domingo, 22 de julho de 2012

Consumo, Ecologia dos Desejos e Catastrofismo


Em meio à polêmica sobre os caminhos e descaminhos do ecologismo, Bruno Cava intervém com um post incendiário e provocativo.
Por Bruno Cava, no Quadrado dos Loucos
“Retirar-se do mercado mundial, numa curiosa renovação da ‘solução econômica’ fascista? Ou ir no sentido contrário, isto é, ir mais longe no movimento do mercado? Não retirar-se do processo, mas ir mais longe,acelerar o processo, como dizia Nietzsche: a esse respeito, nós ainda não vimos nada.” – Gilles Deleuze e Félix Guattari, em O anti-Édipo
Talvez o caminho não seja consumir menos, mas de um jeito diferente; canalizar nossos desejos de outras maneiras, para outros e novos objetos. O socioambientalismo fracassará, se a sua mensagem às pessoas for: ‘desejem menos” – João Telésforo, em Do ambientalismo catastrofista à ecologia dos desejos (no Brasil & Desenvolvimento)
Consumir é produzir. Já consumir o consumo é cortar o circuito.” – Eduardo V. de Castro, via tuíter [Hélio Oiticica também falava em consumir o consumo]
Para quebrar Belo Monte, índios fazem o que os operários fordistas faziam em 1969: nós queremos tudo!” – Giuseppe Cocco, via tuíter
O capital não cria apenas objetos para os sujeitos consumirem, mas cria também sujeitos para os objetos de consumo.” – Karl Marx
Uma coisa que sempre me incomodou em debates críticos ao consumismo é como geralmente se dão entre pessoas bem situadas. Estou falando de longos debates sobre como na nossa sociedade se consomem coisas demais, como a nossa cultura ocidental é baseada na superprodução do supérfluo, no desperdício. Mas não é tão polêmico quanto parece à primeira vista. Nas universidades, em programas da TV, em espaços ongueiros, as rodas de debate a respeito tendem muito rapidamente a colher a unanimidade dos participantes. Terminam por concordar como só uma mudança de mentalidade pode, quem sabe, ajudar a evitar a catástrofe civilizacional.
Nada como a consciência ambiental para dormir tranquilo. São pessoas assim que, sem nenhum pudor em exibir a própria auto-indulgência, teriam se elevado a um estado de consciência superior, e agora se investem da missão de conscientizar os demais de seu papel e sua dívida, diante da iminência do colapso. Até posso entender que alguns ricos padecidos da má consciência de classe resolvam levar uma vida mais globalmente consciente e ecologicamente responsável. Nada mais prafrentex do que economizar água, fazer coleta seletiva, alimento orgânico, ir ao trabalho de bicicleta. Ainda emagrece, né. Me refiro aos críticos do consumismo tão bem  familiarizados com bons restaurantes e hotéis, apartamentos confortáveis, carros pessoais, táxis, notebooks, escovas progressivas e viagens a Paris. Mas eu pessoalmente nunca vi pobre anti-consumo. Desconfio, aliás, que a pauta do consumismo não apele entre aqueles que só podem consumir pouco. Essa pauta nunca me convenceu de não ser cínica. Ou sutilmente reacionária. A mim, soa de extrema perversidade recomendar aos pobres que consumam menos. Que eles tenham de pensar noutro modo de vida, e querer coisas diferentes do que os ricos sempre quiseram, tiveram acesso e usufruíram. Justo agora, quando a maioria da população brasileira pode consumir alguma coisa, um começo de mudança real, dizem-lhe que é pecado.
Hoje, o discurso da austeridade enlaça governos de países em crise e eco-esquerdistas, do Banco Mundial ao SWU, todos por um querer mais comedido. Um topos conservador em tempos de crise global. Dá até a pensar: por que se mobilizar por renda, distribuição da riqueza ou melhores salários, se o bom mesmo é consumir menos? Às elites, obviamente, apetece prescrever o menor consumo porque assim o pobre se contentará com as migalhas de sempre. Menos materialistas, os eco-esquerdistas por sua vez sustentam que o Capital traria dentro de si uma potência maligna. A luta anticapitalista é outro nome para a cruzada dos cidadãos de bem contra a corja no poder. O processo do capital se expandiria não pela força das contradições de seu regime de acumulação, segundo a história e a geografia da luta de classe (Marx); mas por um ânimo inescrupuloso. Por meio da publicidade de massa, o capital mefistofélico atrai as almas simplórias e desinformadas. Seu encanto traga populações inteiras, ávidas pelo ouro de tolos, cativadas por vitrines, ídolos pop, merchãs de novela e mensagens subliminares. A sociedade de consumo arrasta o desejo para o aspecto objetal-alienado, e termina por conspurcar a bondade intrínseca, — seja do espírito humano, da natureza sacrossanta, da divina Gaia a que estamos integrados.
Quanto elitismo. Mas quem sou eu para pretender dirigir o desejo dos outros? que consciência é esta que me levaria a um entendimento mais profundo sobre a condição de existência e resistência de cada um, dos pobres, das raças e minorias?
Para que o capitalismo funcione, é preciso deixar que as pessoas desejem, e incentivá-las a querer mais. Menos a querer determinados objetos do que modos de vida, do que maneiras de se conectar, associar, enredar e maquinar objetos e sujeitos entre si. Um rendimento do desejo. A telenovela não vende somente uma marca de roupa, mas um mundo em que essa marca faz sentido e os sujeitos que consomem esse estilo existem ou podem vir a existir. O comercial de plano de saúde embute uma concepção de família, de bem estar, de segurança. A mulher da propaganda de cerveja precede a própria cerveja. Todo bom marqueteiro sabe como antes se deve criar o consumidor do que o produto a consumir-se. Num mercado diversificado, isto significa forjar mundos muitas vezes contraditórios e inconciliáveis, onde o consumidor é muitos. Como ser ao mesmo tempo a mãe do comercial de margarina e a vadia da cerveja? Só o desejo permite uma coisa dessas.
Portanto, a esquizofrenia capitalista repercute a potência infinita do querer e nesse sentido o capitalismo funciona deixando passar, canalizando os fluxos do desejo, para lhes extrair poder e dinheiro. O segredo do negócio está em animar desejo e consumo, uma operação primeiramente publicitária, mas igualmente política e ética. Reside em desenvolver aparelhos de captura capazes de cristalizar essas conexões e cadeias desejantes entre sujeitos e objetos parciais, moventes, em suma, conformar a atividade subjetiva maquinadora de mundos e formas de vida e entrecruzamentos deles, numa palavra: a subjetividade. Eis aí a grande sabedoria da classe capitalista: não se opor, negar ou moralizar o desejo, mas surfar na produção de subjetividade, na vida mesma, medi-la e vendê-la. O capitalismo não cai no maniqueísmo. Joga com o desejo e trapaceia. E a trapaça pode ser que funcione visto que as pessoas gostam de ser “enganadas” (porque no fundo não o são), jamais porque a carne é fraca. O bom e velho também quero!, que nenhum esquerdismo vai desenganar. E eis o porquê, possivelmente, do fracasso de todos os moralismos vermelhos ou verdes que já sucederam: lutam contra o desejo, uma luta derrotada de saída. Pretendem castrar com sucessivos você não pode querer isto ou aquilo, assim ou assado.
Se o socialismo real e o ecologismo catastrofista falharam e continuam falhando, quem sabe é porque buscam exigir das pessoas que desejem menos, que sejam mais ascetas. Opõem uma frágil consciência culpada à força invencível que move a natureza e a cultura em todas as suas dimensões. Ingenuidade ou outro tipo de engodo da classe dominante? O fato é que as pessoas estavam cansadas de prateleiras vazias, da disciplina “revolucionária”, da improdutividade. E não só porque queriam Hollywood, McDonald´s e dançar moonwalk, mas porque queriam poder querer. Queriam explorar o querer mesmo sem a moral puritana impregnada por todo o lugar.
O capitalismo é mesmo paradoxal. Se precisa e incentiva consumo, que é sobretudo uma questão de subjetividade, ele pode sair do controle. A canalização dos fluxos libidinais se desarranja pela própria natureza imprevisível e criativa do desejo. Nunca sabemos por que desertos errará o desejo em nós. Os mundos e formas de vida desbordam dos esquemas em que deveriam funcionar regulados pelo trabalho e a propriedade. Outros usos aparecem, outras maneiras mais libertas de produzir, compartilhar e viver bem. Sempre está pintando uma coisa nova, um jeitinho diferente. Não por acaso, as empresas não cessam de pesquisar esses novos usos, atrás de mercados pouco explorados. A exploração da música não entrou em crise junto com a indústria fonográfica, o modelo de negócio é que mudou.O capitalismo tenta se adaptar como pode.  Isto não significa que, no final das contas, não haja escapatória para as garras do capital, num eterno jogo de gato e rato. Mas sim que a luta se dá por dentro do consumo mesmo, uma disputa de subjetividades antagônicas, luta de classe. É o que Deleuze e Guattari chamam de “máquinas de guerra revolucionária”, isto é, formações subjetivas de produzir e viver que escapam dos aparelhos de captura dos fluxos do desejo.
Isso tudo é muito político. Basta pensar como os pobres conseguem fazer muito com pouco. O máximo do mínimo, o luxo do lixo, a arte da rua. Como são criativos em reinventar os usos e a si mesmos, na relação social, na maneira com que cooperam e superam as dificuldades e constrangimentos. Por isso, a condição do pobre não pode ser colocada em segundo plano nas discussões sobre o consumo, como se não houvesse uma tremenda desigualdade socioambiental onde quer que olhemos. Se ele sempre quer mais, não é porque algo lhe falte e isso o exaspere. Não porque inveje o consumo de madame, a vida-lazer do playboy e da patricinha. Poucas coisas podem ser mais reacionárias do que dizer que o pobre quer ser igual ao rico, que, ao ter acesso à renda e consumo, elitize-se e embraqueça. O pobre quer mais porque pode mais, porque tem direito, e esse direito ele afirma e exerce quando se mobiliza, luta e resiste. Porque pode e quer devorar inclusive o rico, com toda a sua parafernália de consumos impotentes e subjetividades miseráveis, tudo isso que o define como rico em primeiro lugar. Consumir o consumo, como propunham Andy Warhol e Hélio Oiticica, só pode estar nessa libertação do desejo por dentro do consumo, plano de síntese do modo de produção capitalista e lugar em que se manifesta com premência a sua esquizofrenia. Assim o capitalismo radicaliza a sua crise, na luta de classe. Longe da paranoia de rico, a catástrofe passa a ser da classe capitalista, do próprio rico, pondo em xeque as estratégias de manipulação da falta e produção de miséria. Trata-se de acelerar o processo de consumo, intensivamente, do viver enquanto multiplicação real de sujeitos, objetos e seus arranjos produtivos plurívocos, sua floresta louca de possibilidades e travessias.
A genuína invectiva revolucionária é consumir mais, sempre mais, muito mais.

Nenhum comentário:

Postar um comentário