
qualidade nem por sua quantidade), sendo que sua intensidade pode se definir
como a potência que tem de gerar, a partir dela e de suas combinações com as
outras, algo COMPLETAMENTE NOVO. Essas unidades nem "são" nem
"existem", são puro devir e pura diferença.
5)
Não funciona de acordo com um tempo cronológico, nem com uma lógica
aristotélica, nem com nenhuma outra das já conhecidas e aceitas.
6)
Se se quer relacionar esse processo com o DESEJO, só se pode dizer
(alegoricamente) que seu único "desejo" é o de PRODUZIR O NOVO.
AGORA
ESTAMOS EM MELHORES CONDIÇÕES PARA ENTENDER A IDÉIA DE DESEJO DE DELEUZE E
GUATTARI:
1) o Desejo é o que anima um
processo que não é próprio de uma instância, sistema ou território do
sujeito, senão da realidade
mesma e de sua realização.
2) esse processo é o que
pre-cede (não lógica nem cronologicamente, senão ontologicamente) a tudo o que
reconhecemos como territórios, ou entidades reais circunscritas e definidas (natureza, sociedade, linguagem e, inclusive,
sujeitos) .
3) a este processo, não lhe
falta nada, não pode ser completo nem incompleto porque não é totalizável , mas
sim, infinito, e transcorre intempestiv amente.
4) este processo está
protagonizado por elementos que são: intensidades, diferenças ,
multiplicidades, "estidades" (depois explicaremos estes termos), puros.
5) este processo (que a partir do ponto de
vista de que estamos tratando pode ser chamado de desejante), "não é outra
coisa", "nada mais é", "não
é diferente", é imanente, com o que em outras aulas
conceitualizamos como processo produtivo
– "essência da realidade e de sua auto-realização permanente" ou ser do devir.
6) Em conseqüência, talvez se
possa entender melhor a idéia Esquizoanalítica de introduzir o Desejo (assim redefinido) na Produção, e a Produção
(redefinida, como já fizemos) no Desejo.
A realidade, em especial sua
Superfície da Produção, consiste, "essencialmente", neste processo Produtivo-Desejante... Desejante-Produtivo .
DIFERENÇA E REPETIÇÃO*
Nesta
aula trataremos de resumir o que na obra de Deleuze e Guattari significam os conceitos de Diferença e Repetição,
relacionando-os com os de Ser e Devir, Desejo e Produção. Pode-se dizer, sinteticamente,
que toda a tradição filosófica do Ocidente está atravessada pela oposição entre
duas categorias, a de Ser e a de Devir. Se recordarmos os pré-socráticos,
diremos que, para Parmênides, o Ser se define como eterno, invariável e
idêntico a si mesmo. Em conseqüência, o Ser é igual a si mesmo e sua duração se
evidencia como a repetição do mesmo.
Ao
contrário, Heráclito sustentava que o Ser devém, ou seja, que flui
constantemente, de forma tal que "não podemos nos banhar duas vezes em um
mesmo rio". Apesar disso, Heráclito aceita que o Ser tem uma duração e uma
continuidade que o torna reconhecível através de sua constante variação. Há no
Ser algo que se mantém igual a si mesmo durante o Devir.
Diversas
tradições mitológicas e religiosas oscilam entre sustentar que tudo se repete
igual a si mesmo em ciclos temporais de diferente duração, e outras insinuam
que existem trocas de maior ou menor magnitude, muitas das quais se produzem ao
acaso. Se recordarmos o que já tratamos com respeito à estratificação proposta por Platão, saberemos que as Idéias
Puras, que são o Ser, são em número limitado, idênticas a si mesmas e se
repetem eternamente iguais. As Boas e Más Cópias aspiram a recuperar ou
alcançar as características das Idéias Puras, sem jamais' alcançá-lo
plenamente. Por sua vez, os simulacros são Puras Diferenças, sempre diversas e
carentes de toda identidade, ou seja, são o Puro Devir, e não aspiram à
identidade, eternidade ou igualdade.
Demócrito,
os Sofistas, os Estóicos e os Epicuristas, cada um a sua maneira, apresentam
modalidades de categorizar o Devir como
• Quarta
aula do curso Âmago.
prevalecente com respeito ao
Ser, especialmente no campo da Physis, que mais ou menos corresponde ao que
chamaríamos Natureza.
Dando
um grande salto na história da filosofia, digamos que Hegel sustenta a idéia de
que o Ser, cuja Totalidade é o Espírito Absoluto, protagoniza um processo pelo
qual no princípio é o Ser em Si. Este Ser sai de Si e em todos os campos do
real inicia uma grande trajetória, que se processa de maneira dialética
(Afirmação, Negação – e Negação da Negação, ou Tese, Antítese e Síntese), para
recuperar-se ao final, plenamente realizado, como Espírito para Si. Como se vê,
em Hegel, o Ser é, mas Devém dialeticamente, para concluir sendo plenamente Si
Mesmo.
Com
Kierkgaard e os filósofos existencialistas, o Ser continua tendo algo de
estável e de idêntico, mas devém em um ir-se fazendo a si mesmo constantemente.
Privilegiam, portanto a Existência e não a Essência.
Mas
é com o Panteísmo Espinoziano (em que o Ser é imanente à Substância e se
auto-realiza sem parar nunca), assim como no permanente fluir da Vontade de
Potência em Nietzsche – e na incessante atualização do Virtual em Bergson (que
vai mais além do Real, do Possível e do Impossível), que podemos dizer que se
prepara o conceito de Deleuze e Guattari sobre a questão.
Já
dissemos que estes autores tomam principalmente a idéia de Processo Primário em
Freud e a de Produção como Trabalho Abstrato em Marx. A partir delas encontram
que a "essência universal" da Realidade é a variação incessante, que
o que se repete é Diferença Absoluta, o que os leva a afirmar não só que o Ser
não é estático, nem sequer que devém, senão QUE O SER É O DEVIR.
A
rigor, esse Devir, como geração contínua do Novo Absoluto e da Pura Diferença,
acontece incessantemente no que eles chamam Superfície da Produção, e se
manifesta em todos os campos da Realidade com características caóticas. Não
obstante, devemos recordar que para Deleuze e Guattari, esse Caos produtivo é
imanente a um Caos ordenado, que é produto da atividade produtiva, ou de outra
maneira, que a Produção também produz a Reprodução (aquilo que se repete como O
Mesmo), assim como a Antiprodução (aquilo que destrói o produzido ou impede ou
seleciona a Produção). Conseqüentemente, a chamada Superfície de Registro
detecta, localiza e identifica as produções da
Superfície de Produção,
reprime o que não conseguira Incorporar, captura o que lhe é tolerável e
destrói o que poderia exceder sua capacidade de manter-se segundo a ordem que
ela domina.
Recordaremos
também que isto acontece tanto no nível da subjetividade, como da sociedade, da
política, da história, dos sistemas semióticos, da natureza e do parque
maquínico técnico. A emergência do Novo Absoluto, efeito da Superfície da
Produção, expressa-o por linhas de fuga que escapam ao controle da Superfície
de Registro, ou melhor, por estalos, acontecimentos, revoluções e grandes
metamorfoses dos territórios e estratos da superfície de Registro (em outras
palavras, do Instituído, Organizado, Estabelecido, etc.)
A
importância destas postulações é de incalculável valor e de difícil exposição
sintética, mas podemos resumir dizendo que se trata de uma Ontologia que
fundamenta uma Gnoseologia, uma Ética, uma Estética e, sobretudo, uma Política,
ou seja, uma orientação de Vida, uma Práxis, isso
dito no sentido mais amplo possível.
O
valor Supremo da mesma consiste na certeza de que a "essência" última
da Realidade é o Retomo da Diferença, a Produção e o Devir e que,
conseqüentemente, se trata de viver "apostando" na invenção, na
"criação" e na luta, ou como diria Nietzsche, em "viver
perigosamente", se por perigosamente se entende a desmistificação da
"segurança", da "estabilidade" e da "conservação"
do já consagrado.
Nas
próximas aulas tentaremos ver como está composta essa Superfície da Produção,
"por quê" a de Registro tende ao Controle, e dentro de certos limites
muito precisos, "como se pode fazer para viver inventivamente" .
O MAQUÍNICO*
Na
última aula do semestre anterior, deixamos colocada a denominada Tópica da
Realidade, ou seja, uma das cartografias que Deleuze e Guattari elaboraram para
dar conta da Realidade. Recordamos que se tratava de três superfícies, que,
para fins pedagógicos, desenhamos separadamente, mas que, a rigor, são
imanentes entre si: Superfície da Produção, de Registro-Controle e de ConsumoConsumação.
Dissemos
que os processos nessas três superfícies eram diferentes, ou, dito de outra
maneira, que os predominantes em cada uma das superfícies tinham prevalência de
Produção, de Reprodução e de Antiprodução. O que hoje começarei a fazer é uma
tentativa de caracterizar os "elementos" (por assim dizer) que
compõem o processo da Superfície de Produção. Isto de "elementos" é
apenas uma concessão pedagógica, porque quando virmos os sinônimos ou as
diversas maneiras de definir esses elementos, compreenderemos que se trata mais
de movimentos que de elementos, ou seja, são "unidades" que não se
podem "fixar" ou "deter" como o faríamos com uma
fotografia.
Em
outros momentos destas aulas nos referimos à polêmica entre duas correntes
filosóficas, o Vitalismo e o Mecanicismo. Falamos que cada uma delas tratava de
propor um Modelo Universal para as diferentes regiões e componentes da
Realidade. Para os Mecanicistas, o Modelo era a Máquina, e dada a época em que
essa corrente teve sucesso, tratava-se da Máquina Mecânica (a vapor, p.ex.). De
sua parte, os Vitalistas diziam que o Modelo geral devia ser o de um Organismo
Vivo, tal como a Biologia dos Séculos XVIII-IX os havia estudado.
Apesar
de uma série de diferenças que justificavam a discussão, ocorria que,
considerados no nível "macroscópico", estes Modelos tinham muito em
comum. Ambos postulavam que uma Unidade, mecânica ou orgânica, estava composta
de peças ou de órgãos que tinham que ter um contato entre si, que transmitisse
o movimento e as funções, e devia ter limites externos bem definidos, que
permitissem separar essa
*Quinta aula do curso Âmago
unidade de outras similares ou
do resto da realidade. Essa unidade devia estar animada por uma energia-força,
que no caso das máquinas mecânicas podia ser, p.ex., a da combustão, a da
explosão, etc. Por seu lado, o Vitalismo dizia que essa energia-força estava
dada por um "Elã" (expressão tomada de Bergson), ou seja, uma energia
vital que era impulsora de todo movimento e troca.
Como
também é óbvio, p.ex., que uma máquina mecânica não era produzida pela
conjugação de duas máquinas iguais a ela. Entretanto, um organismo biológico
superior, p.ex., um mamífero, geralmente era engendrado pela cópula entre dois
animais muito similares a ele.
Para
o Mecanicismo, os organismos vivos eram tão máquinas como as demais, apenas
mais complexos, e para o Vitalismo, no caso do Animal Superior de todas as
espécies, o Homem, as máquinas eram prolongações de seus membros ou de suas
funções mentais.
Deleuze e Guattari, estudando
as contribuições de várias filosofias, constroem uma proposta que reúne e
transforma as duas posições antes descritas. Também incluem nessa revisão as
contribuições de todas as disciplinas constituídas, na medida em que as mesmas
começam a "descobrir", em seus respectivos campos, o que se passou a
chamar "Novo Paradigma".
Em
geral, este consiste em que, no nível microscópico ou submicroscópico
das respectivas materialidades com as quais trabalham, aparece uma série de
insuspeitávies peculiaridades. Resumindo ao máximo, as mesmas passam pelo fato
de que, subjazendo a todas as "entidades" "macro" que eles
investigam, encontram-se com um "Caos" "preliminar" de
átomos ou partículas, onde não têm vigência as leis do determinismo causal, e
que está composto por minúsculos "elementos" que se combinam a
velocidades enormes, que se convertem de matéria em energia e o inverso, e que
comportam uma força de auto-produção que lhes permite gerar as entidades
"macro" que compõem. Em termos filosóficos, poder-se-la dizer que se
trata de um Materialismo Neo-Funcionalista Molecular. Basicamente consiste em
que, se tomarmos as unidades naturais, viventes ou não – e as máquinas de
qualquer característica, a nível molecular ou "micro", chega-se à
conclusão de que o "Modelo" da Realidade consiste em que esta é
constituída por minúsculas "Máquinas" que se formam por si mesmas ao mesmo tempo em que funcionam, que estão
completamente
dispersas, embora conectadas
por sínteses peculiares, e que ainda não
estão caracterizadas como as especificidades que vão vir a formar no nível
"macro".
Esses
"elementos" micro não são perceptíveis nem pensáveis em termos de
extensão, quantidade e qualidade, como o são as entidades "Macro".
São pensáveis e detectáveis porque dotadas de uma série de propriedades que
fomos estudando no curso destas aulas, a partir de uma série de conceitos
especulativos filosóficos. São Puras Intensidades, são Multiplicidades, são Hecceidades ou Estidades, são Devires,
são Fluxos.
Deleuze
e Guattari as designam pelo nome de Máquinas Desejantes, que estão dotadas de
todas as peculiaridades que os conceitos antes expostos detêm.
Essa
denominação de máquinas desejantes está tomada de um estudioso das esculturas
modernas animadas, chamadas gadgets, que são maquininhas elétricas ou
eletrônicas, organizadas ciberneticamente, cujo funcionamento persegue apenas
um efeito estético. Entre essas maquininhas estão algumas denominadas
"Celibes" ou também "Máquinas de não-fazer-nada", etc.
Nestas máquinas o traço essencial é que funcionam apenas "por funcionar",
ou seja, o funcionar é seu único e último sentido.
Mas
Deleuze e Guattari vêem no funcionamento das Micro-Máquinas
que compõem essa Realidade pluripotencial – "Pré-liminar" à sua
integração molar, que constitui as unidades "Macro", o processo de
"Realização da Realidade". Algumas das características desse Processo
são as do Processo Primário descoberto por Freud no Inconsciente do Sujeito
Psíquico, a que já nos referimos. Daí provém a denominação de Desejantes (que
não tem nada a ver com que "algo" ou "alguém" deseje seu
funcionamento), cujo único sentido é a Produção.
As
máquinas desejantes podem diferenciar-se em Máquinas Fontes (que geram um fluxo
energético) e Máquinas Órgão (que o cortam). As máquinas Desejantes se conectam
entre si (baseados nessas duas operações de Fluxo e Corte), em infinitas
direções e combinações, segundo sínteses diversas, que acabam dando os
processos macro de Produção, Registro e Consumação-Consumo.
Estas
sínteses se realizam sobre uma superfície chamada "Corpo sem Órgãos",
que veremos nas aulas seguintes. Por hora,só deixaremos colocadas as
denominações de tais sínteses: Síntese Conectiva de
Produção, Síntese Disjuntiva
de Registro e Síntese Conjuntiva de Consumo-Consumação. O processo Produtivo
que protagonizam as Máquinas Desejantes é denominado Processo Esquizoonte, em
homenagem ao funcionamento "psíquico" dos esquizofrênicos, mas
entendido não como uma entidade nosográfica já deteriorada e doente que a
Psiquiatria classifica e trata, mas sim considerado como um funcionamento que,
pelo menos a princípio, se dá na experiência e vivência esquizofrênica.
AS MÁQUINAS DESEJANTES*
Em
aulas anteriores estivemos falando das três superfícies que compõem a Tópica da
Realidade, segundo Deleuze e Guattari. Também conversamos em diferentes
contextos sobre alguns temas que são típicos destes autores. Nesta oportunidade
tentaremos uma introdução acerca dos "elementos" que integram a
superfície da Produção. Estes elementos, de difícil compreensão, apreendem as
características que comentamos acerca da diferença, dos simulacros, das
intensidades, dos devires, das estidades, das multiplicidades, etc. De forma
que, apesar de ser complicado definir os mencionados elementos, não o é tanto
se recordarmos todos esses termos explicados em aulas anteriores.
A
Superfície da Produção está "povoada" por duas "entidades"
(muito estranhas por certo). Elas são as MÁQUINAS DESEJANTES e o CORPO SEM
ÓRGÃOS. As MÁQUINAS DESEJANTES (MD) são elementos de regime binário e de
"natureza" intensiva e singular. São multiplicidades cuja combinação
se efetua como sendo tudo o que compõe a realidade. Nesse sentido é que se pode
dizer que são "Pré": "Pré-naturais",
"Pré-sociais", "Pré-subjetivas",
"Pré-semióticas", "PréMaquinárias ou
Tecnológicas".
Esse
termo foi tomado de um livro de M. Courreges, um especialista em crítica
Estética, e se refere às esculturas modernas e pósmodernas,
que freqüentemente se formam com maquininhas cibernéticas, animadas elétrica ou
eletronicamente. Um nome que essas maquininhas recebem é o de gadgets. Entre
essas esculturas estão algumas muito curiosas, como "A máquina de não
fazer nada", "A máquina Celibe", etc. O interessante dessas
máquinas é que, usando elementos da tecnologia moderna, produzem exclusivamente
um efeito estético, que entre outras peculiaridades possui a capacidade de
desvinculá-las por completo de suas finalidades "práticas" ou
utilitárias no mundo contemporâneo. Por outro lado, algumas delas são capazes
de construir-se ou destruir-se a si mesmas, de "formar-se" ou de
"transformar-se" ao mesmo tempo em que funcionam.
• Sexta
aula do Curso Âmago
É
preciso, para pensar as MD, tratar de descartar por completo as imagens de
forma, estrutura, conteúdo e função que todos evocamos quando pensamos em uma
máquina qualquer de nossa cultura. As MD se dividem em dois tipos: máquina
"fonte" e máquina "órgão". A máquina fonte extrai e emite
um fluxo "energético", a máquina órgão o corta. Mas a máquina que
funcionou como cortadora de fluxo na primeira combinação pode, por sua vez, converter-se
em uma máquina fonte de fluxo em uma segunda combinação. As MD podem, então,
combinar-se em todas as direções e em um tempo que é próprio a elas e que não
se confunde com o tempo cronológico, nem com o retroativo. Como se pode
imaginar, as Máquinas Desejantes formam um Rizoma (rede vegetal da qual já
falamos). A rigor, sua conceituação pode ser entendida como uma tentativa de
pensar modalidades de Ordem próprias do Caos, sobretudo apontando que desse
Caos vão surgir todas as "entidades claramente ordenadas" das
Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo, que já
conhecemos e que habituamos a considerar como sendo a realidade em si mesma.
As
Máquinas Desejantes, na Superfície da Produção, se acoplam pela Síntese
Conectiva de Produção e é por meio delas que geram todas as realidades
"pré" àsquais já nos referimos. Esse regime de acoplamento pode ser
verbalizado por meio da conjunção "E". É isto "E" o outro
"E" os demais, etc. Também cada MD é, assim, uma singularidade, e
integra um poliverso infinito de diferenças positivas absolutas. Não só que o
que as une são fluxos, mas que elas também se formam e se transformam na medida
em que funcionam (devires). Seu conjunto, então, integra esse poliverso aberto
de infinitos todos, a que cada nova parte produzida se agrega como "uma
parte a mais". Nesta superfície é que se dá o tipo de
"organização" que Deleuze e Guattari denominam "Molecular"
ou "Micro".
Este
tipo não tem a ver exatamente com "o pequeno", entendido como uma
dimensão extensiva e temporal da Superfície de Registro. Mas são as mesmas
máquinas que, quando integram a Superfície de RegistroConsumo,
fazem-no mudando seu regime, por meio de Síntese Disjuntiva, pelas quais geram
territórios, meios, estratos, assim como todas as entidades que conhecemos
clara e separadamente. Neste plano, as sínteses funcionam separada e
optativamente. As entidades da
Superfície de Registro são
"ou" isto, "ou" aquilo, "ou"... assim
sucessivamente.
Esta
conceituação está tomada da Filosofia de Kant. Kant disse que a entidade
suprema desta Superfície é Deus, como "Senhor do Silogismo
Disjuntivo" que é o recurso básico para pensar as coisas do mundo separada
e ordenadamente. Algo similar ocorre na Superfície de Consumação-Consumo, em
que as MD funcionam em base às Sínteses Conjuntivas. Nela, as entidades chegam
à sua realização total ou a seu consumo umas pelas outras, o qual fecha seu
ciclo. Este nível, das Superfícies de Registro-Controle e de Consumação-Consumo
é o "Macro" ou "Molar", que não tem a ver, necessariamente,
com o que é "grande", mas com um modo de organização dos conjuntos
chamados, na física, "Molares", que obedecem às leis dos grandes
números, assim como a um determinismo causal preciso.
As
MD na Superfície de Produção se dispõem sobre um "sustentáculo" (ou
poderíamos dizer, um "não-espaço") denominado Corpo sem Órgãos. O
CsOs (Corpo Sem Orgãos) é o "Grau Zero das Intensidades", o
"improdutivo", o "incriado" da Produção. Seu conceito está construído
a partir das Idéias previstas pelas religiões hinduístas, que falam de um
"Ovo Tântrico". Também contribui a mitologia de uma comunidade
primitiva, os Dogon, que falam do Universo como um "Ovo Cósmico".
Finalmente, intervêm também os descobrimentos da Biologia Molecular Moderna,
que fala do Ovo Genético. Todo estes "ovos" têm a peculiaridade de
gerar tudo, mas de estar, em si mesmos, compostos não de "partes"
morfologicamente determináveis, mas de "eixos", "limiares",
"graus" de força gerativa pluripotente. Dessa maneira, é impossível
saber que "região" destes virá gerar cada parte das realidades
circunscritas que são capazes de produzir.
Como
veremos mais adiante, as relações entre o CsOs e as MD são complexas (atração,
repulsão). De acordo com o predomínio
de algumas delas, o papel do CsOs na Superfície de Produção é diferente da de
Registro. Na Superfície de Registro, o CsOs funciona como "Corpo
Cheio", uma entidade que se apropria de toda a Produção e a faz aparecer
como gerada exclusivamente por ele de uma maneira milagrosa. O CsOs não se opõe
conceitualmente ao Corpo (biológico, p.ex.) nem aos orgãos, senão ao
"organismo", ou seja, ao Corpo já ordenado da Superfície de Registro.
As
relações na Superfície de Produção entre o CsOs e as MD concluem por produzir
tudo o que existe. No nível da Superfície de Registro essas produções se
evidericiam como "linhas de fuga", "desterritorializações"
e "acontecimentos" de qualquer "natureza", que são os
responsáveis por todas as mudanças revolucionárias-desejantes que
metamorfoseiam a realidade tal como podemos vê-la na Superfície de
Registro-Controle. Essas "novidades" radicais se apresentam como
"Individuações", ou seja, como novas entidades que não pertencem a
nenhuma espécie conhecida. São o "anômalo", o que não é nem normal,
nem anormal.
CORPO SEM ÓRGÃOS*
Temos
falado prevalentemente, nas aulas anteriores, das Máquinas Desejantes (MD);
nesta, trataremos sinteticamente do Corpo sem Órgãos (CsOs).
O
CsOs, usando uma metáfora pedagógica, é uma espécie de "suporte" das
MD. Também pode-se dizer, mais corretamente, que é um Pré-plano sobre o qual se
agenciam as MD, é dizer, sobre o qual efetuam suas sínteses.
Cada
dispositivo ou agenciamento, tanto quanto grandes configurações como o Estado,
se "maquinam" sobre um CsOs. Cada uma delas constrói um, e ainda que
Deleuze e Guattari sustenham que pode haver um CsOs que reúne a todos, esse
ponto não parece inteiramente esclarecido. Também se diz que o CsOs é o
"grau zero" de intensidade. Talvez essa afirmação possa ser entendida
como significando que o CsOs é o que
ainda não começou a desdobrar-se como MD.
Em
princípio, a Idéia de CsOs está tomada de um poema de Artaud, no qual o genial
autor critica tudo aquilo que seja organismo, dito no sentido de organizado.
Refere-se principalmente ao corpo biopsíquico, mas parece aludir a
tudo o que é ordenado e organizado. Artaud postula construir um corpo composto
de "sangue e de ossos"; obviamente, é um corpo impossível, mas
contribui para sugerir a Idéia de que existe um corpo potencial, que não é
inimigo dos órgãos, senão da organização, considerada como inapelável ou única.
Em
segunda instância, Deleuze e Guattari tomam a Idéia de CsOs das religiões
hinduístas (Corpo Tântrico) e da mitologia da comunidade Dogon (Ovo Cósmico).
Estes "corpos" se caracterizam por estarem percorridos por fluxos,
que cursam de acordo com eixos, que se distribuem em gradientes e que formam
áreas energéticas móveis caracterizadas por graus de intensidade. É a partir desses "ovos" que vai
diferenciar-se tudo aquilo que integra o que chamamos "Realidade",
mas isso não implica que no nível do Ovo vigore propriamente uma
indiferenciação. Pelo contrário, as diferenças intensivas do CsOs são as
• Sétima
aula do Curso Âmago
puras e reais diferenças,
apenas não estão dadas nas dimensões da temporal idade e da espacial idade,
senão na dimensão da potência.
O
ovo genético também pode ser entendido dessa maneira; apesar de que o
repertório genético já tenha sido identificado e classificado pontualmente, em
SEU CONJUNTO, opera como um CsOs, dado que, por exemplo, a partir dele, não se
pode determinar que "parte" do ovo irá dar em cada órgão ou membro.
Primeiro se diferencia, digamos, um braço, e só depois se decide se haverá de
ser direito ou esquerdo. Também o funcionamento do Cérebro, p.ex., pode ser
entendido desta maneira.
Na
Filosofia de Espinoza, a Substância é o conceito que parece reunir
características similares. A Substância é geradora de tudo o que É. Ela tem
infinitos atributos (que são traços que definem a Substância), que se vão
realizar como um número limitado de Modos. A Substância é onipotente, e nela
estão potencialmente incluídas suas produções. Por isso é que se qualifica a
Filosofia de Espinoza como panteísta, dado que uma Substância tem os mesmos
poderes que Deus, é Deus.
O
filósofo Leibniz afirma que a realidade está composta por unidades
incomunicáveis entre si, cada uma das quais "vê o mundo" desde seu
"ponto de vista". Dentro dessa pluralidade de mundos (mundos
a-paralelos) vão adquirir realidade os mundos que serão
"compossíveis" ou "co-possíveis". A unidade dessas mônadas
se faz em Deus, Mônada das mônadas, que é quem decide qual dos mundos
compossíveis é o melhor. As mônadas estão distribuídas em capas, cada uma delas
infinitamente dobrada. Deleuze tem estudado como a arte Barroca tem uma
modalidade típica perfeitamente articulável com a Filosofia de Leibniz.
O
filósofo Kant escreveu que a Matéria tem quantidade e qualidade, mas que existe
uma "terceira dimensão" que são as "qualidades intensivas".
É o que Deleuze e Guattari tomam para postular as Intensidades Puras, que só se
realizam como "individuações" inusitadas, cuja originalidade só pode
ser medida como um "grau", por exemplo, uma cor, ou um som, ou um
verão. Cada uma dessas realizações tem uma singularidade que só pode ser
identificada como sendo um "grau de si mesma".
Nietzsche
sustentava que a toda realidade subjaz uma capacidade, que denomina Vontade de
Potência. Não se trata de que esta
Vontade seja de algum Sujeito. A Vontade de Potência pode até
constituir sujeitos, animais, etc. A Vontade de Potência se distribui em Forças
(Forças Ativas e Forças Reativas). As Forças Ativas tendem a gerar o Novo. As
Forças Reativas se opõem a esta produtividade. Nietzsche faz uma formidável
crítica dos valores vigentes no Ocidente, especialmente na medida em que os
considera como expressões do triunfo das Forças Reativas que podem conduzir a
Vontade de Potência ao extremo de ser V ontade de "Nada". Propõe uma
trans-valoração de todos os valores a serviço dessa invenção e dessa Vida.
Do
filósofo Bergson já temos falado em várias oportunidades. Sua idéia é que a
Realidade é mais que o Real (admitido por todos), o Possível e o Impossível.
Diz que o Impossível se define como o que não é Possível, e este se define como
o que "pode vir a ser Real", quer dizer, define-se desde o Real. Real
e Possível têm assim um mesmo conceito. Mas a Realidade está composta também
pelo Virtual, ou seja, pelo que ainda não se atualizou. Sendo que, ao
atualizar-se, transforma radicalmente o que se considerava Real, Possível e
Impossível. Acontece que o Virtual, ainda sendo a parte mais importante da
Realidade, é impensável, impredizível, dado que tem outro conceito que o de
Real, o de Possível, etc.
Como
se vê, todas estas Idéias são aplicáveis à construção do conceito de CsOs. Em
suma, o CsOs, em Deleuze e Guattari, é outro dos recursos para tratar de pensar
o Caos e sua relação com o Cosmos. O Caos vai ser pensado como positividade, e
não apenas como falta ou ausência das características do Cosmos-Ordem.
O
CsOs, no nível da Superfície de Registro-Controle, vai ser modulado como Corpo
Cheio, ao qual nos referiremos, mais detalhadamente, nas aulas seguintes.
SUPERFÍCIES*
Nas
aulas anteriores temos deixado caracterizadas as Superfícies de Produção, de
Registro Controle e de Consumo Consumação.
Temos
explicado como estas superfícies são imanentes entre si e compreendem tudo o
que pode ser incluído na Realidade.
Nas
diversas Superfícies transcorrem diferentes Processos, ou seja, o andamento ou
movimento próprio de cada uma delas.
Os
diferentes Processos também são imanentes entre si, de maneira que, no nível de
alguns de seus efeitos circunscritos, o que se pode detectar é o predomínio
relativo de um ou outro dos Processos com suas respectivas peculiaridades.
Na
Superfície da Produção, acontece um Funcionamento que é próprio do chamado
Processo Produtivo-Desejante. Os "elementos" que estão em jogo nesse
processo, como já é sabido, são as Máquinas Desejantes e o Corpo sem Órgãos. O
processo Produtivo-Desejante corresponde a uma dimensão que Deleuze e Guattari
chamam de Molecular. A rigor, à nossa
maneira de ver, o termo Molecular não é exatamente o mais apropriado, talvez
fosse melhor falar de "subatômico" ou de "particulário".
Esse processo reúne certas características que são próprias do mundo das
partículas subatômicas (elétron, neutrino, neutron, próton, etc.). De toda
forma, nessa dimensão se operam fenômenos que são inteiramente insólitos, tanto
para a Macrofísica, como para o observador leigo. É sabido que, a essa escala,
é impossível determinar, ao mesmo tempo, a posição e a velocidade de uma
partícula (princípio de Indeterminação de Heisemberg). É conhecido que nessa
dimensão pode-se constar a transformação entre massa material e energia, a
existência de "paquetes" de energia, chamados "Quantas", a
coexistência e interconversibilidade de "corpúsculos" e de
"ondas", etc. Também a experimentação com esses sub-microelementos
permite afirmar que os mesmos "se formam ao mesmo tempo em que funcionam
ou operam" e que "carecem" da especificidade que adquirem nos
Conjuntos Molares da Superfície de Registro-Controle ou de Consumo-Consumação.
Neste
*Oitava aula do curso Âmago
nível Molecular, existem
super-catalisadores (ou seja, elementos tais como a chamada, em Biologia
Molecular, "Proteína Alostérica", que é capaz de propiciar
combinações entre elementos que não têm, normalmente, afinidade química, de
maneira que essas uniões podem produzir substâncias superiores que são
"quimicamente impossíveis".
Outra
característica surpreendente do Processo Molecular é que, nos espaços em que
este se desenvolve, pode se dar um fenômeno local, que gere outro que lhe é correlativo a uma considerável distância, sem que se possa determinar qual é o
veículo ou o substra to condutor dessa influência causal (ação à distância).
Por outra parte, as conexões entre os mencionados "elementos" são
realizadas em todas as direções e de maneira incessante, de forma tal que estão
produzindo infinitas novidades materiais sem interrupção.
Por
sua parte, o Processo Molar está regido pelo que se conhece em estatística como
leis dos Grandes Números. Como são os Processos próprios da Superfície de
Registro-Controle e de Consumo-Consumação, os "elementos" se agrupam
para constituir as unidades amplamente conhecidas como constituindo as partes
dos grandes conjuntos molares com suas respectivas especificidades (Naturais,
Sociais, Subjetivas, Maquinais ou Tecnológicas). Neste processo regem
perfeitamente as leis da causalidade e do determinismo (Causalidade Linear,
Monocausalidade, Policausalidade, Causalidade Circular, Interacional, Fatorial,
Dialética, etc.). Esses conjuntos são totalizáveis e reconhecem limites bem
circunscritos. Os conjuntos podem estar delimitados como Estratos, Substratos,
Paraestratos, Territórios, etc. Como se vê, os termos usados são de origem
Geológica e Etológica. O andamento do processo Molar, no nível de cada uma das
entidades circunscritas da Superfície de Registro-Controle, nós o temos
denominado Função. As funções são eminentemente reprodutivas e antiprodutivas,
tanto quanto os funcionamentos moleculares são produtivos.
Ao
funcionamento do Molecular, Deleuze e Guattari o chamam Inconsciente (pensamos
que como alegoria do Sistema Inconsciente do Aparato Psíquico, segundo a
Psicanálise). Cada
dispositivo que se pode montar como invenção na Realidade tem um Inconsciente,
dado pelo processo desejante-produtivo molecular, que se produz a si mesmo, na
forma de um Ciclo em que só se
repetem as diferenças. Isto é, "cada Inconsciente" é diferente do
outro.
O
que estudamos como Corpo sem Órgãos forma, no nível das entidades predominantes
da Superfície de Registro-Controle, um Corpo Pleno. Este subjaz a uma entidade
chamada Eminente, que varia em cada formação histórica de soberania, a qual se
apropria de todo o Desejo e de toda a Produção de uma Era ou de uma Época. Nas
Formações Primitivas era a Terra; nas Imperiais, o Corpo Pleno do
Imperador-Divino; no Capitalismo é o Corpo Pleno do Capital Dinheiro. A
entidade correspondente ao Corpo Cheio de cada Era propicia certa produção da
Superfície de Produção e dela se apropria; no entanto, inibe ou destrói todas
as outras que não possa detectar, classificar e incorporar.
Quando
predomina o funcionamento sobre a função, ou seja, a Superfície de Produção
sobre a de Registro-Controle, as entidades da Superfície de Registro-Controle
se desterritorializam e desestratificam, dando lugar à aparição de novidades
como linhas de fuga e acontecimentos que, em suma, são emergências do Novo
Absoluto, que sempre tem um caráter Revolucionário, seja qual for a
peculiaridade que adquiram segundo o campo do Registrado em que surjam.
Brevemente
nos referiremos à Representação, dizendo que é o processo pelo qual uma
realidade considerada ausente se re-apresenta em outra, que supostamente a
substitui. Bons exemplos desse processo estão dados por certa concepção da
linguagem falada ou escrita, assim como das Artes, que afirmam que os sistemas semióticos
ou estéticos são formas de EXPRESSÃO de um sujeito ou de REPRESENTAÇÃO da
realidade. Outro exemplo são os sistemas políticos em que se supõe que as bases
ou o "povo" participam na condução política através de seus
"representantes", escolhidos eleitoralmente ou não. Daí o termo
Democracias Representativas, que, segundo podemos ver, não são autenticamente
representativas de seus representados, seus desejos e interesses. Deleuzee
Guattari formam parte de um conjunto de pensadores que criticam a idéia de
representação e são partidários de pensar em termos de como cada entidade
funciona, e não o que representa.
CAOS E COSMOS*
A
proposta Esquizoanalítica, como já reiteramos, é a de uma composição de
fragmentos tomados de diversos saberes e de diferentes práticas. Estes
fragmentos são tomados de seus Sistemas de origem, sem preocupação pelo
significado exato que têm dentro da citada sistematicidade. Amiúde, esses
fragmentos inseridos no contexto dos escritos Esquizoanalíticos conservam certa
similitude com o sentido que tinham primeiramente, mas já funcionam de uma
maneira diferente nesse novo contexto. Outras vezes, essa inserção lhes
proporciona um valor completamente diferente, e, sobretudo, inteiramente novo.
Como já dissemos também, o texto Esquizoanalítico tem uma vocação que podemos
resumir, muito precariamente, como enfatizado no TRANS e no PRÉ.
É
PRÉ no sentido de Pré-ontológico, ou seja, trata-se de um enorme esforço para
conseguir pensar e expressar como funciona "a realidade",
"antes" de constituir-se como tal, segundo as formas materiais ou
ideais que conhecemos e aceitamos e segundo as energias já vetorizadas como
forças, que animam essas formas.
É Transdisciplinar porque
trabalha com uma transversalidade conceitual que interpenetra as diversas
disciplinas epistemologicamente consagradas como tais. Também é TRANS no sentido de incluir fragmentos
filosóficos, literários, místicos e até leigos, dito no sentido muito amplo,
que chega até no aproveitamento de elementos dos discursos e escritos
"delirantes".
De
toda forma é importante entender que o texto Esquizoanalítico não se propõe
como um META ou um SUPRA MODELO, que seria válido para reger quaisquer dos
territórios do saber estabelecido. Poderíamos dizer que se coloca "ao
lado", ou penetrando nos mesmos para infundir-lhes novas dimensões.
No
campo das disciplinas científicas constituídas como tais, é sabido que existe o
momento da Fundação de uma Ciência, que algumas Epistemologias denominam de
Ruptura ou Corte Epistemológico,
• Nona aula
do Curso Âmago
segundo o qual uma Ciência
começa – e o faz diferenciando-se da Ideologia pré-científica que a precedia.
Logo
chegam períodos de re-fundação ou de desenvolvimento e aperfeiçoamento da
citada ciência, que pode chegar até a ser substituída, por uma Nova Ruptura e
nascimento de uma outra Ciência. Alguns historiadores da Ciência e da
Epistemologia sustentam que o devir do panorama científico, considerado em
geral, permite reconhecer uma espécie de Modelo Geral ou Paradigma que resulta
de uma abstração das características principais e sui generis que
apresenta o conjunto das ciências em determinado momento. Esse Paradigma se
estabelece em etapas nas quais as ciências parecem coincidir em certos traços
lógicos de seus esquemas teóricos. Estas eras são consideradas revolucionárias
porque o novo Paradigma que se impõe vem substituir criticamente um anterior.
Logo, o devir das ciências entra em períodos que se podem chamar
"normais", durante os quais se aprofundam, se detalham e se aplicam
os novos achados, mas nos quais as transformações não chegam a ser de uma
magnitude que altera o Paradigma estabelecido.
É
freqüente que o Novo Paradigma se estabeleça a partir das invenções de UMA das
ciências da Época, que opera uma ruptura pregnante e que influi sobre as outras
ciências que lhe são contemporâneas, contribuindo notavelmente na implantação
do Novo Paradigma Geral.
Já
destacamos que, a partir das chamadas grandes revoluções científicas, tais como
a Copemicana (completada por Galileu e Newton), assim como a Darwiniana, a
Marxista, a Freudiana, a Saussureana, dentre outras, formou-se um Paradigma
determinista predominantemente causal, que tem regido há quase quatrocentos
anos o panorama disciplinar mundial.
Há
mais ou menos cinco décadas, e especialmente nas últimas duas, os avanços da
Macro e da Microfísica, tanto quanto os da Biologia Molecular, da Microquímica
e das Ciências Exatas (Matemática, Geometria e Lógica), assim como suas
repercussões nas Ciências Humanas, vêm formando um Novo Paradigma. Pela via da
chamada causalidade fatorial, da probabilística e da aleatória, se vêm abrindo
outras formas de pensar a Produção, que, sem chegar a ser totalmente
Indeterministas, questionam seriamente as formas clássicas da causalidade.
Essa
metamorfose tem ido bastante mais além até chegar a caracterizações
transdisciplinares que adquirem a peculiaridade que Deleuze e Guattari atribuem
a vários saberes, dentre eles a Esquizoanálise mesma. Trata-se de teorizações e
de modos de operar "Anexactos, mas rigorosos". Um pequeno exemplo
tomado da Geometria pode ilustrar essa idéia. Um círculo, por exemplo, é uma
entidade geométrica formal abstrata perfeita. Uma circunferência, já
objetivamente traçada, é um caso formal concreto que não tem a
"perfeição", nem admite um tratamento puramente formal como o
primeiro. Agora, um redondel é uma
singularidade única e irrepetível, que só admite uma abordagem relativamente
única, que pode chegar a ser "anexacta, mas rigorosa". Rigorosa,
digo, no sentido de inteligível, comunicável, mas não repetível com total
exatidão.
O
universo do Novo Paradigma, essa individuação, esse "concretado" ou
"objetivado", questiona o Modelo de funcionamento totalmente
calculável, ordenado, previsível e explicável causalmente. Trata-se de
reconhecer o Poder criativo das Realidades ou das Pré-Realidades
caóticas ou caósmicas, que, vistas desde os territórios convencionais, seriam
irregulares, desordenadas, imprevisíveis, inexplicáveis, indeterminadas,
a-racionais, etc.
Tanto
nas Ciências Exatas, como nas Naturais e, por extensão, nas chamadas Humanas e
Sociais, tem-se desenvolvido, desde há mais de vinte anos, uma série de estudos
sobre o funcionamento acidental, incidental, ocasional, catastrófico,
turbulento, etc. Esses termos, mais ou menos, explicam por si mesmos a natureza
e o tema dessas investigações.
Por
exemplo, na dinâmica dos fluidos ou dos gases, das correntes elétricas ou das
magnéticas, assim como nas passagens de estado, de gasoso para líquido, líquido
para sólido, de regular e ordenado para turbulento, etc., os cientistas; têm-se
dedicado a estudar o que chamam de Interface, ou seja, a passagem de uma
condição ordenada e determinista a uma desordenada e caótica, e vice-versa. Têm
encontrado, assim, em diferentes áreas da realidade, que é durante essa passagem que se destroem
entidades específicas e que surgem outras qualitativamente novas. Têm
compreendido que é a partir do Caos ou do semi-caos, onde os elementos estão
animados de um movimento turbulento e de velocidades incalculáveis, que acabam
se produzindo as formas, substâncias e forças que geram entidades inéditas.
Muitas
neo-disciplinas (setoriais de outras convencionaIs ou inteiramente originais)
têm emergido desta inspiração, tais como a teoria das Catástrofes, as teorias
dos Jogos, a teoria dos Objetos Fractais, as teorias do Caos, etc. Em outras
palavras, tem-se aprendido a revalorizar, dentro da oposição Cosmos-Caos, a
importância geradora do Caos, tanto quanto as funções seletivas e repressoras
do Cosmos e a importância dos estados intermediários entre uma e outra destas
realidades.
É
claro que os pesquisadores procuram formas determinísticas de dar conta das
vicissitudes de tais relações, pois a peculiar essência do Caos os vem
obrigando a pensar outros conceitos, funções e variáveis que permitam entender
essa dinâmica, e que carecem da exatidão postulada pelo Paradigma da Ordem e do
Determinismo.
Um
dos fenômenos estudados se denomina Autopoiesis, que, apesar de ser originário
da Biologia, tem-se transladado a outros campos para denominar os fenômenos de
autoprodução e de auto-crescimento que muitas entidades demonstram. Isso tem
influenciado também a idéia de Tempo, sendo que o Tempo atribuído a esses
processos funciona como uma flecha irreversivelmente progressiva que não
obedece, por exemplo, às leis da Inércia nem da Entropia, leis clássicas da
Termodinâmica.
Só
para concluir, digamos que, na Esquizoanálise, a Superfície da Produção está
animada por esse tipo de funcionamento que o "Novo Paradigma" e estes
novos ramos da ciência estão "descobrindo". Neste ponto cabe colocar
que, quando falamos que o Corpo Sem Órgãos se converte, no nível da Superfície
de Registro Controle de algumas formações históricas, em Corpo Cheio, o mesmo
funciona como o que Deleuze e Guattari chamam de Quase-Causa. Isso está dito no
sentido de que esse Corpo Cheio, na realidade, tem sido produzido pela
Superfície de Produção e em si mesmo é bastante improdutivo, pois como se
apropria da Produção de toda uma Época, se atribui a si mesmo toda a Produção e
acaba sendo considerado como se fosse uma Causa ou uma Com-Causa ou Quase-Causa
de tudo o que existe.
SUJEITO E
SUBJETIVAÇÃO*
Nas
aulas anteriores temos explicado que a Esquizoanálise parte, para definir o
Sujeito, principalmente das postulações Psicanalíticas a respeito.
Na
obra freudiana, sucessivos Modelos do Psiquismo são expostos, desde o
"Projeto de uma Psicologia para Neurólogos" até a "Segunda Tópica", passando
pela Primeira Tópica, a Teoria Pulsional e, principalmente, pelo Complexo de
Édipo. Sabemos que, atravessando todos esses modelos, há duas operações que são
as principais constituintes do Sujeito, segundo a Psicanálise: A IDENTIFICAÇÃO
E O INVESTIMENTO. O investimento é a aplicacão da Libido aos objetos que lhe
vão correspondendo durante a chamada "Evolução Psicossexual" do
Sujeito. A partir dessa etapa inicial do chamado Estado Autoerótico (em que o
pré-sujeito é um conjunto não unificado de zonas erógenas, cada uma das quais
gera uma pulsão parcial que se descarrega na própria fonte ou em qualquer das
outras), o sujeito entra no Narcisismo Primário, que é a primeira forma da
unificação que conquista. Nesta forma, o Sujeito se identifica com uma imagem
que se denomina "materna", à qual atribui todas as potências e com a
qual se confunde. Esse primeiro Ego Ideal é separado da imagem materna pelo
Complexo de Castração e só a partir desse momento é que se inicia a seqüência
do Complexo de Édipo, que se compõe do Complexo da Mãe, do Complexo do Pai e do
de Castração. Em suma, todo esse processo se dá sobre a constante de que, em
cada etapa, houve investimento nos respectivos objetos, é preciso renunciar aos
mesmos, e, cada vez que se opera uma renúncia, o objeto é incorporado ao
Sujeito, formando sua própria "substância".
Por
isso é que se diz em Psicanálise que "onde houve um investimento, resta
uma identificação". O aparato psíquico do Sujeito é, assim, um
precipitado, um decantado, de investimentos e de objetos perdidos .
• Decima aula do curso Âmago
Em
cada um desses modelos, existe uma parte, um sistema, uma região e um processo
que denominamos Inconsciente.
A
formulação Estruturalista do Sujeito Psíquico consegue separar definitivamente
a confusão que se estabelece, amiúde, entre os lugares que integram a estrutura
e os agentes empíricos ou papéis sociais que eventualmente a ocupam. Recorde-se
a polêmica entre o antropólogo Malinowsky e o psicanalista Jones, que foi a
primeira versão dessa discussão. A Psicanálise estruturalista afirma que a
estrutura é especificamente "psíquica" e que as imagens ou figuras
que eventualmente podem desempenhar suas funções são variáveis e não
determinantes.
De
toda forma, o que Deleuze e Guattari vão tratar de demonstrar é que, mesmo
tomando em conta essa distinção, a estrutura do sujeito está
"calcada" dos lugares constitutivos da ORGANIZAÇÃO FAMILIAR, mais
ainda, da modalidade burguesa nuclear da família. Sabemos que, historicamente,
existem inúmeras modalidades de composição familiar e que a forma Nuclear Burguesa
é uma forma dominante que a civilização ocidental capitalista vem consagrando
como universal. A formulação estrutural do Aparato Psíquico não consegue
desvincular-se por completo dessa estrutura da organização familiar e assim
reproduz as limitações de sua consagração como universal.
Isso
faz com que a formulação psicanalítica não possa evitar uma série de erros
teóricos, que depois se objetivam em erros técnicos de manejo. Por exemplo,
quando se trata de responder à pergunta
acerca de "como a forma edipiana-familiarista" começou (mas não no
caso de um sujeito individual atual), ou seja, no caso dos começos históricos
dessa estrutura, a Psicanálise responde projetando especulativamente a forma
edipiana-familiarista contemporânea em uma suposta pré-história mítica, em que
o proto-pai da horda primitiva excluía seus filhos do comércio sexual com as
mulheres (conservando-as para si), e aqueles se reuniram, mataram o pai e o
comeram. Tal "fato", real ou miticamente acontecido, foi introjetado,
deixando como resultado a implantação das leis de proibição do incesto e do
parricídio que compõem o sistema totemista de organização social, que é o
primeiro conhecido, e que seria o de passagem da natureza à cultura humana .
Por
outra parte, quando a Psicanálise propõe explicar as formações coletivas de
socialidade, nada mais faz que multiplicar o
Sujeito edípico, postulando
conexões em "série" ou em "paralelo" entre uma coletividade
de sujeitos e seu líder. Essa dimensão social, e portanto política, cultural, da
subjetividade, acontece em um tempo cronológico posterior à dinâmica familiar,
que seria o conteúdo das primeiras vicissitudes da vida do Sujeito. É dizer que o social sempre vem
"depois". O mesmo acontece com as produções sublimadas do sujeito, ou
seja, a geração de obras socialmente valiosas, distanciadas da problemática
edipiana; a esse respeito a Psicanálise insiste em que se trata de efeitos
dessexualizados ou neutralizados da libido que se geram tardiamente no
desenvolvimento do sujeito.
A
estas peculiaridades da explicação psicanaiítica, a Esquizoanálise chama
"Paralogismos", ou seja, deformações lógicas que resultam de
premissas erradas.
O
Inconsciente psicanalítico, apesar de incluir entre suas explicações teóricas
recursos energéticos (economia e dinâmica), centrase
principalmente nas representações, ou seja, nos significados ou significantes
que compõem os fantasmas reprimidos. Assim, então, o Inconsciente
psicanalítico, principalmente construído como metáfora da Tragédia Edipiana,
por sua vez tomada por Sófocles de uma versão do Mito edipiano da Grécia
Antiga, é um inconsciente "teatral" antigo. No caso dos
estruturalistas, o que eles dizem não é demasiado
diferente do que afirmar que o inconsciente está estruturado, por sua vez,
pelas coordenadas formalizadas do drama edipiano. Esse Inconsciente deve ser,
então, interpretado, decifrado, como se tratasse de um manuscrito arcaico. Esse
Inconsciente é uma entidade representativa, tanto no sentido de que está
composto por representações linguísticas como no sentido de que sua dinâmica se
modeliza como uma representação teatral antiga. Todos os outros territórios da
realidade podem até se articular com o psíquico-inconsciente, mas lhe são
externos, lhe são alheios, e justamente têm de ser colocados entre parêntesis
pelo dispositivo teórico-técnico psicanalítico para poder entender o psíquico,
em si e por si mesmo*.
* A mudança de
"representações" por "significantes" não soluciona o citado
problema, apenas o abstrai.
Para
a Esquizoanálise, tanto o aparato psíquico como o resto da Realidade estão
constituídos como máquinas, com a peculiaridade de que não se trata de máquinas
mecânicas, nem cibernéticas, nem elétricoeletrônicas. Trata-se de
máquinas maquínicas, que, como já sabemos, têm as peculiaridades de certas
máquinas estéticas, ou, melhor ainda, da "maquinaria microfísica" das
partículas atômicas ou da biologia molecular.
O
Inconsciente Esquizoanalítico não é especificamente psíquico, nem de nenhuma
outra material idade "última", sendo que é préontológico,
dito em um sentido amplo. É na Superfície de Registro que, no sujeito
convencional, o Inconsciente vai tornar-se psíquico, mas já não será
propriamente o Inconsciente Esquizoanalítico, senão um préconsciente de uma
entidade subjetiva já instituída e dominante. Por outra parte, o Inconsciente
Esquizoanalítico estará pensado como um Processo Produtivo Puro, não formado de
representações nem de forças econômico-dinâmicas que mobilizam as
representações ou papéis, seja de um Teatro ou de uma Linguagem, sendo como um
incessante produzir caótico que, ademais, se produz a si mesmo e produz a
realidade como renovados Todos.
É um
Inconsciente Virtual, no sentido que já estudamos e que Bergson dava a esse
termo. É um Inconsciente pluripotencial, no sentido que Espinoza atribuía à
Substância Universal, ou é um Inconsciente composto de Vontades de Potência, no
sentido que Nietzsche dava a esse conceito ..
Para
a Esquizoanálise, então, uma "Psiquiatria Materialista" terá que
pensar a "normalidade" ou os quadros psicopatológicos em função desse
Inconsciente Maquínico e não do Inconsciente Representativo – Teatral ou
Estrutural.
A HISTÓRIA*
A
Esquizoanálise tem uma leitura muito especial da História. Capítulos tais como
"Bárbaros, Selvagens e Civilizados", de "O Anti-Édipo",
assim como capítulos de "Mil Platôs": "Micropolítica e
Segmentaridade" e "A Máquina de Guerra", configuram uma
extraordinária síntese da História Universal. A História Universal é um saber
imperiosamente necessário para entender a situação na qual o mundo está
contemporaneamente e para intentar prever quais são as tendências de seu
futuro. Isto, por sua vez,
é indispensável para se poder desenhar as estratégias de vida e de militância
que sejam propícias para a realização de nossas Utopias Ativas.
Agora
bem: existem tantas versões da História, orientadas no sentido que convém aos
setores sociais que as fazem, que é preciso encontrar uma certa
"inocência" para poder ver a História de uma maneira inovadora e
revolucionária.
A
Esquizoanálise propõe que a História Universal deve ser feita tomando os
seguintes cuidados: em primeiro lugar é preciso que esteja claro que a História
é feita desde nossos dias para um suposto passado e que, nessa medida, leremos
uma História que está inevitavelmente sujeitada a como nos situamos no panorama
atual, ou seja, a História não é cronológico-genético-evolutiva, senão
retrospectiva, é lida a partir de suas instâncias ativas no panorama presente.
Em segundo lugar, se uma formação social como a nossa está em condições de
fazer História Universal, é porque tem chegado a um grau de aperfeiçoamento e
de universalidade que lhe dá os instrumentos e os critérios para fazê-la; mas
isso só será fecundo se nossa atualidade for capaz de tomar uma certa distância
de si mesma que lhe possibilite fazer sua alltocrítica e assim tendê-la ao
passado.
Por
outra parte, e talvez como componente dessa capacidade crítica, a História
Universal tem que ser irônica, ou seja, capaz de um certo sentido de humor que
consiga dessacralizar o ocorrido, sem atribllirlhe nenhum caráter
solene, infalível ou divino. Marx dizia que a História
*Décima primeira aula do curso
Âmago
se repete "a primeira vez
como Tragédia e a segunda como Comédia". Por último, é importante destacar
que, assim como é preciso estudar a parte da História que obedece a leis, ou
seja, que está regulada por um certo determinismo, não é menos importante
recordar que o que realmente constitui o motor da História como devir
permanente é o Acaso, são os grandes encontros e acontecimentos inesperados,
imprevisíveis, radicalmente novos. Acrescentemos que não existe Uma História
Universal Unitária, sendo que a mesma é uma abstração destinada a dar coerência
a um transcurso que na realidade está composto de inumeráveis processos
diferentes, cada um dos quais tem seu Tempo sui generis, e cujas
correlações mútuas às vezes é possível e outras vezes é impossível efetuar; são
intempestivos. Por último, é preciso diferenciar claramente o que é a
Historiografia, ou seja, uma pretensão de DESCREVER os fatos históricos
"tal como ocorreram", do verdadeiro trabalho do historiador, que
invariavelmente é uma interpretação de dados e uma invenção de conceitos e
versões do acontecido.
É completamente inviável resumir aqui a enorme quantidade de conhecimentos
e de postulações originalíssimos que estão incluídas nos capítulos mencionados.
Trataremos apenas de deixar pontualizados alguns aspectos que nos parecem ser
os mais importantes.
Em
primeiro lugar, digamos que a conceitualização usada por Deleuze e Guattari
está tomada das mais diversas fontes, mas que, a nosso entender, as mais
importantes provêm do Materialismo Histórico, de algumas obras de Nietzsche e
de valiosas contribuições de antropólogos heterodoxos.
Em
suma, e muito pobremente sintetizado, a Esquizoanálise reconhece a existência
de uma Formação Territorial Primitiva, de uma Imperial-Bárbara, Asiática,
Despótica ou Escravocrata; depois a Formação dos Impérios
"constitucionais" gregos ou de sua peculiar "Democracia";
logo de uma Medieval, Feudal ou Servil, assim como a correspondente nas
Monarquias Absolutas Européias, para culminar no Capitalismo e na Democracia
Burguesa Incipiente, no Capitalismo Industrial Clássico e no Capitalismo
Transnacional Globalizado ou Fase Superior do Capitalismo Mundial Integrado. Em
alguns momentos, é possível encontrar em Deleuze e Guattari a referência a
formações de difícil colocação (que se demonstraram essenciais), tais como o
Modo Comum ou Comunal Germânico e uma divisão geral entre Nômades e
Sedentários (esta última
configura uma redefinição geral de toda a História Universal).
Dentro
dos limites desta aula, o que podemos resumir é que cada uma dessas formações
Histórico-Sociais se caracteriza pela distribuição que nelas se realiza das
relações e da configuração das Superfícies de Produção, de Registro-Controle e
de Consumo-Consumação. Os diversos aspectos de cada formação compõem,
principalmente, os processos de produção de bens materiais indispensáveis para
a vida, de meios de produção, a produção de formas sui generis de
governo, assim como as peculiaridades da produção de subjetividades,
individualidades, pessoas e agentes de todos os processos. Segundo esta
postulação, TODOS os componentes da História de cada uma dessas formações
sociais são PRODUZIDOS, REPRODUZIDOS E ANTIPRODUZIDOS SEGUNDO MODALIDADES SUI
GENERIS. Em outras palavras, não tem nada que seja eterno e dado de uma vez
para sempre e apenas modulado pelas peculiaridades, segundo se costumava dizer,
do "contexto" histórico.
É
importante considerar, também, que toda Formação Histórica é uma maneira de produzir um Socius que
"ordene e controle" o Processo Produtivo-Desejante, que tende
permanentemente à desterritorialização absoluta. O problema consiste em como e
quanto cada socius consiga aproveitar produtivamente, e paralisar
reprodutivamente ou destruir antiprodutivamente suas potências produtivas. A
Superfície de RegistroControle de cada Formação Histórica está regida
por uma entidade chamada "Corpo Cheio", que varia de uma na outra e
que tem a peculiaridade de atribuir-se todas as forças produtivas e aproveitar
esse mecanismo para dominar toda a realidade de cada Formação. Na Formação
Territorial Primitiva é o Corpo Cheio da Terra, na Imperial é o Corpo Cheio do
Imperador e no Capitalismo é o Corpo Cheio do Capital Dinheiro, que configura
uma Axiomática que torna todos os elementos da realidade histórica como
equivalentes na forma dinheiro.
Por
último, é importante destacar que as modalidades da subjetividade também varia
de uma formação social a outra. A estrutura do "Sujeito Edipiano",
tal como a Psicanálise a encontra no Capitalismo e que insiste em declarar
universal, ubíqua e invariável, não é assim
nas diferentes Formações Sociais.
Em
realidade, prepara-se como tal no Modo Territorial Primitivo, instala-se como
tal no Sujeito Imperador e na Família Imperial das
Formações Despóticas na
"pessoa" do Imperador, e EMIGRA na interioridade do sujeito burguês
privado da Modernidade, compondo o "Homem Íntimo", que nós cremos
como sendo a única imagem universal e eterna do "Homem". Assim lida,
a História abre a possibilidade de outras Formações Históricas e outras
subjetivações desejantesrevolucionárias, não sujeitadas à reprodução e à
antiprodução dos Corpos Cheios Históricos vigentes.
AS KLÍNICAS ESQUIZOANALÍTICAS*
Respeitamos
sinceramente as denominações (que pretendem "determinar" um estatuto)
e as periodizações (que atribuem uma ou outra ordem seqüencial) à Obra de Deleuze e Guattari. Mas sabemos que
se trata de um Rizoma não totalizável, sendo que cada um lhe dá o nome que lhe
é mais expressivo, e cada um o percorre segundo itinerários cartográficos
únicos e irrepetíveis.
Para
nós, o Nome é: Esquizoanálise ou Pragmática Universal (segundo constam em
"O Anti-Édipo" e em "Mil Platôs", respectivamente), volumes
que consideramos como sendo os dois vórtices desse oceano turbulento de
máquinas-livros. E que TAMBÉM pode-se dizer deles que são Filosofia... e
Ciência... e Arte (sobretudo Literatura)... e Política... e Clínica... e... não
nos estranha: o importante é que "depois" desse Acontecimento... já
nada será como "antes"... e que esse Advento merece, além de
"todos os nomes da História", um Nome Próprio. Algo assim como
"O Efeito Clínico D e G". Mas, além disso, é preciso perguntar-se:
"depois" desta INDIVIDUAÇÃO, "todos" os nomes-estatutos e
os "inventários de diferenças", tanto quanto suas
"periodizações-hierarquizações" (p.ex., as
"Especificidades" e as "Profissionalidades") não tendem a
tornarem-se irreversíveis e transversalmente mutantes ?
O
que denominamos habitualmente (Psico) Clínica, pode SER Esquizoanalítica?
Parece evidente que NÃO; mas pode DEVIR ou já TERÁ DEVIDO Esquizoanalítica? POR
QUE NÃO? E ainda, se DEVEIO e se seguirá DEVINDO Esquizoanalítica, o fará,
inevitavelmente, de maneiras SINGULARES, e como MULTIPLICIDADES, ou seja,
sempre como O OUTRO de uma suposta ESQUIZOANÁLISE PRINCEPS.
Por
isso, os Deleuzianos-Guattarianos "de carteirinha", assim como os
pudorosos reativos a essa presuntiva ortodoxia impossível, podem dormir
tranqüilos. O problema não é esse. A questão consiste em como aprender a sonhar
acordados.
• Artigo
inédito. 1997.
As
Klínicas Esquizoanalíticas, que obviamente têm tudo a ver com o Klinamen e
quase nada com o Klinos, não serão importantes demais para constituir um
patrimônio dos clínicos convencionais?... Particularmente dos que ostentam
antigos e diversos títulos que os consagram como tais? E em especial, os que se
proclamam, digamos, Psicanalistas... Holistas Sistêmicos... ou-não- sei-o-quê?
Não
se pode desconhecer que muitos desses clínicos devêm ocasionalmente
Esquizoanalistas sem sabê-lo ( e que talvez nem precisem inteirar-se disso). A
partir da Idéia de Heterogênese, jamais conseguiremos ignorar a infinita
variedade dos dispositivos Klínicos, assim como a dos efeitos Klínicos dos
agenciamentos que, desde a superfície de Registro-Controle, não se identificam
como Klínicos. Mas tampouco cabe desconhecer que há quem se acha
Esquizoanalista e se apresenta p.ex., como Psicanalista, o qual não aparenta
propriamente ser o disfarce segundo o qual um Simulacro se fantasie de
"Boa Cópia"; mais parecem ser "Más Cópias" que aspiram aos
benefícios que, na "República", estão reservados aos "autênticos
pretendentes".
Tudo
isso, será que "não dá a pensar" que, devir um Klínico
Esquizoanalista, não passa pelos títulos que legitimam ou "autorizam"
essa condição, mas que passa muito mais por um modo de klinicar, por um modo de
viver... desejante, produtivo, revolucionário? Será que para conceitualizar esse
modo de viver, basta a, indubitavelmente magnífica, fórmula: "Não
Fascista"? Ou é preciso acrescentar, p.ex.: "Não Neo-Liberal"
e até "Não Social-Democrata? Ou seja, "Não-Heterogestor" e
"Não- Heteroanalítico"?
Será
que para um viver assim, fazer Klínica Esquizoanalítica exige delimitar qual
parte do afetar e ser afetado da existência do "expert" corresponde
ao "ofício" de klínico?
Nós
já ouvimos e até escrevemos que na formulação das perguntas estão implícitas as
respostas. Mas gostaríamos muito que o leitor não tomasse estas interrogações,
pelo menos, como deliberadamente retóricas. Porque, é acaso "ponto
pacífico" como devêm e devirão as "ofertas", as
"demandas", os "contratos", as "implicações", as
"caixas de ferramentas", os "diagnósticos" e as "curas"
nas Klínicas Esquizoanalíticas? É por acaso "ponto pacífico" quais
serão os "espaços" e os "tempos", os "personagens
klinicais" (tanto por parte dos "agentes", como pela dos
"pacientes"): "individuais, "coletivos",
"equipes",
"grupos",
"organizações", "civilizações"? Como seria a Formação de um
Klínico esquizoanalista, como seriam suas "Sociedades Científicas ou
Acadêmicas", suas "Comunicações Bibliográficas", seus
"Conselhos e Sindicatos"?
Por
um lado: faz sentido colocar estas perguntas, boa parte de cujas formulações,
que já começam obsoletas para a Nova Klínica (tanto como conceitos como
enquanto recursos) são, exatamente, o que há que criticar e recriar? E, não
obstante: faz sentido tratar de prever o imprevisível, de dizer o indizível, de
conceitualizar o Virtual recém Atualizado ou por Atualizar? As Klínicas
Esquizoanalíticas como transmutação?... ou como elegante aggiornamento subliminar
homeopático, mais ou menos assumido?
Mais
substancialmente: as Klínicas Esquizoanalíticas – estarão destinadas às Elites
Pagantes... ou ao Povo... embora seja um ,"Povo que está Por Vir"?
Sabemos
que "Máquina de
Guerra" não significa "Artefato Bélico", mas, assim como
os "Mundos" estão genocidas: vale a pena qualquer Maquinação, que não
tenha, pelo menos, UMA dimensão guerreira?
Interessa,
p.ex., interrogar-se o QUE NÃO seria Klínica Esquizoanalítica, embora a negação
não seja um recurso "criativo"?
É
bom recordar que das proposições indecidíveis surgem as conexões
inventivo-revolucionárias e TAMBÉM pode surgir a geléia Pós-Moderna.
Nessa
Catedral flutuante, chamada "O Anti-Édipo", construída por dois
geniais compagnons, estão prescritos dois tipos de Tarefas para a
Esquizoanálise: as Negativas e as Positivas. Será arbitrário demais imaginar
que todos os escritos "anteriores" e "posteriores"
(enfatizando Mil Platôs), não fazem outra coisa mais que cumprir
"Lisa" e "Aionicamente" com essas duas tarefas? Que outra
coisa podemos fazer, os Klínicos Esquizoanalíticos, que continuar reinventando
esses trabalhos?
Uma
Klínica com um Paradigma Estético, uma Estética Klínica, ou uma Klínica
Estética sem Paradigma algum? Uma Ciência Menor dita em uma Língua Menor, que
se transversalize com uma Literatura Menor... uma Filosofia sem Fundamento, um
Pensamento sem Imagem, uma Micropolítica do Desejo... uma Práxis da Diferença,
de conexões
que parem as Singularidades
Intensivas, da Proliferação de Multiplicidades incapturáveis, da geração de
Estidades irredutíveis, da concepção de Individuações inclassificáveis... o
certo é que todos esses Conceitos, Funções e Variações são para nós,
contemporâneos, um inapreciável "presente dos Deuses"... a condição
de que nos inteiremos de que as valiosas instruções acerca de "Como fazer
um Corpo sem Órgãos"(ou "Como montar Dispositivos Caósmicos")
são capítulos maravilhosos que narram o "Que se passou"... mas não o
que "está se passando", nem o que "está por passar",
Uma
Klínica como uma Desabituação dos Hábitos e uma Canalização das Afinidades? Uma
Klínica como uma desmitificação das Semelhanças, das Analogias, das
Contradições, da Representação e do Conceito, assim como da Afirmação da
Diferença? Uma Klínica como a promoção de um Novo Entendimento para gestar
"Bons Encontros"? Uma Klínica como uma Nova Arte do uso Disjunto das
Faculdades? Uma Klínica como geração do Sentido? Uma Klínica como uma Nova
Lógica da Sensação? Uma Klínica como assunção da univocidade do Ser e do Eterno
Retorno da Diferença, tanto quanto como da Transvalorização dos Valores? Uma
Klínica como reformulação de "falsos problemas" e como
"estratégias" para a Atualização do Virtual? Uma Klínica com a
inclusão de Semióticas A-significantes? Uma Klínica Nômade dos Espaços Lisos,
das Dobras Infinitas, do Pensamento do Fora, do Diagrama e não do Programa, da
Desterritorialização, das Linhas de Fuga, do Acontecimento, dos Novos
Ritornelos, contra a brusca interrupção ou a aceleração ao infinito do Processo
Esquizofrênico, contra as Reterritorializações Normais, Neuróticas, Perversas
(de divã), Paranóicas, Melancólicas e Esquizofrênicas (de Manicômio), contra o
Edipismo, o Familiarismo, o Estatismo... o Organismo? Uma Klínica Maquínica?
Uma Crítica e Klínica... uma Noologia Klínica... uma Klínica do Devir Animal,
do Devir Célula, do Devir Imperceptível, do Devir Cérebro?...
"ARS
LONGA, VITA BREVIS",
Introdução à Esquizoanálise
Apêndice – Segunda Edição
O
propósito essencialmente pedagógico que guia esta introdução nos leva a
acrescentar, nesta segunda edição, este breve apêndice panorâmico. Trata-se de
uma nova tentativa de síntese cuja intenção é facilitar
ao máximo possível o trânsito do leitor pelo complexo rizoma que constitui a
Esquizoanálise. Escolhemos a modalidade expositiva de uma seqüência de pontos
numerados, assim como formulações simplificadas, com uma expectativa
esquemática que supomos didática. Não comentaremos todos os capítulos dos
livros (o Anti-édipo e Mil Platôs) e a escolha dos sintetizados deve-se apenas
à importância que lhes atribuímos segundo nosso critério cartográfico:
1. No percurso da obra de G,
Deleuze e F. Guattari, os mesmos autores lhe dão denom inações diversas que
podem ser consideradas complementares, embora não sejam sinônimas: Esquizoanálise,
Pragmática Universal, Ecosofia, Nomadologia, Micropolítica, etc. De nossa
parte, temos sugerido outras, tais como: Concepção da Realidade, Ecopraxe,
Nomadopraxe, etc.
2. Quanto a uma
"classificação disciplinar" dessa obra, que consideramos irredutível
às especificidades conhecidas, temos optado por empregar uma expressão
disjuntiva inclusa, dizendo que se trata de filosofia... e também de ciência ..
, e também de arte e literatura... e também de crítica estética... e também de
política... e também de mitologia... e também de um certo delírio... e assim
sucessiva e não conclusivamente. Seja como for, a Esquizoanálise afirma, como
seu valor principal, o uso que se faz dela.
3. Como um ensaio, tão discutível
como o do ponto anterior, de nos aproximarmos de uma classificação gnosiológica
da Esquizoanálise, propomos que se trata de um realismo, materialista,
diferencialista e imanentista, molecular, intensivista, neofuncionalista
maquínico. Realismo porque o "Ser" (em toda a sua diversidade e
infinitude) é realidade e não aceita nem se opõe a um não-ser. Materialista
porque a "natureza" desse ser inclui toda entidade ideal ou
espiritual. Diferencialista porque trabalha sobre e desde o Ser das diferenças
e o Ser
como diferença. Imanentista
porque as diferentes realidades que define não estão em uma relação de
separação e nenhuma é transcendente nem eminente com respeito a outra.
Molecular porque o campo da realidade ao qual atribuem essa condição é o de
maior potência em termos de metamorfose. Intensivista porque essa dimensão da
realidade é a geradora da potência citada no ponto anterior. Neofuncionalista
porque problematiza como essa realidade (material, diferencial, intensiva etc)
funciona, e não o que é. Maquínico porque atribui à tecno-esfera uma realidade
própria, imanente às outras e constitutiva de um modo de funcionamento antes
citado, e digna de formar parte privilegiada de um metamodelo da realidade.
4. A
Esquizoanálise é um vastíssimo e interminável estudo acerca de como os
processos de produção de produção, de reprodução e de antiprodução, imanentes à
realidade antes definida, interrelacionam-se para gerá-la inovadoramente, para
repeti-la ou para destruí-la em todos seus campos, potências, forças, estratos,
territórios, códigos, sobrecódigos, axiomáticas etc. Tais estudos são imanentes
aos atos e ações revolucionárias e inventivas, que os exigem para assim poder
"desmontar" o que inibe, distorce ou impede a produção, escapar
desses limites e deflagrar o
novo a serviço da diversidade infinita da Vida, contra toda forma de
exploração, dominação e mistificação.
5. Os livros que compõem a obra
esquizoanalítica passam dos quarenta volumes, sem contar numerosos artigos e
até gravações fonomagnéticas, vídeos etc. Seus autores insistem que esse
conjunto pode ser percorrido na ordem e na direção que cada leitor escolher,
configurando sua cartografia singular e irrepetivel. Respeitando essa
recomendação, consideramos que os tomos do livro "Capitalismo e
Esquizofrenia" são, dentro da multiplicidade que a obra constitui, algo
como um conglomerado principal do qual, ou bem se parte, ou bem se deve fazer
uma passagem preferencial. Temos essa convicção não apenas porque se trata de
duas exposições especialmente panorâmicas e abrangentes, mas também porque, se
como Deleuze e Guattari afirmam que "uma coisa é louvar a multiplicidade,
outra coisa é fazê-la", acreditamos que esse escrito é o mais bem sucedido
nesse sentido. Por outra parte, segundo nossa "paixão" própria,
acreditamos que é nesses livros onde fica mais enfática e indissoluvelmente
imanente a vertente política da Esquizoanálise: a revolução molecular.
6. No "Anti-édipo", que
nos permitimos denominar a primeira dessas topologias e processualísticas da
realidade:
a)
Os campos da mesma são as superfícies de produção, registro-controle e consumo,
consumação.
b) Seus "povoadores"
são as máqu inas desejantes (elementos intensivos que se autoproduzem, s.e
diferenciam e se acoplam incessante e comutativamente em máquina-fonte e
máquina-órgão, segundo síntese: conectivas de produção (superfície da
produção), disjuntivas inclusas e exclusas (superfície de registro-controle) e
de conjunção (superfície de consumo-consumação). Em cada superfície, a energia
que anima os processos se denomina respectivamente libido, numen e voluptas.
Como as superfícies são imanentes entre si, cada uma delas funciona em uma
tônica molar e em uma molecular, simultaneamente.
c) A
"entidade" típica da superfície da produção é o Corpo sem Órgãos (ao
mesmo tempo continente virtual de todas as potências produtivas e grau zero de
intensidade sobre o qual se montam e se acoplam as máquinas desejantes). Recordamos
que a idéia de superfície em esquizoanálise é vital para a proposta de tratar a
realidade como conjuntos difusos de diferenças, fazendo mostrar-se e funcionar
todas as singularidades de sentido e de devir num mesmo plano. Essas
diferenças, que implicam novidades absolutas de individuação por hecceidade ou
de atualização do virtual, são negligenciadas pelo pensamento e a praxe da
representação. Ou bem são excluídas e colocadas na obscuridade do indefinido,
indeterminado e indecidível, ou bem são declaradas semsentidos,
"nadas" ou vazios, entendidos como faltas. A esquizonálise não espera
que essas diferenças adquiram sentido ou sejam atualizadas por nenhum
fundamento residente nas alturas transcendentes, nem nas profundezas
românticas, nem nas estruturas "estruturantes".
d) A "entidade" típica
da superfície de registro-controle é o Corpo Cheio (que se pseudo apropria de
todas as potências produtivas e as captura, efetua, inibe ou acelera ao
infinito segundo a complexão do modo de produção, da formação de soberania e do
sistema da representação histórica de que se trate. A superfície de
registro-controle tem como operadores característicos da sua função
normatizante ou legalizadora a
nível do sistema de
representação os códigos, sobrecódigos e axiomáticas.
e) A superfície do
consumo-consumação tem a seu cargo tanto o acabamento dos produtos como seu
consumo, ambos modulados por determinações do Corpo Cheio em pauta.
7. O
interjogo dos processos de produção de produção, de reprodução e de
antiprodução, em e entre cada superfície, anima os movimentos de
estratificação e desestratificação, de territorialização e
desterritorialização, de codificação e descodificação, de sobrecodificação e
des-sobrecodificação, de axiomatização e desaxiomatização, as segmentações, as
linhas de fuga, as emissões de subpartículas, quantas, vibrações e fluxos cuja
distribuição e dinâmica determina a "natureza" e os destinos
variáveis do interjogo dos processos. Como sabemos, a Esquizoanálise não separa
nessas realidades as "naturezas" e denominações das diferentes
entidades e movimentos da realidade. Desse modo atribui aos movimentos
"objetivos" as características e nomes de uma Clínica Universal que
redefine e emprega para isso os nomes da nosologia psicopatológica.
8. No limite da realidade com o
"fora" absoluto, os processos podem se dirigir para a esquizofrenia,
com predomínio da produção de antiprodução, ou para uma direção esquizonte, ou
seja, para a Nova Terra ou a Utopia Ativa da revolução molecular. Perante essas
tendências, o conjunto da realidade pode regredir para a reprodução, em
qualquer ou em todos os seus âmbitos, de configurações melancólicas, maníacas,
paranóicas, perversas, neuróticas ou "normativizadas". Nesse sentido,
a Esquizoanálise entende a loucura e o delírio como reveladores, não tanto de
conflitos familiares ou edipianos, mas sim como cartografias históricas
universais.
9. No segundo volume de "Mil
Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia ", a topologia e a dinâmica da
realidade está composta não pelas três superfícies, mas por inúmeras
"plataformas" intensivas que se conectam através de fluxos de
intensidades em inúmeras direções. Tanto os capítulos do livro como os
conjuntos de realidades têm essa mesma configuração e funcionamento. Cada Platô é uma multiplicidade (ou
seja, seus elementos e
movimentos não correspondem a categorias do Uno nem do Múltiplo). As
multiplicidades podem serde diversas índoles (um livro mesmo pode ser uma
muItiplicidade), mas o exemplo que Deleuze e Guattari preferem é o de um
vegetal do tipo dos tubérculos denominado rizoma. Uma multiplicidade é um
conjunto que cresce por divisões não dicotômicas e que não se divide sem
mudarde "natureza". O rizoma, por exemplo, não tem um centro ou
tronco a partir do qual se desenvolve, seus tubérculos estão disseminados e
intrincados com suas prolongações, talos e raizinhas. Seus limites externos não
são passíveis de serem circunscritos, suas células não têm membranas e seus
processos metabólicos apresentam causas que se expressam em efeitos à distância
sem que seja possível determinar os mecanismos e veículos de transmissão. O
rizoma serve como modelo contraposto à arvore (com raízes, tronco, folhagem), e
os autores mostram como esses modelos penneiam toda a realidade entendida como
molecular ou como molar.
10. Cada capítulo-platô de
"Mil Platôs" contêm parcialmente os outros, e o leitor pode passar de
um para qualquer outro, segundo a trajetória da cartografia escolhida, ou
melhor dito, inventada por cada viajante. Não obstante, cada platô tem uma certa
ênfase em algum tema em especial. Listaremos e caracterizaremos muito sucintamente os mais importantes:
a)
Os rizomas de todo tipo e o livro como um deles.
b) A partir da Esquizoanálise do
"Homem dos Lobos" (célebre caso clínico de Sigmund Freud)
reformula-se a produção de subjetividade e subjetivação, entendida como
multiplicidades das quais os sujeitos, seja o da psicologia ou o da
psicanálise, são apenas "peças" visíveis. O inconsciente é reafirmado
como sendo um "conjunto n" de elementos cuja nota em comum é
não ter nada em comum " (ou seja, nada em comum entre si segundo a
especificidade de uma disciplina, por exemplo os componentes estruturais
edipianos).
c) Escrita como a crônica de uma
conferência proferida por um extravagante professor, surge uma cartografia de
formidável abrangência, como uma das versões da imanência entre as distintas
regiões da realidade. Essa crônica mostra a distinção e interpenetração entre
as distintas esferas segundo a divisão molar das mesmas: geo-esfera
(físico-química), bio-
esfera (vegetal, animal),
noosfera ("humana", social, subjetiva, "comunicacional",
política, econômica etc) e tecno-esfera (científico-técnica).
Destaca-se a coexistência entre todas elas e a inconveniência de se estabelecer
uma ordem hierárquica entre as mesmas. Trabalha-se especialmente a geo e a
biosfera e os processos de passagem da uma a outra. Mas, por outra parte,
estuda-se a imanência entre essas esferas e a realidade molecular intensiva que
Ihes é imanente. Descrevem-se as formações molares e moleculares parcialmente
próprias de cada esfera, responsáveis tanto pela estabilidade como pela
mutação, tais como estratos, paraestratos, subestratos e metaestratos.
Define-se, por exemplo, os cristais como focos de passagem do inorgânico ao
orgânico. Expõe-se uma notável concepção da produção das espécies, baseando-se
numa célebre polêmica entre os biólogos Geoffrey de Saint Hillaire e Cuvier.
Nessa discussão, o primeiro defende a idéia de um mundo biológico composto por
um "animal único" que, por dobras e desdobras moleculares e
redistribuição de órgãos, compõe a diversidade molar das espécies. Hillaire
abre, assim, a perspectiva da constante produção de interespécies simbióticas
"anômalas" e da "involução criativa", segundo a qual traços
e funções aparentemente menos desenvolvidas se compõem para dar organismos "mais
competentes para sobreviver". Cuvier opõe a essa idéia a de uma
seqüência evolutiva na qual cada espécie é uma transformação estanque em
relação às outras. Destaca-se a contribuição do "papel" das
"populações" micro e macroscopicamente consideradas e da relação das
mesmas com o meios (externos e internos) que elas contêm e que as contêm na
determinação das transformações específicas. Igualmente se privilegia a função
determinante das "manadas" sobre as características de cada um de
seus exemplares. Mostra-se como um elemento trazido de um campo ou
"nível" para outro detennina a conversão dos conjuntos de
estratos em territórios e como os territórios constituem seus animais de
território, e não o inverso. Destaca-se como recursos e traços morfológicos e
funcionais elementares e de reprodução ou de sobrevivência dos espécimes
(cores, cantos, cerimoniais) deslocamse e transformam-se em recursos
expressivos (como os ritornelos) que acrescentam às suas diversas finalidades a
de marcar o território como maneira de conjurar o caos que sempre ameaça a
constituição meta-estável da suas realidades. Essas produções preparam o
tratamento que novos platôs (e também capítulos· do livro) vão dar à
"natureza" e à função da linguagem e das semióticas não lingüísticas,
aos regimes sociais de signos.
d) O capítulo-platô destinado à
crítica dos postulados da lingüística constitui um profundo questionamento
à primazia outorgada pelo Ocidente à linguagem falada e escrita e às
disciplinas que dela tratam. Deleuze e Guattari se baseiam na confrontação
entre autores como Saussure e seus seguidores, entre eles Martinet, por uma
lado, e Hjemlev, Bathkine, Labove, Ducrot e Searle por outro. Mostra como, a
partir dos ritornelos etológicos, são constituídos sistemas de expressão
semióticos de enorme variedade, entre os quais a linguagem, ao que denominam
semiologia do significante, que é apenas um a mais e não deve atribuir-se-lhe
nenhuma eminência evolutiva. Mostra como a Lingüística científica
(especialmente a de inspiração estruturalista) privilegia o tratamento da
sintaxe (relações gramaticais entre signos) e a semântica (relações entre
signos e referentes ou significados), procurando nessas áreas as constantes da
linguagem que explicariam todas as suas variáveis expressivas. De acordo com
essa leitura, a pragmática (que é o estudo do emprego concreto da língua em
circunstâncias particulares) se mostra insuficiente. Assim, essa leitura
atribui o funcionamento da língua a instâncias exteriores à linguagem, buscando
sua solução nas contribuições de outras disciplinas (psicolingüística,
sociolingüística etc). Essa concepção da lingüística atribui à linguagem
funções de informação, comunicação, intercâmbio etc. Deleuze e Guattari mostram que toda linguagem se
origina no discurso indireto, e dizer se compõe do que se diz acerca do que foi
ouvido, e ainda que, em última instância, a principal função da linguagem é
transmitir palavras de ordem, consignas, mandatos. Mas essa transmissão, devido
ao caráter performativo e ilocutório da linguagem, realiza a ordem no mesmo ato
de transmiti-la, como acontece, por exemplo, com a sentença de um juiz.
A sociedade inclui em si montagens que são agenciamentos coletivos de
enunciação que emitem essas ordens para ser enunciadas pelos sujeitos de
enunciados (os falantes), que assim as obedecem de jure e de fato. A
Esquizoanálise postula, assim, que a pragmática é a abordagem essencial da
Lingüística, e que as chamadas constantes sintáxicas e semânticas são variáveis
a serviço circunstancial das funções pragmáticas. Destaca que a Lingüística
convencional e seu objeto, a linguagem, têm por finalidade normatizar,
qualificando a correção gramatical ou a a-gramatical idade da imensa
diversidade das línguas, que sempre são invenções pragmáticas. Os autores
distinguem, assim, línguas maiores ou de Estado, e línguas menores, que são as
criadas pelas minorias singulares.
Não se trata exatamente das
lutas entre línguas "oficiais" e dialetos, mas da capacidade das minorias
e dos literatos de colocar em estado de variação contínua sua língua
"natal" ou outra adquirida, de maneira a escapar por linhas de fuga
expressivas aos mandatos dos agenciamentos coletivos de enunciação e regulação
dos poderes da gramatical idade. Por outra parte, Deleuze e Guattari insistem
na origem imperial da linguagem falada e escrita e reivindicam a liberdade e a
valorização de todas as semióticas não significantes (corporais, dramáticas,
pictóricas etc), revalorização essa que culmina na profunda importância
atribuída pelos autores à música como semiótica expressiva, assim como modelo
teórico para analisar as semióticas e semiologias em geral.
e)
Um importante capítulo-platô refere-se à segmentação do socius e
à praxe micropolítica que a Esquizoanálise pode aportar nesse campo. Todas as
sociedades, seus agentes, grupos, organizações etc (como se antecipava na
teorização da Superfície de Registro) estão divididas e ordenadas segundo
várias modalidades de delimitação. Tais formas de segmentação se resumem a
três: as binárias, as circulares e as lineares. Exemplo das primeiras são as
duplas homem/mulher, humano/animal, menores/adultos etc. Exemplo das segundas
são os espaços locais, os provinciais, os nacionais, os regionais, a sociedade
civil, o Estado etc, que se costuma pensar como círculos incluídos em outros,
com seus respectivos centros subordinados entre si. A terceira modalidade é a
linear, cujo exemplo poderia ser todo tipo de seqüências, desde as temporais
etárias às sucessões de pertencimento organizacional etc, as linhas de montagem
etc. Todos esses segmentos podem ser, segundo o complexo histórico onde são
encontrados, duros ou moles, rígidos ou flexíveis. Os segmentos binários são
característicos das formações primitivas territoriais por serem flexíveis,
tendentes à fusão, facilmente comunicáveis ainda entre os segmentos mais
heterogêneos. Já nas sociedades modernas, são duramente binarizados, embora
opcionais, e homogeneizados por uma equivalência mercantil generalizada. O
segmento circular existe nas sociedades primitivas, mas não unificado,
hierarquizado, centralizado, concêntrico, e os centros que existem não ressoam
entre si. Nas sociedades modernas, esta segmentação é unificada, hierarquizada,
centralizada, concêntrica e todos os centros ressoam entre sim, sendo o Estado
sua "caixa de ressonância" principal. O segmento de tipo linear e
flexível nas sociedades primitivas e rígido
nas modernas. Mas em todas as
sociedades, entre os termos formalmente segmentados, acontecem e devém incessantemente
processos moleculares produtivo-desejantes que tendem às micro e (nos momentos
propícios) às macromudanças extraordinárias. Fluxos, subpartículas, partículas,
quantas, linhas abstratas que não determinam contornos, linhas de fuga escapam
de todas as unidades de segmentação, apesar de que devem evitar os buracos
negros de absorção e recuperação, os muros de compactação com os que o
registro-controle tende a neutralizá-los. Igualmente existe o perigo de que,
por exemplo, as linhas de fuga se transformem em linhas de escapismo e de
marginalidade, ou ainda de pura abolição ou morte.
f) Como veremos um pouco mais
adiante, as sociedades primitivas são atualizações de Máquinas Abstratas de
Guerra (que não têm a guerra por finalidade) e que não precisam do dispositivo
Estado para realizar-se. Nas sociedades modernas, a Máquina Abstrata do
Capitalismo se realiza através do Estado, que se apropria da Máquina de Guerra
primitiva para colocá-la a seu serviço, através de Forças Armadas profissionais
visando a guerra (entre outras funções) como objetivo em si mesmo.
g) Neste platô, fica
especialmente claro que haveria macro e micro: economia, sociologia,
antropologia, semiótica etc, destacando-se a macro e micro-história e a macro e
micropolítica. Neste capítulo, as tarefas da Esquizoanálise são caracterizadas
como: traçar planos (conjuntos cartográficos e não cópias), traçar diagramas
(caracterizar jogos de forças ainda não vetorizadas e de materiais ainda não
formados) e dizer que não são programas, diagnosticar os tipos de segmentação e
propiciar as linhas de fuga, as emissões quânticas, a conexão de fluxos etc.
h) Devido aos limites deste
apêndice, apenas condensaremos uma quantidade de outros capítulos-cartografias,
esperando poder desenvolvê-los mais adequadamente em futuras publicações. Por
exemplo, em "Como se fazer um Corpo Sem Órgãos", os autores voltam a
definir essa "entidade":
i. Como sinônimo de plano de
consistência da montagem de dispositivos.
ii. Como campo de intensidade
sinônimo do inconsciente em Esqui-
zoanálise, recorrido por
intensidades que constituem órgãos intensivos pré-biológicos, pré-subjetivos e
pré-sociais que preparam as individuações por hecceidade, os
devires-acontecimentos. Esses corpos singulares não se confundem com o corpo
erógeno da Psicanálise, nem com o esquema corporal neuropsicológico, nem com o
corpo vivido dos fenomenólogos.
iii Como grau zero das intensidades e como limite
de todo corpo (social, subjetivo etc). Num sentido biológico, trata-se do plano
de composição virtual de todos os seres vivos e constitui um rizoma no qual
todas as conexões transversais entre espécies são viáveis e não vigoram as
diferenças evolutivas incompatíveis, de maneira que se podem produzir novas
convivências além ou aquém das possíveis.
iv.
No campo social, o CsO é também o limite de toda formação social, e consiste
num plano de imanência (planômeno) no qual podem ser gestadas as mais
extraordinárias organizações sociais (ecúmenos), dependendo do grau de
afin idade que exista entre o corpo social vigente e o CsO que lhe e imanente.
Tentaremos
concluir provisoriamente, definindo como se compõem e funcionam os dispositivos
e agenciamentos e as máquinas abstratas. Se voltamos a uma distinção essencial
dentro da teoria esquizoanalítica, a de caos, caosmos e cosmos, procuraremos
caracterizar os conceitos de dispositivo ou agenciamento e o de máquinas
abstratas e concretas, relacionando-as com a tríade antes mencionada.
Acreditamos
poder sintetizar esses complexos conceitos dizendo que, no campo do caosmos,
podem-se instalar dois tipos de máquinas que processam a passagem de caos a
cosmos, extraindo componentes heterogêneos desses domínios e operando conexões
insólitas que podem gerar o novo revolucionário e inventivo. Trata-se das
máquinas abstratas e das concretas.
As
máquinas concretas são os dispositivos agenciamentos. As máquinas abstratas
podem ser entendidas num sentido propriamente dito ou apresentam os dois tipos:
Máquinas de Guerra e Máquina de Estado.
Um
dispositivo agenciamento ou máquina concreta é uma rede múltipla e heterogênea
de conexões, montada sobre um plano de consistência. Tal plano é o que
"com pactua" os componentes do dispositivo e confere ao mesmo
persistência, insistência etc. O dispositivo conecta e faz funcionar fragmentos
tomados dos estratos (biológicos) chamados halo-
plásticos, que são, por assim
dizer, os que são capazes de efetuar translações que mudam sua
"natureza". Mas o dispositivo extrai dos meios onde estão submersos
os organismos outros fragmentos, montando-os com esses dois tipos de
componentes territórios. O território é uma composição que excede na sua
essência ao organismo e ao meio e às suas relações, mas que permanece ligado a
eles. Os componentes decodificados de estratos (órgãos funções) assim como os
dos meios (por exemplo, ritmos ou compassos que afetam os meios) tornam-se
assim "propriedades" do dispositivo. Com eles o dispositivo constrói
seus aspetos de conteúdo e de expressão. Mas esses dois aspectos já adquirem
uma condição diferencial e nova, tornam-se respectivamente sistemas semióticos
ou de signos e sistemas de ações e paixões ou pragmáticos. Por isso, todo agenciamento é,
por um lado, agenciamento de enunciação, e pelo outro, de conteúdo. O que se
faz é o que se diz. Mas neste momento, os enunciados ou expressões
exprimem transformações incorporais ou sentidos que se atribuem aos conteúdos-corpos.
Aqui nos tem parecido viável uma formulação nossa que é a seguinte: se, segundo
o que acabamos de expor, o dispositivo, por um aspecto, continua ligado aos
estratos e aos territórios (que são componentes do cosmos), por outro lado,
continua também permeável às peculiaridades do caos, e é por isso que o
consideramos uma "entidade" típica do caosmos. O caos continua
operando sobre ele, decodificando os enunciados e desterritorializando os
conteúdos. Tal potência é a que consegue incidir para voltar a fazer
indistintos expressões e conteúdos e introduzir neles matérias não formadas,
energias inespecíficas, forças não vetorizadas. Esse movimento leva o dispositivo
a seu máximo de decodificação, desestratificação e desterritorialização que é o
que constitui a Máquina Abstrata que o dispositivo efetua, sendo que, por outro
lado, essa Máquina Abstrata pode ser considerada também como um dos aspectos do
dispositivo.
Mas
uma Máquina Abstrata que, em um sentido, é o quarto aspecto do dispositivo, seu
máximo de decodificação e de desterritorialização, caracteriza-se por ignorar
as formas e as substâncias. Essa Máquina se compõe de matérias não formadas e
de funções não formais filum e diagrama). A matéria se torna
matéria movimento e as funções não formadas (o diagrama) são uma expressividade
movimento. As máquinas abstratas não são abstratas no sentido das idéias
platônicas transcendentes, universais e eternas, nem têm o significado lógico
da abstração como unificação formalizada de atributos ou caracteres comuns
induzidos de um
conjunto de indivíduos. As
máquinas abstratas são reais, embora não sejam ideais nem concretas, e atuais,
embora não sejam efetuadas. São singulares e criativas, sendo que para se
concretizarem e se efetuarem, elas precisam de conformar-se em um plano de
consistência animado de uma variação intensiva contínua, a cujo nível conteúdo
e expressão se tornam indiscerníveis. Mas essa máquina abstrata pura pode
modular o agenciamento no sentido de uma máquina de guerra metamórfica
(multiplicidade emissora de linhas de fuga e de vida, singularidades, quantas
etc). Essa máquina de guerra, que como modalidade de existência e organização
era típica dos nômades, pode abrir o dispositivo a outras máquinas criativas de
música, escritura, amor etc.
Mas
a máquina abstrata pode se transformar em máquina de morte ou de destruição,
tornar-se máquina de Estado que captura a de Guerra e toma a guerra por objeto,
induzindo o dispositivo a perder toda sua capacidade de metamorfose. Em nosso
entender, é no seio da imprevisível e
multipolar combinatória de caos, caosmos, cosmos com produção, reprodução e
antiprodução que as Máquinas Abstratas e seus dispositivos efetuadores se
montam, e seu valor criativo ou letal se decide.
buscado em: cooperação.sem.mando
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