A sociedade contra o Estado - 1974 - por Pierre
Clastres
(Artigo)
As sociedades primitivas são sociedades sem Estado: esse
julgamento de fato, em si mesmo correto, na verdade dissimula uma opinião, um
juízo de valor, que prejudica então a possibilidade de constituir uma
antropologia política como ciência rigorosa. O fato que se enuncia é que as
sociedades primitivas estão privadas de alguma coisa – o Estado – que lhes é, tal como a qualquer
outra sociedade - a nossa, por exemplo - necessária. Essas sociedades são,
portanto, incompletas. Não são exatamente verdadeiras sociedades - não
são policiadas -, e subsistem na experiência talvez dolorosa de uma falta
- falta do Estado - que elas tentariam, sempre em vão, suprir. De um modo
mais ou menos confuso, é isso mesmo o que dizem as crônicas dos viajantes ou os
trabalhos dos pesquisadores: não se pode imaginar a sociedade sem o Estado, o
Estado é o destino de toda sociedade. Descobre-se nessa abordagem uma fixação
etnocentrista tanto mais sólida quanto é
ela, o mais das vezes, inconsciente. A referência imediata, espontânea 'é, se
não aquilo que melhor se conhece, pelo menos o mais familiar. Cada um de nós
traz efetivamente em si, interiorizada como a fé do crente, essa certeza de que
a sociedade existe para o Estado. Como conceber então a própria existência das
sociedades primitivas, a não ser como espécies à margem da história universal,
sobrevivências anacrônicas de uma fase distante e, em todos os lugares há muito
ultrapassada? Reconhece-se aqui a outra face do etnocentrismo, a convicção
complementar de que a história tem um sentido único, de que toda sociedade está
condenada a inscrever-se nessa história e a percorrer as suas etapas que, a partir da selvageria,
conduzem à civilização “Todos os povos policiados foram selvagens”, escreve Raynal.
Mas o registro de uma evolução evidente de forma alguma fundamenta uma doutrina
que, relacionando arbitrariamente o estado de civilização com a civilização do
Estado, designa este último como termo necessário atribuído a toda sociedade.
Pode-se então indagar o que manteve os últimos povos ainda selvagens.
Por
trás das formulações modernas, o velho evolucionismo permanece, na verdade,
intacto. Mais delicado para se dissimular na linguagem da antropologia, e não
mais na da filosofia, ele aflora contudo ao nível das categorias que pretendem
ser científicas. Já se percebeu que, quase sempre, as sociedades arcaicas são
determinadas de maneira negativa, sob o critério da falta: sociedades sem Estado,
sociedades sem escrita, sociedades sem história. Mostra-se como sendo da mesma
ordem a determinação dessas Sociedades no plano econômico: sociedades de
economia de subsistência. Se, com isso, quisermos significar que as sociedades
primitivas desconhecem a economia de mercado onde são escoados os excedentes da
produção, nada afirmamos de modo estrito, e contentamo-nos em destacar mais uma
falta, sempre com referência ao nosso próprio mundo: essas sociedades que não
possuem Estado, escrita, história, também não dispõem de mercado. Todavia, pode
objetar o bom senso, para que serve um mercado, se não há excedentes? Ora a idéia de economia de
subsistência contém em si mesma a afirmação de que, se as sociedades primitivas
não produzem excedentes, é porque são incapazes de fazê-lo, inteiramente
ocupadas que estariam em produzir o mínimo necessário à sobrevivência, à
subsistência. Imagem antiga, sempre eficaz, da miséria dos selvagens. E, a fim de explicar essa incapacidade
das sociedades primitivas de sair da estagnação de viver o dia-a-dia, dessa
alienação permanente na busca de alimentos, invocam-se o subequipamento
técnico, a inferioridade tecnológica.
O que ocorre na
realidade? Se entendermos por técnica o conjunto dos processos de que se munem
os homens, não para assegurarem o domínio absoluto da natureza (isso só vale
para o nosso mundo em seu insano projeto cartesiano cujas conseqüências
ecológicas mal começamos a medir), mas para garantir um domínio do meio natural
adaptado e relativo às suas necessidades, então não mais podemos falar
em inferioridade técnica das sociedades primitivas: elas demonstram uma
capacidade de satisfazer suas necessidades pelo menos igual àquela de que se
orgulha a sociedade industrial e técnica. Isso equivale a dizer que todo grupo
humano chega a exercer, pela força, o mínimo necessário de dominação sobre o
meio que ocupa. Até agora não se tem conhecimento de nenhuma sociedade que se
haja estabelecido, salvo por meio de coação e violência exterior, sobre um
espaço natural impossível de dominar: ou ela desaparece ou muda de território.
O que surpreende nos esquimós e nos australianos é justamente a riqueza, a
imaginação e o refinamento da atividade técnica, o poder de invenção e de
eficácia demonstrada pelas ferramentas utilizadas por esses povos. Basta fazer
uma visita aos museus etnográficos: o rigor de fabricação dos instrumentos da
vida cotidiana faz praticamente de cada modesto utensílio uma obra de arte. Não
existe portanto hierarquia no campo da técnica, nem tecnologia superior ou
inferior; só se pode medir um equipamento tecnológico pela sua capacidade de
satisfazer, num determinado meio, as necessidades da sociedade. E, sob esse
ponto de vista, não parece de forma alguma que as sociedades primitivas se
mostraram incapazes de se proporcionar os meios de realizar esse fim. Essa
potência de inovação técnica testemunhada pelas sociedades primitivas
desdobra-se sem dúvida no tempo. Nada é fornecido de uma só vez, há sempre o
paciente trabalho de observação e de pesquisa, a longa sucessão de ensaios,
erros, fracassos e êxitos. Os historiadores da pré-história nos dão notícia de
quantos milênios foram necessários para que os homens do paleolítico
substituíssem os grosseiros bifaces pelas admiráveis lâminas do solutreano.
Segundo outro ponto de vista, observa-se que a descoberta da agricultura e a domesticação
das plantas são quase contemporâneas na América e no velho Mundo. E impõe-se
constatar que os ameríndios em nada se mostram inferiores, muito pelo
contrário, no que se refere à arte de selecionar e diferençar, múltiplas
variedades de plantas foram úteis.
Detenhamo-nos
por um momento no funesto interesse que levou os índios a quererem instrumentos
metálicos. Com efeito, ele está diretamente relacionado com a questão da
economia nas sociedades primitivas, mas não da maneira que se poderia
acreditar. Essas sociedades estariam, segundo se afirma, condenadas à economia
de subsistência em razão da inferioridade tecnológica. Como acabamos de ver,
esse argumento não tem fundamento em direito nem em fato. Nem em direito, porque
não existe escala abstrata pela qual se possam medir as
"intensidades" tecnológicas: o equipamento técnico de uma sociedade
não é diretamente comparável àquele de uma sociedade diferente, e de
nada serve opor o fuzil ao arco. Nem em fato, uma vez que a arqueologia,
a etnografia, a botânica etc. nos demonstram precisamente a potência de
rentabilidade e de eficácia das tecnologias selvagens. Por conseguinte, se as
sociedades primitivas repousam numa economia de subsistência, não é por lhes
faltar uma habilidade técnica. A verdadeira pergunta que se deve formular é a
seguinte: a economia dessas sociedades é realmente uma economia de
subsistência? Precisando o sentido das expressões: se por economia de
subsistência não nos contentamos em entender economia sem mercado e sem
excedentes - o que seria um simples truísmo, o puro registro da diferença -
então com efeito se afirma que esse tipo de economia permite à sociedade que
ele funda tão somente subsistir; afirma-se que essa sociedade mobiliza
permanentemente a totalidade de suas forças produtivas para fornecer a seus
membros o mínimo necessário à subsistência.
Existe
aí um preconceito tenaz, curiosamente co-extensivo à idéia contraditória e não
menos corrente de que o selvagem é preguiçoso. Se em nossa linguagem popular
diz-se "trabalhar como um negro", na América do Sul, por outro lado,
diz-se "vagabundo como um índio". Então, das duas uma: ou o homem das
sociedades primitivas, americanas e outras, vive em economia de subsistência e
passa quase todo o seu tempo à procura de alimento, ou não vive em economia de
subsistência e pode portanto se proporcionar lazeres prolongados fumando em sua
rede. Isso chocou claramente os primeiros observadores europeus dos índios do
Brasil. Grande era a sua reprovação ao constatarem que latagões cheios de saúde
preferiam se empetecar, como mulheres, de pinturas e plumas em vez de regarem
com suor as suas áreas cultivadas. Tratava-se, portanto, de povos que ignoravam
deliberadamente que é preciso ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Isso
era demais, e não durou muito: rapidamente se puseram os índios para trabalhar,
e eles começaram a morrer. Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da
civilização ocidental desde a sua aurora:
o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve sob a
sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é
necessário trabalhar.
Os
índios, efetivamente, só dedicavam pouco tempo àquilo a que damos o nome de
trabalho. E apesar disso não morriam de fome. As crônicas da época são unânimes
em descrever a bela aparência dos adultos, a boa saúde das numerosas crianças,
a abundância e variedade dos recursos alimentares. Por conseguinte, a economia
de subsistência das tribos indígenas não implicava de forma alguma a angustiosa
busca, em tempo integral, de alimento. Uma economia de subsistência é, pois,
compatível com uma considerável limitação do tempo dedicado às atividades
produtivas. Era o que se verificava com as tribos sul americanas de
agricultores, como os Tupi-Guarani, cuja ociosidade irritava igualmente os
franceses e os portugueses. A vida econômica desses índios baseava-se sobretudo
na agricultura, e, acessoriamente, na caça, na pesca e na coleta. Uma mesma
área de cultivo era utilizada por um período ininterrupto de quatro a seis
anos. Em seguida, era abandonada, por esgotar-se o solo ou, mais provavelmente,
em virtude da invasão do espaço destacado por uma vegetação parasitária de
difícil eliminação. O grosso do trabalho, efetuado pelos homens, consistia em
arrotear, por meio de um machado de pedra e com auxílio do fogo, a superfície
necessária. Essa tarefa, realizada no fim da estação das chuvas, mobilizava os
homens durante um ou dois meses. Quase todo o resto do processo agrícola -
plantar, mondar, colher -, em conformidade com a divisão sexual do trabalho,
era executado pelas mulheres. Donde a seguinte conclusão feliz: os homens, isto
é, a metade da população, trabalhavam cerca de dois meses em cada quatro anos!
O resto do tempo era passado em ocupações encaradas não como trabalho, mas como
prazer: caça, pesca; festas e bebedeiras; a satisfazer, enfim, o seu gosto
apaixonado pela guerra.
Ora,
esses dados maciços, qualitativos, impressionistas, encontram uma brilhante
confirmação em pesquisas recentes - algumas em curso - de caráter rigorosamente
demonstrativo, já que medem o tempo de trabalho nas sociedades com economia de
subsistência. Quer se trate de caçadores-nômades do deserto do Kalahari ou de
agricultores sedentários ameríndios, os números obtidos revelam uma divisão média
do tempo diário de trabalho inferior a quatro horas por dia. Jacques Lizot, que
vive há muitos anos entre os índios Yanomami da Amazônia venezuelana,
estabeleceu, cronometricamente, que a duração média do tempo, que os adultos
dedicam todos os dias ao trabalho, incluídas todas as atividades, mal
ultrapassa três horas. Não chegamos, pessoalmente, a realizar cálculos desse gênero
entre os Guayaki, caçadores nômades da floresta paraguaia. Mas pode-se
assegurar que os índios - homens e mulheres – passavam pelo menos a metade do
dia em quase completa ociosidade, uma vez que a caça e a coleta se efetuavam, e
não todos os dias, entre, mais ou menos, 6 e 11 horas da manhã. É provável que
estudos desse gênero, levados a efeito entre as últimas populações primitivas,
resultassem - consideradas as diferenças ecológicas - em resultados muito
parecidos.
Estamos
portanto bem longe da miserabilidade que envolve a idéia de economia de
subsistência. Não só o homem das sociedades primitivas não está de forma alguma
sujeito a essa existência animal que seja a busca permanente para assegurar a
existência, como é ao preço de um tempo de atividade notavelmente curto que ele
alcança - e até ultrapassa -. esse resultado. Isso significa que as sociedades
primitivas dispõem, se assim o desejarem, de todo o tempo necessário para
aumentar a produção dos bens materiais. O bom senso questiona: por que razão os
homens dessas sociedades quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou
quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades
do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes
assim acumulados? Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força
que os homens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essa força
está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define
inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos admitir, a partir de
agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão
economia de subsistência, desde que não a entendamos no sentido da necessidade
de um defeito, de uma incapacidade inerentes a esse tipo de sociedade e
a sua tecnologia, mas, ao contrário, no sentido da recusa de um excesso
inútil da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das
necessidades. E nada mais. Tanto mais que, para examinar as coisas mais de
perto, há efetivamente produção de excedentes nas sociedades primitivas: a
quantidade de plantas cultivadas produzidas (mandioca, milho, fumo, algodão
etc.) sempre ultrapassa o que é necessário ao consumo do grupo, estando essa
produção suplementar, evidentemente incluída no tempo normal de trabalho. Esse
excesso, obtido sem sobre-trabalho, é consumido, consumado, com finalidades
propriamente políticas, por ocasião de festas, convites, visita de estrangeiros
etc. A vantagem de um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente
demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar com o primeiro
talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então executar o mesmo
trabalho num tempo dez vezes menor. E, ao descobrirem a superioridade produtiva
dos machados dos homens brancos, os índios os desejaram, não para produzirem
mais no mesmo tempo, mas para produzirem a mesma coisa num tempo dez vezes mais
curto. Mas foi exatamente o contrário que
se verificou, pois, com os machados metálicos, irromperam no mundo primitivo
dos índios a violência, a força, o poder, impostos aos selvagens pelos civilizados
recém-chegados.
As
sociedades primitivas são, como escreve Lizot ao propósito dos Yanomami,
sociedades de recusa do trabalho: "O desprezo dos Yanomami pelo trabalho
e o seu desinteresse por um progresso tecnológico autônomo é certo”[1] Primeiras
sociedades do lazer, primeiras sociedades da abundância, na justa e feliz
expressão de Marshall Sahlins.
Se o
projeto de constituir uma antropologia econômica das sociedades primitivas como
disciplina autônoma tem um sentido, este não pode advir da simples consideração
da vida econômica dessas sociedades: permanecemos numa etnologia da descrição,
na descrição de uma dimensão não-autônoma da vida social primitiva. É
muito antes, quando essa dimensão do "fato social total" se constitui
como esfera autônoma, que a idéia de uma antropologia econômica parece
fundamentada: quando desaparece a recusa ao trabalho, quando o sentido do lazer
é substituído pelo gosto da acumulação, quando, em síntese, surge no corpo social
essa força externa que evocamos antes, essa força sem a qual os selvagens não
renunciariam ao lazer e que destrói a sociedade como sociedade primitiva; essa
força é a potência de sujeitar, é a capacidade de coerção, é o poder político.
Mas, em conseqüência disso, a antropologia deixa desde então de ser econômica,
e perde de alguma forma o seu objeto no próprio instante em que crê agarrá-lo,
e a economia torna-se política.
Para o
homem das sociedades primitivas, a atividade de produção é exatamente medida,
delimitada pelas necessidades que têm de ser satisfeitas, estando implícito que
se trata essencialmente das necessidades energéticas: a produção é projetada
sobre a reconstituição do estoque de energia gasto. Em outros termos, é a vida
como natureza que - com exceção dos bens consumidos socialmente por ocasião das
festas - fundamenta e determina a quantidade de tempo dedicado a reproduzi-Ia.
Isso equivale a dizer que, uma vez assegurada a satisfação global das
necessidades energéticas, nada poderia estimular a sociedade primitiva a
desejar produzir mais, isto é, a alienar o seu tempo num trabalho sem
finalidade, enquanto esse tempo é disponível para a ociosidade, o jogo, a
guerra ou a festa. Quais as condições em que se podem transformar essa relação
entre o homem primitivo e a atividade de produção? Sob que condições essa
atividade se atribui uma finalidade diferente da satisfação das necessidades
energéticas? Temos aí levantada a questão da origem do trabalho como trabalho
alienado.
Na
sociedade primitiva, sociedade essencialmente igualitária, os homens são
senhores de sua atividade, senhores da circulação dos produtos dessa atividade: eles só agem
para si próprios, mesmo se a lei de troca dos bens só mediatiza a relação
direta do homem com o seu produto. Tudo se desarruma, por conseguinte, quando a
atividade de produção se afasta do seu objetivo inicial quando em vez de
produzir apenas para si mesmo, o homem primitivo produz também para os outros, sem
troca e sem reciprocidade. Só então é que podemos falar em trabalho: quando
a regra igualitária de troca deixa de constituir o "código civil” da sociedade, quando a atividade
de produção visa a satisfazer as necessidades dos outros, quando a regra de
troca é substituída pelo terror da dívida. Na verdade, é exatamente aí que se
inscreve a diferença entre o selvagem amazônico e o índio do império inca. O primeiro produz, em
suma, para viver, enquanto o segundo trabalha, de mais a mais, para fazer com
que outros vivam – os que não trabalham, os senhores que lhe dizem: cumpre que
tu pagues o que nos deves; impõe-se que tu eternamente saldes a dívida que
conosco contraíste.
Quando,
na sociedade primitiva, o econômico se deixa identificar como campo autônomo e
definido, quando a atividade de produção se transforma em trabalho alienado,
contabilizado e imposto por aqueles que vão tirar proveito dos frutos desse
trabalho, é sinal de que a sociedade não é mais primitiva, tornou-se uma
sociedade dividida em dominantes e dominados, em senhores e súditos, e de que
parou de exorcizar aquilo que está destinado a matá-la: o poder e o respeito ao
poder. A principal divisão da sociedade, aquela que serve de base a todas as
outras, inclusive sem dúvida a divisão do trabalho, é a nova disposição
vertical entre a base e o cume, é o grande corte político entre detentores da força,
seja ela guerreira ou religiosa, e sujeitados a essa força. A relação política
do poder precede e fundamenta a relação econômica de exploração. Antes de ser
econômica, a alienação é política, o poder antecede o trabalho, o econômico é
uma derivação do político, a emergência do Estado determina o aparecimento das
classes.
Inacabamento,
incompletude, falta: não é absolutamente desse lado que se revela a natureza
das sociedades primitivas. Ela impõe-se bem mais como positividade, como
domínio do meio ambiente natural e do projeto social, como vontade livre de não
deixar escapar para fora de seu ser nada que possa alterá-lo, corrompê-lo e
dissolvê-lo. É a isso que nos devemos prender com firmeza: as sociedades
primitivas não são os embriões retardatários das sociedades ulteriores, dos
corpos sociais de decolagem "normal" interrompida por alguma estranha
doença; elas não se encontram no ponto de partida de uma lógica histórica que
conduz diretamente ao termo inscrito de antemão, mas conhecido apenas a posteriori,
o nosso próprio sistema social. (Se a história é essa lógica, como podem ainda
existir sociedades primitivas?) Tudo isso se traduz, no plano da vida
econômica, pela recusa das sociedades primitivas em se deixarem tragar pelo
trabalho e pela produção, através da decisão de limitar os estoques às
necessidades sociopolíticas, da impossibilidade intrínseca da concorrência – de
que serviria, numa sociedade primitiva, ser rico entre os pobres? – em suma,
pela proibição, não formulada ainda que dita, da desigualdade.
O que
é que determina que numa sociedade primitiva a economia não seja política? Isso
se dá, como se vê, devido ao fato da economia nela não funcionar de maneira
autônoma. Poder-se-ia dizer que, nesse sentido, as sociedades primitivas são
sociedades sem economia por recusarem a economia. Mas deve-se então
classificar também como ausência a existência do político nessas sociedades? É
preciso admitir que, por se tratar de sociedades "sem lei e sem rei "
o campo político lhes falta? E não tornaríamos dessa forma a cair na rotina
clássica de um etnocentrismo para o qual a falta assinala em todos os níveis as
diferentes sociedades?
Abordemos
pois a questão do político nas sociedades primitivas. Não se trata simplesmente
de um problema "interessante", de um tema reservado apenas à reflexão
dos especialistas, pois a etnologia ganha as dimensões de uma teoria geral (a
construir) da sociedade. A extrema diversidade dos tipos de organização social,
a abundância, no tempo e no espaço, de sociedades dessemelhantes, não impedem
entretanto a possibilidade de uma ordem na descontinuidade, a possibilidade de
uma redução dessa multiplicidade infinita de diferenças. Redução maciça, uma
vez que a história só nos oferece, de fato, dois tipos de sociedade
absolutamente irredutíveis um ao outro, duas macro-classes, cada uma das quais
reúne em si sociedades que, além de suas diferenças, têm em comum alguma coisa
de fundamental. Existem por um lado as sociedades primitivas ou sociedades sem Estado; e, por
outro lado, as sociedades com Estado. É a presença ou a ausência da
formação estatal (suscetível de assumir múltiplas formas) que fornece a toda
sociedade o seu elo lógico, que traça uma linha de irreversível descontinuidade
entre as sociedades. O aparecimento do Estado realizou a grande divisão
tipológica entre selvagens e civilizados, e traçou uma indelével linha de
separação além da qual tudo mudou, pois o Tempo se torna História. Tem-se freqüentemente
descoberto - e com razão - no movimento da história mundial duas acelerações
decisivas do seu ritmo. O motor da primeira foi o que se denomina a revolução
neolítica (domesticação dos animais, agricultura, descoberta das artes da
tecelagem e da cerâmica, sedentarização conseqüente dos grupos humanos etc.).
Estamos ainda vivendo, e cada vez mais (se nos é lícita a expressão) no
prolongamento da segunda aceleração, a revolução industrial do século XIX.
Evidentemente
não há dúvida de que a linha de separação neolítica alterou de modo
considerável as condições de existência material dos povos outrora
paleolíticos. Mas essa transformação teria sido tão radical a ponto de afetar
em sua mais extrema profundidade a essência das sociedades? Pode-se falar em um
funcionamento diferente dos sistemas sociais, conforme sejam eles pré-neolíticos
ou pós-neolíticos? A experiência etnográfica indica antes o contrário. A
passagem do nomadismo à sedentarização seria a conseqüência mais rica da
revolução neolítica, no sentido de que permitiu, pela concentração de uma
população estabilizada, a formação das cidades e, mais adiante, dos aparelhos
de Estado. Mas determina-se que, ao fazer isso, todo "complexo"
tecnocultural desprovido de agricultura está necessariamente fadado ao
nomadismo. Eis o que é etnograficamente inexato: uma economia de caça, pesca e
coleta não exige obrigatoriamente um modo de vida nômade. Vários exemplos,
tanto na América como em outros lugares, o atestam: a ausência de agricultura é
compatível com o sedentarismo. Isso permitiria supor, então, que, se certos
povos não chegaram a possuir agricultura, no momento em que ela era
ecologicamente possível, não foi por incapacidade, atraso tecnológico,
inferioridade cultural, porém, mais simplesmente, porque dela não tinham
necessidade.
A
história pós-colombiana da América apresenta o caso de populações de
agricultores sedentários que, sob o efeito de uma revolução técnica (conquista
do cavalo e, acessoriamente, das armas de fogo), preferiram abandonar a
agricultura para se dedicarem de maneira quase exclusiva à caça, cujo rendimento
era multiplicado pela mobilidade dez vezes maior proporcionada pelo cavalo. A
partir do momento em que se tornaram eqüestres, as tribos das planícies da
América do Norte ou as do Chaco, na América do Sul, intensificaram e estenderam
os seus deslocamentos: contudo, estamos aí bem longe do nomadismo em que recaem
geralmente os bandos de caçadores-coletores (como os Guayaki do Paraguai), e o
abandono da agricultura não se traduziu, para os grupos em questão, pela
dispersão demográfica, nem pela transformação da organização social anterior.
Que nos é ensinado por esse movimento de maioria de
sociedades que passaram da caça à agricultura e pelo movimento inverso, de
algumas outras, que, partindo da agricultura, chegaram à caça? É que isso
parece efetivar-se sem que ocorra qualquer mudança na natureza da sociedade;
que esta permanece idêntica a si mesma enquanto se transformam apenas as suas
condições de existência material; que a revolução neolítica, se por um lado
afetou consideravelmente, e sem dúvida facilitou, a vida material dos grupos
humanos de então, por outro lado não acarreta de maneira automática uma
perturbação da ordem social. Em outros termos, e no que tange às sociedades
primitivas, a mudança no plano do que o marxismo chama a infra-estrutura econômica
não determina de modo algum o seu reflexo conseqüente a superestrutura
política, já que esta surge independente da sua base material. O continente
americano ilustra claramente a autonomia respectiva da economia e da sociedade.
Grupos de caçadores-pescadores-coletores, nômades ou não, apresentam as mesmas
propriedades sociopolíticas que os seus vizinhos agricultores sedentários:
"infra-estruturas" diferentes, "superestrutura” idêntica.
Inversamente, as sociedades meso-americanas – sociedades imperiais, sociedades
com Estado - eram tributárias de uma agricultura que, mais intensiva que alhures,
não ficava muito longe, do ponto de vista de seu nível técnico, da agricultura
das tribos "selvagens" da Floresta Tropical:
"infra-estrutura" idêntica, "superestruturas" diferentes,
uma vez que, num dos casos, se trata de sociedades sem Estado, e, no outro, de
Estados acabados.
É
então a ruptura política - e não a mudança econômica - que é decisiva. A
verdadeira revolução, na proto-história da humanidade, não é a do neolítico,
uma vez que ela pode muito bem deixar intacta a antiga organização social, mas
a revolução política: é essa aparição misteriosa, irreversível, mortal para as
sociedades primitivas, que conhecemos sob o nome de Estado. E caso haja desejo
de conservar os conceitos marxistas de infra-estrutura e de superestrutura,
então talvez seja necessário reconhecer que a infra-estrutura é o político e
que a superestrutura é o econômico. Somente uma convulsão estrutural, abissal
pode transformar, destruindo-a como tal, a sociedade primitiva: aquilo que faz
surgir em seu seio, ou do exterior, aquilo cuja ausência mesma define
essa sociedade, a autoridade da hierarquia, a relação de poder, a dominação dos
homens, o Estado. Seria vão procurar sua origem numa hipotética
modificação das relações de produção na sociedade primitiva, modificação que,
dividindo pouco a pouco a sociedade em ricos e pobres, exploradores e
explorados, conduziria mecanicamente à instauração de um órgão de exercício do
poder dos primeiros sobre os segundos, ao aparecimento do Estado.
Hipotética,
essa modificação da base econômica é ainda mais impossível. Para que, numa dada
sociedade, o regime de produção se transforme no sentido de uma maior
imensidade de trabalho que visa a uma produção acrescida de bens, é necessário
ou que os homens dessa sociedade desejem essa transformação de seu gênero de
vida tradicional, ou que, mesmo não a desejando, eles se vejam obrigados por
uma violência externa. No segundo caso, nada advém da própria sociedade, que
sofre a agressão de uma força externa em beneficio da qual o regime de produção
vai modificar-se: trabalhar e produzir mais para satisfazer as necessidades dos
novos senhores do poder. A opressão política determina, chama, permite a
exploração. Mas a evocação de uma tal "encenação" não serve de nada,
uma vez que ela coloca uma origem externa, contingente, imediata, da violência
estatal, e não a lenta realização das condições internas, socioeconômicas, de
seu aparecimento.
O
Estado, dizem, é o instrumento que permite à classe dominante exercer sua
dominação violenta sobre as classes dominadas. Que seja. Para que haja o
aparecimento do Estado, é necessário pois, que exista antes divisão da
sociedade em classes sociais antagônicas, ligadas entre si por relação de
exploração. Por conseguinte, a estrutura da sociedade - a divisão em
classes - deveria preceder a emergência da máquina estatal. Observemos
de passagem a fragilidade dessa concepção puramente instrumental do Estado. Se
a sociedade é organizada por opressores capazes de explorar os oprimidos, é que
essa capacidade de impor a alienação repousa sobre o uso de uma força, isto é,
sobre o que faz da própria substância do Estado "monopólio da violência
física legítima". A que necessidade responderia desde então a existência
de um Estado, uma vez que sua essência - a violência - é imanente à divisão da
sociedade, já que é, nesse sentido, dada antecipadamente na opressão exercida
por um grupo social sobre os outros? Ele não seria senão o inútil órgão de uma
função preenchida antes e alhures.
Articular
o aparecimento da máquina estatal com a transformação da estrutura social leva
somente a recuar o problema desse aparecimento. É então necessário perguntar
por que se produz, no seio de uma sociedade primitiva, isto é, de uma sociedade
não-dividida, a nova divisão dos homens em dominantes e dominados. Qual é o
motor dessa transformação maior que culminaria na instalação do Estado? Sua
emergência sancionaria a legitimidade de uma propriedade privada previamente surgida,
e o Estado seria o representante e o protetor dos proprietários. Muito bem. Mas
por que se teria o surgimento da propriedade privada num tipo de sociedade que
ignora, por recusá-la, a propriedade? Por que alguns desejaram proclamar um
dia: isto é meu, e como os outros deixaram que se estabelecesse assim o
germe daquilo que a sociedade primitiva ignora, a autoridade, a opressão, o
Estado? O que hoje se sabe das sociedades primitivas não permite mais procurar
no nível econômico a origem do político. Não é nesse solo que se enraíza a
árvore genealógica do Estado. Nada existe, no funcionamento econômico de uma
sociedade primitiva, de uma sociedade sem Estado, que permita a introdução da
diferença entre mais ricos e mais pobres, pois aí ninguém tem o estranho desejo
de fazer, possuir, parecer mais que seu vizinho. A capacidade, igual entre
todos, de satisfazer as necessidades materiais, e a troca de bens e serviços, que
impede constantemente o acúmulo privado dos bens, tornam simplesmente
impossível a eclosão de um tal desejo, desejo de posse que é de fato desejo de
poder. A sociedade primitiva, primeira sociedade de abundância, não deixa
nenhum espaço para o desejo de superabundância.
As
sociedades primitivas são sociedades sem Estado porque, nelas, o Estado é
impossível. E entretanto todos os povos civilizados foram primeiramente
selvagens: o que fez com que o Estado deixasse de ser impossível? Por que os
povos cessaram de ser selvagens? Que formidável acontecimento, que revolução
permitiram o surgimento da figura do Déspota, daquele que comanda os que
obedecem? De onde provém o poder político? Mistério, talvez provisório,
da origem.
Se
parece ainda possível determinar as condições de aparecimento do Estado,
podemos em troca precisar as condições de seu não-aparecimento, e os textos que
foram aqui reunidos tentam cercar o espaço do político nas sociedades sem
Estado. Sem fé, sem lei sem rei: o que no século XVI o Ocidente dizia dos
índios pode estender-se sem dificuldade a toda sociedade primitiva. Este pode
ser mesmo o critério de distinção: uma sociedade é primitiva se nela falta o
rei, como fonte legítima da lei, isto é, a máquina estatal. Inversamente, toda
sociedade não-primitiva é uma sociedade de Estado: pouco importa o regime
socioeconômico em vigor. É por isso que podemos reagrupar numa mesma classe os
grandes despotismos arcaicos – reis, imperadores da China ou dos Andes, faraós
– as monarquias mais recentes - O Estado sou eu - ou os sistemas sociais contemporâneos,
quer o capitalismo seja liberal corno na Europa ocidental, ou de Estado como
alhures...
Portanto,
a tribo não possui um rei, mas um chefe que não é chefe de Estado. O que
significa isso? Simplesmente que o chefe não dispõe de nenhuma autoridade, de
nenhum poder de coerção, de nenhum meio de dar urna ordem. O chefe não é um
comandante, as pessoas da tribo não têm nenhum dever de obediência. O espaço
da chefia não é o lugar do poder, e
a figura (mal denominada) do "chefe" selvagem não prefigura em nada
aquela de um futuro déspota. Certamente não é da chefia primitiva que se pode
deduzir o aparelho estatal em geral.
Em que
o chefe da tribo não prefigura o chefe de Estado? Em que uma tal antecipação do
Estado é impossível no mundo dos selvagens? Essa descontinuidade radical - que
torna impensável uma passagem progressiva da chefia primitiva à máquina estatal
- se funda naturalmente nessa relação de exclusão que coloca o poder político
no exterior da chefia. O que se deve imaginar é um chefe sem poder, uma
instituição, a chefia, estranha à sua essência, a autoridade. As funções do
chefe, tal como foram analisadas acima, mostram perfeitamente que não se trata
de funções de autoridade. Essencialmente encarregado de eliminar conflitos que
podem surgir entre indivíduos, famílias e linhagens etc., ele só dispõe, para
restabelecer a ordem e a concórdia, do prestÍgio que lhe reconhece à sociedade.
Mas evidentemente prestígio não significa poder, e os meios que o chefe detém
para realizar sua tarefa de pacificador limitam-se ao uso exclusivo da palavra:
não para arbitrar entre as partes opostas, pois o chefe não é um juiz e não
pode se permitir tomar partido por um ou por outro, mas para, armado apenas de
sua eloqüência, tentar persuadir as pessoas da necessidade de se apaziguar, de
renunciar às injúrias, de imitar os ancestrais que sempre viveram no bom
entendimento. Empreendimento cuja vitória nunca é certa, aposta sempre incerta,
pois a palavra do chefe não tem força de lei. Se o esforço de
persuasão fracassa, então o conflito corre o risco de se resolver pela
violência e o prestígio do chefe pode muito bem não sobreviver a isso, uma vez
que ele deu provas de sua impotência em realizar o que se espera dele.
Em
função de que a tribo estima que tal homem é digno de ser um chefe? No fim das
contas, somente em função de sua competência "técnica": dons
oratórios, habilidade como caçador, capacidade de coordenar as atividades
guerreiras, ofensivas ou defensivas. E, de forma alguma a sociedade deixa o chefe
ir além desse limite técnico, ela jamais deixa uma superioridade técnica se
transformar em autoridade política. O chefe está a serviço da sociedade, é a sociedade
em si mesma - verdadeiro lugar do poder - que exerce como tal sua autoridade
sobre o chefe. É por isso que é impossível para o chefe alterar essa relação em
seu proveito, colocar a sociedade a seu próprio serviço, exercer sobre a tribo
o que denominamos poder: a sociedade nunca tolerará que seu chefe se transforme
em déspota.
Grande
vigilância. de certo modo, a que a tribo submete o chefe, prisioneiro em um
espaço do qual ela não o deixa sair. É possível que um chefe deseje ser chefe? Que
ele queira substituir o serviço e o interesse do grupo pela realização do seu
próprio desejo? Que a satisfação do seu interesse pessoal ultrapasse a
submissão ao projeto coletivo? Em virtude do estreito controle a que a
sociedade - por sua natureza de sociedade primitiva e não, é claro, por cuidado
consciente e deliberado de vigilância - submete, como todo o resto, a
prática do líder, raros são os casos de chefes colocados em situação de
transgredir a lei primitiva: tu não és mais que os outros. Raros
certamente, mas não inexistentes: acontece às vezes que um chefe queira bancar
o chefe, e não por cálculo maquiavélico, mas antes porque definitivamente
ele não tem escolha, não pode fazer de outro modo. Expliquemo-nos. Em regra
geral, um chefe não tenta (ele nem mesmo sonha) subverter a relação normal
(conforme às normas) que mantém com seu grupo, subversão que, de servidor da
tribo, faria dele o senhor. Essa relação normal, o grande cacique Alaykin, chefe
guerreiro de uma tribo Abipione do Chaco argentino, a definiu perfeitamente na
resposta que deu a um oficial espanhol que queria convencê-lo ~ levar sua tribo
a uma guerra que ela não desejava: "Os Abipiones, por um costume recebido
de seus ancestrais, fazem tudo de acordo com sua vontade e não de acordo com a
do seu cacique. Cabe a mim dirigi-los, mas eu não poderia prejudicar nenhum dos
meus sem prejudicar a mim mesmo; se eu utilizasse as ordens ou a força com meus
companheiros, logo eles me dariam as costas. Prefiro ser amado e não temido por
eles” E, não duvidemos, a maior parte dos chefes indígenas teria sustentado o
mesmo discurso.
Existem
entretanto exceções quase sempre ligadas à guerra. Sabemos com efeito que a
preparação e a condução de uma expedição militar são as únicas circunstâncias
em que o chefe pode exercer um mínimo de autoridade, fundada somente,
repitamo-lo, em sua competência técnica de guerrear. Uma vez as coisas terminadas,
e qualquer que seja o resultado do combate, o chefe guerreiro volta a ser um
chefe sem poder, e em nenhuma hipótese o prestígio decorrente da vitória se
transforma em autoridade. Tudo se passa precisamente sobre essa separação
mantida pela sociedade entre poder e prestígio, entre a glória de um guerreiro
vencedor e o comando que lhe é proibido exercer. A fonte mais apta para saciar
a sede de prestígio de um guerreiro é a guerra. Ao mesmo tempo, um chefe cujo
prestígio está ligado à guerra não pode conservá-lo e reforçá-lo senão na
guerra: é uma espécie de fuga impulsiva para a frente que o faz querer
organizar sem cessar expedições guerreiras das quais ele conta retirar os
benefícios (simbólicos) aferentes à vitória. Enquanto seu desejo de guerra
corresponder à vontade geral da tribo, em particular dos jovens para os quais a
guerra é também o principal meio de adquirir prestígio, e enquanto a vontade do
chefe não ultrapassar a da sociedade, as relações habituais entre o segundo e o
primeiro manter-se-ão inalteradas. Mas o risco de uma ultrapassagem do desejo
da sociedade pelo desejo do seu chefe, o risco para ele de ir além do que deve,
de sair do estreito limite determinado à sua função, é permanente. O chefe às
vezes aceita corrê-lo, tenta impor à tribo seu projeto individual tenta
substituir o interesse coletivo por seu interesse pessoal. Alterando a relação
normal que determina o líder como meio a serviço de um fim socialmente definido,
ele tenta fazer da sociedade o meio de realizar um fim puramente privado: a
tribo a serviço do chefe, e não mais o chefe a serviço da tribo. Se isso
funcionasse, então teríamos aí a terra natal do poder político, como coerção e
violência, teríamos a primeira encarnação da figura mínima do Estado. Mas isso
nunca funciona.
No
belíssimo relato dos vinte anos que passou entre os Yanomami,[2] Helena
Valero fala longamente de seu primeiro marido, o líder guerreiro Fousiwe. Sua
história ilustra perfeitamente o destino da chefia selvagem quando ela é, por força
das coisas, levada a transgredir a lei da sociedade primitiva que, verdadeiro
lugar do poder, recusa cedê-lo, recusa delegá-lo. Fousiwe foi então reconhecido
como "chefe" por sua tribo em virtude do prestígio que adquiriu como
organizador e condutor de ataques vitoriosos contra os grupos inimigos. Ele
dirige conseqüentemente guerras desejadas por sua tribo, coloca à disposição de
seu grupo sua competência técnica de homem de guerra, sua coragem, seu
dinamismo, e é o instrumento eficaz de sua sociedade. Mas a infelicidade do guerreiro
selvagem é que o prestígio adquirido na guerra se perde rapidamente, se não se renovam
constantemente as fontes. A tribo, para a qual o chefe é apenas “um instrumento
apto a realizar sua vontade”, esquece facilmente as vitórias passadas do chefe.
Para ele, nada é definitivamente adquirido e, se ele quer devolver às pessoas
a memória tão facilmente perdida de seu prestígio e de sua glória, não é apenas
exaltando suas antigas façanhas que o conseguirá, mas antes suscitando a
ocasião de novos feitos bélicos. Um guerreiro não tem escolha: ele está
condenado a desejar a guerra. É exatamente aí que se dá o limite do consenso
que o reconhece como chefe. Se seu desejo de guerra coincide com o desejo de
guerra da sociedade, esta continua a segui-lo. Mas se o desejo de guerra do
chefe tenta se estabelecer sobre uma sociedade animada pelo desejo de paz - com
feito, nenhuma sociedade deseja sempre guerrear -, então a relação entre
o chefe e a tribo se modifica, o líder tenta utilizar a sociedade como
instrumento de seu objetivo individual, como meio de sua meta pessoal. Ora, não
o esqueçamos, o chefe primitivo é um chefe sem poder: como poderia ele impor a
lei de seu desejo a uma sociedade que o recusa? Ele é ao mesmo tempo
prisioneiro de seu desejo de prestígio e de sua impotência em realizá-lo. O que
pode então ocorrer? O guerreiro está destinado a solidão, a esse combate
duvidoso que só o conduz à morte. Tal foi o destino do guerreiro sul-americano Fouiswe.
Por ter querido impor aos seus uma guerra que eles não desejavam, foi abandonado
por sua tribo. Só restava lutar sozinho nessa guerra, e ele morreu crivado de
flechas. A morte é o destino do guerreiro, pois a sociedade primitiva é tal que
não permite que a vontade de poder substitua o desejo de prestígio. Ou,
em outros termos, na sociedade primitiva, o chefe, como possibilidade de
vontade de poder, está antecipadamente condenado à morte. O poder político
isolado é impossível na sociedade primitiva; nela não há lugar, não há vazio
que o Estado pudesse preencher.
Menos
trágica em sua conclusão, mas muito semelhante no seu desenvolvimento é a
história de um outro líder indígena, infinitamente mais célebre que o obscuro
guerreiro amazônico, uma vez que se trata do famoso chefe apache Gerônimo. A
leitura de suas Memórias[3] , se
bem que bastante futilmente recolhidas, se revela muito instrutiva. Gerônimo
não passava de um jovem guerreiro como os outros quando os soldados mexicanos
atacaram o acampamento de sua tribo e massacraram mulheres e crianças. A
família de Gerônimo foi inteiramente exterminada. As diversas tribos Apache se
aliaram para se vingar dos assassinos e Gerônimo foi encarregado de conduzir o
combate. Sucesso completo para os Apache, que eliminaram a guarnição mexicana.
O prestígio guerreiro de Gerônimo, principal artífice da vitória, foi imenso.
E, desde esse momento, as coisas mudaram, alguma coisa se passou em Gerônimo,
alguma coisa sucedeu. Pois se, para os Apache, satisfeitos com uma vitória que
realizou perfeitamente seu desejo de vingança, o caso estava de alguma forma acabado,
para Gerônimo, os rumores eram outros: ele queria continuar a se vingar dos
mexicanos e considerou insuficiente a sangrenta derrota imposta aos soldados.
Mas ele não pôde, é claro, atacar sozinho as aldeias mexicanas. Tentou pois,
convencer os seus a fazer uma nova expedição. Inutilmente. A sociedade Apache,
uma vez realizado o objetivo coletivo – a vingança – aspirava ao repouso. O
objetivo de Gerônimo foi, portanto, um objetivo individual para cuja realização
ele pretendeu arrastar a tribo. Ele quis fazer da tribo o instrumento de seu
desejo, ao passo que antes ele foi, em função de sua competência como guerreiro,
o instrumento da tribo. Evidentemente, os Apache jamais quiseram seguir
Gerônimo, da mesma forma que os Yanomami se recusaram a seguir Fousiwe. Quando
muito o chefe Apache conseguia (por vezes, ao preço de mentiras) convencer
alguns jovens ávidos de glória e de saque. Para uma dessas expedições, o
exército de Gerônimo, heróico e ridículo compunha-se de dois homens! Os Apache,
que, em função das circunstâncias, aceitavam a liderança de Gerônimo em virtude
da sua habilidade de combatente, sistematicamente lhe davam as costas quando
ele queria fazer sua guerra pessoal. Gerônimo foi o último grande chefe de
guerra norte-americano, que passou trinta anos de sua vida querendo
"bancar o chefe" e não conseguiu...
A propriedade essencial (quer dizer, que
toca a essência) da sociedade primitiva é exercer um poder absoluto e completo
sobre tudo que a compõe, é interditar a autonomia de qualquer um dos
subconjuntos que a constituem, é manter todos os movimentos internos, conscientes
e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e na direção desejados
pela sociedade. A tribo manifesta, entre outras (e pela violência se for
necessário), sua vontade de preservar essa ordem social primitiva, interditando
a emergência de um poder político individual, central e separado. Sociedade à
qual nada escapa, que nada deixa sair de si mesma, pois todas as saídas estão
fechadas. Sociedade que, por conseguinte, deveria eternamente se reproduzir sem
que nada de substancial a afete através do tempo.
Há
contudo um campo que, parece, escapa, ao menos em parte, ao controle da
sociedade: é um "fluxo" ao qual ela só parece poder impor uma
"codificação" imperfeita. Trata-se do domínio demográfico, domínio
regido por regras culturais, mas também por leis naturais, espaço de
desdobramento de uma vida enraizada tanto no social quanto no biológico, lugar
de uma "máquina" que funciona talvez segundo uma mecânica própria e que
estaria, em seguida, fora de alcance da empresa social.
Sem
sonhar em substituir um determinismo econômico por um determinismo demográfico,
em inscrever nas causas - o crescimento demográfico - a necessidade dos efeitos
- transformação da organização social - é entretanto necessário constatar,
sobretudo na América, o peso sociológico do número da população, a capacidade
que possui o aumento das densidades de abalar - não dissemos destruir a
sociedade primitiva. Com efeito é bastante provável que uma condição
fundamental da existência da sociedade primitiva consista numa fraqueza
relativa de seu porte demográfico. As coisas só podem funcionar segundo o
modelo primitivo se a população é pouco numerosa. Ou, em outros termos, para
que uma sociedade seja primitiva, é necessário que ela seja pequena em número.
E, de fato, o que se constata no mundo dos selvagens é um extraordinário
esfacelamento das “nações”, tribos, sociedades em grupos locais que tratam
cuidadosamente de conservar sua autonomia no seio do conjunto do qual fazem
parte, com o risco de concluir alianças provisórias com seus vizinhos
“compatriotas”, se as circunstâncias – guerreiras em particular – o exigem.
Essa atomização do universo tribal é certamente um meio eficaz de impedir a
constituição de conjuntos sóciopolíticos que integram os grupos locais, e, mais
além um meio de proibir a emergência do Estado que, em sua essência, é
unificador.
Ora, é
perturbador constatar que os Tupi-Guarani parecem, na época que a Europa os
descobre, afastar-se sensivelmente do modelo primitivo habitual, e em dois
pomos essenciais: a taxa de densidade demográfica de suas tribos ou
grupos locais ultrapassa claramente a das populações vizinhas; por outro lado,
o porte dos grupos locais não tem medida comum com o das unidades sociopolíticas
da Floresta Tropical. Evidentemente, as aldeias tupinambá, por exemplo, que reuniam
vários milhares de habitantes, não eram cidades; mas deixavam igualmente de
pertencer ao horizonte "clássico" da dimensão demográfica das sociedades
vizinhas. Sobre essa base de expansão demográfica e de concentração da
população se destaca - fato também inabitual na América dos selvagens, ao menos
na dos impérios - a tendência evidente das chefias em obter um poder
desconhecido alhures. Os chefes tupi-guarani não eram certamente déspotas, mas
não eram mais de modo algum chefes sem poder. Não cabe aqui empreender a longa
e complexa tarefa de analisar a chefia entre os Tupi-Guarani. Baste-nos
simplesmente revelar, num extremo da sociedade, se é possível dizer, o
crescimento demográfico, e, no outro, a lenta emergência do poder político. Sem
dúvida não cabe à etnologia (ou ao menos a ela sozinha) responder às questões
das causas da expansão demográfica numa sociedade primitiva. Em compensação,
incumbe a essa disciplina a articulação do demográfico e do político, a análise
da força que o primeiro exerce sobre o segundo através do sociológico.
Não
cessamos, ao longo deste texto, de proclamar a impossibilidade interna do poder
político separado numa sociedade primitiva, a impossibilidade de uma gênese do
Estado a partir do interior da sociedade primitiva. E eis que, ao que parece,
evocamos nós mesmos, contraditoriamente, os Tupi-Guarani como um caso de
sociedade primitiva onde começava a surgir o que poderia ter podido se tornar o Estado.
Incontestavelmente se desenvolvia, nessas sociedades, um processo, sem dúvida,
em curso já há muito tempo, de constituição de uma chefia cujo poder político
não era negligenciável. a ponto mesmo de os cronistas franceses e portugueses
da época não hesitarem em atribuir aos grandes chefes de federações de tribos
os títulos de "reis de província” ou “régulos. Esse processo de
transformação profunda da sociedade tupi-guarani teve uma interrupção brutal
com a chegada dos europeus. Quererá isso dizer que, se o descobrimento do Novo Mundo
tivesse sido adiado de um século por exemplo, uma formação estatal seria
imposta às tribos indígenas do litoral brasileiro? Sempre é fácil, e arriscado,
reconstruir uma história hipotética que nada viria desmentir. Mas, no presente
caso, pensamos poder responder com firmeza pela negativa: não foi a chegada dos
ocidentais que cortou a emergência possível do Estado entre os Tupi-Guarani, e
sim um sobressalto da própria sociedade enquanto sociedade primitiva, um
sobressalto, uma sublevação de alguma forma dirigida, se não explicitamente
contra as chefias, ao menos, por seus efeitos, destruidor do poder dos chefes.
Queremos falar desse estranho fenômeno que, desde os últimos decênios do século
XV, agitava as tribos tupi-guarani a predicação inflamada de alguns homens que,
de grupo em grupo, concitavam os índios a tudo abandonar para se lançarem na
procura da Terra sem Mal, do paraíso terrestre.
Chefia
e linguagem estão, na sociedade primitiva, intrinsecamente ligadas; a palavra é
o único poder concedido ao chefe: mais do que isso a palavra é para ele um
dever. Mas há uma outra palavra, um outro discurso, articulado não pelos
chefes, mas por esses homens que, nos séculos XV e XVI, arrastavam atrás de si
milhares de índios em loucas migrações em busca da pátria dos deuses: é o
discurso dos karai, é a palavra profética, palavra virulenta
eminentemente subversiva que chama os índios a empreender o que se deve
reconhecer como a destruição da sociedade. O apelo dos profetas pra o abandono
da terra má, isto é, da sociedade tal como ela era, para alcançar a Terra sem
Mal, a sociedade da felicidade divina, implicava a condenação à morte da
estrutura da sociedade e do seu sistema de normas. Ora, a essa sociedade se
impunha cada vez mais fortemente a marca da autoridade dos chefes, o peso de
seu poder político nascente. Talvez então possamos dizer que, se os profetas,
surgidos no coração da sociedade, proclamavam mau o mundo em que os homens
viviam, é porque eles revelavam a infelicidade, o mal, nessa morte lenta à qual
a emergência do poder condenava num prazo mais ou menos longo, a sociedade
tupi-guarani, como sociedade primitiva, como sociedade sem Estado. Habitados
pelo sentimento de que o amigo mundo selvagem tremia em seu fundamento,
perseguidos pelo pressentimento de uma catástrofe sócio-cósmica, os profetas
decidiram que era preciso mudar o mundo, abandonar o dos homens e ganhar o dos
deuses.
Palavra
profética ainda viva, como o testemunham os textos "Profetas na
selva" e "Do Um sem o Múltiplo". Os 3 ou 4 mil índios Guarani
que subsistem miseravelmente nas florestas do Paraguai gozam ainda da riqueza
incomparável que os karai lhes oferecem. Estes não são mais - duvidamos
- condutores de tribos, como seus ancestrais do século XVI, não é mais possível
a procura da Terra sem Mal. Mas a falta de ação parece ter permitido uma
embriaguez do pensamento, um aprofundamento sempre mais tenso da reflexão sobre
a infelicidade da condição humana. E esse pensamento selvagem que quase cega por
tanta luz, nos diz que o lugar de nascimento do Mal, da fonte da infelicidade,
é o Um.
Talvez
seja preciso dizer um pouco mais e se perguntar o que o sábio guarani designa
sob o nome de Um. Os temas favoritos do pensamento guarani contemporâneo são os
mesmos que inquietavam, há mais de quatro séculos, aqueles a quem já se chamava
karai, os profetas. Por que o mundo é mau? O que podemos fazer para
escapar ao mal? Questões que ao cabo de gerações esses índios não cessam de se
colocar: os karai de agora se obstinam pateticamente em repetir o
discurso dos profetas de outros tempos. Estes sabiam, pois, que o Um é o mal;
eles o diziam de aldeia em aldeia, e as pessoas os seguiam na procura do Bem,
na busca do não-Um. Temos, portanto, entre os Tupi-Guarani do tempo do
Descobrimento, de um lado uma prática – a migração religiosa – inexplicável se
não vemos nela a recusa da via em que a chefia engajava a sociedade, a recusa
do poder político isolado, a recusa do Estado; do outro, um discurso profético
que identifica o Um como a raiz do Mal e afirma a possibilidade de escapar-lhe.
Em que condições é possível pensar o Um? É preciso que, de algum modo, sua
presença, odiada ou desejada, seja visível. É por isso que o Um é o Estado. O
profetismo tupi-guarani é a tentativa heróica de uma sociedade primitiva para
abolir a infelicidade na recusa radical do Um como essência universal do
Estado. Essa leitura "política" de uma constatação metafísica deveria
então incitar a colocar uma questão, talvez sacrílega: não se poderia submeter
a semelhante leitura toda a metafísica do Um? Que acontece ao Um como Bem, como
objeto preferencial, que, desde sua aurora, a metafísica ocidental impõe ao
desejo do homem? Detenhamo-nos nesta perturbadora evidência: o pensamento dos
profetas selvagens e aquele dos gregos antigos pensam a mesma coisa, o Um; mas
o índio Guarani diz que o Um é o Mal, ao passo que Heráclito diz que ele é o
Bem. Em que condições é possível pensar o Um como Bem?
Voltemos,
para concluir, ao mundo exemplar dos Tupi-Guarani. Eis uma sociedade primitiva
que, atravessada, ameaçada pela irresistível ascensão dos chefes, suscita em si
mesma e libera forças, capazes, mesmo ao preço de um quase-suicídio coletivo,
de fazer fracassar a dinâmica da chefia, de impedir o movimento que poderia
levar à transformação dos chefes em reis portadores de leis. De um lado os chefes;
do outro, e contra eles os profetas: tal é, traçado segundo suas linhas
essenciais, o quadro da sociedade tupi-guarani no final do século XV. E a
"máquina" profética funcionava perfeitamente bem, uma vez que os karai
eram capazes de se fazer seguir por massas surpreendentes de índios fanatizados,
diríamos hoje, pela palavra desses homens, a ponto de acompanhá-los até na
morte.
O que
quer isso dizer? Os profetas, armados apenas de seus logos, podiam
determinar uma "mobilização" dos índios, podiam realizar esta coisa
impossível na sociedade primitiva: unificar na migração religiosa a diversidade
múltipla das tribos. Eles conseguiram realizar, de um só golpe, o
"programa" dos chefes! Armadilha da história? Fatalidade que apesar
de tudo consagra a própria sociedade primitiva à dependência? Não se sabe. Mas,
em todo o mais poder do que os segundos detinham. Então talvez seja preciso
retificar a idéia da palavra como oposto da violência. Se o chefe selvagem é
obrigado a um dever de palavra inocente, a sociedade primitiva pode
também, evidentemente em condições determinadas, se voltar para a escuta de uma
outra palavra, esquecendo que essa palavra é dita como um comando: é a palavra
profética. No discurso dos profetas jaz talvez em germe o discurso do poder, e
sob os traços exaltados do condutor de homens que diz o desejo dos homens se
dissimula talvez a figura silenciosa do Déspota.
Palavra profética, poder dessa palavra:
teríamos nela o lugar originário do poder, o começo do Estado no Verbo?
Profetas conquistadores das almas antes de serem senhores dos homens? Talvez.
Mas, mesmo na experiência extrema do profetismo (porque sem dúvida a sociedade
tupi-guarani tinha atingido, por razões demográficas ou outras, os limites
extremos que determinam uma sociedade como sociedade primitiva), o que os
selvagens nos mostram é o esforço permanente para impedir os chefes de serem
chefes e a recusa da unificação; é o trabalho de conjuração do Um, do Estado. A
história dos povos que têm um história é, diz-se, a história da luta de
classes. A história dos povos sem história é, dir-se-á como ao menos tanta
verdade, a história da sua luta contra o Estado.
Fim
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