Sumário
Modos
de endereçamento: uma coisa de cinema; uma coisa de educação também
Elizabeth Ellsworth
07- 76
Corpos
sem órgãos: esquizoanálise e desconstrução
Marcus Doel 77 – 110
A
dobra: psicologia e subjetivação
Miguel Domenech,
Francisco Tirado, Lucía Gómez 111 – 136
Inventando
nossos eus
Nikolas Rose 137 – 204
Sobre
as autoras e os autores 205
Copyright © 2001 by Tomaz Tadeu da Silva
Silva, Tomaz Tadeu da (org.), 2001. Nunca fomos humanos – nos rastros do sujeito, Belo Horizonte, Autêntica, 208 p. (Coleção Estudos Culturais, 7)
organização e tradução de Tomaz Tadeu da Silva ---
Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
208 p. (Coleção Estudos Culturais, 7)
Modo de endereçamento: uma
coisa de cinema; uma coisa de educação também
Elizabeth
Ellsworth
7▲
MODO DE ENDEREÇAMENTO: UMA COISA DE CINEMA
No
meu curso de pós-graduação não estudei teoria educacional. Estudei teoria do
cinema. Cinema de Hollywood, principalmente. Mas durante o curso também
trabalhava como professora estagiária e por isso tive que tentar aprender como
ensinar.
Durante
o período em que estive no curso de pós-graduação, eu via, quase todos os dias,
filmes tais como Young Mr.
Lincoln ou
Meet me in St. Louis [Agora seremos felizes]. Eu também
lia e tentava compreender Althusser ou Lacan ou Eisenstein ou Kuhn ou Mulvey
ou Barthes – gente que escrevia sobre
imagens e histórias e significado e desejo e mudança social. Ao mesmo tempo, eu
tentava ensinar a um grupo de discussão, formado por estudantes de graduação,
como se podia analisar a forma, o estilo, o gênero e a ideologia do filme que
eles tinham
9 ▲
acabado de ver. Eu ficava
fascinada e estimulada pela força social, política e estética dos filmes.
Assim
que saí do curso de pós-graduação em comunicação fui contratada por uma escola
de educação para lecionar uma disciplina sobre produção de filmes de vídeo e
crítica de mídia para educadores.1 Foi uma experiência
intercultural. Eu não falava a linguagem da pesquisa educacional. Eu não conhecia
as narrativas e os personagens daquele campo.
O
mais estranho e alienante de tudo era ter que aprender as teorias e as práticas
desse novo mundo acadêmico chamado "currículo e ensino", na ausência
absoluta de qualquer suspense, romance, sedução, prazer visual, música,
enredo, humor, dança de sapateado ou páthos. Tudo que eu havia aprendido sobre as teorias
contemporâneas da lingüística, a teoria literária, a semiótica, o feminismo, a
cultura, havia sido aprendido na presença da (sob a luz da, sob o prazer da, na
esteira da) história, das metáforas, das estrelas, das imagens, do modo de
endereçamento de algum filme.
Mas
a educação era um campo em nada parecido com o do cinema e da televisão. Não
era em nada parecido com o campo da literatura e da teoria literária. Era mais
parecido com as aulas de sociologia que eu tive – aquelas ensinadas por meio de
livros-texto de instrução programada. Como eu acabava de descobrir, o campo da
educação era uma ciência social.
O
que eu mais aprendi do meu encontro com o campo acadêmico da educação, que
agora já dura por mais de dez anos, foi que eu não quero ensinar ou aprender na
ausência de prazer, enredo, emoção,
10
▲
metáfora, artefatos
culturais e de envolvimento e interação com o público.
É aqui que entra o modo de endereçamento. Faz vinte
anos que comecei a trabalhar como professora auxiliar em uma disciplina de
introdução ao cinema. Faz quatorze anos que estou tentando imaginar o que as
pessoas pensam que estão fazendo nesse campo acadêmico da educação e por que
elas fizeram com que esse campo seja o que ele parece ser. E estou pensando,
outra vez, em modos de endereçamento.
O MODO DE ENDEREÇAMENTO NOS ESTUDOS DE CINEMA
O
modo de endereçamento é um termo dos estudos de cinema, um termo que tem um
enorme peso teórico e político. Aprendi sobre ele nas aulas sobre cinema e
sobre mudança social. É a isso que ele se resume: quem este filme pensa que
você é?
Apresento,
neste capítulo, uma leitura algo seletiva da teoria e da política que está por
deu·ás dessa questão e do conceito de modo de endereçamento. Não estou
interessada em tentar definir exatamente o que é "modo de
endereçamento". Estou interessada em saber por quê, nestes dias, quando
penso como uma educadora sobre pedagogia continuo pensando em termos de modo de
endereçamento. Fico me perguntando como os educadores podem, por sua vez, ser
educados pela noção de modo de endereçamento, incluindo aquela utilizada nos estudos
de cinema.
11▲
Os teóricos do cinema
desenvolveram a noção de modo de endereçamento para lidar, de uma forma que
fosse específica ao cinema, com algumas das grandes questões que atravessam os
estudos de cinema, a crítica de arte e de literatura, a sociologia, a
antropologia, a história e a educação. Essas questões têm a ver com a relação
entre o "social" e o "individual". Questões como:
"qual é a relação entre o texto de um filme e a experiência do espectador
a estrutura de um romance e a interpretação feita pelo leitor, uma pintura e a
emoção da pessoa que a contempla, uma prática social e a identidade cultural,
um determinado currículo e sua aprendizagem?". Em outras palavras, qual é
a relação entre o lado de "fora" da sociedade e o lado de "dentro"
da psique humana? Como pode ser igualmente verdadeiro afirmar que "as
pessoas agem de forma independente e intencional" e, ao mesmo tempo,
dizer que os padrões que orientam suas ações – como elas pensam, o que elas
"vêem", o que elas desejam – "são, já, aspectos de seu ser
social" (DONALD, 1991, p. 2)?
Trata-se de grandes
questões. Elas são também centrais para as pessoas interessadas em mudança
social. Se você compreender qual é a relação entre o texto de um filme e a
experiência do espectador, por exemplo, você poderá ser capaz de mudar ou
influenciar, até mesmo controlar, a resposta do espectador, produzindo um
filme de uma forma particular. Ou você poderá ser capaz de ensinar os
espectadores como resistir ou subverter quem um filme pensa que eles são ou
quem um filme quer que eles sejam.
Os teóricos do cinema
têm utilizado, sob uma forma ou outra, a noção de modo de endereçamento
12
▲
para compreender essas questões. Vou esboçar
aqui, alguns dos significados que essa noção tem apresentado para os teóricos
do cinema. Esta leitura seletiva começa com o "modo de endereçamento"
corno um conceito que se refere a algo que está no texto do filme e que, então, age, de alguma forma, sobre
seus espectadores imaginados ou reais, ou sobre ambos. Existe, depois, um
momento, na lógica da teoria do cinema, em que os teóricos do cinema começam a
ver o modo de endereçamento menos como algo que está em um filme e mais
como um evento que ocorre em algum lugar entre o social e o individual.
Aqui, o evento do endereçamento ocorre, num espaço que é social, psíquico, ou ambos,
entre o texto do filme e os usos que o espectador faz dele. Essa mudança, que
deixa de localizar o modo de endereçamento no interior do texto de um filme e
passa a compreendê-lo como um evento,
fará com que minha leitura seletiva da noção de modo de endereçamento deixe a
teoria do cinema e vá para a educação, para os estudos culturais e para a
psicanálise.
Quem este filme pensa
que você é?
Os filmes, assim como
as cartas, os livros, os comerciais de televisão, são feitos para alguém.
Eles visam e imaginam determinados públicos. Entretanto, os diretores de
cinema, os roteiristas, os produtores e os proprietários de salas de cinema
estão, com freqüência, distanciados dos espectadores "reais" ou
"concretos". As distâncias podem ser econômicas, temporais, sociais,
geográficas, ideológicas, de gênero, de raça. Entre a redação do roteiro e a
exibição,
13▲
os filmes passam por muitas
transformações. Entretanto, a maioria das decisões sobre a narrativa estrutural
de um filme, seu acabamento e sua aparência final são feitos à luz de
pressupostos conscientes e inconscientes sobre "quem" são seus
públicos, o que eles querem, como eles vêem filmes, que filmes eles pagam para
ver no próximo ano, o que os faz chorar ou rir, o que eles temem e quem eles
pensam que são, em relação a si próprios, aos outros e às paixões e tensões
sociais e culturais do momento.
Os
filmes visam e imaginam determinados públicos. Eles também desejam
determinados públicos. Alguns filmes, como Jurassic Park [O parque dos dinossauros], por exemplo, são produzidos
com o desejo de atrair o maior público de "massa" possível. Outros,
como Go fish
[O par perfeito],
por exemplo,
são produzidos para apelar a pessoas que vão a festivais alternativos e são
feitos com a esperança de serem exibidos em cinemas voltados para um público
intelectualizado e sofisticado, freqüentado por pessoas que seguem orientações
alternativas em termos ideológicos, sexuais, raciais e políticos.
O
conceito de modo de endereçamento está baseado no seguinte argumento: para que
um filme funcione para um determinado público, para que ele chegue a fazer
sentido para uma espectadora, ou para que ele a faça rir, para que a faça
torcer por um personagem, para que um filme a faça suspender sua descrença [na
"realidade" do filme], chorar, gritar, sentir-se feliz ao final – a
espectadora deve entrar em uma relação particular com a história e o sistema
de imagem do filme.
14▲
Eis
aqui uma maneira de conceptualizar esse processo: existe uma poltrona no
cinema para a qual aponta a tela do filme, uma poltrona para a qual os efeitos
cinematográficos e as composições dos quadros estão planejados, uma poltrona
para a qual as linhas de perspectiva convergem, dando a mais plena ilusão de
profundidade, de movimento, de "realidade". É a partir dessa posição
física que o filme parece atingir seu ponto máximo. Da mesma forma, existe uma
"posição" no interior das relações e dos interesses de poder, no
interior das construções de gênero e de raça, no interior do saber, para a qual
a história e o prazer visual do filme estão dirigidos. É a partir dessa
"posição-de-sujeito" que os pressupostos que o filme constrói sobre
quem é o seu público funcionam com o mínimo de esforço, de contradição ou de
deslizamento.
Por
exemplo, filmes orientados para garotos brancos de 12 anos que vivem em bairros
ricos estão sintonizados às posições que esses garotos supostamente ocupam (ou
que os produtores de filmes e de mercadorias paralelas desejam que eles ocupem)
no interior das relações sociais contemporâneas, dos gostos de mercado, da
fantasia sexual e do desejo, da construção de gênero e de raça. Para que esses
garotos "peguem" o filme e "sigam sua onda", eles têm que
estar no lugar para o qual o filme está sintonizado. Para que eles se tornem
parte da estrutura de relações que compõem o sistema de olhares, de desejos,
de expectativas, de tramas narrativas e de gratificações que compõem a
experiência de ir ao cinema, eles têm que estar "lá". Para que eles
"completem" o filme tal como seus
15▲
produtores imaginaram que eles o fariam, eles
têm que assumir as posições que lhes são oferecidas naqueles sistemas – ao
menos durante o tempo de duração do filme, ao menos na imaginação.
"Ei, você
aí!"
E, assim, os
produtores de filmes fazem muitas suposições e têm muitos desejos conscientes e
inconscientes sobre o tipo de pessoa para a qual seu filme é endereçado e
sobre as posições e identidades sociais que seu público deve ocupar. E essas
suposições e esses desejos deixam traços intencionais e não-intencionais no
próprio filme. Para algumas escolas de estudo do cinema, um filme é composto,
pois, não apenas de um sistema de imagens e do desenvolvimento de uma
história, mas também de uma estrutura de endereçamento que está voltada para um
público determinado e imaginado.
Os "traços"
dessa estrutura não são visíveis. Eles não se apresentam diretamente na tela,
para serem estudados, tal como se apresentam os aspectos do estilo de um filme
como, por exemplo, a composição dos objetos e das pessoas em um quadro, o uso
da cor, o movimento, o trabalho de edição, a iluminação. O modo de
endereçamento parece-se mais com a estrutura narrativa do filme do que com seu
sistema de imagem. Tal como a história ou a trama, o modo de endereçamento não
é visível.
Tampouco é o caso de
que alguém no filme diga literalmente: ceei, você aí! Garoto branco e rico, de
12 anos! Veja isto! Será divertido. E você vai querer
16 ▲
comprar o brinquedo [relacionado ao filme]. E
você se sentirá mais velho e mais poderoso – e mais alto – do que você é e o
mundo inteiro vai parecer girar ao redor de você. E quando o filme terminar,
você sentirá que ser um garoto branco e rico, de 12 anos, é a melhor
coisa que pode acontecer no mundo". O modo de endereçamento não é um
momento visual ou falado, mas uma estruturação – que se desenvolve ao longo do
tempo – das relações entre o filme e seus espectadores.
Os estudiosos do
cinema que têm se concentrado na idéia de "modo de endereçamento"
têm desenvolvido formas de falar desse invisível processo que parece
"convocar" o espectador a uma posição a partir da qual ele deve ler o
filme. Os críticos que estudam a narrativa cinematográfica têm tomado certos
conceitos de empréstimo da crítica da literatura e do teatro e inventado
outros, de forma a poder nomear e analisar a intangível experiência da
história no filme. Essa experiência inclui trama, personagem, subtexto,
gênero, vínculos causais, ponto de vista, e assim por diante. De forma similar,
os críticos interessados no modo de endereçamento têm inventado conceitos que
nomeiam e analisam aspectos sobre a experiência da "convocação" ou
da "interpelação". "Posicionamento de público" é um deles.
Masterman (1985) descreve-o desta forma:
Nos
meios visuais, nós, como membros do público, somos compelidos a ocupar uma
posição física
particular,
em virtude do posicionamento da câmera. Identificar e estar consciente dessa
posição física significa revelar que somos também
17▲
convidados a ocupar
um espaço social. Por meio do modo de endereçamento do texto, de sua configuração
e de seu formato, um espaço social se abre para nós. Finalmente, o
espaço físico e o espaço social que somos convidados a ocupar estão ligados a posições ideológicas – maneiras
"naturais" de examinar e dar sentido à experiência. (p. 229)
Masterman dá, depois,
um exemplo de posicionamento de público nos programas de notícias da
televisão:
Quando o noticiário
inicia, somos endereçados por um locutor que olha diretamente para a câmera e
apresenta os "fatos". Cada espectador é colocado no papel de endereçado direto. O locutor introduz uma
entrevista filmada. Nossa posição muda. Não somos mais endereçados diretamente,
mas "espiamos", vemos e julgamos. As diferentes posições nos
asseguram que alguns aspectos da experiência devem ser aceitos (fatos),
enquanto outros (opiniões) exigem nosso julgamento. A distinção jornalística,
altamente questionável, entre fato e opinião está embutida nas maneiras pelas
quais somos posicionados em relação a diferentes aspectos da experiência. (p.
229-30)
o
que Masterman está sugerindo é
que, para compreender os filmes ou os programas de TV em seus próprios termos, o espectador deve
ser capaz de adotarnem que seja apenas imaginária e temporariamente os
interesses sociais, políticos e econômicos que são as condições para o
conhecimento que eles constroem.
O
endereço de um filme educacional
dirigido à estudante, por exemplo,
convida-a não apenas à
18 ▲
atividade da construção do conhecimento, mas
também à construção do conhecimento a partir de um ponto de vista social e
político particular. Isso faz com que a experiência de ver os filmes e os
sentidos que damos a eles sejam não simplesmente voluntários e idiossincráticos,
mas relacionais – uma projeção de tipos particulares de relações entre o eu e
o eu, bem como entre o eu e os outros, o conhecimento e o poder.
Assim, parte da
experiência e da relação de um garoto de 12 anos com um filme como Jurassic Park não é apenas uma resposta
ao seu estilo e à sua história, mas também uma resposta às formas pelas quais
sua estrutura de endereçamento solicita ou até mesmo exige dele uma certa
leitura. Sua experiência do filme inclui a experiência consciente e inconsciente
de ser endereçado – por meio, por exemplo, do posicionamento da câmera e do
espaço social que ela constrói "para" ele – como se ele fosse aquele
alguém que o filme quer que ele seja, que o filme pensa que ele é, ou ambas as
coisas.
"Quem,
eu?"
Ele não é,
entretanto, exatamente quem o filme pensa que ele é – um garoto de 12 anos,
estadunidense, branco, rico. Essas coisas não significam, nunca, uma única
coisa. Essas posições sociais não constituem, nunca, uma posição única ou
unificada. Talvez ele seja um garoto homossexual de 12 anos. O que isso causa à suposição de que ele tem
12 anos, é branco, é rico, é garoto [e não garota])?
19▲
Talvez ele seja filho
de pais de diferentes raças, mas que "passa", em geral, por
"branco". Talvez ele tenha 12 anos e seja filho de um pai ou de uma
mãe que o maltratam e nunca tenha sentido, de fato, ter 12 anos. Talvez ele
viva em um bairro rico, mas goste de viver num bairro popular da cidade e vá
até lá sempre que possa.
O espectador ou a
espectadora nunca é, apenas ou
totalmente, quem o filme pensa que ele ou ela é. (O espectador ou a espectadora
nunca é tampouco exatamente quem ele ou
ela pensa que é, mas vamos
deixar isso para mais adiante). A maneira como vivemos a experiência do modo
de endereçamento de um filme depende da distância entre, de um lado, quem o filme
pensa que somos e, de outro, quem nós pensamos
que somos, isto é, depende do quanto o filme "erra" seu alvo.
Imaginemos que o lugar "ideal" esteja situado na poltrona central da
última fileira da sala de cinema. O modo de endereçamento do filme pode
"errar" o "alvo" por apenas duas cadeiras, atingindo, por
exemplo, aquela poltrona situada duas cadeiras à esquerda do assento ideal. Ou, no outro extremo, pode passar bem
distante do "alvo", "acertando" a poltrona situada junto à parede, na primeira fila. Ambas as
posições "fora do alvo" exigem algum rearranjo de parte da
espectadora para fazer o filme voltar ao foco – alguma reescrita, alguma
revisão, pela qual a espectadora, ao imaginar-se no centro do endereçamento,
desfaz aquele processo de descentramento. Ver um filme do assento situado junto
à parede, na primeira fila, exige uma tradução
perceptual constante da imagem, solicitando que a espectadora se projete como
estando situada naquele
20▲
assento perfeito no centro da sala de cinema e
imaginando como seria muito melhor e mais agradável ver o filme daquela
poltrona onde ela "deveria" estar sentada ..
Seja qual for a
distância pela qual o· modo de endereçamento de um filme "erra" o alvo
(mínima ou enorme) é necessário aquilo que alguns estudiosos chamam de
"negociação" por parte do espectador. Como posso extrair prazer da
história de Jurassic
Park caso eu tenha 12 anos e for uma garota [e não um garoto]? Mas
essa negociação tampouco é, jamais, uma coisa simples ou única. Pois, da mesma
forma que o espectador ou a espectadora nunca é exatamente quem o filme pensa
que ele ou ela é, assim também o filme não é, nunca, exatamente o que ele pensa que é. Não existe, nunca, um
único e unificado modo de endereçamento em um filme.
Se Jurassic Park tivesse sido endereçado
estrita e unicamente aos garotos estadunidenses brancos, ricos, de 12 anos,
seria muito menos provável que o resto do planeta fosse vê-la. Há algo nesse
filme que é dirigido para quem os seus produtores imaginam que sou. (Minha
desconfiança é de que a cientista forte, corajosa, inteligente está dirigida
para uma parte de mim – mesmo que se tenha a impressão de que ela entrou no
filme meio a contra-gosto de seus produtores e como que de última hora. E mesmo
que ela seja uma versão diluída da cientista do livro homônimo). Assim, no
processo de negociação dos modos de endereçamento de Jurassic Park, com vistas a "pegar" o filme e
desfrutá-la, não foi preciso que eu simplesmente me imaginasse como um garoto
de 12 anos.
21▲
"Entrar" em
um filme por meio de uma multiplicidade de lugares é uma necessidade
comercial. Isso complica toda a idéia de modo de endereçamento.
Angela McRobbie
(1984) ressalta isso em seu estudo do modo como as adolescentes que ela en·
trevistou reagiram aos filmes Flashdance e Fame [Fama]. De acordo com
McRobbie, as cenas de dança, em ambos os filmes, parecem ter sido endereçadas
primariamente a dois grupos de espectadores masculinos e heterossexuais:
aqueles que figuram nas histórias dos filmes e aqueles que viram os filmes nos
cinemas. Os números musicais parecem organizados – por meio da localização e
dos ângulos da câmera e do trabalho de edição, que alterna tomadas do ponto de
vista da câmera com tomadas do ponto de vista da personagem – para apelar aos
desejos e aos prazeres visuais que espectadores como esses supostamente extraem
do ato de ver mulheres dançando para eles.
Entretanto, há
aspectos das histórias, em ambos os filmes, que são endereçados primariamente
às mulheres no público e àquilo que os produtores do filme, consciente e
inconscientemente, imaginam ser o desejo das mulheres, em termos de controle
sobre seus corpos e em termos de sentir prazer e poder em seus corpos e em suas
vidas. Assim, estabelece-se uma tensão no interior dos modos de
endereçamento desses filmes – uma tensão entre quem os números de dança pensam
que você é e quem a história pensa que você é.
As histórias de
ambos os filmes complicam a questão sobre "para" quem as mulheres
estão dançando nos espetáculos dos números musicais do filme.
22
▲
Os prazeres das
garotas adolescentes ao ver esses filmes podem advir de uma leitura que vê as
dançarinas como "realmente" dançando para si mesmas e não para os
homens que, não obstante, as estão observando. Ou, de forma mais complexa, os
prazeres das garotas adolescentes podem advir de uma leitura que vê as
dançarinas como "realmente" dançando tanto para si próprias quanto
para os homens que as observam. O modo de endereçamento do espetáculo das
performances de dança atrita-se com o modo de endereçamento do desenvolvimento
da história; esses dois modos de endereçamento não funcionam necessariamente
de forma conjunta e compatível. Diferentes sistemas formais e estilísticos,
presentes em um único filme, podem ter diferentes modos de endereçamento. Podem
estar ocorrendo, de forma simultânea, múltiplos modos de endereçamento.
Além disso, assim que
públicos reais, vivos, chegam ao cinema, o modo de endereçamento de um filme
torna-se apenas um dentre os muitos que compõem o cotidiano de um determinado espectador
ou espectadora. A posição que um espectador ou uma espectadora
"assume" em relação a um filme, e a partir da qual ele ou ela dá
sentido ao filme e dele extrai prazer, muda drasticamente, dependendo dos (conflitantes)
modos de endereçamento que possam estar disponíveis. Ela está vendo um vídeo de Flashdance com um grupo de
amigas que ficaram para passar a noite em sua casa; em um cinema com um
namorado; com sua amante lésbica; como uma estudante em uma aula de cinema; ou
como uma mulher afro-americana que raramente vê outras mulheres afro-americanas
na tela do cinema?
23▲
O
modo de endereçamento de um filme
tem a ver, pois, com a necessidade de endereçar qualquer comunicação, texto ou
ação Ç'para" alguém. E, considerando-se os interesses comerciais dos
produtores de filme, tem a ver com o desejo de controlar, tanto quanto
possível, como e a partir de onde o espectador ou a espectadora lê o filme. Tem a ver com atrair o espectador
ou a espectadora a uma posição particular de conhecimento para com o texto,
uma posição de coerência, a partir da qual o filme funciona, adquire sentido,
dá prazer, agrada dramática e esteticamente, vende a si próprio e vende os
produtos relacionados ao filme.
Mas, à medida que os
estudiosos do cinema têm tentado emparelhar os mecanismos de endereçamento
presentes no texto de um filme particular com as leituras que um público real
faz do filme, eles têm ficado cada vez mais atentos às complicações e aos
paradoxos da experiência de ir ao cinema. Os públicos não são simplesmente
"posicionados" por um determinado modo de endereçamento. Entretanto,
para dar qualquer sentido a um filme ou para desfruta-lo até mesmo
minimamente, eles têm que se envolver com seu modo de endereçamento. Ainda que
de forma mínima ou oblíqua, o modo de endereçamento de um filme está envolvido
nos prazeres e nas interpretações dos públicos – inclusive em sua decisão de
simplesmente recusar-se a ver o filme.
"Sim.
Você."
É aqui que entram as
relações de poder e a mudança social. O modo de endereçamento não é um
24
▲
conceito neutro na análise cinematográfica.
Trata-se de um conceito que tem origem numa abordagem de estudos do cinema
que está interessada em analisar como o processo de fazer um filme e o processo
de ver um filme se tornam envolvidos na dinâmica social mais ampla e em
relações de poder.
Embora os públicos
não possam ser simplesmente posicionados por um determinado modo de endereçamento,
os modos de endereçamento oferecem, sim, sedutores estímulos e recompensas para
que se assumam aquelas posições de gênero, status
social, raça, nacionalidade, atitude, gosto, estilo às quais um
determinado filme se endereça. Ninguém, no público global do Jurassic Park, é exatamente aquele garoto
estadunidense, branco, rico, de 12 anos, que o filme imagina e deseja.
Entretanto, aquela posição-de-sujeito, independentemente de quanto ela seja
mítica, está ligada, no filme, a potentes fantasias de poder, domínio e
controle.
Os estudiosos do
cinema têm gostado de algumas posições-de-sujeito oferecidas nos filmes populares
e não têm gostado de outras. Aqueles, por exemplo, que trabalham a partir de
perspectivas marxistas ou feministas ou humanistas têm utilizado o conceito de
"modo de endereçamento" para "provar" que a maior parte dos
filmes populares oferecem, de forma repetida, uma gama estreita e
sistematicamente enviesada de posições-de-sujeito. Essa gama estreita exclui
todo tipo de outras perspectivas e experiências sociais e culturais. (Onde
estão os filmes de aventura ou de histórias sobre o desabrochar da
adolescência, dirigidos às garotas de 12 anos – de qualquer origem racial ou
étnica?
25▲
Por que parece ser
certo colocar esta questão entre parênteses? ) .
Mas os filmes
tradicionais de Hollywood não pecam apenas por omissão. Eles também pecam por
repetidamente darem a entender, por meio da exclusão ou do ridículo ou da
punição inscrita na narrativa, que ser uma garota (ou ser negro/a, ou gay, ou
gordo/a, ou falante de espanhol, ou ser uma garota c uma ou outra dessas identidades) não é a coisa certa. Ou ser
um tipo particular de garota ou garoto ou latino/a ou gordo/a pode ser certo,
mas ser outro tipo não.
Fazer a pergunta
"quem este filme pensa que você é ou quer que você seja?" significa,
pois, fazer uma pergunta carregada. Trata-se de uma questão formulada pelos
estudiosos do cinema, que acham que os modos de endereçamento dos filmes – isto
é, quem filmes particulares pensam que você é ou quem eles querem que você seja
– podem contribuir para relações desiguais de poder e para a formação
inconsciente de subjetividades específicas. Há subjetividades específicas – homens
e mulheres sexistas e machistas, racistas de qualquer cor, pessoas ricas e
poderosas voltadas à exploração dos outros,
por exemplo – e dinâmicas de poder que alguns estudiosos do cinema não querem
ver "formados" ou recompensados pelas narrativas e pelos sistemas de
imagem dos filmes.
"Eu
não!"
Alguns cineastas,
convencidos de que as relações sociais e de poder podem ser afetadas pelo fato
de fazer e de ver filmes, têm feito algumas
26▲
experimentações com vários tipos de "contra-cinema".
Algumas cineastas feministas, por exemplo, têm tentado voltar as convenções de
Hollywood contra si próprias. Elas tentam chamar a atenção, rejeitando-os,
para os prazeres de se ver filmes que dependem da objetificação dos corpos das
mulheres e da repressão de sua agência.
ChantalAkerman, por
exemplo, em um filme de 3 horas e meia, feito em 1975, intitulado Jcannc
Diclman, descreve três dias na vida de uma mulher belga, uma viúva
pequeno-burguesa, dona-de-casa e mãe. Armette Kulm (1982) descreve o filme
desta forma:
Seus movimentos ao
redor de seu apartamento, sua execução das tarefas diárias, são descritos com
grande precisão: muitas de suas tarefas são filmadas em tempo real. A rígida
rotina de Jeanne inclui uma visita diária de um homem – um homem diferente a
cada dia – cujo pagamento por seus serviços sexuais ajudam-na a mantê-la e a
seu filho [...]. O trabalho doméstico nunca foi, provavelmente, descrito com
tanto detalhe em um filme de ficção; por exemplo, uma seqüência de cinco
minutos mostra Jeanne, no terceiro dia, preparando um bolo de carne para o
jantar. A recusa em efetuar tomadas feitas do ponto de vista da personagem
implica uma rejeição do efeito de "fixação" da sutura do filme
clássico: a espectadora é forçada a manter distância tanto em relação à narrativa quanto em relação à imagem, construindo a história e produzindo
expectativas, em relação à narrativa,
por conta própria. (p. 173-4)
A idéia é que um
filme como Jeanne Dielman é mais "aberto" e menos manipulativo
no seu
27
▲
posicionamento de seu público do que um filme
de Doris Day na qual ela faz o papel de uma dona-de-casa. Um filme como esse se
nega a utilizar os modos de endereçamento típicos de Hollywood, os quais
"fixam" a espectadora a uma única forma de interpretar o filme.
Por exemplo, Ackerman
nega-se a fazer tomadas a partir do ponto de vista ótico de Dielman. Ela se
nega a utilizar essa convenção de operação da câmera, que é familiar ao
público e que está destinada, com freqüência, a suscitar sua empatia e cumplicidade
imaginária para com as intenções, experiências e objetivos de um determinado
personagem. Sendo supostamente mais aberto e menos manipulativo, o modo de
endereçamento de Jeanne Dielman "dá força", teoricamente, à espectadora para que ela possa construir a
história e produzir expectativas, em relação à
narrativa, por conta própria.
As experiências de
contra-cinema têm produzido toda uma série de estratégias para endereçar o
público que nunca ou raramente são vistas nos filmes de Hollywood (tais como a
tomada estática, com duração de 5 minutos, de Dielman fazendo bolo de carne).
Essas experiências têm ampliado o léxico narrativo e visual – e as expectativas
do público – à disposição das
cineastas. E, em alguns casos, essas inovações têm mudado a política de
representação que reina em Hollywood (pode-se também dizer que essas inovações
foram cooptadas, dependendo da perspectiva) .
A esperança
revolucionária era de que diferentes modos de endereçamento nos filmes pudessem
28 ▲
mudar os tipos de posições-de-sujeito que estão
disponíveis e que são valorizados na sociedade. Filmes como Jeanne Dielman poderiam,
inclusive, produzir novos sujeitos sociais – novos tipos de "mulheres",
por exemplo, mulheres que tenham o poder de construir suas próprias histórias e
expectativas. Em outras palavras, tais filmes poderiam produzir uma mudança
social para melhor.
Mas tampouco isso é uma coisa simples ou direta. Filmes como Jeanne
Dielman são difíceis de serem lidos quando se está acostumado a ler os filmes
de Hollywood. E quando filmes difíceis de serem lidos, filmes que rejeitam as
fantasias e os prazeres usuais e esperados (sexistas, racistas, escapistas),
tornam-se parte de uma estratégia política intencional, então, como diz um
crítico de cinema:
A linha de divisão
entre o estranhamento como uma espécie de distanciamento apaixonado e reflexivo
e o estranhamento como alienação no pior sentido da palavra é, obviamente,
muito tênue. (Cook, 1985, p.220)
Em outras palavras,
alguns filmes produzidos em nome do contra-cinema e do reforçamento de poder [empowerment)]
de seus espectadores são difíceis de ler ou alienadores por causa da forma
como eles negam e denegam os prazeres do ato de ver filmes na sua forma mais
convencional. Pior ainda, alguns dos públicos a quem eles pretendem se dirigir
não querem necessariamente renunciar a seus culposos prazeres. O prazer e a
fantasia podem ser políticos, mas isso não é tudo o que eles são.
29
▲
"Sim,
eu (1) e eu (2) e eu (3) e..."
Judith
Mayne é uma estudiosa feminista do cinema. Ela é o tipo de espectadora
feminina a quem, pode-se dizer, muitas das experiências de contra-cinema são
endereçadas. Ela escreve:
Posso ser uma
espectadora bem-informada, mas isso não diminuiu meu prazer naquilo que algumas
pessoas podem considerar como produtos inferiores como, por exemplo, os filmes
de Arnold Schwarzenegger. Em vez disso, o estudo do ato de ver filmes me tornou
consciente, em termos bem ordinários e cotidianos, dos tipos de impulsos
contraditórios que compõem o prazer. Pois, embora o feminismo, por exemplo,
constitua, de forma plena, uma parte de minha vida cotidiana, eu tenho fantasias
regressivas um tanto peculiares (isto é, peculiares para meus amigos e para
minha família, não para mim) sobre a adolescência masculina, as quais recebem
uma perfeita expressão em
Schwarzenegger. O ato de ver um filme é um dos poucos lugares em minha vida no qual as atrações
para com a adolescência masculina e a poética do feminismo de vanguarda
coexistem. Pois a abordagem particular do ato de ver filmes desenvolvida por
Chantal Ackerman, por exemplo, me envolve de forma diferente mas tão
satisfatória quanto os filmes de Arnold Schwarzenegger (1993, p. 3).
Como
uma pessoa que está acostumada a ir ao cinema, Mayne é não apenas capaz de agir
contra aquilo que suas amigas feministas e ela própria provavelmente chamariam
de seus "melhores interesses"
30▲
como uma mulher em uma
cultura dominada por homens, mas ela é também capaz de desejar e desfrutar
dessa representação no ato mesmo de pô-la em execução.
Ora,
isso coloca um grande problema para pessoas que pensam que o modo de
endereçamento pode fazer a diferença entre, de um lado, um ato de ver filmes que
é "crítico", reflexivo e apaixonadamente distanciado e, de outro,
uma ato de ver filmes que, como diz Mayne (1993), "me faz representar e esquecer" (p. 3) e
realmente reforçar práticas, prazeres e desejos cinemáticos e culturais
dominantes e injustos. Obviamente, o modo de endereçamento de um filme não é
algo onipotente.
Alguns
estudiosos do cinema têm adotado a ênfase que a chamada "teoria de
resposta do leitor" coloca no ato de leitura, deslocando o poder do ato de
atribuir sentido para o espectador. Eles têm realizado estudos de recepção
para tentar entender e reconhecer a agência que os espectadores sempre têm
exercido nos filmes. Não importa quanto o modo de endereçamento do filme tente
construir uma posição fixa e coerente no interior do conhecimento, do gênero,
da raça, da sexualidade, a partir da qual o filme "deve" ser lido: os
espectadores reais sempre leram os filmes em direção contrária a seus modos de
endereçamento, "respondendo" aos filmes a partir de lugares que são
diferentes daqueles a partir dos quais o filme fala ao espectador.
Essa
mudança de foco, do modo de endereçamento do texto para a resposta que lhe é
dada pelo espectador, tem levantado a questão das diferentes
31▲
leituras que são feitas não apenas por parte do
mesmo espectador (tal como nas duas leituras de Mayne: a feminista e aquela
baseada na fantasia sobre garotos de sua adolescência), mas também das
diferentes leituras que são feitas por diferentes "tipos" de público.
Mayne e outras
teóricas do cinema têm utilizado o ato de ver filmes das pessoas negras e das
pessoas gays como exemplos de lugares de ver o filme que supostamente diferem
drasticamente daqueles endereçados pelo cinema convencional. Como públicos
"negros", "gays", ou ambos, por exemplo, lêem filmes que
nunca lhes são endereçados?
Mayne (1993), por
exemplo, examina essa questão evocando a descrição de como uma platéia negra
de resistência vê o filme The defiant ones
(1958). Aquele filme
conta a história de
dois prisioneiros fugitivos, um deles branco (Tony Curtis) e o outro negro
(Sidney Poitier). Durante a maior parte do filme eles estão presos um ao outro
por meio de algemas. Conta-se, por meio de sua relação, uma parábola sobre as
relações raciais nos Estados Unidos. (p. 155)
Pelo fato de o filme
ser um mito branco sobre as relações entre negros e brancos, ele contém nunerosos
"pontos cegos" (para utilizar a linguagem da teoria do cinema dos
anos 70), nos quais o personagem de Poitier age não como um homem negro mas
como a imagem branca sobre o que é ser um homem negro. (p. 155)
A "verdade"
da "negritude" de Poitier estava à mercê, nesse filme, da
"mentira" do mito das
32
▲
relações entre brancos e negros da narrativa,
de sua inabilidade em "descrevê-la da forma certa". Entretanto, pelo
desempenho de Poitier e pela forma como o público negro a sentia, a verdade de
sua negritude também frustra o poder da narrativa para realizar-se
completamente de acordo com o planejado. Para mostrar que é isso o que ocorre,
Mayne cita a descrição que James Baldwin (1976) faz da reação dos "espectadores
brancos liberais", como sendo de alegria, quando Poitier salta do trem no
final do filme, "sacrificando sua própria chance de escapar para ficar com
seu amigo branco" (p. 156). O "público negro do Harlem" que
Baldwin descreve, entretanto, "indignou-se" com isso, gritando:
"Volta para o trem, seu idiota!" (BALDWIN, 1976, p. 76).
"Nós... quem?"
Assim, as teóricas do
cinema reconhecem que os públicos não são todos iguais e que os diferentes
públicos fazem leituras diferentes e extraem prazeres diferentes, e muitas
vezes opostos, do mesmo filme. Mas esse reconhecimento tem produzido seus
próprios problemas. Por um lado, um pressuposto tácito de grande parte da
teoria do cinema é que quando a posição social visada pela produção cinematográfica
de Hollywood "possui os atributos da 'dominação' – branco, masculino,
heterossexual, de classe média etc." e Hollywood endereça-se àquela
posição, então "os espectadores dominantes [tais como os constituídos pelo
público branco e liberal do filme The
defiant ones] fundem-se, de forma simbiótica, na tela" (MAYNE,
1993, p. 159). Supõe-se
33▲
que os espectadores
"dominantes" ajustam-se de forma "natural" e pouco
problemática à posição ideológica e de prazer que lhes é oferecida.
Todos
os "outros" (tais como os que formam o público negro do Harlem) são
considerados marginais e resistentes. E pelo fato de que a resistência é não
apenas interessante, mas necessária à maior parte dos projetos políticos da
teoria do cinema, os estudos de recepção tendem a se concentrar nos assim
chamados espectadores marginais e subculturais. Entre as questões típicas de
pesquisa estão as que se seguem. Existe resistência e diferença relativamente
ao endereçamento sedutor e homogeneizador de Holiywood? Onde? Quem resiste?
Quem é diferente? Como eles resistem e mantêm a diferença? Como podemos fazer
com que a diferença e a resistência se difundam?
O
problema com esse tipo de abordagem, argumenta Mayne (1993), é que ela estabelece um dualismo
entre "espectadores dominantes" e "espectadores marginais"
(e portanto "resistentes") e "perpetua a falsa dicotomia do 'nós
e eles'" no momento mesmo em que tenta enfraquecê-la. "Definir o
outro como a vanguarda do ato de ver filmes apenas inverte a dicotomia"
(p. 159).
Além
disso, ainda não está. claro para aquelas pessoas que trabalham no campo dos
estudos de cinema "o quê", precisamente, constitui um
"público". A utilização das noções de "identidade" e
"política de identidade" para estudar o que variados grupos sociais
supostamente fazem com os filmes não contribuiu para tornar as coisas mais claras.
Falar de "um
34
▲
público gay", por
exemplo, sugere que "todos os homens gays e todas as mulheres lésbicas
partilham alguns padrões específicos de identificação ou algum tipo de
capacidade inerente para ler o 'texto' do filme a contrapelo" (Mayne, 1993, p. 166). Mas é tão impossível
identificar uma experiência do ato de ver filmes das pessoas gays ou lésbicas
que seja comum a todas as pessoas de um desses grupos (para não falar de uma
experiência que seja comum a ambos os grupos) quanto o é identificar um único modo de ver
filmes para negros, mulheres ou garotos de 12 anos. Na verdade, os críticos literários e os estudiosos
do cinema estão agora argumentando que existem fortes correntes homossexuais em
todos os atos de ler e ver filmes
e que uma presença afro-americana orienta todos os textos culturais estadunidenses, moldando as
experiências que os leitores brancos têm de si próprios e de outros (Sedgwick, 1990; Morrison, 1992). Quer dizer, não se pode dar
muito crédito às distinções que, em geral, se fazem entre centro e margem.
Ainda
assim, argumenta Mayne (1993), a
análise acadêmica sobre a "política" do ato de ver filmes criticamente
continua, em geral, presa a um raciocínio do tipo "ou isto ou
aquilo". Ou estamos falando de uma
micropolítica do espectador e do grupo social marginal, na qual toda leitura é
um ato de contestação porque o modo de endereçamento do filme nunca se encaixa
perfeitamente ou, pelo fato de que esses atos
localizados, subculturais de leitura resistente supostamente não se somam para
levar à mudança social, estamos falando de uma "macropolítica na qual
nada significa, realmente, contestação a
35▲
menos que seja parte
de uma pauta política globalmente definida" (p. 172).
Como em todos os
empreendimentos acadêmicos, os interesses políticos afetam as teorias sobre as
formas como as pessoas vêem os filmes e sobre·as formas como eles devem ser
vistos. Como diz Mayne (1993), "o propósito mesmo dos estudos acadêmicos
do ato de ver filmes é o de encorajar o desenvolvimento de um ato de ver
crítico, sobretudo na medida em que, em sua grande maioria, aqueles que
escrevem estudos de cinema também ensinam" (p. 165). Por
"crítico", Mayne não quer dizer simplesmente um ato de ver educado ou
bem informado. Ela quer dizer um ato de ver que resiste, de forma ativa, a se
tornar cúmplice dos filmes convencionais na produção de significados que simplesmente
reinscrevem a objetificação dos corpos e das vidas das mulheres, a
"normalidade" heterossexista, a exploração econômica e os
estereótipos racistas, por exemplo.
Muitas das pessoas
que estudam e ensinam cinema desejam entender melhor a forma como o público
lê filmes, de forma que se possa ensinar, de forma melhor, o público a ler
filmes de forma resistente. O que subjaz a esses estudos, como diria Foucault
(1979), é o desejo de estilizar as leituras pouco críticas dos espectadores
("estudantes") para que se transformem em leituras críticas.
Mas, em sua maior
parte, aqueles de nós que estamos interessados em estimular a mudança social
estamos sujeitos a lapsos na nossa forma crítica de ver filmes – como os
exemplificados na entrega às
36
▲
fantasias de adolescência via filmes de
Schwarznegger que Mayne se permitia. E esses lapsos (prazerosos e, em parte,
bem-vindos) apontam para alguns dos dilemas que são enfrentados pela maior
parte das teorias de mudança social, complicando as estratégias políticas e
educacionais lançadas em seu nome.
O MODO DE
ENDEREÇAMENTO COMO EVENTO
Na ausência de
"ajustes" previsíveis e controláveis entre os modos de endereçamento
e a experiência do espectador, algumas teóricas do cinema desistiram de tentar
atribuir um "tipo" de ato de ver resistente a cada tipo de público
(marginalizado) à medida que ele responde aos vários tipos de modos de
endereçamento. Elas deslocaram sua atenção, do modo de endereçamento como um
aspecto relativamente estático do texto de um filme, para o modo de
endereçamento como um aspecto mais fluido dos contextos nos quais os
espectadores usam os filmes. Mayne (1993) descreve essa mudança de
ênfase como uma mudança que vai de questões do tipo: "como públicos
constituídos de pessoas gays e lésbicas resistem aos modos de endereçamento dos
filmes convencionais?" para questões tais como "que papel exerce o
ato de ver filmes na forma como as pessoas e grupos imaginam e constituem
variadas culturas e identidades culturais e sociais?"; "como os
próprios modos de endereçamento são assumidos e usados, juntamente com uma
ampla rede de textos e contextos, incluindo os rumores e as 'fofocas', na
construção de identidades, práticas culturais
37▲
e grupos organizados e politizados? ";
"como o estilo camp2 – que pode ser compreendido como um
exagero das formas pelas quais os modos de endereçamento deixam de
"atingir" quase todo mundo – funciona como um prazer social
partilhado no interior das comunidades gays e lésbicas"?; "como o ato
de ver filmes é usado na constituição das lésbicas e dos gays como uma força
política – como quando os gays se organizam como um grupo de consumo para
questionar a representação homofóbica que caracteriza os filmes
convencionais?" (p. 166).
MODO DE ENDEREÇAMENTO
QUESTÕES NÃO- RESOLVIDAS
Ao perguntar"
"quem este filme pensa que você é?", as estudiosas do cinema se saíram
com algumas idéias e alguns argumentos bastante interessantes sobre o relacionamento
das estruturas narrativas e os sistemas visuais em filmes reais. É difícil, por exemplo, discordar do argumento
de que os filmes falam de algum lugar no interior das idéias, fantasias, ansiedades,
desejos, esperanças e dos eventos atualmente em circulação – e de que esse
"algum lugar" possa ser localizado por meio de um exame das formas
pelas quais certos personagens, vozes, pontos de vista, discursos e ações são
visual e narrativamente privilegiados e recompensados em detrimento de outros
nos filmes.
É também difícil
discordar do argumento de que esse privilegiamento e essa recompensa por meio
do modo de endereçamento constituem uma tentativa por parte dos produtores de
filmes para antecipar
38▲
(e falar para) as ansiedades, os medos, os
gostos, as esperanças e as formas de dar sentido do público por eles desejado.
Parece claro que ao falar para esses elementos, um filme tenta
encontrar o público que ele imagina e deseja no lugar onde se encontram seus
medos e suas esperanças. Mesmo que o público nunca esteja no lugar para o qual
o filme fala, o lugar que o filme endereça parece existir como um
"lá" abstrato e partilhável, uma posição-de-sujeito imaginada no
interior do poder, do conhecimento e do desejo que os interesses conscientes e
inconscientes por detrás da produção do filme precisam que o público preencha.
Abstratamente ou não, os filmes parecem "convidar" os espectadores
reais a essas posições e encorajá-las, ao menos imaginariamente, a assumir e a
ler o filme a partir de lá. E os espectadores parecem ser
"recompensados" (com o prazer da narrativa, com finais felizes, com
experiências coerentes de leitura) por "assumir" e agir a partir
daquela posição imaginária, à medida
que interpretam o filme.
Entretanto, a maior
parte das teóricas do cinema concordaria que as questões sobre a relação entre,
de um lado, a posição abstrata supostamente atribuída aos espectadores de um
filme por seu modo de endereçamento e, de outro, a pessoa real que vê o filme,
não foram resolvidas. Os prazeres que temos com os filmes rejeitam, teimosamente,
quaisquer dicotomias rígidas entre, de um lado, simples e puros atos de
reprodução altamente receptiva e cúmplice das posições que nos são oferecidas
e, de outro, a resistência crítica a essas posições ou sua completa rejeição.
39▲
o que parece claro para mim,
depois de vinte e cinco anos de estudos de cinema, é que as relações entre a
forma como os textos cinematográficos endereçam seu público e a forma como os
espectadores reais lêem os filmes não são nítidas ou puras elas tampouco são
lineares ou causais. E a busca por relações nítidas e puras, lineares e causais
não é uma busca inocente. Como diz Mayne (1993), as questões sobre modos de
endereçamento feitas por pesquisadores do cinema têm sido questões "assombradas"
– têm sido questões assombradas por desejos de realizar "a possibilidade
do ato de ver filmes como uma potencial atividade de vanguarda", com
vistas a pautas políticas progressistas (p. 172). Esses desejos são orientados
por uma política totalizante: "suas interpretações de um determinando
filme ou são de resistência e portanto revolucionárias ou
são de cumplicidade e portanto
reacionárias. Os estudos do cinema estão agora às voltas com os significados
da posição pós-moderna de que uma política totalizante – mesmo que sua
intenção seja progressista – não é realizável e, talvez, em última instância,
não seja desejável.
Os
estudos do cinema ainda não deram respostas convincentes às questões: "que
diferença faz o modo de endereçamento de um filme?"; "faz alguma diferença
a quem o espectador ou a espectadora, consciente ou inconscientemente, pensa
que ele ou ela é?"; "que diferença faz quem um espectador ou uma
espectadora pensa que ele ou ela é à forma como ele ou ela age no mundo?";
"podem diferentes modos de endereçamento provocar ou encorajar outras ou
diferentes formas de ser e agir no mundo?".
40 ▲
Em
outras palavras, pode a mudança social começar ou ser estimulada pelas formas
pelas quais os públicos são endereçados pelos filmes?
E,
uma vez que a educação tem a ver com mudança, como um educador ou uma
educadora pode reescrever algumas dessas questões? Pode a mudança social ou
mudanças individuais nas formas como alguém compreende o mundo começar – e ser
estimulada – pelas formas como os estudantes e as estudantes são endereçados
pelo currículo e pela pedagogia?
Podem
os professores e as professoras fazer uma diferença em termos de poder,
conhecimento e desejo não apenas por aquilo que eles e elas ensinam, mas pela forma como eles e elas endereçam seus alunos e suas alunas?
Trata-se
de questões ainda não resolvidas nos estudos sobre cinema. E de questões que
sequer são feitas
na
educação.
MODO DE ENDEREÇAMENTO: UMA
COISA DE EDUCAÇÃO TAMBÉM
Quando
deixamos a primeira parte deste ensaio, as estudiosas do cinema estavam mudando
os tipos de questões que elas estavam fazendo sobre o modo de endereçamento.
Inicialmente, nos anos 70, elas tinham formulado a questão do endereçamento em
termos do posicionamento do espectador, ao perguntar: "como o modo de
endereçamento de um filme posiciona seus espectadores no interior de relações
de poder, conhecimento e desejo? Nos anos
41▲
90, elas começaram, em vez disso, a perguntar:
"como os públicos adotam e utilizam os termos do modo de endereçamento de
um determinado filme, juntamente com uma ampla rede de outros textos e
contextos, como materiais com os quais podem imaginar e viver identidades
culturais e sociais?".
O
que causou essa mudança foi, em
parte, a conclusão, por parte das teóricas do cinema, de que todos os modos
de endereçamento "erram" seus públicos de uma forma ou de outra. Não
existe nenhum ajuste exato entre endereço e resposta, o que nos faz concluir
que não há como garantir a resposta a um determinado modo de endereçamento. O que eu gostaria de argumentar agora é, portanto,
que o fato de não existir um ajuste exato entre endereçamento e resposta torna
possível ver o endereçamento de um texto como um evento poderoso, mas
paradoxal, cujo poder advém precisamente da diferença entre endereçamento e resposta.
Lembram como Mayne
(1993, p. 3) apresentou seu "culpado" desejo de ver os filmes de Schwarzenegger
como um exemplo de que os públicos excedem e extravasam as posições "aceitáveis"
que lhes são oferecidas, por exemplo, pelos modos de endereçamento
"feministas"? Quero argumentar, aqui, que a diferença entre quem um endereçamento
pensa que seu público é e o "quem" que os membros do público
concretizam por meio de suas respostas é um recurso que está à disposição tanto dos produtores de filmes
quanto dos públicos, em seu envolvimento na atividade de dar sentido aos textos
cinematográficos, no processo de produção cultural e na prática da invenção de
novas identidades sociais.
42▲
Vou explorar, neste
capítulo, os significados que o paradoxal poder de endereçamento pode ter para
os educadores. O que pode um professor
fazer com o espaço momentoso e volátil da diferença ou "desajuste"
entre, de um lado, quem um currículo pensa que seus estudantes são ou deveriam
ser e, de outro, a forma como os estudantes realmente usam o endereçamento de
um currículo para constituírem a si próprios e para agir sobre a história e na
história? Como os professores podem tirar vantagem do fato de que todos os
modos de endereçamento "erram" seus públicos de uma forma ou outra,
utilizando isso de forma interessante e criativa? Vou fazer três afirmações
sobre a falta de ajuste ou sobre o espaço de diferença entre o endereçamento e
a resposta.
Em primeiro lugar, o
espaço da diferença entre o endereçamento e a resposta é um espaço social,
formado e informado por conjunturas históricas de poder e de diferença social e
cultural.
Em segundo lugar, o
espaço da diferença entre endereçamento e resposta é um espaço que carrega os
traços e as imprevisíveis atividades do inconsciente, tornando-o, assim, capaz
de escapar à vigilância e ao controle
tanto por parte dos professores quanto por parte dos estudantes.
Em terceiro lugar, o
espaço da diferença entre endereçamento e resposta está à disposição dos professores como um recurso poderoso e
surpreendente. Entretanto, e de forma paradoxal, os professores não podem
controlar o modo de endereçamento nem mesmo por meio de práticas pedagógicas
como,
43 ▲
por exemplo, as práticas chamadas de
"dialogais", cuja intenção seja regulá-lo.
Assim, neste
capítulo, quero ampliar ainda mais meu paradoxal argumento de que o modo de
endereçamento é uma coisa poderosa que os educadores não devem ignorar, sendo
preciso considerar, entretanto, que todos os modos de endereçamento
"erram" seus públicos, de uma forma ou de outra. O poder de endereçamento não é, pois, o
poder de obter, à vontade, respostas
previsíveis e desejadas dos estudantes ou dos públicos. Não é o poder de
posicionar os estudantes em algum desejado e preciso ponto do mapa de relações
sociais. O poder de endereçamento não
é algo que os professores possam dominar, controlar, predizer ou transformar em
uma tecnologia.
E contudo, meu
propósito é o de mostrar que ignorar o poder do endereçamento empobrece os
professores. Em que sentido o termo "poder" está sendo utilizado
aqui? Se o poder de controlar, predizer e dirigir as respostas dos estudantes
por meio do endereçamento não está à disposição
dos professores, qual é, então,
o poder de endereçamento que os professores devem explorar? Tentarei no que se
segue explicar o que quero dizer quando digo que, no ensino, o poder de
endereçamento reside em seu caráter indeterminado.
O
MODO DE ENDEREÇAMENTO E O VOLÁTIL
ENTRE-ESPAÇO
O espaço entre um filme e seu público, ou entre um currículo e seus alunos vistos como "espectadores" ou
44 ▲
"leitores", é um espaço volátil. E é
esse entre-espaço que os modos de endereçamento tentam manipular. Nos filmes,
a volatilidade desse espaço é reconhecida e explorada em favor do lucro comercial
e do valor de entretenimento.
Mas Hollywood nunca
teve muito êxito em garantir a reação de um público por meio da utilização de
um modo particular de endereçamento. Em geral, determinar o sucesso de um filme
é uma questão de adivinhação. Na verdade, as pessoas envolvidas na produção
de um filme são as que, em geral, se mostram mais surpresas quando um filme
atinge seu público em cheio, fazendo dele um sucesso.
Por exemplo, Thelma
e Louise, Falando de amor e Clube das desquitadas são todos filmes
sobre os quais os espectadores e os críticos disseram coisas como "as
histórias e os personagens são exagerados, beirando o fantástico" ou
"as mulheres não se parecem, absolutamente, com mulheres reais em
qualquer sentido literal". E, entretanto, os termos por meio dos quais
esses filmes endereçaram seus públicos – o "quem" que eles pensavam
que suas espectadoras eram – tocaram em pontos sensíveis de um grande número
das mulheres que foram vê-los. E ninguém previu a avassaladora reação dessas
espectadoras a filmes que nunca pretenderam ser grandes sucessos de bilheteria.
É
aqui que eu gostaria de sugerir
uma razão para o caráter escorregadio da prática do endereçamento. Isso pode
ser também uma razão para a natureza paradoxal de seu poder. Trata-se de uma
razão que, penso eu, pode libertar a noção de modo de
45▲
endereçamento de suas formulações dos anos
setenta, com sua dependência do estruturalismo e sua concepção de posições fixas,
conhecíveis, localizáveis e, portanto, endereçáveis. Considerando a emergência,
nos Estudos Culturais, de teorizações sobre a possibilidade de posicionamentos
sociais fluidos, múltiplos, cambiantes e estratégicos, penso ser possível dar
uma formulação atual ao conceito de modo de endereçamento, ressaltando o jogo e
o poder da diferença que estão
aí implicados.
Consideremos, por um
momento, o final de Thelma e Louise. Depois
de pesarem suas opções, que incluíam: serem presas por assassinato e encarceradas
no Texas; serem imediatamente baleadas pela polícia; ou se atirarem com o carro
no precipício em frente delas, Thelma diz: "acelera, Louise". E as
duas mulheres se atiram, com o carro, juntas, no precipício.
Aquele segmento de
diálogo, "acelera, Louise", é um elemento do modo de endereçamento do
filme. Assim como o é a atitude com a qual Thelma pronuncia a frase. Assim
como o é a atimde com a qual Louise recebe a frase. Assim como o é o final que
se inicia com a fala e a escuta dessa frase. São, todos eles, elementos do modo
de endereçamento do filme que se desenvolvem nesse momento. Mas a frase
"acelera, Louise" não constitui, em
si e por si, o modo de endereçamento do filme. O modo de endereçamento do filme, lembremos, é invisível,
não-localizável – é uma relação e não uma coisa. É um produto da contínua
interação entre uma série de aspectos dos usos particulares de forma, de estilo
e estrutura narrativa feitos por um determinado filme.
46▲
A~sim, que relação
constitui o modo de endereçamento de um filme em qualquer momento determinado?
Como podemos dizer qual relação entre os elementos do filme constitui seu modo
de endereçamento e qual relação constitui, digamos, o estilo visual de um
diretor particular?
O
que eu gostaria de sugerir é que o
modo de endereçamento do filme nesse ponto de Thelma e Louise consiste na escolha dessa frase ("acelera,
Louise"), na atitude corporificada nessa frase, na resposta que ela
provoca e no final iniciado por essa frase, à plena
luz da diferença e dos conflitos entre cada um desses elementos
e todas as outras opções disponíveis aos produtores do filme, social e
historicamente, no momento em que o filme é feito.
Em outras palavras, o
que estou dizendo é que o paradoxal poder de endereçamento consiste na diferença
entre, de um lado, todas as outras frases que poderiam ter sido ditas e foram
ditas em outros filmes, telenovelas, noticiários, romances, comédias
da tevê e, de Olmo, a frase que foi dita aqui. O modo de endereçamento consiste na diferença entre o que poderia
ser dito – tudo o que é histórica e culturalmente possível e inteligível de se
dizer – e o que é dito.
É aqui e dessa forma
que o modo de endereçamento excede as fronteiras do próprio texto do filme e
extravasa para as conjunturas históricas da produção e da recepção do filme. O modo de endereçamento envolve história e
público e expectativa e desejo.
O
poder de endereçamento – o que um
público faz dele – navega na diferença entre a decisão do cineasta em escolher
a frase "acelera, Louise"
47 ▲
e todas as outras escolhas
que eram histórica e discursivamente possíveis e inteligíveis. E o poder de
endereçamento navega nessa escolha ("acelera, Louise"), contra o pano
de fundo de formas emergentes, mas ainda não disponíveis discursivamente, • de
representar e responder à situação
das mulheres.
E
é esse caráter de acontecimento histórico e cultural do endereçamento que
faz com que se torne impossível que os produtores de filmes possam controlá-lo
inteiramente da forma que eles controlam, por exemplo, a iluminação. (Talvez
seja por isso que não seja concedida nenhuma estatueta do Oscar ao Melhor Modo
de Endereçamento).
É intrigante considerar isso: é o endereçamento de um filme a seu público a coisa
que faz ou impede a popularidade ou a importância cultural de um filme? Não se
poderia dizer que alguns filmes "fracassam" não porque suas
histórias ou seus atores sejam particularmente ruins, mas porque o modo de endereçamento
está "mal sintonizado" – como se o "tom de voz" do filme ou
sua "atitude" estivesse em atrito com diferenças ainda não
articuladas, fazendo uma diferença na forma como os públicos obtêm prazer, em
quem eles pensam que são ou em quem eles querem ser?
De
forma similar, algumas pedagogias e alguns currículos talvez funcionem com seus
alunos não por aquilo que ensinam ou pela maneira
como ensinam, mas pelo quem que colocam à disposição dos estudantes –
um "quem" que estimula sua imaginação a serem e a agirem de uma
determinada maneira. Talvez uma determinada pedagogia funcione devido aos
significados que os estudantes dão à
48 ▲
diferença entre, de um
lado, quem a atitude ou o tom do endereçamento dessa pedagogia pensa que eles
são ou quer que eles sejam e, de outro, todos os outros "quem" que
estão circulando, por meio do poder e do conhecimento, naquele momento, competindo
por sua atenção, por seu prazer, por seu desejo e por sua ação. Talvez uma
determinada pedagogia funcione porque essa diferença no endereçamento – essa
mudança de endereçamento – transfere seu público de um lugar no qual eles não
querem mais estar (mas talvez ainda não tenham sequer se dado conta disso) para
um lugar que eles queiram experimentar por um tempo (mesmo sem saber com
segurança o que eles farão e encontrarão lá).
Infelizmente,
entretanto, muito freqüentemente, a tarefa do professor consiste em
neutralizar, eliminar ou distrair os estudantes das diferenças entre o que um
currículo "diz" e o que um estudante "pega" – ou compreende
– e os voláteis acontecimentos que se passam naquele espaço. Não obstante, na
medida em que as relações de sala de aula são moldadas pelos antagonismos
sociais e econômicos mais amplos bem como definidos pelas relações de gênero e
raça, os educadores não podem cerrar o espaço da diferença entre endereçamento
e resposta. Eles jamais podem impedir o medo, a fantasia, o desejo, o prazer e
o horror que fervilham no espaço social e histórico entre endereçamento e
resposta, currículo e estudante.
Não,
o currículo e a pedagogia – os veículos pelos quais as instituições e as
práticas educacionais endereçam seus estudantes e seus professores – não são
"tesouros naturais aos quais faltam quaisquer
49▲
traços de horror
humano" (OSTROW,
apud WILLARD, 1993, p. 85). E o modo de
endereçamento, visto como uma coisa da educação, tem a ver, em parte, com
"traços de horror humano". Tentarei explicar.
O
INCONSCIENTE E O VOLÁTIL
ENTRE-ESPAÇO
Além
das formas pelas quais os significados e as operações da história e da
diferença social interferem com ajustes perfeitos, há uma outra razão pela
qual o rebelde e eruptivo espaço entre o modo de endereçamento de um currículo
e a resposta da estudante não vai simplesmente desaparecer. Ele não vai
desaparecer porque está habitado pela diferença entre os conhecimentos
conscientes e os conhecimentos inconscientes, entre os desejos conscientes e
os desejos inconscientes.
Por
isso era inevitável que um educador fosse escrever um livro sobre o monstruoso
e a educação (DONALD, 1992). E
não estou surpresa que para escrevê-lo foi preciso alguém que estivesse profundamente
envolvido com os estudos de cinema no exato momento em que a noção de modo de
endereçamento estava sendo desenvolvida como um conceito crítico. A relação de
James Donald com os estudos de cinema desenvolveu-se em relação com seu
trabalho como educador na Society
for Education and Film and Television, da Grã-Bretanha. Ele tem utilizado a mídia para perguntar: "que tipo
de instituição é a educação?".
Donald
(1991) localiza sua discussão da
instituição da educação no espaço que se abre entre as
50▲
respostas conscientes e as
respostas inconscientes que as estudantes e as professoras dão aos textos e aos
apelos educacionais. Ele usa a psicanálise para introduzir a "idéia de uma
outra localidade, um outro espaço, uma outra cena, o entre-espaço que se coloca entre a
percepção e a consciência" (p. 5). Essa outra cena é a fissura, a falta de
ajuste, a diferença entre, por exemplo, de um lado, os modos de endereçamento
dos materiais educacionais multiculturais e, de outro, o real "efeito
psíquico em termos de sentimento" de uma estudante que entra em contato com eles (p. 5).
Além
de chamar a atenção das educadoras para essa outra cena que se coloca entre a
percepção e a consciência, o trabalho de Donald explora o argumento de que as
fronteiras entre o "lado de fora" ou a sociedade (por exemplo, um
texto curricular) e o "lado de dentro" ou a psique (por exemplo, a
compreensão da estudante) "não são, nunca, estáveis ou facilmente
impostas" (1992,
p. 2).
Donald
introduz, assim, dois momentos de instabilidade. Existe uma falta de ajuste
entre o lado de fora (o currículo) e o lado de dentro (a compreensão). E existem
fronteiras instáveis, impossíveis de serem impostas, entre o lado de fora (a
sociedade) e o lado de dentro (o efeito psíquico do sentimento ou a psique
individual). Isso faz com que a relação entre um currículo e a compreensão que
uma professora ou estudante tem dele "não seja uma determinação de mão
única e nem mesmo uma dialética". Não, é muito mais interessante que isso.
Donald argumenta que o espaço da diferença entre o currículo e a compreensão
da estudante "é caracterizado
51▲
por oscilação, deslizamento e transformações
imprevisíveis" (1992, p. 2).
"Oscilação",
"deslizamento" e "transformações imprevisíveis" não são
imagens em geral invocadas quando as educadoras falam sobre a compreensão das
estudantes. A educação, em seus momentos mais progressistas, é governada, em
grande medida, por uma outra imagem de como o lado de fora se ajusta ao lado de
dentro. Trata-se da imagem da interação mútua que está freqüentemente
associada com a noção de diálogo. Obviamente, a análise que Donald faz do
deslizamento, da instabilidade e da confusão "representa uma versão menos
as séptica de como existimos no mundo" (1991, p. 5) do que aquela que está
implicada na noção de diálogo. Para Donald, no espaço (inarticulado e
inarticulável) da diferença entre dois participantes no diálogo, "fervilham
o rumor, a fofoca, a proibição e a falta" (p. 5). As fissuras entre o eu e
o outro, entre o lado de dentro e o lado de fora, que o diálogo supostamente
transpõe, abranda, alivia e, em última instância, permite cruzar, são cenas
perturbadas por incerteza cognitiva, pensamentos proibidos, percepções pouco
confiáveis e bastante instáveis. Atravessamos para o outro lado do diálogo.
O'Shea (1993) adota
os argumentos de Donald por causa das implicações que ele viu para suas próprias
práticas docentes. De acordo com O'Shea, o trabalho de Donald mostra-nos que
nem mesmo aquelas subjetividades associadas com a vida pública (por exemplo,
cidadão, professor, político) podem fugir da dinâmica da vida "interior".
Mesmo aquelas subjetividades envolvidas na socialidade da
52 ▲
"interação mútua" "não estão,
nunca, desconectadas das fantasias, dos desejos transgressivos e dos
monstruosos terrores do tipo que emerge nos sonhos" (O'SHEA, 1993, p.
504).
E, assim, de acordo
com essa visão, as sociologias da educação que concebem a interação mútua primariamente
– quando não exclusivamente – em termos de vida pública são extremamente
empobrecidas. Isso ocorre porque as fantasias que emergem na "privacidade"
de nossos sonhos estão, não obstante, intimamente conectadas com a cidadania,
a educação e com nossas afiliações públicas. Os assim-chamados desejos
transgressivos privados e terrores monstruosos têm força em nossas
assim-chamadas vidas públicas porque
não
podemos, nunca, realizar ou "completar" as identidades que a sociedade
exige de nós – "o bom cidadão", "o indivíduo livre e
racional", "o acadêmico sofisticado e bem-informado", "o
bom pai ou a boa mãe", "o homem ou a mulher ideal". (p. 504)
Mas nossos fracassos
em efetivar identidades plenas, completas, inconsúteis não são patológicos.
Eles são "normais". O que a psicanálise oferece aos professores, de
acordo com O'Shea (1993), pode ser mais bem compreendido "não como uma
descrição da 'socialização', mas como uma descrição da impossibilidade de seu
sucesso e da instabilidade da identidade" (p. 504).
É aqui que as formas
da cultura popular entram na discussão que Donald faz sobre educação. De acordo
com Donald (1992), os filmes de horror, o
53 ▲
monstruoso, o grotesco, o estranho, o sublime,
são, todos, formas que nos ajudam a lidar com a insegurança e as
instabilidades de "nossas" identidades. Eles nos ajudam a lidar com
"aquilo que não se encaixa, que não pode ser satisfatoriamente
identificado" (O'Shea, 1993, p.
504). O "problema", para Donald e O'Shea, não está nos impulsos
transgressivos ou nos terrores monstruosos em si. Eles são, afinal,
inevitáveis e podem até ser produtivos, dada a impossibilidade da
socialização e a precariedade da identidade.
Não, o problema é que
os discursos que temos utilizado para pensar sobre a educação e praticá-la mal
começam a se dar conta de tudo isso. Desde o Iluminismo, argumenta O'Shea (1993), os discursos educacionais
dominantes, "seja do lado da socialização, seja do lado da libertação,
têm sido excessivamente racionalistas" (p. 504). Com "excessivamente
racionalistas" O'Shea quer dizer que eles
ignoram o fato de que
não importa quão cuidadosamente os objetivos sejam estabelecidos, os currículos
planejados e implementados, não existe qualquer garantia de que as subjetividades
e os conhecimentos sociais oferecidos às alunas serão apropriados de acordo com
a intenção com que foram imaginadas. Pois não se trata apenas do fato de que as
subjetividades são sempre problematicamente ocupadas, mas de que elas
também têm que passar pela "emaranhada e confusa dinâmica do desejo, da
fantasia e da transgressão". (p. 504)
Isso resulta naquilo
que O'Shea chama de "eu rebelde e não-resolvido" (p. 504). Esse
"eu" é aquilo que é gerado "na fissura entre aquilo que se supõe
54 ▲
que sejamos e aquilo que na realidade nós não
nos tornamos" (p. 504). Longe de ser um impedimento a ser
ultrapassado ou resolvido, Donald e O'Shea argumentam, essa fissura deve ser
adotada pelas educadoras. É precisamente
essa fissura que "fornece o espaço da individuação e da agência – o recurso que sustenta não
apenas a resistência bruta, mas também a recusa consciente e intencional"
(O'SHEA, 1993, p. 504).
O fato do
inconsciente, pois, "faz explodir a própria idéia de uma identidade
completa ou realizada" (DONALD, 1991, p.
5) – identidade consigo mesmo (por meio da consciência) ou identidade com
outros (por meio da compreensão). Nossos fracassos em nos tornarmos plenamente
idênticas com aquilo que as normas sociais querem que nós sejamos ou com aquilo
que nós próprias queremos nos tornar – esses fracassos são "incessantemente
repetidos e revividos, momento por momento, ao longo de todas nossas
histórias individuais" (p. 4). Isso ocorre porque é impossível dizer tudo,
de uma vez por todas, na linguagem. Qualquer tentativa de dizer "eu
sou" – de fazer com que a linguagem se torne plenamente idêntica consigo
mesma e comigo mesma – me coloca contra os limites da linguagem, contra a
impossibilidade de que a linguagem coincida com aquilo de que ela fala, contra
a fissura entre o que é falado e o que é referido, Contra o inevitável fracasso
da linguagem.
Donald (1991) argumenta que, de fato, "no próprio
centro da vida psíquica", a auto-identidade plena e completa é não apenas
impossível, mas que nós, na verdade, resistimos a ela. Existe uma resistência à
55▲
identidade – ao perfeito ajuste entre, de um
lado, as normas sociais e, de outro, a forma como nós sentimos e o que
queremos (p. 4). Essa resistência está ligada a um sentimento freqüentemente
inconsciente de que nós somos – de que devemos ser – mais do que os eus
que nossas culturas, nossas escolas, nossos governos, nossas famílias, nossas
normas sociais e nossas expectativas estão nos oferecendo ou exigindo que
sejamos. É essa resistência às banalidades da normalização que torna a agência
possível:
Ao negociar as
auto-imagens fornecidas pela [...] educação e pela cultura popular, o eu nunca
reconhece plenamente a si próprio. Ele continua desconfiado de que deve
existir algo mais do que as normas e as banais transgressões que estão disponíveis.
(p. 95)
De fato, se fosse
possível obter ajustes perfeitos entre as relações sociais e a realidade
psíquica, entre o eu e a linguagem, nossas subjetividades e nossas sociedades
seriam fechadas. Completas. Acabadas. Mortas. Nada a fazer. Nenhuma diferença.
Não haveria nenhuma educação. Nenhuma aprendizagem.
A EDUCAÇÃO E O
VOLÁTIL E PSÍQUICO ENTRE-ESPAÇO
Os educadores
simplesmente não têm lidado com questões de endereçamento da forma ou na extensão
que os estudiosos do filme o têm feito. Isso é muito curioso para mim. Parece
que paralelos e intersecções entre "estudante" e "público"
são inescapáveis. Os estudantes e os públicos têm muito em
56▲
comum tanto como construtos teóricos quanto
como participantes reais no processo de atribuição de sentido. E com o advento
dos novos meios interativos e os chamados edutainments [educação +
entretenimento], as fronteiras entre o estudante e o público estão se tornando
ainda mais borradas e permeáveis.
Dessa forma, tanto os
filmes populares quanto os textos educacionais (tais como livros-texto, currículo,
vídeos e softwares educacionais) fazem pressuposições sobre quem seus públicos
são – em termos de suas sensibilidades estéticas, graus de atenção,
estratégias de interpretação, propósitos e desejos, leituras e experiências
visuais prévias, vieses e preferências. Muito freqüentemente, essas pressuposições
estão baseadas em pressuposições adicionais sobre a localização de membros do
público no interior da dinâmica de raça, gênero, status social, idade,
ideologia, sexualidade, rendimento educacional, geografia.
Por exemplo, os
livros-texto utilizados na educação estão constantemente redesenhando sua
"aparência" para atrair públicos estudantis cujas estratégias de
leitura e cujos interesses são moldados, de uma forma extraordinária, pela
televisão e pela música popular. Parecendo-se cada vez mais com revistas
populares e até mesmo com sites da Internet, os livros-texto
endereçam-se aos baixos graus de atenção e à familiaridade dos estudantes com
esses meios pela utilização de pequenos quadros destacados do texto
principal, de referências cruzadas, de atividades baseadas na cultura popular
(por exemplo, "componha um poema rap")
, muita cor e uma
57▲
abundância de escolhas. Os
vídeos educacionais, ao menos nos minutos de abertura e em um esforço para
atrair a atenção dos estudantes, freqüentemente tentam se parecer com a MTV Os
museus de ciência estão começando a se endereçar aos estudantes de forma
similar àquela dos filmes de ação e aventura de Hollywood. Por exemplo, a
exposição interativa sobre a floresta tropical do Museu de Milwaukee aparece
misteriosamente à medida que ando por uma densa floresta visual, cercada por
estranhos sons e odores, subindo cada vez mais alto até a copa das árvores onde
encontro estranhas criaturas que vivem suas vidas inteiras centenas de meu'os
acima do chão da floresta.
Tudo
isso levanta a possibilidade de discutir os textos educacionais (tais como
livros-texto, sites
da
Internet, vídeos educacionais, instalações de museus, currículos
multiculturais) e as práticas pedagógicas (tais como a interatividade, o
diálogo, os meios utilizados na sala de aula) em termos de modo de endereçamento.
O que significa para os educadores começar a reconhecer o paradoxal poder do
endereçamento nos textos educacionais?
Quero,
aqui, utilizar a forma como Donald questiona a educação para explorar o que
está oculto quando ajustes exatos ou "corretos" entre o texto
educacional e a compreensão do estudante são pressupostos, desejados,
buscados. O que é apagado e negado, e a que custo, quando agimos como se não
existisse nenhum modo de endereçamento no ensino?
Muito
freqüentemente, os professores endereçam-se aos estudantes de forma planejada
para
58 ▲
eliminar, minimizar ou
conter as emaranhadas coisas sociais, históricas e inconscientes que poderiam
confundir a compreensão de um texto educacional. Para que um currículo ou uma
pedagogia "funcionem", alguns momentos de sala de aula – e idealmente
todos eles – têm que resultar em um ajuste entre o que está sendo ensinado e a
compreensão do estudante. E todo mundo – estudantes e professores – tem que
estar na mesma página ao menos em parte do tempo, especialmente quando se trata
de exames e avaliação. Como diz Karen Evans, é isso que faz uma enorme diferença entre
filmes e currículos – "ninguém submete os espectadores a um teste após a
sessão de cinema" (comunicação pessoal, 25 de outubro de 1996).
O
importante, em termos dos propósitos da avaliação, é que o estudante
"pegue" o texto, compreenda-o, esteja "consciente" dele,
mesmo que o estudante não queira "pegá-lo", não se divertiu em
"pegá-lo" ou não tem a intenção de utilizá-lo – a educação é um
sucesso quando a diferença entre um currículo e a compreensão que dele tem um
estudante é eliminada. Podemos ver essa formulação em ação em um livro
progressista recente sobre educação multicultural. Um ensaio conclui que
"o que o tornou tão gratificante foi que as crianças estavam conscientes
do que estavam fazendo. Eu realmente acredito que no fim do ano quase todas as
crianças compreendiam que tinham uma estrutura para escrever, quisessem elas
prosseguir ou não" (MIZELL, BENETI, BOWMAN & MORIN, 1993, p. 46).
É esse interesse estreito no ato de compreensão que
faz com que seja possível agir como se o modo
59▲
de endereçamento não fosse uma questão ou um fator
na educação. É aqui que um encontro interdisciplinar com os estudos de cinema
pode dar uma sacudida nas coisas – e de forma produtiva, acredito.
Que tal se, da mesma
forma que ocorre entre um filme e seu espectador, a relação de um estudante
com o currículo fosse um evento confuso e imprevisível que constantemente
excedesse tanto a compreensão quanto a incompreensão?
Essa perspectiva não
tem uma circulação fácil no campo da educação. Entretanto, tal como a leitura
que um estudante faz de um fume, sua leitura de um currículo passa, constante e
inevitavelmente, pela coisa incontrolável do desejo, do medo, do prazer, do poder,
da ansiedade, da fantasia e do impensável.
Convidar os públicos
a jogar/brincar nessa e (com essa) desordem é o feijão com arroz dos produtores
de filmes. Mas é exatamente planejando eliminar isso da aula do dia
seguinte que os educadores, em sua maioria, ficam acordados até tarde da noite.
São exatamente os atos e os momentos de desejo, medo, prazer, poder e
desentendimento na sala de alua o que os educadores, em sua maioria, suam para
tentar prevenir, impedir, negar, ignorar, terminar. Uma coisa dessas é
aterrorizante para professores com trinta ou quarenta crianças em uma sala de
aula, bem como para professores com doze estudantes de pós-graduação que estão
escrevendo suas dissertações.
Além disso... por que
um professor ia querer viver nos domínios da ansiedade, da fantasia, do prazer
e dos jogos de poder? Tais estados são estranhos se a relação que estamos
realmente tentando fazer
60 ▲
acontecer entre o currículo e o estudante é
pura e simplesmente uma relação de "pegar" ou não "pegar".
É certo que os educadores podem ser forçados a entrar nesses perturbadores
domínios quando encontramos estudantes e professores que não "pegam"
o texto ou que, quando o "pegam", não o querem. Mas o problema de
"pegá-lo" é raramente percebido como algum problema com a idéia de
compreensão em si. Ele
é comumente concebido como uma questão de alguma relação onerosa entre os
estudantes e seus contextos e constrições culturais e sociais mais amplos. Em
outras palavras, os estudantes o "pegarão" apenas se eles tiverem as
competências culturais, as habilidades intelectuais ou as virtudes morais
adequadas.
Isso permite que a
própria idéia de compreensão deixe de ser analisada. Isso faz com que a compreensão
e sua "expressão" nos testes continue sendo vista como a relação
apropriada, desejada e, em última instância, alcançável, definindo, assim, o
sucesso para os professores.
Definir, pois, a
relação entre currículo e estudante em termos de compreensão e incompreensão
significa que, na prática, a maior parte dos textos educacionais endereça-se
aos estudantes como se suas pedagogias estivessem vindo de lugar algum no interior
das relações circulantes de poder. Ao se apresentar como desejando apenas a
compreensão, os textos educacionais endereçam-se aos estudantes como se os
textos não fossem de ninguém, como se não tivessem nenhum desejo de colocar
seus leitores em qualquer posição exceto a de uma compreensão neutra, benigna,
geral e genérica. E a compreensão não é
61▲
realmente vista como posicionando os estudantes
por meio de um modo particular
de endereçamento porque, supostamente, a compreensão é tanto neutra quanto
universal.
Entretanto, mesmo
quando os professores estão se endereçando aos estudantes com uma atitude ou com um tom de voz "neutro", sem
qualquer referência às (ou ao aproveitamento das) fissuras entre textos e
leitores, os termos de seu endereçamento tentam "colocar" os
estudantes no interior de relações de conhecimento, desejo e poder. E os estudantes,
por sua vez, respondem aos modos de endereçamento em termos que colocam os
professores e os currículos no interior de relações circulantes e conflitivas
de conhecimento, desejo e poder. Isso é verdade mesmo na prática pedagógica
supostamente "democrática" do diálogo. O que é apagado e negado – e
a que custo – quando agimos como se fosse possível eliminar, no diálogo, por
meio da compreensão, o espaço da diferença entre o texto daquele que fala e a
resposta daquele que escuta?
A própria crítica da
educação feita por Donald conduz a essa questão. Ele baseia sua crítica na
idéia, extraída da psicanálise, de que ajustes perfeitos são impossíveis. Um
ajuste perfeito entre eu e sociedade, entre relações sociais e realidade
psíquica, é uma impossibilidade (1991, p. 7). E isso significa que também são
impossíveis ajustes perfeitos entre texto e leitura, modos de endereçamento e
interpretações do espectador, currículo e aprendizagem, o estudante ideal ou
imaginado e o estudante real, a educação multicultural e os sentimentos reais
dos estudantes sobre raça.
62 ▲
Parte do projeto de
Donald como educador consiste, pois, em acrescentar os trabalhos do inconsciente
às razões já em circulação para explicar por que os educadores não devem ver a
relação entre o currículo do professor e a compreensão do estudante como uma
relação de determinação unilateral. As atuais formas de pensar e ensinar não
oferecem muitas alternativas a essa formulação, mas existem umas poucas.
As teorias sobre a
"resistência" do estudante ao conhecimento escolar oficial, por
exemplo, tentam apreender a forma pela qual os estudantes "retrucam"
ao que estão aprendendo. Mas os sociólogos da educação raramente pensam na
resistência em termos do que acontece no espaço da diferença entre o lado de
fora (o social) e o lado de dentro (a psique individual). Em vez disso, a
resistência é freqüentemente vista como aquilo que os estudantes fazem depois
que eles fá alcançaram a
compreensão. Em outras palavras, segundo essa perspectiva, os estudantes
"pegam" o que está sendo ensinado, mas por causa dos contextos
sociais e culturais de desigualdade que incidem sobre a relação estudante-professor,
os estudantes recusam-se a se conformar. Ou, ainda segundo essa perspectiva,
quando os estudantes resistem mesmo antes que compreendam o que eles
supostamente devem aprender, então a resistência é freqüentemente patologizada
como alguma disfunção ou ruído em sua capacidade de compreender, resultante de
problemas com suas capacidades cognitivas, grau de atenção ou motivação.
Existe, entretanto,
nos discursos educacionais, uma alternativa a essa perspectiva que vê o ensino
63▲
como
uma relação de determinação unilateral entre o currículo e a compreensão do estudante.
É essa a alternativa que mais
me interessa porque ela realmente se endereça ao espaço da
diferença entre o lado de fora (o social, o currículo) e o lado de dentro (a
psique individual, o estudante). Na verdade, ela supõe alcançar a compreensão
pela eliminação do espaço da entre-diferença. Estou me referindo à relação de
duas mãos entre o texto e o estudante chamada "diálogo".
o
DIÁLOGO
COMUNICATIVO AFIRMA: ''NENHUM MODO DE ENDEREÇAMENTO AQUI!"
As
educadoras constantemente invocam o diálogo como um meio para se chegar à
compreensão sem imposição e de uma forma mais democrática do que a da
determinação de mão única. Ele é apresentado como uma forma de satisfazer
desejos comuns e partilhados por compreensão mesmo que permaneçam diferenças
de opinião e poder. As educadoras freqüentemente associam diálogo com
democracia. Elas convocam o diálogo como um meio de assegurar que, quando as estudantes
e as professoras interagem, elas estão sendo abertas (em oposição a serem
dogmáticas) e que elas estão dispostos a serem mudadas (em oposição a serem
ditatoriais) pelas compreensões racionais (em oposição às paixões e aos
auto-interesses irracionais) a que elas acabam chegando.
Mas
o que acontece quando o diálogo, visto como uma estratégia de ensino, como um
condutor supostamente neutro de significado e intenção, é
64 ▲
questionado sobre seus
próprios interesses e intenções? A despeito do que está implícito em grande parte
da literatura atual na educação, o diálogo não é um estado natural do qual nós,
algumas vezes, nos afastamos, precisando da ajuda das professoras para
recuperá-lo. Ele não é, tampouco, a realização suprema da civilização
ocidental, uma forma ideal de interação social que os outros da civilização
ocidental deveriam se esforçar por alcançar. Ele tampouco é a estrada real para
a comunicação e a conexão, em um mundo cronicamente carente de comunicação.
O
que escapa às discussões sobre o diálogo em educação é isso: o diálogo – como
uma prática de ensino advogada em quase toda a literatura educacional – é, ele próprio, uma relação socialmente
construída e politicamente interessada. Não importa se as educadoras
apresentam-no, de forma simplista, como uma conversação entre grupos
interessados na busca de uma compreensão mútua ou como um meio mais
teoricamente inspirado de constituir uma relação social transformativa entre os
falantes. O diálogo como uma forma de pedagogia é uma prática histórica e
culturalmente plantada. Trata-se de um instrumento socialmente construído, com
intenções que fazem parte intrínseca de sua própria lógica.
O
argumento que quero desenvolver aqui é que quando as professoras praticam o
diálogo como um aspecto de sua pedagogia, elas estão empregando um modo de
endereçamento. As regras e os movimentos e as virtudes do diálogo, considerado
como uma forma de pedagogia, não são neutros – eles oferecem
"lugares" muito particulares às professoras
65▲
e estudantes no interior de redes de poder,
desejo e conhecimento.
Negar que o diálogo
seja um modo de endereçamento estruturado na história e, na verdade, inspirado
por interesses particulares, significa conceder-lhe· um status transcendental. E é precisamente
isso que parece acontecer em muitos discursos e práticas educacionais.
Supõe-se que o diálogo seja capaz de tudo: desde construir conhecimento,
resolver problemas, assegurar a democracia, implantar processos cooperativos,
assegurar a compreensão, construir virtudes morais e diminuir o racismo ou o
sexismo até satisfazer desejos por comunicação e conexão.
Mas não é assim tão
fácil. O que acontece com o diálogo-como-uma-estratégia-de-ensino tendo em
vista a insistência de Donald no estado confuso e emaranhado do espaço entre o
lado de fora da sociedade (do currículo) e o lado de dentro da psique
individual (da compreensão do estudante)? O que acontece quando a ponte de – supostamente
– duas mãos do diálogo entre estudante e texto, estudante e professora,
estudante e estudante, é uma ponte instável que oscila, escapa e muda de forma
imprevisível? O que acontece quando aquela ponte de duas mãos é habitada por
medos, horrores humanos, história e diferença?
O diálogo no ensino
não é um veículo neutro que carrega as idéias e as compreensões de quem fala
para lá e para cá, através de um espaço livre e aberto entre os dois pontos.
Ele é um veículo desenhado com uma tarefa particular em mente e o acidentado
terreno entre falantes que ele atravessa faz com que
66 ▲
haja uma passagem constantemente interrompida e
nunca completada.
Por exemplo, quem o
endereçamento do diálogo pensa que eu sou, exatamente da mesma forma que o
filme Jurassic Park pensa que eu
sou, nunca é exatamente quem eu fui ou que estou querendo ser, disposta a ser,
capaz de ser. Especialmente nos currículos e nas conversações sobre gênero,
raça, sexualidade, etnia, o espaço entre um endereçamento e a resposta de um
estudante é um espaço confuso e emaranhado, atravessado pela história, por
interesses e pela ignorância. Quando alguém me convida para o diálogo, ela me
convida para uma prática particular que também existe em relação àquelas
histórias, interesses e ignorâncias e neles está envolvida. E aquelas pessoas
que iniciam o diálogo, não importa quão "imparciais" ou
"abertas" sejam suas intenções, não podem deixar de se colocar em
relação a mim, a outros, à história. James Baldwin (1963) enfrentou isso em
"Uma fala para os professores", quando ele falou sobre ser endereçado
– chamado como um "crioulo". "Se eu não sou o que dizem que
sou, então isso significa que você também
não é aquilo que você pensava que era. E é isso que constitui a crise"
(p. 8).
Se eu não respondo do
lugar situado no interior da relação social construída e interessada chamada
diálogo, à qual você falou quando se endereçou a mim, então também você não
está no lugar que você pensava. E essa é a crise social, política e pedagógica
provocada se eu ouso recusar-me a fazer dos interesses que subjazem à relação
dialógica os meus próprios interesses.
67▲
ENSINANDO: AS COISAS
NÃO SÃO O QUE PARECEM
E se a relação entre
o currículo e a compreensão do estudante não puder ser desenhada como uma
estrada linear de mão única, na qual o currículo determina a compreensão? Ou
nem mesmo como a ma de duas mãos composta daquelas versões do diálogo governada
por regras nas quais os trajetos acabam se encontrando e, então, alegremente se
separam em uma terceira – e mutuamente consentida – direção? Que tal se a
relação entre currículo e estudantes fosse desenhada como constituída de
oscilações, dobras e reviravoltas, voltas e retornos inesperados?
Gostaria de enfatizar
a diferença produtiva entre, de um lado, o pensamento de que nós sabemos o que
estamos fazendo como professores – quando, por exemplo, prescrevemos várias
versões do diálogo para ensinar sobre e através da diferença social e cultural
– e, de outro, a idéia de que o ensino é indecidível.
É isso que quero
dizer com "indecidível": não podemos observar, inspecionar ou regular
diretamente os espaços abertos pelos ajustes imperfeitos entre o que os
currículos dizem que nós supostamente devemos ser e aquilo que na realidade não
nos tornamos. O que impede os professores de obter objetivos pedagogicamente
prescritos, como, por exemplo, educar um indivíduo virtuoso em uma boa
sociedade, é o espaço entre a percepção e a consciência – e esse espaço
constitui "um obstáculo à transparência"
(BAHOVEC, 1993, p. 167). Trata-se
de um obstáculo que também (e afortunadamente) "impede a possibilidade de
vigilância total" (p. 167).
68 ▲
Ninguém, argumenta
Donald (1992), descobriu "exatamente como
as normas sociais afetam a textura de nossa experiência ou como
elas são transformadas nesse processo" (p. 92). Não se trata apenas de
que aquilo que ocorre nos espaços entre o social e o individual, entre a
percepção e a consciência escapa à observação
e ao controle direto por parte dos professores, (a partir do lado de fora), mas
é também impossível de ser conhecido pelo indivíduo em questão (a partir do
lado de dentro).
Mas nós sabemos que o
"entre" que fica entre a percepção e a consciência está lá – mesmo
que não possamos vê-lo ou controlá-lo:
Nós
"sabemos" que os processos culturais operam, rotineiramente, por
meio do inarticulado, do não-registrado, por meio do hábito e da "segunda natureza";
nós sabemos porque nós podemos tanto observar esses processos em outros quanto
surpreender a nós próprios em processos culturais similarmente
"inconscientes". Nós também sabemos que agimos contra nossas
melhores intenções ou fracassamos em tazer o que "queremos" fazer. (O'SHEA, 1993,
p. 505)
É aqui que, na análise
de Donald, a educação se torna mais parecida com um filme de horror do que com
um programa de notícias.
Nós, professores, não
podemos observar diretamente a desordenada dinâmica do desejo, da fantasia e
da transgressão que inevitavelmente descarrilham os conhecimentos e as
identidades sociais que nossos currículos oferecem aos nossos alunos – ou a
nós próprios. O espaço nos quais eles operam não é transparente.
69▲
É
por isso que Donald (1992) estuda
os filmes de vampiro. Ao se perguntar quê tipo de instituição é a educação, ele
não estuda os filmes instucionais produzidos pela Encyclopedia Britannica. Em
vez disso, fazendo a mesma coisa que se faz em outros. campos, como na psicanálise
e na crítica literária, Donald baseia seu trabalho nessa idéia: a rebelde e
não-resolvida dinâmica do eu e da sociedade que reina naquele espaço entre a
percepção e a cognição não pode ser diretamente observada ou regulada.
Mas essas dinâmicas
podem ser acessadas indiretamente. Pode-se interagir com elas e
responder a elas de forma indireta, metafórica, por meio de alusões
literárias, por meio da diferença entre endereço e resposta, e por meio
dos momentos em que a análise ou o raciocínio briga com a escrita. Elas podem
ser acessadas indiretamente por meio da atenção às ausências que estruturam o
que está presente, por meio da atenção àquilo que não se ajusta. Podemos ir em
direção a esse conhecer indireto, metafórico, de acordo com Donald, se prestarmos
atenção às formas culturais populares, especialmente aquelas, como os filmes de
horror, que são feitas das sobras lascadas que deixamos para trás, depois de
nossas desordenadas tentativas para ajustar nossos eus àquilo que supostamente
devemos ser, para ajustar o social ao pessoal.
Essas sangrentas
sobras sobem à superfície (não muito) metaforicamente nas partes corporais desmembradas
e na violência sexualizada e histérica de filmes tais como Pulp Fiction [Pulp fiction: tempo de violência],
e na obsessão com alienígenas, tal como nos filmes The X Files [Arquivo X] e Independence
Day.
70 ▲
Em Roseanne, os
des-feitos e os re-feitos hilariantes e cruéis d'A Família como uma Instituição
Americana estão baseados nos desejos, nos medos e nos anseios que são violentamente
truncados pelos mitos americanos da boa mãe, do bom pai, do bom filho e da boa
filha.
Assim, argumenta
Donald, os educadores podem aprender algo sobre educação ao estudar a cultura
popular – especialmente os gêneros do horror e da fantasia. Nos filmes de
horror e de fantasia, as coisas não são, nunca, o que parecem. Quando um educador
como Donald começa a explorar os significados da psicanálise para a educação,
quando se introduz a idéia de uma outra localidade, de um outro espaço, de uma
outra cena – o entre-a-percepção-e-a-consciência – nas discussões sobre
conhecimento, aprendizagem e compreensão, nós estamos excedendo o currículo
oculto. Não estamos mais falando sobre a oculta ideologia do currículo, que
pode ser trazida à luz e determinada por meio da análise. Não estamos mais
fazendo perguntas que já anteciparam suas próprias e corretas respostas, tais
como "o conhecimento de quem é ensinado e a quem beneficia?".
Chegamos, em vez disso, à "rachadura interna" da educação, a qual
"não pode ser resolvida" (BAHOVEC, 1994,
p. 171). Chegamos à impossibilidade de ajustes perfeitos entre aquilo que um
professor ou um currículo quer e aquilo que um estudante compreende; entre
aquilo que uma instituição educacional quer e aquilo que o corpo estudantil
responde; entre aquilo que uma professora "sabe" e aquilo que ela
ensina; entre aquilo ao qual o diálogo convida e aquilo que chega sem ser
convidado.
71▲
Que ocorreria se não
houvesse nenhuma divisão nítida, imposta – por- meio-das-regras-do-diálogo-ouda-pedagogia-crítica
entre "a autoridade da razão e seu outro lado, habitado pelas figuras da
loucura, da sexualidade, da morte e do diabólico" (p. 171)? O que ocorreria se a negatividade não viesse
de fora e não pudesse ser dispensada? A educação
esbarra na impossibilidade básica de se colocar um limite relativamente ao
mal, à perversão que vem de fora e à que advém de dentro." A frágil
fronteira é apenas aquela da "volta do parafuso", pela qual o natural
torna-se não-natural e sobrenatural, o virtuoso torna-se totalmente
pervertido, o bem-intencionado e prescrito pelos fins da educação revela uma
rachadura interna que não pode ser resolvida. (p. 171)
A rachadura não
possível de ser resolvida dentro da própria educação, seus perenes fracassos
para produzir resultados sociais desejados ou para proteger suas jovens mentes
de suas próprias sombras e daquelas da sociedade por meio da razão, da
compreensão e do diálogo torna a educação, para Freud, uma das profissões
impossíveis. Tal como na psicanálise e no governo, observa Freud, também na
educação "ninguém pode estar seguro de antemão de obter resultados
insatisfatórios [ou satisfatórios]" (FELMAN, 1987, p. 70). Como diz
Donald:
Promessas exageradas
sobre a realização da criança e o desenvolvimento da sociedade são incessantemente
quebradas na prática...O eu não pode
ser perfeitamente adaptado às normas sociais, mesmo
72
▲
que por meio de técnicas cada vez mais difundidas
de educação, governo e terapia. (p. 3)
Donald diz que ele se
voltou para a psicanálise, esperando, inicialmente, encontrar algumas pistas
para superar os frustrantes fracassos da educação e da política para produzir
resultados sociais desejados. Mas o que ele aprendeu, em vez disso, foi
"que essa 'impossibilidade' é menos uma disfunção do que um signo do necessário fracasso da identidade na
psique e no fechamento do social" (1991, p. 8). Sociedades e indivíduos
inacabados bem como ajustes fracassados entre o social e o individual são necessários
para que sejam possíveis a agência, a criatividade, a paixão pela aprendizagem
e as transgressões – e não a conformidade – relativamente às relações de
poder.
O
que ocorreria se os professores se
tornassem tão curiosos sobre a produtividade de nossas continuamente remodeladas
ignorâncias, faltas de ajuste e limitações do saber quanto têm sido sobre a
forma como obter uma compreensão plena e completa?
Somos conduzidos para
fora da caverna de Platão por meio de uma série de desilusões. A forte luz da razão coloca até mesmo nossas
sombras para correr. Mas à noite, quando nossas vidas nos fazem retornar aos sonhos, quem se importa com
a razão? (WILLARD, 1993, p. 80)
Nenhuma compreensão?
Nenhuma razão? Nenhum diálogo? Nenhuma educação? E, entretanto, as pessoas que
se localizam e trabalham na rachadura interior do terreno da educação – professores
73▲
dedicados e "críticos" como Donald,
Felman, Lacan – ainda assim ensinam, aprendem, lêem, escrevem.
Estou agora ficando
curiosa sobre os significados para mim, como uma educadora, das borradas e permeáveis
fronteiras entre aquilo que os discursos educacionais têm tradicionalmente
considerado como sendo o lado de fora (o social, o currículo) e o lado de
dentro (a consciência, a cognição, o sentimento). O que se torna inescapável e
intrigante para mim é isso: nossas vidas nos fazem retomar ao sonho inclusive
– talvez especialmente – sob as luzes florescentes de nossas aulas sobre a
diferença social e cultural ou das nossas aulas que atravessam a diferença
social e cultural. E a forte luz de nossos currículos pode colocar até mesmo
nossas sombras para correr.
Mas enquanto fogem,
elas escorregam e dão meia-volta e se deixam apanhar e se perdem e acabam
retornando... para serem involucradas em nossas vidas conscientes dos momentos
de vigília, transformadas pela jornada em algo irreconhecível ainda que familiar
e de uma forma estranha – material novo ainda que antigo, para tornar-se
curioso outra vez, para se sujeitar de forma renovada à forte luz da razão – apenas
para ser posto a correr outra vez em uma nova e inesperada direção, apenas para
retornar às sombras a partir de um lugar que não podemos, nunca, predizer ou
imaginar.
Enquanto entretenho
essas idéias, ...a educação, da forma como eu tenho sido ensinada a pensar e a
praticar, torna-se impossível. E eu decidi, como professora, perseguir meu
desejo em outro lugar.
74▲
Notas
1 Na tradução deste artigo, ensaio uma nova forma
de lidar com a questão do sexismo na linguagem. Em vez de utilizar, por
exemplo, "professores/as", procuro alternar, no texto, entre o
masculino e o feminino. Recentemente ouvi uma respeitável intelectual,
especialista em questões de linguagem e educação, afirmar que "o masculino
em português é neutro" e por isso não há nenhuma razão para considerar
sexista sua utilização generalizada para se referir aos dois gêneros. É, para
mim, estranho que pessoas sofisticadas em questões de poder, política e
linguagem continuem isentando a gramática de qualquer cumplicidade na perpetuação
de relações de desigualdade. Parece que a gramática é o transcendental,
irredutível e intocável, das professoras e dos professores de português (ou de
gramática?). Apesar das dificuldades de lidar com essa questão em uma língua
extremamente flexionada como o Português, continuo achando que vale a pena
tentar encontrar soluções (N. do T.).
, Na definição do
American Heritage Dictionary (edição eletrônica), camp é
"banalidade, vulgaridade ou artificialidade, quando deliberadamente
afetada ou quando apreciada por sua ironia". De acordo com Susan Sontag
(1987), no seu clássico "Notas sobre camp", "a essência
do camp é sua predileção pelo inatural: pelo artifício e pelo
exagero" (p. 318). Exemplos de camp: "lâmpadas Tiffany; O lago
dos cisnes; óperas de Bellini; King Kong, de Schoedsack; vestuário
feminino da década de 20 (boás de plumas, vestidos com franjas e missangas, etc.)"
(p. 321) (N. do T.).
75▲
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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WILLARD, N. Telling time: angels,
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York: Harcourt Brace: 1993.
76▲
Corpos
sem órgãos: esquizoanálise e desconstrução
Marcus Doel
Não
há viagem que não seja esquizofrênica.
(DELEUZE
& GUATTARI, 1966, p. 232)
AURORA DO MORTO
O diagnóstico de
"liquidação" demonstra em geral uma ilusão e uma ofensa; ele acusa:
eles tentaram "liquidar", eles pensaram que podiam fazê-lo, nós não
deixaremos que o façam. O diagnóstico implica, portanto, uma promessa: nós faremos
justiça, nós salvaremos ou reabilitaremos o sujeito. Um slogan, portanto:
um retorno ao sujeito, o retorno do sujeito. (DERRIDA,
1988a, p. 113)
Precisamos contar a
estória do sujeito e mapear sua trajetória. Como qualquer espécie em risco de
extinção, o sujeito deveria ser registrado em termos de sua inscrição
genealógica no interior de diferentes aparatos sociais, de acordo com sua
evolução e
79▲
mutação no interior de uma sucessão de
contextos permeáveis e cambiantes. Como um ponto de partida, poderíamos fazer
uma incursão nas inúmeras disciplinas e perspectivas em que existe um sentimento
crescente de desconforto e pressentimento a respeito da sorte do sujeito. De
fato, pode-se já discernir o esboço de um motivo dominante – o sujeito como
local de catástrofe, acompanhado por um consenso que se torna rapidamente
ossificante: o dinamismo do sujeito finalmente se esgotou e está agora
destinado a entrar em um processo de decadência terminal. Para muitos, há a
convicção de que a catástrofe já ocorreu e de que estamos vivendo em uma zona
morta – ou em um período de espera assombrada pela morte do sujeito. Daí a
urgência teórica, política e ética da questão especulativa: quem vem depois do sujeito? (Topoi, 1988). Haverá um Outro sujeito,
um niilista suicida, uma comunidade, uma nova forma de esquizofrenia, um
ciborgue, uma infestação maquínica, nada, algo inumano ou não-humano? Ou talvez
devêssemos tentar reviver, ressuscitar ou rejuvenescer o sujeito a fim de
dar-lhe uma sobrevida? Além disso: na medida em que a filosofia do sujeito foi
sempre apenas um pseudo-começo, um começo que esteve sempre e já em declínio,
um começo que só serviu para dissimular, marginalizar e reprimir todos aqueles
"outros" dos quais derivou seu lugar e seu poder, muitos autores
aceitaram e internalizaram jubilas a e prontamente a morte, a dispersão e a
liquidação do sujeito: o sujeito, que horror! Muitos, entretanto, continuam
incrédulos frente a essa hipérbole. E, contudo, caso se trate, de fato, do
declínio terminal do sujeito, podemos
80▲
apenas esperar que no rastro deixado pelo
sujeito, algo mais desejável possa finalmente ter a chance de ocorrer: lance de
dados.
Ao considerar a sorte
do sujeito, o discurso dominante tem sido um discurso de catástrofe e exaustão,
um discurso que se tornou associado, em geral, com o advento do
pós-estruturalismo e do pós-modernismo e, em particular, com a obra de Louis
Althusser, Jean Baudrillard, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Michel Foucault,
Jacques Lacan e Jean François Lyotard (Dews, 1987; HARLAND, 1987; LAWSON,
1985; MEGILL, 1985). Alguns poucos tentam deleitar-se com o que eles percebem
como sendo as conseqüências apocalípticas de uma forma virulenta de
anti-humanismo (KROKER E COOK, 1988; LAND, 1992). Muitos mais se envolvem em
uma nostalgia e em uma lamentação por aquilo que foi perdido, com freqüência
entregando-se a uma busca heróica pela restituição do sujeito por meio da sua
re-alocação, da sua reabilitação e da sua reconstrução (ROSEN, 1987; SOPER,
1986). Finalmente, tem havido uma série de tentativas de literalmente corporifícar o sujeito, seja por meio da
introdução de uma série de substitutos que tomariam o lugar do sujeito ou então
por meio de um enquadramento desse etéreo termo em uma variedade de partes
corporais: pele, rosto, órgãos genitais, mãos, olhos, pés. No rastro deixado
pelo sujeito, tornou-se outra vez possível situar corpos humanos que vivem e
que respiram (NICHOLSON, 1990). Em suma,
o corpo não é mais o
obstáculo que separa o pensamento de si próprio, aquilo que tem que ser
81▲
superado para se chegar ao pensamento. É, ao
contrário, aquilo no qual o pensamento mergulha, a fim de chegar ao impensado,
isto é, à vida. (DELEUZE, 1989,p. 189)
No rastro deixado
pelo sujeito tem havido, pois: alegria, lamentação, nostalgia, restituição,
ressurreição, substituição e corporificação. O que une cada uma dessas
respostas é o fato de que elas estão todas baseadas em algum evento negativo
que teria ocorrido ao sujeito abstrato e universal. Em algumas versões esse
evento negativo é verdadeiramente apocalíptico, manifestando-se em temas como
morte, liquidação, dissolução, aniquilamento e desaparecimento. E na medida
em que esse evento negativo constitui um declínio terminal e irreversível, é
inútil e inoportuno tentar recuperar um tal sujeito. Daí a inclinação ao
pranto, ao riso ou à indiferença. Em
outras versões, o momento negativo é mais modesto, expressando, em vez de um
declínio absoluto, um declínio relativo. Em particular, essas versões são
dominadas pelo sentimento de uma forma de subjetividade danificada, defeituosa,
disfuncional ou limitada. Especificamente, nessas versões, o sujeito é – por
meio de uma série de constrições – encolhido: pelos arranjos maquínicos que o
constroem e o animam; pelos discursos que circulam através dele; pelas
linguagens que o ocupam; pelos desejos que o movem; pelos poderes que o
saturam; e pelo tecido material que o amarra. Em contraste com o anseio por um
sujeito imortal, a-histórico, incorpóreo, universal e abstrato, há uma
insistência no fato de que o sujeito é limitado, de que ele é fixado por uma
infinidade de aparatos sociais. O sujeito é, com
82▲
certeza, uma máquina, mas uma máquina que é
montada e articulada em um lugar apropriado. Além disso, da perspectiva de um desejo de escapar ao caráter localizado e
finito do humano, essa produção maquínica do sujeito contextual é apenas um constrangimento. No momento em
que se debilita a força desse desejo, a singularidade
situada torna-se a própria vida. Em outras palavras, o sujeito é o contexto no
qual ele é produzido: uma-obra-em-processo; uma-obra-como-processo. O sujeito é
articulado duas vezes: a produção maquínica de uma máquina produtiva;
produzindo, um produto.
o
que há por toda parte são máquinas
e sem qualquer metáfora: máquinas de máquinas, com as suas ligações e
conexões. Uma máquina-órgão está ligada a uma máquina-origem: uma emite o fluxo
que a outra corta. (DELEUZE & GUATTARI, 1966, p. 7)
Conseqüentemente,
sempre que se fala do declínio absoluto ou relativo do sujeito, está-se
indicando que o sujeito é despossuído de seu eu. O que é difícil de apreender,
entretanto, é que essa despossessão ocorre por meio de um duplo movimento: uma
vez por meio da re-imersão do "eu" universal nos contextos singulares
nos quais ele se expressa; e, outra vez, por meio da re-inscrição do
"eu" individuado no interior dos aparatos sociais que o animam e o
sustentam. Entretanto, é importante enfatizar que esse não é um movimento
negativo na medida em que uma negação do sujeito necessitaria ou uma negação da
negação (fazendo surgir uma nova positividade por meio da suprassunção [Aufhebung]: a chegada de
um-Outro sujeito) ou uma forma
83▲
extrema de niilismo que buscaria bloquear e
frustrar um tal efeito de ressurreição. Conseqüentemente, é importante
insistir que a ex-propriação do sujeito abstrato e universal é afirmativa e
não negativa, para que não fiquemos presos no movimento em espiral das duas
linhas de uma tira de Möebius que parecem passar pelo lugar do sujeito.
Enquanto a primeira linha traça a recorrência eterna da construção maquínica,
da des-construção e re-construção do sujeito (algum sujeito deverá existir), a
segunda traça o movimento de uma construção anterior que resulta em uma
destruição irreversível (não existirá nenhum sujeito). Entretanto, embora essas
duas linhas pareçam se bifurcar e divergir, com a primeira progredindo por
meio de investimento e acumulação (uma perfeição dialética), e a segunda
buscando um simples dispêndio sem retorno (morte pura e simples), as duas se
entrelaçam, realmente, para espreitar os limites de um duplo vínculo. Seja lá
qual das linhas for seguida, o lugar do sujeito é sempre tornado
disponível a um-Outro ocupante. Daí o fato de que toda resposta à negação do sujeito é sempre acompanhada
pela questão especulativa: quem vem depois do sujeito? Mesmo na morte, o
sujeito subsistirá por hipertelia: "Estou – morto" (COURTINE, 1988,
p. 103). O sujeito vampírico,
que horror! É precisamente nesse sentido que o declínio do sujeito na teoria
social contemporânea continua assombrado por uma ressurreição e pelo retorno
do reprimido. Em particular, pode-se observar como a des-construção do sujeito
invariavelmente produz um jorro de partes do corpo que são, então, reunidas em
uma série de corpos fragmentados e subjetividades
84▲
partidas: nacos de carne embrulhados em envelopes
de pele e carimbados com as marcas da rostidade. Tentarei, neste ensaio,
distinguir esse parcelamento das partes-do-corpo por meio de uma sucessão de
combinações e permutações arbitrárias a partir dos Corpos sem Órgãos (CsO) que
emergem na esteira de uma experiência esquizo-analítica e desconstrutiva.
Especificamente, o CsO não é um corpo fragmentado; não é o resultado fraturado
e disfuncional de uma totalidade partida.
Fora da ordem simbólica edipicamente organizada diz-se que existe apenas
um corpo infantil indiferenciado (o
OsC: órgãos sem um corpo), trabalhando em um estado pre-lingüístico de
confusão imaginária entre (a fusão com) o eu e a mãe-outra1... A assim chamada fragmentação exibida pelo
corpo "pre-edípico" é, na verdade, a fractalidade de objetos-parte...
não a debilitante falta de uma velha unidade mas uma capacidade real para uma
nova conexão. Não é uma negatividade em contraste com a qual uma plenitude pode
ser desejada. É uma faculdade positiva...
Um retorno ao corpo sem órgãos é, na realidade,
um retorno da fractalidade, uma re-emergência do virtual. Não uma regressão:
uma invenção. (MASSUMI, 1992, p. 85)
Entretanto, antes de
passar ao mapeamento do sujeito esquizo-analítico na desconstrução, gostaria
de, brevemente, demarcar o terreno da filosofia vampírica do sujeito que
"continua a viver" até mesmo na esteira de seu próprio declínio – relativo
e absoluto. Em particular, quero problematizar a fragmentação, a liquidação e a
ressurreição do sujeito universal e abstrato e ressaltar a necessidade de uma
afirmação,
85▲
em vez de uma negação, dos movimentos
fissíparos que atravessam o lugar do sujeito.
CORPOS
FRAGMENTADOS
Fraturado, tudo. Todo
passo cai em um vazio. Assim que acabamos de ter uma unidade, ela se torna uma
dualidade. Assim que temos uma dualidade, ela se torna uma multiplicidade.
Assim que temos uma multiplicidade, ela se torna uma proliferação de fissuras
que convergem em um vazio... Em si mesmo, o evento tem apenas extinção. Seu
sucesso é sua evaporação na infinita interação de seus agitados componentes...
O ser é fractal. (MASSUMI, 1992, p. 19-21)
Convencionalmente,
supõe-se que o sujeito é idêntico a si mesmo; ele é o ponto – o lugar no mapa –
que perdura. Ele é o centro da identidade, estável e inabalável. Embora seja a
condição de possibilidade da identidade, da presença e da diferença, o sujeito
precede toda identificação, toda apresentação e diferenciação. Eu sou, antes que eu seja alguma coisa. O sujeito é Um: universal,
indivisível e eterno. O sujeito é o sujeito e, portanto, cumpre duas funções
distintas na topografia da teoria social: universalização e individuação. Por
um lado, o sujeito é uma figura de universalização na medida em que é o
grau-zero da humanidade, o lugar" ao qual, de forma indicial, todas as
características humanas se referem e deferem (eu sou – sujeito). Em suma, o
re-conhecimento se transfere -por meio dos
corpos e faces individuais – par"a o lugar do sujeito universal. Além
disso, esse movimento do individual ao universal
86▲
não depende da variação real entre corpos e
faces individuais: há universalização antes
que existam individuações. De fato, o universal é indiferente a toda
quantificação. É por isso que a
proliferação, a des-diferenciação ou a fragmentação dos rostos e dos corpos
nunca servirão para problematizar o sujeito universal: sujeito há. O sujeito é o sujeito. Sozinho ele está. E sem uma
necessidade de pele, carne, face ou fluido. O corpo nunca é. Os corpos são os inimigos do sujeito. O sujeito é o que resta
quando o corpo é retirado; ele é literalmente in-numano (eu
sou – morto). Por outro lado, o sujeito é também uma figura de individuação na
medida em que só pode se expressar por meio de corpos e rostos. O sujeito só
existe em seus efeitos, na subtração de seus efeitos; sem um corpo ou um rosto através dos quais passar, o sujeito não pode cumprir
sua função de universalização. Daí a complementaridade e o paradoxo: o sujeito
exige a individuação a fim de expressar a universalização; mas existe sempre o
risco de que o olhar e o re-conhecimento se apeguem ao corpo, se alojem na
carne, se fixem no rosto e submirjarn no fluido. Em suma, o tecido material do
corpo pode frustrar a passagem em direção ao lugar do sujeito universal e
abstrato. Daí o fato de que a carne e os corpos são sempre sedimentados,
estratificados e atravessados pelo duplo movimento de universalização e
individuação que os envelopa com a pele e os carimba com o rosto – eu sou
embrulhado em mim; eu sou desembrulhado em você.
No interior da dupla
atadura ou do movimento de pinça da universalização e da individuação, um agenciamento
de aparatos sociais agarra violentamente
87▲
nacos talhados de carne,
embala-os na pele, inscreve-os com rosto e codifica-os com os estriamentos da
raça, da etnia, do gênero, da sexualidade, da classe... Entretanto, a produção
de sujeitos humanos não é, nunca, completa; ela é sempre uma obra-em-andamento e um local de
experimentação contínua. Daí o fato de que o sujeito humano é sempre um corpo
pleno a advir; ele perdura sem
jamais existir como tal. Ser é
devir. Em outras palavras, o sujeito perdura por meio de um contínuo
romper-se, mas esse não é um evento negativo. Como veremos adiante com mais
detalhes, o pressuposto de que existe um sujeito universal, unitário e centrado,
que poderia ser ou situado, corporificado, fragmentado, descentrado,
des-construído, ou destruído é precisamente o que está em questão. De fato, é a
filosofia do sujeito que trabalha por meio da identidade, da semelhança e da
negação, com sua rígida segmentação e despótica territorialização de sujeitos
molares (eu = eu = não você). N esse meio tempo, a desconstrução e a
esquizo-análise afirmam o movimento molecular nas coisas.
Conseqüentemente,
as identidades molares não estão aí desde o início, como uma enfiada de plenitudes
ou de plenipotenciários que poderiam ser seletivamente atualizados em eventos
particulares ou que poderiam acabar se embrulhando em uma série de
complicações, contaminações ou confusões labirínticas. Pelo contrário, elas são
anexadas, como se fossem outras tantas próteses dendríticas, à congestionada massa de
fluidas multiplicidades, a fim de deter os devires, regular o movimento e impor
a estabilidade. E como todos os agregados molares, o
88 ▲
sujeito é arranjado, é montado,
como uma interrupção e uma derivada dos fluxos que o animam, o sustentam, o
atravessam e o descarregam. Em suma, as identidades molares perduram e entram em colapso por meio
do tartamudear e do gaguejar de uma palavra-de-ordem: "Parado lá!".
A molaridade é modo
de desejo, assim como é qualquer
movimento que se afaste dela... É uma questão de força: é uma sobreposição categórica, uma imposição
avassaladora de efeitos regularizados. Pelo fato de constringir ações a uma gama
limitada, é inevitável que será experienciada pelo corpo excessivamente codificado
como luna constrição física. O devir começa como um desejo para fugir da
limitação corporal. (MASSUMI, 1992, p. 94)
É pouco surpreendente, pois, que o CsO deva tão freqüentemente
experienciar os aparatos maquínicos para impor identidades molares sobre os movimentos
moleculares como se fossem outros tantos instrumentos de tortura. Entretanto, é
vital compreender que o desejo de fugir da molaridade é um desejo de fugir da
limitação antes que do caráter localizado, da mesmidade antes que da
singularidade. É por isso que Bordo
(1990, p. 142-44) equivoca-se em misturar esquizo-análise e desconstrução com
"uma fantasia de fuga do caráter localizado" da subjetividade humana
por meio "de uma nova imaginação de desmembramento: um sonho de estar em
toda parte". A confusão é séria na
medida em que desvia a atenção da afirmação para colocá-la no falso problema do
controle quantitativo: sem alguns pontos de parada, a fragmentação e a
dispersão sem
89▲
fim autodestruiriam e levariam a um apagamento
do corpo em um abismo fractal. Como observou Bordo (1990, p. 145): "a
apreciação da diferença exige o reconhecimento de algum limite para a dança, além do qual a
dançarina não pode ir". E, contudo, um limite à fragmentação é precisamente o que, da perspectiva da filosofia
vampírica do sujeito, está faltando: o ser ou se desvia para o Nada ou então
cai em um devir-imperceptível; enquanto a fragmentação ou acelera-se em uma
liquefação ou então se transforma em uma fractalização (DOEL, 1993). Daí a
insistência de Rose (1993, p. 79) de que "a crítica deve estabilizar, mas
de forma contingente, deve tornar
os fechamentos arbitrários, apoiar
um essencialismo estratégico, fazer
gestos provisórios", a fim
de lidar com as "as questões (históricas, sociais): a verdade de quem?; a natureza de quem?; a versão da razão de quem?; a história de quem?; a tradição de quem?" (BORDO, 1990, p. 137). Não
obstante, podemos apenas fmgir a habilidade de localizar e identificar quem vem na esteira do sujeito universal
e abstrato, mesmo que essa linha de questionamento necessariamente inaugure um
retorno do reprimido na medida em que o mesmo imperativo é sempre interpolado
no fluxo de eventos: sujeito há. Fica parado lá – quem vem lá? De uma vez por todas, estamos de volta ao duplo nó
da universalização e da individuação e da hipertelia do sujeito vampírico.
Como começamos a ver,
a fragmentação, a multiplicação e a corporificação não serão suficientes para
permitir uma fuga da tirania da filosofia vampírica do sujeito. A hipertelia
do sujeito é exemplificada e assegurada por meio do tartamudeio e da
90 ▲
gagueira da palavra-de-ordem par excellence: quem vem depois do
sujeito? Em vez de reivindicar um eterno retorno do sujeito, o que é necessário
é uma experiência de desconstrução e esquizo-análise a fim de nos sensibilizar
para a imóvel viagem sem sair do lugar do CsO: tudo é fluxo, fluir, devir. Em
suma, esforçamo-nos por libertar a singularidade
da faixa de Möebius da fórmula que equaciona universalização com
individuação, a experimentação da
faixa de Möebius que equaciona negação com ressurreição e a complicação da faixa de Möebius que
equaciona fragmentação com totalização. Além disso, ao abrir essas
estabilizações forçadas para algo inteiramente Outro, surge uma rachadura ao
longo da qual um fractal, um cristal ou um câncer podem proliferar, levando
embora todos os fluxos excessivamente codificados que têm ficado preso no
circuito fechado das máquinas molares. O CsO pleno cresce nessa rachadura, não
em uma massa amorfa e indiferenciada, mas como um enxame de multiplicidades
virtuais, de um bando de singularidades e de complicações e invenções
experimentais. Algo terá finalmente a oportunidade de acontecer; isto é tudo:
lance de dados.
VIAJANDO DE FORMA
IMÓVEL: SEM SAIR DO LUGAR
Indivíduos ou grupos,
somos atravessados por linhas, meridianos, geodésicas, trópicos, fusos, que
não seguem o mesmo ritmo e não têm a mesma natureza. [...] E constantemente as
linhas se cruzam, se supcrpõem a uma linha costumeira, se seguem por um certo
tempo. [...] Perceber, como
91▲
diz Deligny, que essas linhas nao querem dizer
nada. É uma questao de cartografia.
Elas nos compõem, assim como compõe nosso mapa. Elas se transformam e podem
mesmo penetrar uma na outra. Rizoma. (DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 3, p.
76-7)
O sujeito está em declínio. Ele é um
agenciamento que está continuamente estragando, vazando em todas as direções.
E contudo o sujeito funciona; ele reintegra incessantemente tudo que pareceria
escapar a suas esferas de influência. Em toda a parte, trata-se de um acoplamento
de fluxos assimétricos: desterritorialização e re-territorialização;
codificação e sobrecodificação; des-construção e re-construção; tantas
articulações duplas e tantos movimentos de pinça que tornam (o lugar do) sujeito
uma inescapável obra-em-andamento: sujeito haverá. Mas trata-se também de um
local para uma infindável experimentação, complicação e invenção; um local que
é, apenas e sempre, atualizado como a singularidade do contexto no qual ele é
produzido como a superfície de registro. Em relação a esses aparatos sociais, a
desconstrução e a esquizo-análise buscam acentuar e intensificar os processos
de desterritorialização, desestratificação e decodificação de forma que eles
se separem do circuito do agenciamento maquínico e se tornem, em vez disso,
uma linha de fuga em direção a algo inteiramente Outro. Em outras palavras, a
desconstrução e a esquizo-análise delimitam os fluxos, curto-circuitam as estriações
e misturam os códigos, por meio de uma imóvel viagem que nos leva da identidade
à multiplicidade, da posição ao potencial, do Ser ao Devir, da arborescência
aos rizomas, das constantes
92▲
às variáveis, dos fragmentos aos fractais, dos
órgãos sem corpos aos corpos sem órgãos e da subjetivação à esquizofrenia.
DESCONSTRUÇÃO: DESESTABILIZANDO O SUJEITO
A fim de remodelar,
se não rigorosamente re-fundar um discurso sobre o "sujeito", sobre o
qual se sustentará o lugar do sujeito (da lei, da moralidade, da política – tantas
categorias apanhadas na mesma turbulência!) deve-se passar pela experiência de
uma desconstrução... há um dever na desconstrução. Tem que haver, se existe
algo como o dever. O sujeito, se sujeito deve haver, deve vir depois disso. (DERRIDA, 1988a, p. 120)
Já tocamos em três
das mais importantes características da desconstrução: afirmação, movimento e
responsabilidade. Essas características contrastam fortemente com a prevalente
e muitas vezes maliciosa caracterização da desconstrução como negativa,
estática e irresponsável (MARGOLIS, 1991; MERQUIOR,
1986; ROSEN, 1987). Pois, embora seja verdade que a desconstrução funciona por
meio do indecidível (sem o qual não haveria nem teoria, nem política, nem
ética, nem responsabilidade), não se trata, de forma alguma, de uma
"filosofia da hesitação" que permaneça neutra, impassiva e
indiferente ao fluxo dos eventos (CENTORE, 1991;
CRITCHLEY, 1992; MARTIN, 1992). Ao contrário, a desconstrução intervém,
mas em vez de intervir em uma tentativa para impor a ordem molar, ela
intervém em um esforço para liberar o potencial do corpo pleno sem
93▲
órgãos.·Especificamente, ela intervém ao longo
das linhas de força, do desejo e do poder, a fim de alavancar e deslocar
estabilizações forçadas, transformando-as em uma multiplicidade Aberta:
"se o todo não é... , é porque ele é o Aberto, e porque sua natureza é a
de mudar constantemente, ou de fazer emergir algo novo, em suma, de
perdurar" (DELEUZE, 1986, p. 9). Além disso, a desconstrução não está
absolutamente confinada à assim chamada "prisão da linguagem", a
uma nova onto-teologia ou idealismo rejuvenescido do Texto, na medida em que
intervém nos fluxos materiais e imateriais heterogêneos de toda a
história-do-mundo (DERRIDA, 1988b). É, pois, importante distinguir
rigorosamente entre, por um lado, uma desconstrução afirmativa e, por
outro, uma des-construção reativa (Doa,
1994a). Enquanto a primeira afirma o corpo pleno sem órgãos, a última
esforça-se por recapturá-lo por meio da reterritorialização, da
re-estratificação, da sobrecodificação e da subjetivação.
A desconstrução não
tem absolutamente nada a ver com a catástrofe ou com o apocalipse. Ela não é
nem niilista nem destrutiva, nem tampouco equivale a uma "dissolução do
sujeito" (DERRIDA, 1992, P 7). Em suma, a desconstrução não vem depois que
o sujeito foi construído, estabilizado e estabelecido. Ela não é nem um investimento
especulativo na negatividade – um investimento que tenha como base uma
expectativa racional de um retorno acumulável – nem é uma tentativa de efetuar
uma despesa sem retorno: ela não é parte de um regime de acumulação nem
um local de consumo expiatório. Em outras palavras, a desconstrução não
encontra seu lugar
94▲
próprio nem numa série dialética de
investimentos especulativos (construção/des-construção/re-construção) nem uma binarização metafísica
de despesa absoluta (construção/destruição)
(DOEL, 1992). Qualquer esforço para des-construir, desmantelar ou destruir
pode, apenas e sempre, ser uma catástrofe simulada, na medida em que seu
único efeito discernível consiste em fornecer os recursos necessários
exigidos para uma re-construção. Como já vimos, a questão "quem vem depois
do sujeito?" exemplifica esta hipertelia por meio da qual a filosofia do
sujeito "continua a viver" a despeito da total exaustão de seus
recursos.
Em contraste com o
risco fingido da des-construção reativa que é sempre avalizada por uma garantia
de re-construção e ressurreição dialética, a desconstrução afirmativa segue os
movimentos de desestabilização que atravessam o (lugar do) próprio sujeito;
ela afirma a iterabilidade, a alterabilidade e a alteridade do Mesmo.
Conseqüentemente, a desconstrução está menos preocupada em perturbar,
desmantelar e destruir o sujeito do que em trazê-lo para o Aberto que está
sempre e já perturbando e ameaçando sua consistência, coerência, estabilidade
e pertinência. Em suma, a desconstrução afirma a desestabilização em movimento
que abre o (lugar do) sujeito àquilo que é inteiramente outro. Da perspectiva
do organismo molar, dos aparatos sociais de captura e dos estratos
codificados, esses movimentos aparecem como um colapso catastrófico e um
declínio terminal, mas da perspectiva dos fluxos moleculares eles fornecem
linhas expedientes de desarticulação e de fuga em direção a algo inteiramente
Outro:
95▲
experimentação, complicação, invenção e
singularidade. Mas quem vem depois do sujeito?
. A fim de
desenvolver essa questão ao longo de linhas topológicas ("Qual é o lugar
do sujeito?"), seria necessário, talvez, renunciar ao impossível, isto é,
tentar reconstituir ou reconstruir o que já foi
desconstruído (e que, além disso, desconstruiu a "si próprio", uma
expressão que resume toda a dificuldade). (DERRIDA,
1988a, p. 114-5)
A insistência de
Derrida em um retorno ao (lugar do) sujeito e um retorno do (lugar do) sujeito
surpreenderá, sem dúvida, àqueles que gostariam de acusar a desconstrução de
defender sua morte, sua dispersão e sua liquidação. Ao contrário, na desconstrução,
o sujeito é precisamente aquilo que evita todos esses momentos de negatividade,
de catástrofe e de apocalipse que tão prontamente implantam-se na leitura
equivocada da desconstrução como uma des-construção arquitetônica: desmantelamento,
desarranjamento, fragmentação, desintegração, esquartejamento, desmembramento,
decomposição, dissolução etc.
Não se trata
absolutamente de um corpo despedaçado, esfacelado, ou de órgãos sem corpo
(OsC). O CSO é
exatamente o contrário. Não há órgãos despedaçados em relação a uma unidade
perdida, nem retorno ao indiferenciado em relação a uma totalidade
diferenciável. (DELEUZE & GUATTARI,
MP, v. 3, p. 28)
Em outras palavras, a
desestabilização em movimento que atravessa o (lugar do) sujeito não nos
96 ▲
faz retornar a uma massa amorfa, indiferenciada
ou homogênea (um estado de confusão empírica). Em vez disso, ela nos leva para
além do molar e do molecular, em direção à alteridade e à singularidade .
Portanto, ao fato de que o CsO deve ser criado; trata-se sempre de um corpo
pleno a advir. É por isso que o CsO nunca pertence a qualquer agregado
molar, menos ainda a um indivíduo; trata-se sempre de um corpo em
ex-apropriação, tanto nomádico quanto rizomático, curto-circuitando, misturando
e levando embora todas as pretensões à propriedade. Em outras palavras, quanto
tudo é levado embora, não resta nada a não ser uma distribuição de
hecceidades, de singularidades e de eventos. Entretanto, é vital compreender
que a intensidade zero do CsO não é um momento negativo em relação a alguma
Unidade ou Totalidade positiva. Pois para haver um momento negativo, um momento
negativo no qual um sujeito ou
um organismo cairia, deveria
já haver algo arranjado no lugar. Mas o sujeito e o organismo não são
absolutamente constantes (por
exemplo, a equação fechada: eu=eu=não você). Eles não estão tampouco
estabilizados em si mesmos, nem fixos no lugar. Conseqüentemente, a genealogia
do sujeito não pode ser mapeada como se fosse a trajetória de uns tantos átomos
circulando em um espaço-tempo quatridimensional, com suas velocidades e
trajetórias, atrações e repulsões, fusões e fissões, órbitas e quantas. Ao
contrário, o sujeito é uma variável em uma modificação contínua e Aberta
(por exemplo, a equação aberta:... +y+z+a... ). Em suma, o sujeito não deve ser
entendido nem como um universal, nem como um indivíduo, mas, antes, como uma
multiplicidade virtual.
97▲
o universal, na verdade, nada explica; é o universal
que precisa ser explicado. Todas as linhas são linhas de variação que não têm
sequer coordenadas constantes. O Uno, o Todo, o Verdadeiro, o objeto, o sujeito
não são universais, mas processos singulares – de unificação, totalização,
verificação, objetivação, subjetivação (DELEUZE, 1992, p. 162).
É
por isso que o sujeito é sempre
tanto uma obra-em-andamento quanto um aparato social, sofrendo a contínua variação do
Devir-Outro por meio de uma viagem no lugar, de uma viagem imóvel. Ele é,
portanto, tanto nomádico (sem casa ou refugio) quanto rizomático (sem raízes ou
ancoragem). Em suma, o sujeito perdura por meio da contínua variação da
ex-apropriação e do Devir-Outro. Esquizoanálise.
ESQUIZOANÁLISE: CORPO SEM ÓRGÃOS
Temos tantas linhas
enleadas em nossas vidas quanto as que temos nas palmas de uma mão. Mas nós
somos complicados de uma forma diferente... a esquizoanálise, a micropolítica,
o pragmatismo, a diagramática, a rizomática, a cartografia não têm outro
objetivo do que o estudo dessas linhas, em grupos ou cm indivíduos. (DELEUZE, 1983, p. 71-2)
Destruir, destruir: a
esquizoanálise tem que passar pela destruição, fàzer toda uma limpeza, toda uma
raspagem do inconsciente. [...] Destruir crenças e representações, cenas de
teatro. E não há maldade que chegue para cumprir essa tarefa (DELEUZE E GUATTARI, 1966, p. 325, p. 328).
98▲
Frente a isso, a
ênfase que a esquizoanálise coloca na destruição pareceria alinhá-la com o
reativo em vez de com a desconstrução afirmativa, mas essa inclinação seria
equivocada (BOGUE, 1989;MASSUMI, 1992; PEREZ, 1990). Pois, exatamente da mesma
forma que a desconstrução afirmativa deve ser distinguida da desconstrução
reativa, assim também deve a destruição esquizoanalítica ser diferenciada da
destruição paranóica. Uma vez mais, descobriremos que a esquizoanálise não é
nem negativa, nem catastrófica, nem apocalíptica, nem expiatória. Tal como a
desconstrução, a esquizoanálise afirma a eterna recorrência da viagem imóvel,
da viagem sem sair do lugar, da desestabilização sempre em movimento e da
contínua variação das multiplicidades proliferantes – o CsO pleno. De forma
similar, a esquizoanálise não é neutra, impassiva ou indiferente aos aparatos
sociais de captura que impõem variados graus de estabilização à fluidez heterotópica dos eventos
singulares; ela intervém a fim de liberar um CsO pleno. Em suma, tanto a
desconstrução quanto a esquizoanálise ativam multivariadas linhas de
perburbação, agitação e comoção no (lugar do) sujeito a fim de afirmar a
alteridade do Mesmo. O (lugar do) sujeito é sempre e já uma multiplicidade apinhada; o local de um CsO pleno: "há
toda uma geografia nas pessoas" (DELEUZE &
PARNET, 1988, 10; DELEUZE, 1988).
Existem muitos tipos
de linha que atravessam o (lugar do) sujeito. Algumas delas se embaraçam e
convergem para formar nós, redemoinhos e vórtices de relativa estabilização,
juntando tudo que flui para seu meio em agregados molares. Esses agregados
podem, então, ser convocados pela ordem molar para
99▲
mais experimentação e
complicação: reconstrução, reprodução e rearticulação. Nesse meio tempo, outras
linhas se soltam desse emaranhamento e embaraçamento, provocando movimentos de
relativa desestabilização que traçam linhas de fuga, desaparição e
desterritorialização. Os agregados se dividem, se molecularizam e se decompõem
em um CsO. Mas
que tipo de CsO emerge desse viajar imóvel? Para lidar com essa questão, é
necessário distinguir entre três tipos de linha. Em primeiro lugar, existem linhas de segmentaridade rígida que confinam o movimento
em células específicas, em agregados molares e em territórios distintos. Esse
tipo de linha age por meio de uma infindável laceração do CsO, escavando
células, estratos, regiões e identidades por meio de divisão e bifurcação:
casa, família, estado, fábrica, comunidade, rosto etc. Em segundo lugar,
existem linhas de
segmentaridade molecular, as quais produzem segmentos flexíveis, um fluir
molecular e desestabilizações em movimento, as quais são distribuídas de uma
maneira inteiramente diferente; elas se abrem em pequenas fraturas, linhas
dissimuladas de desorientação e desarticulação e partículas irreconhecíveis. Em
suma, uma célula começa a se distanciar de seu metabolismo usual, um fluxo
repentinamente transborda seu canal ou um programa momentaneamente perde seu
código. Mas a coisa importante a observar é que esses desvios e distanciamentos
permanecem relativos na medida em que a ordem
pode apertar o torniquete sobre eles por meio de reinvestimento, reintegração,
reconstrução e sobrecodificação; eles permanecem relativos enquanto a ordem
100▲
molar puder capturá-los em
um novo segmento, estrato ou código. Por exemplo, de vez em quando, por meio de
um novo lançamento dos dados, um evento curto-circuita os segmentos, as
estriações e os códigos da raça, da classe, do gênero e da sexualidade, por
meio de um devir-clandestino, imperceptível e acategórico; mas essa fuga
momentânea de desterritorialização absoluta – uma vez detectada pelo aparato molar – será submetida ao
torniquete com a plena força da Lei e confinada em uma nova identidade. Parado!
– quem vem lá? Em suma, a ordem molar assegura que a possibilidade e a força da
anomia e da transgressão será neutralizada e contida sob a curvatura
assintótica da anomalia estatística: tudo será explicado como constituindo uma
quantidade determinada de desvios-padrão da distribuição normal do Mesmo
(BAUDRILLARD, 1990; DOEL, 1994b). Da perspectiva da molaridade, não existe mais
qualquer lado de fora, mas simplesmente eventos e ocorrências que ainda não
foram reconhecidos e integrados na distribuição normal de uma economia do
Mesmo. É por isso que a ordem molar é irredutivelmente despótica e paranóica na
medida em que ela acredita que tudo cai na sua jurisdição e nas suas esferas
de influência. "A cada instante,
a máquina rejeita rostos não-conformes ou com ares suspeitos. Mas somente em um
certo nível de escolha. Pois será necessário produzir sucessivamente desvios
padrão de desviamento para tudo aquilo que escapa às correlações biunívocas [...]".
Em suma, a molaridade "jamais detecta as partículas do outro, ela propaga
as ondas do mesmo até à extinção daquilo que não se deixa identificar [...]"
101▲
(DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 3, p. 44-5, 45-6). Daí o
fato de que o (lugar do) sujeito é tecido e trançado por meio do emaranhamento
desses dois tipos de linha: uma molecularização do molar e uma molarização do
molecular. Na verdade, as funções de molaridade funcionam por meio da dupla
articulação e de um espiralamento tipo Möebius de desterritorialização e
reterritorialização, desestabilização e re-estabilização; decodificação e
sobrecodificação; amaciamento e estriação. O que importa à ordem molar é que – por intermédio de uma
contenção que é imposta por quaisquer meios que forem necessários – todos
esses movimentos de desestabilização continuam relativos. Em suma,
limites e constrições são interpolados sobre o CsO pleno a fim de deter, canalizar,
interromper e avariar o devir. Enquanto as lacerações molares estão para sempre
inclinadas a fatiar o (lugar do) sujeito em uma polpa desmembrada, fragmentada
e dispersa, os movimentos moleculares podem ser sempre arranjados a fim de
levar os restos de volta aos aparatos molares para uma perpétua reciclagem.
A
cumplicidade potencial da
segmentação molar e da segmentação molecular permite-nos clarificar o
significado do último tipo de linha: as linhas de fuga. Essas linhas se
soltam do espiralamento tipo Möebius da segmentaridade molar e da
segmentaridade molecular, desarticulando os estratos e misturando os códigos à medida que eles levam embora eventos
singulares para uma desterritorialização absoluta: fluido em estado
puro, escorrendo sobre o CsO, sem limitação ou interrupção. O CsO pleno é
aquilo que resta quando tudo foi
102 ▲
tirado; intensidade=zero (eu sou outro).
Trata-se do plano de consistência sobre o qual as viagens imóveis fatalmente se
aproximarão assintoticamente. À questão "quão longe pode o demasiado
longe ir?", a esquizoanálise sugere que um corpo nunca pode ir demasiadamente
longe com a desterritorialização, desestratificação e decodificação dos fluxos.
A dificuldade, entretanto, reside em saber de que forma melhor se pode
atravessar o (lugar do) sujeito, com seu envelope de pele, sua cobertura de
rosto e seu amálgama de carne. É relativamente fácil produzir um CsO vazio ou
descosido por meio de uma desestratificação demasiadamente violenta, ou um CsO
drogado, paranóico e suicida, por meio de um ódio dos órgãos, ou mesmo um CsO
totalitário, canceroso e viral que ataca os órgãos e faz proliferar segmentos
molares e moleculares redundantes por todo lado. Desmantelar a si mesmo por
meio de um processo esquizofrênico de dessubjetivação tem seus perigos: "O
pior não é permanecer estratificado – organizado, significado, sujeitado – mas
precipitar os estratos numa queda suicida ou demente, que os faz recair sobre
nós, mais pesados do que nunca" (DELEUZE & GUATTARl, MP, v. 3, p.
23-4). Conseqüentemente, o CsO pleno só
pode ser abordado por meio de uma experimentação e uma complicação cautelosas
no interior de contextos singulares. Em cada ocasião, deve-se perguntar:
1. Quais são seus
segmentos rígidos, suas máquinas binárias e sobrecodificadoras? Pois mesmo
essas não lhe são dadas prontas, nós não somos simplesmente divididos por
máquinas binárias de classe, sexo ou idade: existem outros que nós
constantemente
103▲
mudamos, inventamos sem nos dar conta. E quais
são os perigos se explodimos esses segmentos de forma demasiadamente rápida? [...]2.
Quais são suas linhas flexíveis, quais são seus fluxos e limiares? Qual é seu
conjunto de desterritorializações relativas e reterritorializações
correlativas? E a distribuição de buracos negros [...] na qual uma besta
espreita ou um microfascismo prospera? 3. Quais são suas linhas de fuga, nas
quais os fluxos são combinados, nas quais os limiares alcançam um ponto de adjacência
e ruptura? São ainda toleráveis ou já ficaram presos em uma máquina de
destruição e autodestruição que pode reconstituir um fascismo molar? (DELEUZE,
1993, p. 253-4).
Em suma, é importante
clarificar que a esquizoanálise não reside em elementos, agregados, órgãos,
sujeitos, relações, fragmentos ou estruturas. Ao contrário, seu lugar é apenas
o dos lineamentos que atravessam
toda a ordem molar, percorrendo os indivíduos assim como os grupos: uma
proliferação e uma invaginação das linhas; o "esquize" da
esquizoanálise é traçado pelo "passeio ao acaso" de um fractal de
dimensão infinita e poros idade imensurável – um fractal de encher o espaço.
Como uma obra-em-andamento, o lugar do sujeito é um lugar de embaraçamento
interminável: "a única unidade sem identidade é do fluxo-esquize, do
corte-fluxo. O elemento figural puro [...] que nos leva até às portas da
esquizofrenia como processo" (DELEUZE &
GUATTARI, 1966, p. 254). É nesse sentido que o (lugar do)
sujeito é ex-apropriado por meio de uma imóvel viagem, de uma viagem sem sair
do lugar fluindo sem interrupção e jorrando sobre a superfície
l04▲
de um CsO pleno. A esquizoanálise e a
desconstrução simplesmente esforçam-se por desestabilizar, descarregar e
curto-circuitar as forças, os desejos e os poderes que se esforçam por
capturar, estabilizar e limitar esses fluxos no interior de uma pletora de
aparatos sociais e organizações molares. É pouco surpreendente, pois, que o
sujeito maquinicamente agregado está fadado a se des-organizar, a se desestratificar,
a se fragmentar e a se despedaçar: "O corpo é a superfície inscrita dos
eventos, traçada pela linguagem e dissolvida pelas idéias, o locus de um eu dissociado, adotando a
ilusão de uma unidade substancial – um volume em desintegração"
(FOUCAULT, 1977, p. 138). É ao seguir essa desintegração e essa
decomposição do organismo humano – com sua carne estriada, com seu envelope de
pele e sua cobertura de rosto – ao longo das linhas de desterritorialização
que somos levados em direção ao CsO pleno. Mas, como vimos, esse Corpo não é um
retorno ou uma regressão. Ao contrário, o Corpo pleno está sempre por chegar; é aquilo que resta quando tudo é
tirado: intensidade zero. É um Devir em estado puro, para além da dupla prisão
e do espiralamento tipo Möebius da universalização e da individuação;
decodificação e sobrecodificação; desterritorialização e re-territorialização.
Em outras palavras, as linhas de fuga fazem com que a produção maquínica de
sujeitos humanos passe da fragmentação paranóica para a fractalização
esquizofrênica: nada a não ser movimento, nada a não ser fluxo. Elas levam os
fluxos ossificados conservados no interior do (lugar do) sujeito para o
contexto Aberto da inteira história-real-do-mundo, estrangulando hierarquias
105▲
arborescentes e instituindo rizomas intrincados
à medida que se movem: complicação,
experimentação, invenção, singularidade, alteridade.
Como a figura
fissípara sem limite por excelência, o fractal é o motivo perfeito para a
esquizoanálise, a desconstrução e o CsO pleno. Entretanto, o desejo por
organização e o poder para impor limites arbitrários à fissiparidade não deveriam ser subestimados. Na verdade, quando
examinamos o abismo fractal, a maioria de nós intuitivamente saca aquilo que
Deleuze e Guattari (MP, v. 3, p. 74) chamam de "a terrível Luneta de
raios", que serve não "para ver, mas para cortar, para
recortar". Sua ação de corte age sobre "os movimentos, as
manifestações súbitas, as infrações, perturbações e rebeliões que se produzem
no abismo" (MP, v. 3, p. 73) a fim de restaurar "a ordem molar por
um instante ameaçada. A luneta para recortar sobrecodifica todas as coisas; trabalha na
carne e no sangue, mas é apenas geometria pura [...]" (MP, v. 3. p. 73).
Além disso, os estratos, segmentos e códigos que ela escava do CsO forçam os
movimentos moleculares a se juntar em agregados molares: uma verdadeira
Geologia da Moral. Você será um ou outro,
ou outro, ou... : "Os estratos eram juízos de
Deus, a estratificação geral era todo o sistema do juízo de Deus (mas a terra,
ou o corpo sem órgãos, não parava de se esquivar ao juízo, de fugir e se
desestratificar, se descodificar, se desterritorializar)", a caminho da
proliferação assubjetiva, assignificante e acategórica do CsO pleno (DELEUZE & GUATTARI, MP, v.1, p. 54).
À medida que a
capacidade de sustentação do (lugar do) sujeito aproxima-se do zero absoluto,
com
106▲
uma hemorragia de fluxos anteriormente
estabilizados em todas as direções, há uma tendência de ambos a se recolher
dos CsOs vazios e a se abster de produzir um CsO pleno. Em vez de se arriscar a
experimentar com linhas de fuga, há uma tentativa geral a revigorar e a
rejuvenescer a ordem molar: alguns temem perder os agregados molares; outros
buscam impor segmentos flexíveis sobre o fluxo molecular; outros exigem que
todo o terreno seja estabilizado por meio da sobrecodificação; enquanto outros
ainda transformam as linhas de fuga em uma paixão pela destruição. Em
particular, a decomposição do (lugar do) sujeito tem feito com que muitos se
apeguem ao rosto do Outro como uma forma de cultivar "um
sujeito-ético-em-processo" (KEARNEY, 1988,
p. 365; CRITCHLEY, 1992). Mas a
produção maquínica da rostidade é precisamente o aparato molar por excelência,
que serve para impor ondas de mesmidade sobre um plano de hecceidades, eventos
e singularidades. "O quanto se é tentado
a se deixar prender aí [ao buraco negro da subjetividade, da consciência e da
memória, do casal e da conjugalidade], a ser embalado aí, a se agarrar a um rosto... [...] Rosto, que horror [...]" (DELEUZE & GUATTARI, MP, v. 3, p. 56, p. 61). Em
contraste com essa ânsia por identificação e reconhecimento molar, a
desconstrução e a esquizo-análise intervêm a fim de desmantelar os aparatos de
captura que constroem e animam o sujeito, o corpo e o rosto, ao
reterritorializar, reestratificar e sobrecodificar os fluxos moleculares. Elas
esfolam os autômatos, os simulacros e as aparições que assombram o (lugar do)
sujeito a fim de afirmar o CsO pleno. Seja lá onde estivermos, nunca poderemos
ir demasiadamente
107▲
longe ao longo das linhas de fuga que vão em
direção à desterritorialização absoluta. Na verdade, o (lugar do) sujeito
fica inundado com essas modalidades de desaparecimento que se Abrem para a
imóvel viagem do Devir-outra. Na verdade, até mesmo o rosto do Outro é, antes
e sobretudo, uma superfície cheia de furos. Entretanto, qual linha de fuga
seguir em qualquer contexto particular de estabilização forçada só pode ser
determinado por meio de um lançamento de dados. Sacode. Chacoalha. Deixa
rolar.
NOTA DO TRADUTOR
1 No original, "mOther".
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110 ▲
A dobra:
psicologia e subjetivação
Miguel
Domenech Francisco Tirado Lucía Gómez
O
MITO DA INTERIORIDADE EM PSICOLOGIA
Há mais de duas
décadas as ciências sociais assistem à morte
do Sujeito. Sob a rubrica "crise do eu", critica-se e rejeita-se a
definição de um sujeito universal, estável, unificado, totalizado e totalizante,
interiorizado e individualizado. Há já mais de vinte anos que o sub-jectum não é o sol em
torno do qual gira nosso pensamento social. Em seu lugar, apareceram novas
imagens. Fala-se de subjetividade distribuída, socialmente construída,
dialógica, descentrada, múltipla, nômade, situada, de subjetividade inscrita
na superfície do corpo, produzida pela linguagem, etc. Nessa mudança, o
psicológico abandona o espaço privado e intransferível das psiques individuais
para alojar-se nas encruzilhadas e nas ruelas que marcam o estar-no-mundo com outros
seres humanos (KVALE, 1992).
113▲
Esta crise do eul
possui, certamente, amplas raízes e uma gestação complicada. Para acompanhar,
de forma breve, essa linha genealógica, observemos por um momento o que diz o
senso comum. De acordo com o senso comum, pretender que o psicológico não é
uma questão individual, mas, ao invés disso, um evento social, atenta
diretamente contra evidências inquestionáveis. Pensar é algo que diz respeito a
nossas cabeças, é algo que produzimos, manipulamos à vontade e interrompemos quando nos apetece. O que persiste é a
imagem de uma experiência privada, intransferível, inquestionável e
irrenunciável; trata-se de um dado que define nossa própria condição humana.
Assim, afirma-se que aquilo que nos diferencia dos animais não é mais do que
nossa capacidade reflexiva, a possibilidade de representarmos a nós mesmos como
entidades próprias, a habilidade de sermos conscientes de nossa mesmidade.
Semelhantes imagens têm raízes em uma longa tradição cultural. Como argumentou
Taylor (1989), a tendência a situar em
um espaço interior tudo aquilo que tem que ver com a alma, a subjetividade, o
mental, a moral ou a virtude remonta a concepções cristãs. Santo Agostinho é o
exemplo mais palpável desse exercício, que adquire sua formulação mais acabada
na obra de Descartes. Na obra desse pai da modernidade, é possível encontrar a
justificação filosófica, more geométrica, para a distinção entre um mundo
"interior" e outro "exterior", em que o primeiro é povoado
por conjuntos e séries de entidades mentais, pensamentos e idéias que, em si
mesmas, são independentes do segundo, espaço relegado para o material, o
inerte e o mecânico.
114▲
Nosso senso comum não
tez mais do que converter-se em caixa de ressonância desse diagrama.
Esse esquema tem
colocado dois problemas aparentemente insolúveis e que têm perseguido a epistemologia
moderna durante dois séculos, continuando a ocupar uma psicologia que não
consegue romper com a herança cartesiana. Por um lado, quanto maior for a
certeza que tenhamos sobre nossa existência mental como mundo interior, mais
problemas teremos para não duvidar da existência da realidade exterior e da
verosimilitude de outras mentes pensantes. O
abismo entre o âmbito interior e o exterior parece alargar-se. Torna-se
impossível de ser salvado. Por outro lado, seguir Descartes até o final nos
coloca na difícil situação de explicar como essas entidades mentais foram
engendradas, produzidas nesse reino secreto e privado que é nossa
interioridade.
Essa concepção do ser
humano adquire imediatamente, na psicologia, a forma do individualismo
metodológico, denominador comum de diversos enfoques teóricos. Segundo essa
perspectiva, a única matéria relevante para o investigador são decisões
privadas tomadas por indivíduos que operam em um exterior mais ou menos hostil
e do qual tentam extrair a má.xima vantagem. Nessa mesma linha, o recurso ao
cérebro como locus específico da
atividade mental não faz mais do que reforçar esse dispositivo metodológico ao
essencializar os processos cognitivos e enfatizar o papel desempenhado pelas
práticas culturais e pelas produções sociais na conformação do pensamento. A
análise do indivíduo como sendo, essencialmente, um processador de
informações, implica, em primeiro lugar, que os
115▲
processos cognitivos convertem-se no centro da
reflexão científica e, em segundo lugar, que tais processos estão localizados
em nosso interior e são capazes, por meio de diversos procedimentos, de serem
examinados e descritos (BRUNER, 1990).
DO SER PSICOLÓGICO AO
SER SOCIAL
Sem abandonar esse
dualismo interior-exterior, refletido em inumeráveis tensões como, por exemplo,
"indivíduo-sociedade" ou "agência-estrutura", diferentes
perspectivas, originadas no interior das ciências sociais, têm insistido na
idéia de que é preciso – para compreender o mental, o subjetivo, a própria
identidade – prestar mais atenção ao que fica fora do espaço interior. Não
poderia ser de outra maneira. Para todas essas perspectivas, a definição de
ser humano em termos de "ser social" antes que de "ser
psicológico" é tanto o ponto de partida de sua reflexão quanto a definição
de sua própria identidade.
De fato, poder-se-ia
dizer que dispomos de uma versão débil e de outra forte para pensar o ser humano
como ser social (BAKHURST & SYPNOWICH,
1995). A versão débil implica aceitar que nossa identidade toma forma a partir
de poderosas influências externas. Noções como as de internalização, educação
ou socialização remetem à idéia de que nosso espaço interior se configura a partir
do efeito que sobre ele exerce o espaço do social ou do cultural, servindo para
definir como a estrutura da sociedade se reflete na estrutura do eul
e gera indivíduos competentes em seus contextos sociais (WIDDICOMBE,
116▲
1998). Nessas versões, a subjetividade
pre-existe às influências posteriores. Ela simplesmente recebe sua
"forma" do exterior. Ela é in-formada a partir de fora. Ao contrário,
na versão forte, questiona-se a própria possibilidade de que pre-exista algum
interior à margem de certos processos constitutivos que teriam sua origem e
localização no exterior, no social:
Assim, o processo de
internalização não é a transferência
de uma atividade externa a um "plano de consciência" interno
pre-existente: é o processo no qual
esse plano se forma. (LEONTIEV, 1981,
citado em BAKHURST & SYPNOWICH,
p. 6)
Essa versão forte
pretende uma dissolução definitiva da dicotomia interior-exterior. A superação
do abismo que existe entre um mundo privado e interior, de um lado, e um mundo
externo e público, de outro, constitui, desde há muitos anos, o cavalo de
batalha essencial dos denominados "construcionismos sociais". Em
todas as suas versões, rejeita-se tanto a possibilidade de uma psique isolada
e alheia aos contextos socioculturais que a produzem quanto de uma identidade
que molda e in-forma sob a ação de um mundo exterior. Aquilo que chamamos
subjetividade não é senão parte do tecido relacional, da trama social nos quais
todo indivíduo está sempre inserido:
Pressupõe-se, em
outras palavras, que aquilo que chamamos entidades mentais pertence à discursividade em que se banha – e da qual
está em parte feito – todo ser social. Quando se rejeita a dicotomia
interior/exterior, a "realidade psicológica"
117▲
apresenta -se sob outras características e se
abrem novas perspectivas para sua investigação. (DOMENECH & IBÀNEZ, 1998,
p. 19)
Assim, atividades
tradicionalmente consideradas como próprias do mundo interior aparecem agora
dotadas de um caráter eminentemente social e cultural: pensar já não é um
processo psicológico mas um processo de argumentação coletivo (BILLIG, 1987); a
memória já não é uma possessão individual mas um bem partilhado, baseado na
interação contínua dos membros de uma comunidade determinada (MIDDLETON &
EDWARDS, 1990). Em suma, o que antes denominávamos mente converte-se em um
dispositivo essencialmente retórica. Desse modo, os construcionismos sociais
enfatizam o papel determinante do lingüístico, do discursivo e do significado
na constituição de nossos mundos mentais:
Em vez de contemplar
o estudo do discurso como um caminho para a vida interior dos indivíduos, seja
essa constituída de processos cognitivos, motivações ou algum outro material
mental, nós vemos as questões psicológicas como construídas e postas em ação
no próprio discurso. (EDWARDS & POTTER, 1992, p. 127)
LIMITES
DO CONSTRUCIONISMO SOCIAL:
O
LOGOCENTRlSMO
Todas essas propostas
compartilham um mesmo e Único centro de gravidade: o "eu" é um
relato que emerge essencialmente a partir das propriedades da linguagem, do
discurso e/ou do significado.
118 ▲
Temos um bom exemplo
disso em Gergen e Gergen (1988, p. 18), uma dupla de intelectuais que se pode
considerar como fundadora do construcionismo social em psicologia:
Não apenas narramos
nossas vidas sob a forma de relato, mas, em um sentido importante, nossas
relações são vividas também em uma forma narrativa. (GERGEN & GERGEN, 1988, p. 18)
A subjetividade
constitui-se, dessa perspectiva, no uso e elaboração de um complexo de
narrativas, discursos, conversações, atos de fala ou significados que a cultura
põe à nossa disposição e que manipulamos
nas realidades interacionais que habitamos. Entretanto, embora essas análises
representem um avanço na denúncia do essencialismo naturalista dominante nas
explicações psicológicas, elas fracassam em sua concepção do lingüística e do
discursivo e, por isso, também na concepção do "social" (DoMENEcH,
1998). A linguagem, nessas análises, não é mais do que uma espécie de "fala",
negociada exclusivamente entre indivíduos localizados em uma situação concreta
e por meio de significados produzidos na interação, também exclusiva, desses
indivíduos. Por um lado, elas apresentam certos elementos que estariam
implicados nessa interação: indivíduos humanos; por outro, apresentam certos
recursos lingüísticas, palavras, relatos, explicações, histórias, atribuições,
com os quais se elaboram mensagens que estabelecem intenções, levam à ação, à
persuasão e agem sobre outras pessoas. Por um lado, temos um canal; por
outro, um problema: o êxito ou fracasso da interação. Como se pode observar,
nada
119▲
de novo: o velho modelo comunicacional. Essas
propostas põem no centro das atividades produtoras de sentido e significado as
relações entre agentes humanos. Assim, o ser humano é definido de modo acrítico
como um agente que se constrói a si mesmo como um "eu", dando à sua
a coerência de uma narrativa, utilizando e pondo em ação recursos lingüísticos.
Como assinala Rose (1996), o
"eu", enquanto virtude ou capacidade de narrar-se de diversas
maneiras, é implicitamente re-invocado como uma exterioridade a esse evento
lingüístico que já está em si mesmo unificado e totalizado. Dessa maneira,
essas abordagens acabam mantendo velhos dualismos (sujeito/objeto, natureza/sociedade... ), embora seu
propósito seja desfazê-los. E apenas aparentemente rompem com a imagem clássica
de Sujeito, porque não conseguem escapar do logocentrismo e da circularidade
que encerra seu modo de entender a conformação da subjetividade.
DELEUZE: SUBJETIVAÇÃO
E DOBRA
Basta compreender, e
sobretudo ver e tocar as montanhas a partir de seus dobramentos para que percam
sua dureza, e para que os milênios voltem a ser o que são, não permanências,
mas tempo em estado puro, e flexibilidades. Nada é mais perturbador que os
movimentos incessantes do que parece imóvel. Leibniz diria: uma dança de
partículas reviradas em dobras. (DELEUZE, 1992, p. 195)
A questão é que é
preciso buscar em outro lugar a crítica mais radical e a proposta mais
alternativa à
120 ▲
imagem convencional da subjetividade. Neste sentido,
o pensamento de Deleuze apresenta-se como um caminho, como uma saída, que nos
permite pensar a subjetividade à margem dos pressupostos aos quais a
psicologia, sob formas as mais diversas, continua presa. A crítica, para
Deleuze, não consiste em justificar mas em procurar outra sensibilidade. Para
isso, cria, "fabrica" conceitos que rompem com as modalidades
dominantes de pensar e representar a subjetividade e que são inseparáveis de
novos perceptos (novas maneiras
de ver e escutar) e de novos afectos (novas
maneiras de sentir). Conceitos e não metáforas, porque a metáfora implica uma
relação com algo que já existe, remete a um significado prévio, enquanto os
conceitos atuam como imagens performativas (BRAIDOTTI,
1995), que não reduzem a
linguagem a lagos, porque mais
do que significar buscam cartografar futuras paragens, "constuir uma
região no plano, acrescentar uma região às existentes, explorar uma nova
região, preencher um vazio" (DELEUZE, 1996,
p. 234). Conceitos como hecceidade, corpo sem órgãos, nômade, agenciamento,
devir, máquina abstrata, espaço liso, rostidade, território, rizoma, dobra,
linhas molares, linhas moleculares, linhas de fuga, que servem para combater a
primazia do verbo ser e, por isso, remetem sempre a circunstâncias: em que
caso? , onde e quando?, como?, e nunca a essências, desenhando uma
subjetividade em movimento e continuamente produzida. Assim, Deleuze, frente a
uma idéia de Sujeito essencializado, dotado de uma identidade unitária,
autônoma, privada, estável, de contornos
121▲
fixos, ajuda-nos a perfilar formas de
subjetividade múltiplas, heterogêneas, de confins fluidos.
Deleuze efetua uma
genealogia da subjetividade, na qual analisa os processos de subjetivação. De
fato, para Deleuze só existem processos e esses processos só podem ser
processos de unificação, de subjetivação, de racionalização. Ele examina a
gênese da subjetividade em um momento e em um nível anterior à individuação,
compreendida como entidades do tipo "substâncias" ou
"sujeitos". Ele tenta, como assinala Foucault,
Pensar intensidades
em vez (e antes) de qualidades e quantidades; profundidades em vez de
comprimentos e larguras; movimentos de individuação em vez de espécies e
gêneros; e mil pequenos sujeitos larvares, mil pequenas palavras dissolvidas,
mil passividades e formigueiros lá onde reinava, ontem, o sujeito soberano.
(FOUCAULT, 1993,p.238)
Ele nos mostra,
assim, um território povoado de singularidades pré-individuais: intensidades,
profundidades, movimentos, sujeitos larvares... A geração de subjetividades
não consiste na demarcação dos limites de um eu, enclausurado e interior, mas
na idéia de que ele é o efeito de uma função ou operação que sempre se produz
na exterioridade desse eu. O sujeito já não é uma unidade-identidade, mas
envoltura, pele, fronteira: sua interioridade transborda em contato com o
exterior.
Deleuze substitui a
lógica do ser pela lógica da conjunção, substitui o "é", que
identifica, pelo "e", que relaciona: a identidade pela
multiplicidade. E o
122 ▲
sujeito seria, portanto, o espaço de conexão ou
de montagem, contínua pre-posição, uma dobra do exterior. A dobra. Essa figura
faz referência a processos, relações de movimento e descanso,
capacidades de afectar e ser afectado, definindo, pois, modos de individuação que
não correspondem a um sujeito e que, por isso, não precisam do recurso a
meta-teorias psicológicas ou lingüísticas. Como assinala Rase, a partir do
próprio campo da psicologia:
o
ser humano não é, aqui, uma
entidade com uma história, mas o alvo de uma multiplicidade de tipos de
trabalho, é mais como uma latitude ou uma longitude na qual diferentes vetores,
de diferentes intensidades, se corram. A "interioridade" que tantos
sentem-se compelidos a diagnosticar não é aquela de um sistema psicológico, mas
a de uma superfície descontínua, de uma espécie de dobramento, para dentro, da
exterioridade. (ROSE, 1996, p. 37; cf. ROSE, no prelo)
Assim, a partir das
propostas deleuzianas, Rose (1996, 1999) afirma
que a imagem de um "eu" 1 dialógico defendida pelo
construcionismo social é insatisfatória. Ela oferece apenas uma análise parcial
de nossa realidade social. Do ponto de vista de Rose, é preciso resistir à tirania do dispositivo linguagem-discurso-significado
na hora de pensar a subjetividade. E nesse sentido, a dobra serve para nos
deslocar, das anatomias mentais imaginárias e lingüísticas fabricadas por
nossas ciências sociais, para um universo de fluxos ou linhas de força geradas
nas conexões entre órgãos e objetos ou artefatos, entre seres humanos e
espaços, entre sujeitos e
123 ▲
escolas ou oficinas, entre instituições. A
subjetivação compreendida como dobra é um processo de agrupação, de agregação,
de composição, de disposição ou agenciamento ou arranjamento, de concreção sempre
relativa do heterogêneo: de corpos, vocabulários, inscrições, práticas,
juízos, técnicas, objetos... que nos acompanham e determinam. Na subjetivação,
prevalece – relativamente a qualquer objeto total e acabado, evidente,
manifesto – a parte molecular, fragmentada, incerta, rompendo, assim, com as velhas
dicotomias articuladoras das ciências sociais:
As dobras incorporam
sem totalizar, internalizam sem unificar, juntam-se de maneira descontínua na
forma de plissês, formando superfícies, espaços, fluxos e relações. (ROSE, 1996, p. 37; cf. ROSE, no prelo)
LINGUAGEM,
MULTIPLICIDADE E AGENCIAMENTO
Por isso, Rose propõe
que o pensamento social se volte não para o signo ou a comunicação, mas para a
analítica dos dispositivos nos quais esse emerge como tal, com certo sentido e
valor interacional. Nessa analítica, a linguagem seria simplesmente outro
elemento entre os muitos que compõem os diferentes agenciamentos ou
arranjamentos em que nos vemos implicados.
A subjetivação não se
refere tanto à linguagem e às suas propriedades internas quanto a um agenciamento
ou arranjamento de enunciação. As relações
entre signos sempre estão agenciadas, conectadas,
124 ▲
reunidas, em outras relações. E nossas práticas
não habitam ou não se localizam em espaços de significado e negociação entre
indivíduos homogêneos, amorfos e assepticamente funcionais. Elas estão sempre
localizadas em estabelecimentos e procedimentos particulares. Se aceitamos que
a linguagem está organizada em regimes de significação, que, por meio desses
regimes, ela está distribuída em espaços, tempos, zonas, estratos e forças,
então a construção da subjetividade adquire outra aparência. Perguntas tais
como, "quem fala?", "segundo que critério de verdade?",
"a partir de quais lugares e espaços?", "em que relações?",
"agindo de que maneira?", "apoiando-se em que hábitos e
rotinas?", "autorizado de que maneira?", "sob que formas de
persuasão, sanção, mentira e crueldade?", passam ao primeiro plano e
delimitam a atividade do pensamento social. Não se trata de conhecer o significado
de uma palavra, de uma frase, de um relato ou de uma narração; nem se trata de
saber o que conota ou o que denota. O problema é, antes, com "quê"
se conecta, em "quê" multiplicidades se implica, com "quê"
outras multiplicidades se junta. Para a análise da produção de subjetividades,
não precisamos de semânticas ocultas, mas do esclarecimento de regimes de
produção de conexões superficiais. Trata-se de ver o que faz a linguagem, com
que ela conecta e para quê. Seus efeitos são apenas uma parte dessa trama. A
linguagem não deve ser tomada como matéria prima e primária na constituição da
subjetividade, mas, antes, como parte de um complexo maior. O lingüístico e o
discursivo certamente estabilizam relações e geram relações, mas não são, em
125 ▲
essência, questões
interacionais e interpessoais. O que torna possível qualquer relação ou intercâmbio é um regime de
linguagem, incorporado em práticas que capturam os seres humanos sob diversas
formas, inscrevem, organizam, formam a: produção dessa mesma linguagem.
ONDE ESTÃO OS
OBJETOS?
É
certo que as análises baseadas no discurso e no lingüístico supõem uma proposta
que evita a referência a um lugar interior, mas, ao exteriorizar a subjetividade,
elas nos apresentam um exterior povoado exclusivamente por seres humanos e suas relações, que são as entidades que têm o
privilégio e o status de explanans, enquanto que outras entidades, por exemplo, os
objetos tecnológicos, são sempre excluídos e tratados como explanandum. Desse modo, o essencialismo naturalista é substituído
por um essencialismo social que não se problematiza e continua justificando a
dicotomia natureza/sociedade.
Para
romper com essa dinâmica torna-se necessário praticam uma sociologia simétrica
(DOMENECH & TIRADO, 1998),
na qual se reconheça que humanos e
não-humanos formam parte do mesmo coletivo. Esta é, sem dúvida, a principal
contribuição da Teoria do Ator-Rede (CALLON, 1986; LATOUR, 1987; LAW,
1994), nascida, no interior dos estudos da ciência, a partir das formulações de
Michel Serres. Apesar de constituir uma teorização extremamente complexa, se
existe algo que possa resumir de alguma maneira a contribuição da Teoria
126 ▲
do Ator-Rede é precisamente
sua tentativa de uma redefinição do que significa reflexão social. Em lugar de
continuar ampliando a fratura entre O
humano e o não-humano, o social e o natural,
a Teoria do Ator-Rede recupera o papel do tecnológico, dos objetos, do
natural, nas explicações sobre questões que se vêm formulando como alheias a
essa classe de elementos: as relações de poder, as dinâmicas institucionais ou
a constituição de subjetividades, para apresentar apenas alguns exemplos,
aparecem sob uma nova luz ao deixar de considerá-los como processos que têm a
ver, Única e exclusivamente, com humanos.
N
essa linha,
Serres (1994) ao falar, precisamente, da
dobra, assinala a importância dos objetos, daquilo que não é meramente corporal
e/ou humano. A dobra permite o mínimo espaço que a vida necessita para ter
lugar: "só habito dobras, sou apenas dobras" (SERRES, 1994, p. 47). Para Serres não existe vida
humana sem diferença; precisamos de uma dobra para onde nos retirarmos, mesmo
que seja apenas por um pequeno lapso de tempo. Confundidos permanentemente na
coletividade de seres considerados como animais verdadeiramente políticos,
perderíamos nossa condição humana. Precisamos de algo que nos permita
diferenciar-nos, uma membrana que nos dê um limite. E o que permite que
apareça a mínima diferença é o caráter objetual, um pertencimento, uma
propriedade. Ao defender essa perspectiva, Serres traz à baila a vida de vagabundos
consumados, pobres consumados, carentes de quase tudo. E no "quase" é
que está a questão. Diógenes, São Francisco, Jesus Cristo,
127▲
caracterizados por sua renúncia dos bens
materiais não podem evitar possuir alguma propriedade, algo que não tenha nada
a ver com os demais. O tonel é a propriedade de Diógenes – tomando-se propriedade
em sua dupla acepção: aquela coisa que é possuída e atributo ou qualidade
essencial de uma pessoa, como a porciúncula, no caso de São Francisco, ou a
túnica, no de Jesus Cristo.
Assim, seguindo
Serres, podemos dizer que não existe vida humana sem ao menos um objeto. A
dobra mínima aparece na relação com um objeto. A subjetividade, nesse sentido,
é sempre um dispositivo que exige ao menos a relação com um objeto. Não se
pode falar de processos de subjetivação sem referir-se a dobras, mas não se
pode falar de dobras sem referir-se ao objetual. Essa perspectiva, por outro
lado, está coerente com a cosmovisão serresiana, que implica, em uma mesma
rede, o mundo, os aparatos e nós próprios:
Podemos
dizer que essa harmonia é tão nova sob o Sol? Quando indicava a hora do
equinócio e a posição, em latitude, do lugar, o eixo do quadrante solar
escrevia – em nossos tempos, sobre a terra, o solo – alguns resultados que nós
atribuíamos a nós próprios: essa inteligência sutil, temos que chamá-la de
própria, de interior a nossos neurônios e vinculante de uma sociedade de
cérebros, ou remetê-la às ferramentas e, portanto, artificial; ou referi-la ao
mundo, que traça, automaticamente, sobre si, a longitude sombreada de sua
própria luz? Qual das três – cultura, técnica ou natureza – goza dessa função?
Escolhe, se você se atreve! (SERRES, 1994, p. 125)
128 ▲
O MOVIMENTO DA DOBRA:
POLÍTICA E POÉTICA DAQUILO QUE SOMOS
Pensar os processos
de subjetivação como dobra implica, como vimos, despojar o Sujeito de toda
identidade (essencialista) e de toda interioridade (absoluta) e, ao mesmo
tempo, reconhecer a possibilidade de transformação e de criação que eles deixam
aberta. Em outras palavras, a dobra nos permite pensar os processos pelos quais
o ser humano transborda e vai para além de sua pele, sem recorrer à imagem de
um Sujeito autônomo, independente, cerrado, agente... a não ser, precisamente,
com base em seu caráter aberto, múltiplo, inacabado, cambiante... Agora, o
problema já não seria tanto perguntar-se sobre que tipo de sujeito é
produzido, mas que pode fazer o ser humano, que capacidade de afectar e de ser
afectado tem em um dispositivo concreto.
Essa capacidade não é tampouco uma propriedade da carne, do corpo, da psique,
da mente ou da alma. É, simplesmente, algo variável, produto ou propriedade de
uma cadeia de conexões entre humanos, artefatos técnicos, dispositivos de ação
e pensamento. É nessa direção que vão
as palavras de Serres:
Quem
somos? A intersecção, flutuante em função da duração, dessa variedade, numerosa
e muito singular, de gêneros diferentes. Não deixamos de coser e tecer nossa
própria capa de Arlequim, tão matizada ou tão disparatadamente colorida quanto
nosso mapa genérico. Não tem sentido, pois, defender com unhas e dentes um de
nossos pertencimentos; o que se deve, ao contrário, é multiplicá-los, para
enriquecer a flexibilidade. Façamos
129▲
farfalhar ao vento ou dançar como chama a bandeira
multicolor do mapa-documento de identidade (SERRES, 1994, p. 200).
Neste ponto, é
necessário ressaltar que precisamente o conceito de dobra é utilizado por
Deleuze para explicar a possibilidade – lançada por Foucault em seus dois
últimos livros – de um si mesmo constituído como núcleo de resistência frente
a poderes e saberes estabelecidos. Foucault, assinala Deleuze (1991), depois de haver analisado as
formações de saber e dos dispositivos de poder, isto é, os estados mistos de
poder-saber que nos constituem, vive um impasse, em que se coloca a
possibilidade de ir além do poder-saber, de passar o limite prescrito pelo nexo
poder-saber, de "passar para o outro lado". Assim, os volumes II e
III da História da
sexualidade assinalam um pomo de inflexão, de transição, na obra
foucaultiana, porque, sem renunciar à sua
concepção do sujeito como forma constituída historicamente e não como norma
constituinte, ele concebe os processos de subjetivação como ensaio, como
processo ético e estético que busca produzir modos de existência inéditos. E é
aqui que Deleuze, leitor de Foucault, recria o conceito de dobra para explicar
os processos de subjetivação como modificação dos limites que nos sujeitam,
para nos reconstruir com outras experiências, com outra delimitação.
Modificação dos
limites que nos sujeitam, que nos convertem em sujeitos, possível na medida em
que a dobra nos mostra um cenário diferente àquele ao qual a oposição
interior/exterior nos remetia.
130▲
o movimento da dobra tem lugar entre um lado de
dentro e um lado de fora que não equivalem a um interior e a um exterior,
marcando um território e relações completamente distintas. Assim, na separação
interior/exterior, em sua versão mais cartesiana, mantêm-se as coerções
identitárias: sujeitos e objetos aparecem enquadrados em gêneros e espécies, o
exterior sólido e extenso distingue-se de um interior inexpugnável e isolado,
mas em todos os casos e em todas as versões, independentemente de quem ou quê
esteja em um ou outro lado, essa separação remete-nos sempre ao já existente,
ao já conhecido, reconduzindo-nos à forma do Mesmo. Trata-se, por isso, não
apenas de uma dicotomia estática, mas também estéril:
o
que ocorre quando falta outrem na
estrutura do mundo? Só reina a brutal oposição do sol e da terra, de \.Una luz
insustentável e de um abismo obscuro: "a lei sumária de tudo ou
nada". O sabido e o não-sabido, o percebido e o não-percebido enfrentam-se
em termos absolutos, um combate sem nuanças [...]. Mundo cru e negro, sem
potencialidades nem virtualidades: é a
categoria do possível que se desmoronou. (DELEUZE, 1998, p. 315-6)
Entretanto, a dobra
supõe um movimento que incorpora essa categoria do possível, precisamente
porque a dobra permite habitar o limite que traça as bordas do que somos,
permite nos situar em uma linha instável e arriscada, a linha do lado de fora,
na qual os contornos do familiar (imaginável e representável) diluem-se em
contato com o desconhecido (intraduzível, irrepresentável) e, nas palavras de
Deleuze:
131 ▲
é preciso
conseguir dobrar a linha, para constituir uma zona vivível onde seja possível
alojar-se, enfrentar, apoiar-se, respirar – em suma, pensar. (DELEUZE, 1992,
p. 138)
Enfrentar
a linha do lado de fora, membrana, borda, essa zona estranhamente intermediária,
limite e, ao mesmo tempo, desvanecimento de poderes e saberes (DELEUZE, 1996), que definem o que fazemos,
pensamos e dizemos, e ser capazes de dobrá-la, para construir espaços, dobras,
que permitam alargar o que somos, dar-nos um novo corpo com outro umbral de
sensibilidade, de modo análogo ao que ocorre no movimento do aprender quando
se o compreende como possibilidade de tornar habitável a fronteira onde se
encontram e se transformam o representável e o que ainda não se conhece (JÓDAR,
2000). Por isso, entre o lado de fora e o lado de dentro não há separação, mas
confusão, inversão, intercâmbio. É
o lado de fora o que abre um si mesmo, um
lado de dentro que não é mais o dobramento, o dobrado do lado de fora, dobrado
que se produz quando uma força afeta a si mesma em vez de afetar a outras
forças, isto é, por meio da relação de si consigo mesmo:
É como uma glândula pineal, que não pára de se
reconstituir variando sua direção, traçando um espaço do lado de dentro, mas
coextensivo a toda a linha do lado de fora. O mais longínquo tornase interno,
por uma conversão ao mais próximo: a vida nas dobras. (DELEUZE, 1991,
p. 130)
Dessa
maneira, o Outro instala-se e atravessa a subjetividade, impedindo uma
identidade fechada,
132 ▲
privada, autêntica e pura.
Tendo em conta que o Outro não faz referência a uma identidade em confronto
com outra; mas que é o irredutível a qualquer identificação, o Outro, pois,
como diferença, quer dizer, como aquilo que faz diferir, que produz novidade. A dobra, como
a arte barroca, excita, desestabiliza a ordem do sistema e o submete a turbulências
e flutuações (CALABRESE, 1992).
A dobra, compreendida agora como criação de
possibilidades de existência que rejeitam a ordem de identificação existente,
adquire imediatamente uma dimensão política. O conceito de dobra constitui uma
figuração ou imagem da subjetividade necessária, como assinala Foucault (1982), para
combater o tipo de individualidade que se nos impõe e para pensar( -nos) de outra
maneira. Nesse sentido, se a dobra só pode avançar variando, bifurcando-se e
metamorfoseando-se, o problema não é nunca como acabar a dobra, mas como
continuá-la. É necessário dobrar,
desdobrar, redobrar: o maneirismo substitui o essencialismo (DELEUZE, 1989). Dobrar,
desdobrar, redobrar, não apenas porque os processos de subjetivação são
continuamente penetrados pelo saber e recuperados pelo poder, mas porque as
próprias subjetivações – se estão assentadas dentro das estruturas fixas e da
segurança agradável da identidade – podem converter-se em um obstáculo que
impede cruzar a multiplicidade, que impede a prolongação de suas linhas, a
produção de novidade (DELEUZE, 1996, p. 232). Dessa maneira, a dobra nos permite entender a crise
que afeta diversos movimentos, desde o feminismo até certos nacionalismos, que
enfrentam os limites, as
133▲
contradições, os perigos, de fazer política com
a identidade, isto é, de reivindicar identidades modernas de caráter
essencialista, identidades que devem ser recuperadas, reencontradas,
desveladas... e que quando o são acabam convertendo-se em lei, princípio e
código, funcionando como mecanismos de constrição e exclusão (GÓMEZ & BUENO, 2000). E não apenas isso: entender a subjetivação como
dobra inaugura outra política, uma política que renuncia ao esquema
opressão/libertação/identidade e que busca criar novas formas de experimentar e
de sentir, afirmando a diferença, a variação, a metamorfose, como formas de
resistência a duas formas atuais de sujeição: uma, que consiste em individuar-nos
de acordo com as exigências do poder; a outra, que nos vincula, nos ata a uma
identidade sabida e conhecida e à qual
devemos responder:
Se é verdade que o
poder investe cada vez mais nossa vida cotidiana, nossa interioridade e individualidade,
se ele se faz individualizante, se é verdade que o próprio saber é cada vez
mais individualizado, formando hermenêuticas e codificações do sujeito
desejante, o que é que sobra para a
nossa subjetividade? Nunca
"sobra" nada para o sujeito, pois, a cada vez) ele está por se fazer,
como um foco de resistência, segundo a orientação das dobras que subjetivam o
saber e recurvam o poder. (DELEUZE,
1991, p. 112-3; ênfase nossa)
134▲
NOTA
1. Self, no
original (N. do T.).
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136 ▲
Inventando
nossos eus
Nikalas
Rase
A idéia de
"eu"l entrou em uma crise que pode muito bem ser
irreversível. Os teóricos sociais têm escrito inúmeros obituários da imagem de
ser humano que animou nossas filosofias e nossas éticas por tanto tempo: o
sujeito universal, estável, unificado, totalizado, individualizado,
interiorizado. Para algumas análises, particularmente aquelas inspiradas na
psicanálise, essa imagem sempre foi "imaginária": os humanos nunca
existiram, nunca puderam existir, nessa forma coerente e unificada – a antologia
humana é necessariamente a antologia de uma criatura despedaçada no seu próprio
núcleo. Para outros, essa "morte do sujeito" é, ela própria, um
evento histórico real: o indivíduo ao qual essa imagem do sujeito correspondia
surgiu apenas recentemente, em uma zona limitada de tempo-espaço, tendo sido,
agora, varrido pela mudança cultural. No lugar do eu, proliferam novas imagens
de subjetividade: como socialmente construída; como dialógica; como inscrita
na superfície do corpo;
139 ▲
como espacializada, descentrada, múltipla, nômade;
como o resultado de práticas episódicas de autoexposição, em locais e épocas
particulares.
Deve-se assinalar,
entretanto, que no mesmo momento em que essa imagem do ser humano é declarada passé pelos teóricos sociais, certas
práticas regulatórias buscam governar os indivíduos de uma maneira que está,
mais do que nunca, ligada àquelas características que o definem como um
"eu". Da mesma forma, as idéias de identidade e seus cognatos têm se
colocado no centro de muitas das práticas nas quais os seres humanos se
envolvem. Na vida política, no trabalho, nos arranjos domésticos e conjugais,
no consumo, no mercado, na publicidade, na televisão e no cinema, no complexo
jurídico e nas práticas da polícia, nos aparatos da medicina e da saúde, os
seres humanos são interpelados, representados e influenciados como se fossem eus de um tipo particular:
imbuídos de uma subjetividade individualizada, motivados por ansiedades e
aspirações a respeito de sua auto-realização, comprometidos a encontrar suas
verdadeiras identidades e a maximizar a autêntica expressão dessas identidades
em seus estilos de vida. As imagens de liberdade e autonomia que inspiram
nosso pensamento político operam, da mesma forma, em termos de uma imagem do
ser humano que o vê como o foco psicológico unificado de sua biografia, como o locus de direitos e reivindicações
legítimas, como um ator que busca "empresariar" sua vida e seu eu por
meio de atos de escolha. A julgar pela popularidade das problemáticas do psi
na mídia, pelas demandas por toda espécie de terapia e pela enorme quantidade
de todo
140 ▲
tipo de conselheiros, parece que os seres
humanos, ao menos em certos locais e entre certos setores, acabaram por se
reconhecer nessas imagens e nesses pressupostos e por se relacionar consigo
mesmos e com suas vidas em termos análogos – isto é, nos termos da problemática
do "eu". A dispersão conceitual do "eu" parece caminhar em
paralelo com sua intensificação "governamental".
Teremos nós, então,
apesar dos argumentos dos filósofos e teóricos críticos, nos tornado
"sujeitos psicológicos"? É hora de abordar a questão da
"subjetividade" mais diretamente. Não em termos dos efeitos da
"cultura" sobre a "pessoa" ou em termos de uma "teoria
do sujeito", mas buscando caracterizar, por assim dizer, o modo de ação
das diversas tecnologias psi de subjetivação. Isso nos obriga a um desvio por
alguns textos contemporâneos sobre o "problema do sujeito", antes de
retornar, em conclusão, a uma análise do tipo de criatura que nós nos
tornamos.
VOCÊ É MAIS PLURAL DO
QUE PENSA
Gilles Deleuze e
Félix Guattari foram, provavelmente, os autores que formularam a alternativa
mais radical à imagem convencional da subjetividade como coerente, durável e
individualizada:
"Você é
longitude e latitude, um conjunto de velocidades e lentidões entre partículas
não formadas, um conjunto de afectos não subjetivados. Você tem a individuação
de um dia, de uma estação, de um ano, de uma vida (independentemente da
duração); de um clima, de um vento, de uma neblina, de um enxame, de uma
matilha (independentemente da
141 ▲
regularidade). Ou pelo menos você pode tê-la,
pode consegui-la" (MP4, p. 49).3 Você pode tê-la – para Deleuze
e Guattari, os humanos, ao menos ao longo de um determinado plano de
existência, são mais múltiplos, mais transientes e mais não-subjetivados do
que somos levados a acreditar. Além disso, podemos agir sobre nós mesmos para
habitar essas formas não-subjetivadas de existência. Eles chamam essas formas
não-subjetivadas de "hecceidades" – modos de individuação que não
são os de uma substância, de uma pessoa ou de um sujeito, mas os de uma nuvem,
de um inverno, de uma hora, de uma data – "relações de movimento e de
repouso entre moléculas ou partículas, poder de afetar e ser afetado"
(MP4, p. 47). Entretanto, em oposição a essa dimensão ou a esse "plano de
consistência" – que não deve ser pensado como uma estrutura oculta, mas
como um plano "imanente", formado apenas da distribuição e da relação
entre seus efeitos – está um outro plano de organização, estratificação,
territorialização.
De modo que o plano de
organização não pára de trabalhar sobre o plano de consistência, tentando
sempre tapar as linhas de fuga, parar ou interromper os movimentos de
desterritorialização, lastreá-los, reestratificá-los, reconstituir formas e
sujeitos em
profundidade. Inversamente , o plano de consistência não pára
de se extrair do plano de organização, de levar partículas a fugirem para fora
dos estratos, de em baralhar as formas a golpe de velocidade ou lentidão, de
quebrar as funções à força de
agenciamentos, de microagenciamentos. (MP4, p. 60).
142▲
Se a experiência e a
relação que temos com nós mesmos não é de movimentos, fluxos, decomposições e
recomposições é por causa da localização dos humanos nesse outro plano, esse
plano de organização que tem a ver com o desenvolvimento de formas e com a
formação de sujeitos, no interior de agenciamentos,3 cujos vetores,
forças e interconexões subjetivam o ser humano, ao nos reunir – em um
agenciamento – com partes, forças, movimentos, afectos de outros humanos,
animais, objetos, espaços e lugares. É nesses
agenciamentos que são produzidos os efeitos de sujeito, efeitos do fato de
sermos-reunidos-em-um-agenciamento. A subjetivação é, assim, o nome que se pode
dar aos efeitos da composição e da recomposição de forças, práticas e relações
que tentam transformar – ou operam para transformar – o ser humano em variadas
formas de sujeito, em seres capazes de tomar a si próprios como os sujeitos
de suas próprias práticas e das práticas de outros sobre eles.
Existem, sem dúvida,
muitas dificuldades com essas hipóteses, as quais eu retirei de seu contexto
para utilizá-las em minha própria teorização.4 Estou menos
preocupado, de qualquer forma, em ser "fiel a Deleuze e Guattari" – o
que seria uma aspiração curiosa – do que em usar o que eles escreveram como
uma plataforma de lançamento para minha própria questão: como os humanos são
subjetivados, em quais agenciamentos, e como podemos pensar as práticas psi
como um elemento operativo no seu interior. Aqueles que utilizam uma "teoria
do sujeito" – cujas condições mesmas de possibilidade se situam no
interior de um certo regime histórico
143 ▲
de subjetivação – para explicar esse regime de
subjetivação encontram-se em uma situação contraditória. Essas teorias da
subjetividade são desenvolvidas para explicar eventos que aquelas próprias
teorias ajudaram a produzir, eventos que elas plantaram ao longo de nossa
existência, localizando-os em uma interioridade que elas próprias ajudaram a
cavar. Em contraste com essa perspectiva, proporei, na discussão que se segue
uma análise da subjetivação que não utiliza uma metapsicologia para explicar como,
em um momento histórico e cultural particular, nos tornamos o que somos.
O eu não deveria ser
investigado como um espaço contido de individualidade humana, limitado pelo
envelope da pele, que foi precisamente a forma como, historicamente, ele acabou
por conceber sua relação consigo mesmo. "Por que nossos corpos devem
terminar na pele? Do século XVII até agora, as máquinas podiam ser animadas – era
possível atribuir-lhes almas· fantasmas para fazê-las falar ou movimentar-se
ou para explicar seu desenvolvimento ordenado e suas capacidades mentais. [...]
Essas relações máquina/organismo são obsoletas, desnecessárias" (HARAWAY, 2000, p. 101). De fato, a própria
idéia, a própria possibilidade, de uma teoria sobre um corpo separado e
envelopado, habitado e animado por sua própria alma – "o" sujeito,
"o" eu, "a" pessoa – é parte daquilo que tem que ser explicado,
constituindo justamente o próprio horizonte de pensamento que esperamos
ultrapassar. Se os seres humanos acabaram por se conceber como sujeitos, com
um desejo de ser, com uma predisposição ao ser, isso não surge, como alguns
sugerem, de
144▲
algum desejo ontológico, sendo, em vez disso, a
resultante de uma certa história e de suas invenções (cf. BRAIDOTTI, 1994b, p. 160). Escrever no
espírito de Deleuze significa formular nossas questões em termos daquilo que
os humanos podem fazer e não daquilo que eles são. Nossas investigações deveriam
buscar as linhas de formação e de funcionamento de uma gama de "práticas
de subjetivação" historicamente contingentes, nas quais os humanos, ao se
relacionarem consigo mesmos sob formas particulares, dotam-se de determinadas
capacidades, tais como: compreender a si mesmos; falar a si mesmos; colocar a
si mesmos em ação; julgar a si mesmos. Essa "aquisição" de
capacidades dá-se em conseqüência das formas pelas quais Suas forças, energias,
propriedades e ontologias são constituídas e moldadas ao serem utilizadas,
inscritas e talhadas por agenciamentos diversos e ao serem conectadas a
agenciamentos diversos.
Dessa perspectiva, a
subjetividade não deve, certamente, ser vista como um dado primordial e nem
mesmo como uma capacidade latente de um certo tipo de criatura. Ela tampouco é
algo que deve ser explicado pela "socialização", pela interação
entre, de um lado, um animal humano biologicamente equipado com sentidos,
instintos, necessidades e, de outro, um ambiente
externo, físico, interpessoal, social, no qual um mundo psicológico interior é
produzido pelos efeitos da cultura sobre a natureza. Ao contrário, sugiro que
todos os efeitos da interioridade psicológica, juntamente com uma gama inteira
de outras capacidades e relações, são constituídos por meio da ligação dos
humanos a outros objetos e
145 ▲
práticas, multiplicidades e forças. São essas
variadas relações e ligações que produzem o sujeito como um agenciamento; elas
próprias fazem emergir todos os fenômenos por meio dos quais, em seus próprios
tempos, os seres humanos se relacionam consigo próprios em termos de um
interior psicológico: como eus desejantes, como eus sexuados, como eus
trabalhadores, como eus pensantes, como eus intencionais – como eus capazes de
agir como sujeitos (ver ROSE, 1995a, 1995b; cf. GROZ, 1994, p.1l6). Uma forma melhor de ver os sujeitos é como
"agenciamentos" que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à
medida que expandem suas conexões: eles não "são" nada mais e nada
menos que as cambiantes conexões com as quais eles são associados (MP1, p.
16-37). Sugiro também que a multiplicidade de linhas que tem reunido, em uma
montagem, os seres humanos a diferentes relações no século XX – os
"rizomas" que têm conectado, apreendido, diversificado, expandido,
divergido, formado pontos de entrada, pontos de separação e saída para os
humanos – deve algo importante a esses conceitos, ações, autoridades,
estratificações e ligações para os quais eu utilizei o termo psi.
A psicologia, como um
corpo de discursos e práticas profissionais, como uma gama de técnicas e
sistemas de julgamento e como um componente de ética, tem uma importância
particular em relação aos agenciamentos contemporâneos de subjetivação. As disciplinas psi compreendem mais que uma
forma historicamente contingente de representar a realidade subjetiva. As
disciplinas psi, no sentido que lhes dou aqui, têm feito parte, de forma
constitutiva,
146 ▲
das reflexões críticas sobre a problemática do
governo das pessoas de acordo com, por um lado, sua natureza e verdade e, por
outro, com as exigências da ordem social, da harmonia, da tranqüilidade e do
bem-estar. Os saberes e as autoridades psi têm gerado técnicas para moldar e
reformar os eus, as quais têm sido reunidas – em um agenciamento com os
aparatos dos exércitos, das prisões, das salas de aula, dos quartos de dormir,
das clínicas... Eles estão presos a aspirações sociopolíticas, a sonhos, a esperanças
e a medos, relativamente a questões tais como a qualidade da população, a
prevenção da criminalidade, a maximização do ajustamento, a promoção da
autodependência e da capacidade de empreendimento. Eles têm sido corporificados
em uma proliferação de programas, intervenções sociais e projetos administrativos.
Dessa forma, as disciplinas psi estabeleceram uma variedade de
"racionalidades práticas", envolvendo-se na multiplicação de novas
tecnologias e em sua proliferação ao longo de toda a textura da vida cotidiana:
normas e dispositivos de acordo com os quais as capacidades e a conduta dos
humanos têm se tornado inteligíveis e julgáveis. Essas racionalidades práticas
são regimes de pensamento, por meio dos quais as pessoas podem dar importância
a aspectos de si próprias e à sua experiência, e regimes de prática, por meio
dos quais os humanos podem fazer de si próprios seres "éticos" e
dotados de "agência", definidos de modos particulares, como pais,
professores, homens, mulheres, amantes, chefes, e por meio de sua associação
com vários dispositivos, técnicas, pessoas e objetos8
147▲
NARRANDO O EU
Comecemos
com a linguagem. Marcel Mauss, em seu famoso ensaio sobre a história da noção
ou concepção de eu, argumentava que essa categoria havia surgido apenas
recentemente, ressaltando o associado culto do eu e o respeito pelo eu na lei e
na moralidade. Ele advertia, entretanto, que não ia discutir a questão da
linguagem. Ele acreditava que não havia nenhuma tribo ou linguagem na qual a
palavra "eu" não existisse, na qual ela claramente não representasse
algo, e que a onipresença do eu se expressa também na linguagem, o que é
visível na abundância de sufixos posicionais que dizem respeito às relações no
tempo e no espaço entre o sujeito falante e aquilo sobre o qual ele fala (MAUSS,
1979b, p. 61). Concedia-se, aqui, à própria linguagem, efeitos subjetivantes,
mesmo que os sujeitos assim formados nem sempre refletissem sobre si mesmos
como sujeitos no sentido que nossa cultura dá a esse termo. Um argumento
diferente, mas relacionado, com respeito às propriedades subjetivantes da
linguagem, foi apresentado por Émile Benveniste, o qual colocava uma grande
ênfase na capacidade de criação de sujeito que têm os pronomes pessoais. Para
Benveniste (1971), o eu, como sujeito de enunciação, forma um locus de subjetivação, criando uma "posição de
sujeito", um lugar no interior do qual um sujeito pode surgir. É através
da linguagem, argumentava ele, que os humanos se constituem a si próprios como
sujeitos, porque é apenas a linguagem que pode estabelecer a capacidade de a
pessoa se colocar como um sujeito, "como
148 ▲
a unidade psíquica que
transcende a totalidade das experiências reais que ela reúne, produzindo a permanência
da consciência". A subjetividade "é apenas a emergência, no ser, de
uma propriedade fundamental da linguagem" (ibidem, p. 224). A linguagem tanto
torna possível que cada falante se estabeleça a si mesmo como um sujeito, ao se referir a si próprio como
"eu" em seu discurso, quanto é tornada possível por esse mesmo fato.
As formas pronominais são um conjunto de signos "vazios", sem
referência a qualquer realidade, que se torna "plena" quando o
falante introduz a si próprio em uma instância de discurso. Entretanto,
precisamente por causa disso, o lugar do sujeito é um lugar que tem que ser
constantemente reaberto, pois não existe qualquer sujeito por detrás do "eu" que é
posicionado e capacitado para se identificar a si mesmo naquele espaço
discursivo: o sujeito tem que ser reconstituído em cada momento discursivo de
enunciação (cf.
COWARD & ELLIs, 1977, p. 133).
Para
o presente objetivo, entretanto, essa ênfase nas propriedades subjetivantes da
linguagem concebida como um sistema gramatical, como uma relação entre
pronomes colocada em jogo em instâncias de discurso, é insuficiente. A
subjetivação nunca pode ser uma operação puramente lingüística. Devemos
concordar, aqui, com Deleuze e Guattari que a subjetivação nunca é um processo
puramente gramatical; ela surge de um "regime de signos e não de uma
condição interna à linguagem" e esse regime de signos está sempre preso a
um agenciamento ou a uma organização de poder (MP2, p. 85-6). A subjetivação,
dessa perspectiva, deve refe-
149▲
rir-se, antes de tudo, não
à linguagem e às suas propriedades internas, mas àquilo que Deleuze e Guattari
chamam, seguindo Foucault, de um "agenciamento de enunciação". Em A arqueologia do
saber, Foucault propôs o termo "modalidades enunciativas" para conceptualizar
as formas sob as quais a linguagem aparece em espaços e épocas particulares,
formas que são irredutíveis às categorias lingüísticas (FOUCAULT, 1986a). Quem
pode falar? De qual lugar fala? Que relações estão em jogo entre, de um lado,
a pessoa que está falando e o objeto do qual ela fala e, de outro, aqueles que
são os sujeitos de sua fala? Pode-se pensar, aqui, no regime que, em qualquer
espaço ou época particular, governa a enunciação de um enunciado diagnóstico na
medicina, uma explicação científica em biologia, um enunciado interpretativo
em psicanálise ou uma expressão de paixão em relações eróticas. Essas enunciações
não são colocadas em discurso por meio de "uma função unificante de um sujeito", nem tampouco
produzem esse sujeito como uma conseqüência de seus efeitos: trata-se, aqui,
de uma questão dos "diversos status, dos diversos lugares, das diversas posições" que devem ser ocupadas
em regimes particulares para que algo se torne dizível, audível, operável: o
médico, o cientista, o terapeuta, o amante (FOUCAULT, 1986a, p. 61). Assim, as
relações entre os signos são sempre reunidas no interior de outras relações: "O agenciamento só é
enunciação, só formaliza a expressão, em uma de suas faces; em sua outra face
inseparável, ele formaliza os conteúdos, é agenciamento maquínico ou de
corpo" (MP2, p. 98).
150▲
Dessa
perspectiva, a própria linguagem, mesmo na forma de "fala", aparece como
um agenciamento de "práticas discursivas", desde contar, listar,
fazer contratos, cantar, passando pela recitação de preces, até emitir ordens,
confessar, comprar uma mercadoria, fazer um diagnóstico, planejar uma campanha,
discutir uma teoria, explicar um processo. Essas práticas não habitam um
domínio amorfo e funcionalmente homogêneo de significação e negociação entre
indivíduos – elas estão localizadas em locais e procedimentos particulares, os
afectos e as intensidades que os atravessam são pré-pessoais, elas são
estruturadas em variadas relações que concedem poderes a alguns e delimitam os
poderes de outros, capacitam alguns a julgar e outros a serem julgados, alguns a
curar e outros a serem curados, alguns a falar a verdade e outros a reconhecer
sua autoridade e a abraçá-la, aspirá-la ou submeter-se a ela.
Logo
retomarei a esse argumento. Mas à luz do que foi dito até agora, quero examinar
alguns desenvolvimentos recentes na própria psicologia, os quais consideram a
subjetivação em relação à linguagem e que buscam explicar o eu em termos de
"narrativa": as estórias que contamos uns aos outros e a nós
próprios.
"Não
se trata apenas do fato de que dizemos nossas vidas como estórias: mas existe
um sentido importante no qual nossas relações mútuas são vividas de forma
narrativa" (GERGEN & GERGEN,
1988, p. 18). Para aquelas pessoas que argumentam dessa forma, os eus são
realmente constituídos no interior da fala. A linguagem, aqui, é entendida como
um complexo de narrativas do eu que nossa
151▲
cultura torna disponível e que os indivíduos
utilizam para dar conta de eventos em suas próprias vidas, para dar a si
mesmos uma identidade no interior de uma estória particular, para atribuir significado
à sua própria conduta e às condutas de outros em termos de agressão, amor,
rivalidade, intenção, e assim por diante. Isto é, falar sobre o eu é tanto
constitutivo das formas de autoconsciência e de autocompreensão que os seres
humanos adquirem e exibem em suas próprias vidas quanto é constitutivo das
próprias práticas sociais, na medida em que essas práticas não podem ser
levadas a efeito sem certas autocompreensões:
Em vez de supor que
as relações das pessoas com a natureza e com a sociedade são pouco ou nada
afetadas pela linguagem no interior da qual elas são formuladas, descobrimos
que essas mesmas relações são constituídas pelas formas de fala que as
inspiram, pelas formas de responsabilização [accountability] pelas quais
elas são, por assim dizer, mantidas em bom estado... Se nos descobrimos agora
como vivendo a nós próprios como indivíduos autocontidos, autocontrolados, não
devendo nada a outros por nossa natureza como tal, acabamos por supor que esse
é um estado "natural" ou
fixo das coisas. Em vez disso, trata-se de uma forma de inteligibilidade
historicamente dependente, que exige, para sua sustentação contimIada, um
conjunto de compreensões partilhadas. (SHOTIER
& GERGEN, 1989, p. x)
A subjetividade e as
crenças sobre os atributos do eu, dos sentimentos, das intenções, são entendidas
aqui como propriedades não de mecanismos
152 ▲
mentais, mas de conversas, de gramáticas de fala.
Elas são possíveis e, ao mesmo tempo, inteligíveis, apenas em sociedades onde
essas coisas podem, apropriadamente, ser ditas por pessoas sobre pessoas.
"A tarefa da psicologia é a de expor nossos sistemas de normas de
representação... o resto é fisiologia" (HARRÉ,
1989, p. 34). As regras de "gramática" que dizem
respeito a pessoas ou ao que Wittgenstein chamou de "jogos de
linguagem" produzem ou induzem um repertório moral de características
relativamente duradouras, as quais são atribuídas, nos habitantes de culturas
particulares, à pessoalidade. "Nossa compreensão e nossa experiência de
nossa realidade é constituída para nós, em grande parte, pelas formas pelas
quais nós devemos falar em
nossas tentativas [...] para dar conta dela" (SHOTIER, 1985, p. 168) e devemos falar dessa forma porque as
exigências para cumprir nossas obrigações como membros responsáveis de uma
sociedade particular têm uma qualidade moralmente coerciva.
Essas noções de
constituição das características da pessoalidade por meio da fala são
freqüentemente consideradas como exigindo uma análise mais explicitamente
"dialógica". Uma análise desse tipo, argumenta-se, poderia, ela
própria, servir como uma espécie de crítica de certas formas de falar o eu; a
referência ao indivíduo solitário serve, de forma enganadora, para localizar no
"eu" aquilo que é, na verdade, o produto de um conjunto de relações:
"nós falamos dessa forma
sobre nós mesmos porque estamos presos no interior do que se pode pensar como
um 'texto', como um recurso textual desenvolvido de forma cultural – o texto do
'individualismo
153▲
possessivo' – para o qual nós, aparentemente,
devemos (moralmente) nos voltar quando confrontados com a tarefa de descrever
a natureza de nossas experiências de nossas relações com os outros e com nós
mesmos" (SHOITER, 1989, p. 136). Procedimentos, práticas ou métodos,
histórica e culturalmente desenvolvidos, para a produção de sentido, "são
colocados à nossa disposição como recursos no
interior das ordens sociais nas quais fomos socializados" (ibidem, p.
143) e ao lançar mão deles e ao usá-los em seus encontros, as pessoas vêm a
conhecer a si próprias como pessoas de um tipo particular, por meio de um ato
de reconhecimento mútuo. A análise, aqui, toma, pois, a forma de uma espécie de
"etnografia interacional" das "formas de falar" que são
utilizadas pelas pessoas ao colocar em ação seus encontros sociais e nos quais
elas mutuamente constroem-se a si próprias por meio do gerenciamento do
sentido.
Foi esse caráter
dialógico das autonarrativas, o fato de que elas são "sociais e não
individuais", que recentemente acabou por se destacar (cf. HERMANS & KEMPEN, 1993). Por
"social", como já se terá tornado evidente, esses autores querem
dizer "interpessoal" e "interacional". Assim, Mary e
Kenneth Gergen argumentam em favor da importância do que eles chamam de
"autonarrativas", estórias sobre os eus culturalmente fornecidas, as
quais, na passagem por suas vidas, fornecem os recursos dos quais os indivíduos
lançam mão em suas interações mútuas e com eles mesmos. "As narrativas
são, na verdade, construções sociais, sofrendo alteração contínua à medida que
a interação avança [...]. A autonarrativa é um implemento lingüístico
construído pelas pessoas, em
154 ▲
relações para sustentar, reforçar ou impedir
uma diversidade de ações [...]. As autonarrativas são sistemas simbólicos
utilizados para propósitos sociais tais como justificação, crítica e
solidificação social" (GERGEN & GERGEN, 1988, p. 20-1). Ao organizar,
explícita ou implicitamente, suas relações consigo mesmos e com outros em
termos dessas narrativas, um eu é, por assim dizer, "gerado pela
estória", com o indivíduo escolhendo entre as diferentes formas de
narrativa às quais foi exposto.
A "multiplicidade"
do eu é, aqui, compreendida como uma conseqüência da proposição de que "o
indivíduo aloja a capacidade para uma multiplicidade de formas
narrativas" e domina uma gama de meios de se tornar inteligível por meio
de narrativas, de acordo com as exigências feitas na negociação da vida
social – por exemplo, de que a pessoa se faça inteligível como uma identidade
duradoura, integral, coerente (GERGEN & GERGEN,
1988, p. 35). Mas "embora o objeto da autonarrativa seja um só eu, seria
um engano ver essas construções como o produto ou a propriedade de eus isolados
[...]. Ao compreender a relações entre eventos em nossa vida, apoiamo-nos no
discurso que nasce da troca social e que inerentemente implica uma
audiência" (p. 37). Trata-se de uma socialidade que é reforçada pelas
formas e respostas relacionais que certos modos de falar sobre o eu recebem em
trocas contínuas entre as pessoas de vários tipos, nas quais os indivíduos
negociam conjuntamente teorias particulares sobre si mesmos e sobre outros,
negociações que assumem, elas próprias, certas formas esroriadas culturalmente
disponíveis.
155 ▲
Esses estudos sobre o
eu, que o tomam como sendo construído em narrativas interacionais de acordo
com os recursos culturais disponíveis, certamente apreendem algo de
importante. Se a subjetivação é analisada em termos das relações dos humanos
consigo mesmos, os vocabulários discursivamente estabelecidos exercem um
papel importante na composição e recomposição dessas relações. Mas as análises
conduzidas sob os pressupostos do "construcionismo social" são
problemáticas por causa da visão de linguagem que elas sustentam. A linguagem,
nessas análises, é vista como "fala", como constituída de
significados situacionalmente negociados entre indivíduos. Como
"fala", sua análise segue o modelo banal da comunicação, ou da falta
de comunicação, na qual as partes envolvidas, os indivíduos humanos, utilizam
vários recursos lingüísticos – palavras, explicações, estórias, atribuições – para
construir mensagens que transmitem intenções, ou para mutuamente afetar,
persuadir, agir. Essas análises inescapavelmente colocam o agente humano como
o núcleo dessas atividades de produção de sentido, ao ativamente negociar sua trajetória
através das teorias disponíveis a fim de viver uma vida significativa. Portanto,
o ser humano é entendido como aquele agente que se constrói a si próprio como um
eu ao dar à sua vida a coerência de uma
narrativa. Evidentemente, o eu, simplesmente em virtude de ser capaz de se
narrar a "si próprio", em um variedade de formas, é implicitamente
reinvocado como um exterior inerentemente unificado relativamente a essas
comunicações. Isso nos faz lembrar a observação de Nietzsche de que "um
pensamento vem quando 'ele' quere não
156▲
quando 'eu' quero [...]. Isso pensa: mas que
este 'isso' seja precisamente o velho e decantado 'eu' é, dito de maneira
suave, apenas uma suposição, uma afirmação, e certamente não uma 'certeza
imediata'" (NIETZSCHE, 1992 [1886], p. 23). Entretanto, o que nossos psicólogos radicais invocam é, na
verdade, o velho e familiar eu, aquele reconfortante "eu" da
filosofia humanista, que é o ator que interage com outros em um contexto
cultural e lingüística, a pessoa em quem os efeitos de sentido, comunicação,
assumem sua forma, com todos os pressupostos que o acompanham, pressupostos
que afirmam a singularidade e o caráter cumulativo do tempo vivido da
consciência. Trata-se do eu da hermenêutica, do eu da fenomenologia, agora
sendo postulado aqui como a solução para o problema de como poderia, ele
próprio, constituir uma possibilidade.9
Obviamente, seria
absurdo colocar a análise produzida por lingüistas como Benveniste nesse mesmo
campo hermenêutico. Seu trabalho é refrescante como um copo d'água tomado depois
do adocicado humanismo dos "construcionistas sociais", exigindo uma
atenção mais generosa e produtiva do que a que eu serei capaz de dar aqui. E
hora, entretanto, de questionar toda a tirania da "linguagem", da
"comunicação", do "significado", desde há muito invocados
pelas "ciências sociais", no curso de suas pretensões a se
distinguirem das "ciências naturais", supostamente em virtude da
natureza especial de seu objeto. Ao tentar explicar nossa história e nossa
especificidade, não é para o domínio dos signos, dos significados e das
comunicações que devemos nos voltar, mas para a analítica das técnicas,
157▲
das intensidades, das autoridades e dos
aparatos. Análises como as que estive discutindo aqui atribuem coisas
demasiadas à linguagem como comunicação e absolutamente nada à linguagem como
agenciamento. Pode ser "relativamente fácil não dizer mais 'eu', mas sem
com isso ultrapassar o regime de subjetivação; e inversamente, podemos
continuar a dizer Eu, para agradar, e já estar em um outro regime onde os
pronomes pessoais só funcionam como ficções" (MP2, p. 95). Se a linguagem
está organizada em regimes de significação por meio dos quais ela se distribui
ao longo de espaços, épocas, zonas e estratos, e se ela está agenciada em
regimes práticos de coisas, corpos e forças, então deve-se conceber a
"construção discursiva do eu" de uma forma bem diferente. Quem
fala, de acordo com que critérios de verdade, de quais lugares, em quais
relações, agindo sob quais formas, sustentado por quais hábitos e rotinas, autorizado
sob quais formas, em quais espaços e lugares, e sob que formas de persuasão,
sanção, mentiras e crueldades? Em relação às disciplinas psi, esses são precisamente
os tipos de questões com que devemos lidar: a emergência de práticas, locais e
regimes de enunciação que dão poder a certas autoridades para falar nossa
verdade na linguagem da psique; os regimes que constituem a autoridade por
meio de uma relação com aqueles que são seus sujeitos como pacientes,
analisandos, clientes, fregueses; as paisagens, os edifícios, as salas, os
arranjos desenhados para esses encontros, desde as salas de consulta até as
enfermarias dos hospitais; os vetores afetivos da compulsão, da sedução, do
contrato e da conversão que fazem a conexão das linhas.
158 ▲
Isto é, não se trata
de uma questão sobre o que uma palavra, uma sentença, uma estória ou um livro
"quer dizer" ou o que "significa", mas, antes, sobre
"com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não passar
intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua
[multiplicidade] (MPl, p. 12). Isso não significa voltar as costas para a
linguagem ou para todos os instrutivos estudos que têm sido conduzidos sob os
auspícios de uma certa noção de "discurso" ou que têm desenvolvido a
analítica da retórica. Mas significa sugerir que essas análises são mais instrutivas
quando se focalizam não no que a linguagem significa, mas no que ela faz: que componentes de pensamento
ela coloca em conexão, que vínculos ela desqualifica, o que capacita os humanos
a imaginar, a diagramar, a fantasiar uma determinada existência, a se reunirem
em um agenciamento: os sexos com seus gestos, formas de andar, de vestir, de sonhar,
de desejar; as famílias com suas mamães, seus papais, seus bebês, suas
necessidades e suas desilusões; as máquinas de curar com seus médicos e pacientes,
seus órgãos e suas patologias; as m,í.quinas psiquiátricas com suas
arquiteturas reformatórias, suas grades de diagnóstico, sua mecânica de invenção
e suas noções de cura.10
Em qualquer
circunstância, devemos reconhecer que a linguagem não é, de forma alguma, primária
na produção de pessoas. Em primeiro lugar, a linguagem é, obviamente, mais que
apenas "fala" – daí a importância, que é bem reconhecida, da invenção
da escrita pela qual os humanos são capazes de se tornar "máquinas
escreventes" por meio do
159▲
treinamento da mão e do olho; por meio da fabricação
de instrumentos tais como os estilos, os pincéis, as penas; por meio de um
certo conjunto de hábitos corporais; por meio de um modo de compor e decifrar;
por meio de uma relação com a superfície
mais ou menos transportável de inscrição. Ao escrever, o ser humano torna-se
capaz de novas coisas: fazer listas; enviar mensagens; acumular informação, a
partir de locais distantes, em um único lugar e em um único plano; e de
comparar, tabular mudanças, diferenças e similaridades, estendendo novas linhas
de força (GOODY & WAIT, 1968; GOODY, 1977, p. 52-111; ONG, 1982). A
invenção da imprensa torna possível a generalização de "máquinas de
leitura" e uma variedade de novas coisas se torna pensável: novas formas
de compreender o lugar dos humanos em uma cosmologia, por meio de cálculo dos
movimentos dos corpos celestes, por exemplo, ou novas formas de praticar a
espiritualidade em relação ao "livro sagrado" (EISENSTEIN, 1979). A
invenção de técnicas por meio das quais os humanos desenvolvem a capacidade de
calcular torna, similarmente, os humanos capazes de novas coisas, disciplina
o pensamento e as auto-relações de uma forma distintiva (previsão e prudência,
por exemplo, quando se calcula a situação financeira futura na forma de um
orçamento) e é similarmente dependente de técnicas e aparatos – agenciamentos
maquinados nos quais as forças do humano são criadas e estabilizadas (CLINE-COHEN,
1982; cf. ROSE, 1991).
Platão, como é bem
sabido, expressou reservas sérias à escrita,
concebendo-a não apenas como inferior à palavra
falada, "escrita na alma do ouvinte
160 ▲
para capacitá-la a aprender sobre o certo, o
bem e o bom", mas também como destrutiva das artes da retórica e da
memória (PLATÃO, Fedro, 278a).
Mas a memória não deveria ser contraposta à escrita como algo imediato,
natural, como uma capacidade psicológica universal, mas vista em termos
daquilo que Nietzsche chamou de "mnemônica" (NIETZSCHE, 1998 [1887],
p. 51; cf.. GROSZ, 1994, p.
131).5 Esse termo refere-se aos aparatos pelos quais se "marca a ferro em
brasa" o passado em si próprio, tornando-o disponível como uma
advertência, um consolo, um aparato de negociação, uma arma ou uma ferida.
"Jamais deixou de haver sangue, martírio e sacrifício quando o homem
sentiu a necessidade de criar em si uma memória" (NIETZSCHE, 1998, p. 51).
As preocupações de Nietzsche são com as variedades históricas de punição
cruel, como exemplos do preço pago pelos seres humanos para fazê-las superar
seu esquecimento e "reter na memória cinco ou seis 'não quero' [...] a fim
de viver os benefícios da sociedade" (p. 52). Não se trata de uma questão,
para meus propósitos, da validade das asserções genealógicas específicas de
Nietzsche – elas são certamente problemáticas. Mas a noção de mnemônica abre
um campo muito importante de investigação para o agenciamento de sujeitos. Frances
Yates mostrou, de forma convincente, que a memória pode ser entendida como uma
arte ou uma série de técnicas inculcadas na forma de procedimentos particulares:
uma arte que foi revivida e ampliada na Idade Média e envolvia técnicas tais
como a invenção de lugares ou espaços nos quais itens de saber ou experiência
eram "colocados" e que poderiam ser "recuperados" pelo
161 ▲
sujeito ao fazer um passeio imaginário através
deles (YATES, 1966; cf. HIRST &
WOOLEY, 1982, p. 39). As práticas
da pedagogia têm, obviamente, inventado toda uma gama de outras técnicas de
memória, buscando inculcá-las nas salas de aula, tendo proliferado ao longo da
experiência de quase todos os humanos contemporâneos e tendo sido elas próprias
alimentadas pelas disciplinas psi. Mas reconhecer o êxito técnico e prático
da memória é apenas um primeiro passo: essas técnicas da memória não são
limitadas pelo envelope da pele do sujeito e muito menos pelo volume de seu
cérebro. Não apenas os golpes, a tortura, os sacrifícios que Nietzsche
descobre como constituindo as raízes impuras de nossos aparentemente bálsamos
morais puros, mas também juramentos, rimais, canções, escritas, livros,
gravuras, bibliotecas, dinheiro, contratos, dívidas, edifícios, projetos de arquitetura,
a organização do tempo e do espaço: tudo isso – e muito mais – estabelece a
possibilidade de que um passado mais ou menos imaginário possa ser re-evocado,
no presente ou no futuro em locais particulares. Isto é, a memória é, ela
própria, agenciada. A memória que temos de nós próprios como um ser com uma
biografia psicológica, uma linha de desenvolvimento da emoção, do intelecto,
da vontade, do desejo, é produzida por meio dos álbuns de fotografia de
família, a repetição ritual de estórias, o dossiê real ou "virtual"
dos boletins escolares, a acumulação de artefatos e a imagem, o sentido e o
valor que lhes são vinculados.
As
disciplinas psi, obviamente, têm
adotado e desenvolvido as tecnologias da memória desde ao menos a época de
Mesmer e têm-se envolvido em
162 ▲
toda uma história de competição sobre o status das memórias assim produzidas (MESMER,
[1799] 1957). A memória foi central às concepções de "desordem
nervosa" antes que Freud anunciasse que a histérica sofria de
reminiscências e levantasse a possibilidade de que a memória podia não
distinguir entre experiência e fantasia. Por pelo menos um século, as
asserções das disciplinas psi sobre a memória têm sido controversas
precisamente porque as memórias em questão pareciam ser o produto de suas
"tecnologias" não-naturais – das quais a hipnose e a associação
livre constituíam apenas dois exemplos. As dificuldades contemporâneas da
mnemotécnica psi são exemplificadas naquilo que se poderia chamar de
"crise de memória" em torno da produção, por meio das tecnologias da
psicoterapia, das anteriormente ausentes memórias da violência contra crianças
– "memórias falsas", "memórias recuperadas".6 As disputas sobre essa questão revelam,
ao menos em parte, a dificuldade de reconhecer que aquilo que é lembrado só o é
por meio do envolvimento dos humanos com as tecnologias da memória. Certas
dessas tecnologias, que continuam estranhas e malignas a muitas culturas, têm
sido "naturalizadas" em nossa própria cultura espelhos, retratos,
inscrições duráveis (por exemplo, diários, cartões de aniversário e cartas, que
servem de "substitutos" para eventos passados mas "não
esquecidos"), romances narrativos, fotografias, agora talvez o vídeo da
gravidez de nossa mãe e o momento de nosso nascimento. Muitas daquelas tecnologias
inventadas na genealogia das disciplinas psi – embora, surpreendentemente não
sejam aparatos
163▲
de memórias tais como a "história de
caso" da medicina – continuam tendo um status problemático, ainda não
naturalizado, mas mesmo assim são vistas como suspeitas por causa de sua
associação com a tecnologia aparentemente antinatural que as fizeram nascer.
Mas me é possível ser "uma-pessoa-com-memória" tão-somente em
virtude de eu "ter-entrado-em-composição" com esses elementos
heterogêneos – a memória, no sentido em que faz uma diferença nas formas pelas
quais os humanos agem e se relacionam consigo mesmos, é uma propriedade de
"máquinas de lembrar".
A memória, a
habilidade de cálculo, a escrita simplesmente exemplificam o fato de que as
análises da linguagem que se centram na questão do significado concedem
demasiada autonomia à semântica e à sintática e dão muito pouca atenção às
práticas situadas que intimam, inscrevem, incitam, certas relações da pessoa
consigo mesma. Elas ignoram os aparatos de inscrição, desde livros de estória,
tabelas, gráficos, listas e diagramas, até vitrais e fotografias, desenho de
salas e peças de equipamento, tais como aparelhos de televisão e fogões. Esses
aparatos constituem tecnologias culturais que funcionam como formas de
codificar, estabilizar e intimar "seres humanos. Eles vão além do
envelope da pessoa, perduram em locais, práticas, rituais e hábitos particulares
e não estão localizados em pessoas particulares, nem são intercambiados de
acordo com o modelo da comunicação.
Assim, embora as
linguagens, os vocabulários e as formas de julgamento sejam, indubitavelmente,
de imensa importância em intimar e estabilizar certas
164▲
relações da pessoa consigo mesma, eles não deveriam
ser entendidos como sendo primariamente intencionais e interacionais. Aquilo
que torna qualquer intercâmbio particular possível surge de um regime de linguagem, o qual está alojado
em práticas que apreendem o ser humano sob variadas formas, que inscrevem,
organizam, moldam e exigem a produção da fala – médica, legal, econômica,
erótica, doméstica, espiritual. Mas essa referência às práticas e aos
agenciamentos dos quais a linguagem faz parte chama a atenção para outra das
inescapáveis debilidades das estórias "psicológicas" do eu narrado.
Quando a linguagem, nessas explicações, é vista como algo situado, ela o é
apenas ao modo wittgensteiniano vago de "formas de vida", nas quais a
"responsabilização" [accountability]
funciona para tornar possíveis as ações. Essas dispensáveis referências
a formas de vida são pouco adequadas à tarefa.
O que precisa ser analisado é o modo
da relação consigo mesmo que é intimado nas práticas e nos procedimentos, nos
vínculos, nas linhas de força e nos fluxos definidos que constituem pessoas e
as atravessam e as circundam em maquinações particulares de força – para
trabalhar, para curar, para reformar, para educar, para trocar para desejar,
não apenas para responsabilizar [accounting] mas para manter como
responsabilizável. Não se trata de um apelo por uma localização mais delicada e
sutil da comunicação "em seu contexto social", mas por uma rejeição
da forma binária que separa a linguagem de seu contexto apenas para reinseri-la
contextualmente em um mundo que é reduzido a uma espécie de pano de fundo
cultural para o significado.
165▲
Uma vez tecnicizadas,
maquinadas e localizadas em lugares e práticas, emerge uma imagem diferente
do processo de "construção de pessoas". As pessoas funcionam, aqui,
como uma forma inescapavelmente heterogênea, como arranjos cujas capacidades
são fabricadas e transformadas por meio de conexões e ligações nas quais elas
são apreendidas em locais e espaços particulares. Não se trata, portanto, de
um eu que emerge por meio da narração de estórias, mas, antes, de examinar o
agenciamento de sujeitos: de sujeitos combatentes em máquinas de guerra, de
sujeitos laborais em máquinas de trabalho, de sujeitos desejantes em máquinas
de paixão, de sujeitos responsáveis nas variadas máquinas da moralidade. Em
cada caso, a subjetivação em questão não é um produto nem da psique nem da
linguagem, mas de um agenciamento heterogêneo de corpos, vocabulários, julgamentos,
técnicas, inscrições, práticas.
ANATOMIAS IMAGINÁRIAS
Sugeri,
anteriormente, que podemos produzir mais em termos de inteligibilidade se
consideramos a questão da subjetivação menos em termos de que tipo de sujeito é
produzido – um eu, um indivíduo, um agente – e mais em termos daquilo que os humanos
são capacitados a fazer por meio das formas pelas quais eles são maquinados ou
compostos. Aquilo que os humanos estão capacitados a fazer não é intrínseco à
carne, ao corpo, à psique, à mente ou à alma;
está constantemente deslocando-se e mudando de lugar para lugar, de época para
época,
166 ▲
com a ligação dos humanos a aparatos de pensamento
e ação – desde a mais simples conexão entre um órgão (ou uma parte do corpo) e
outro em termos de uma "anatomia imaginária" até aos fluxos de força
tornados possíveis pelas ligações de um órgão com uma ferramenta, com uma
máquina, com partes de outro ser humano ou de outros seres humanos, em um
espaço montado tal como um quarto de dormir ou uma sala de aula. Dessa
perspectiva, as questões a serem tratadas têm a ver não com a "constituição
do eu", mas com as ligações estabelecidas entre, de um lado, o humano e,
de outro, outros humanos, objetos, forças, procedimentos, as conexões e fluxos
tornados possíveis, as capacidades e os devires engendrados, as possibilidades
assim impedidas, as conexões maquínicas formadas, que produzem e canalizam as
relações que os humanos estabelecem consigo mesmos, os agenciamentos dos quais
eles formam elementos, condutos, recursos ou forças (cf GROSZ, 1994, p. 165; MP1, p. 91).
Ao pensar dessa
forma, podemos ler ao contrário, por assim dizer, os muitos e recentes textos
que buscam fundamentar sua analítica de relações de poder e formas de saber
sobre "o corpo". A corporeidade humana, como muitas vezes se sugere,
pode fornecer a base para uma teoria da subjetivação, da constituição dos
desejos, das sexualidades e das diferenças sexuais, dos fenômenos de
resistência e agência. Os seres humanos são, afinal, como afirmam esses
argumentos, corporificados, a despeito de todas as tentativas dos filósofos,
desde o Iluminismo, para descrevê-las como criaturas de razão e para afirmar que
essa capacidade para raciocinar afasta os
167▲
humanos – ou ao menos os humanos masculinos quase
que inteiramente de suas características como criaturas. E embora aceitando que
a corporeidade não dá qualquer forma essencial ou estável à subjetividade, como poderíamos negar a
asserção dessas análises de que é sobre esse material bruto do "corpo"
que a cultura trabalha sua constituição da subjetividade? Embora abjurando
todas as formas de essencialismo, como poderíamos discordar da asserção de que
as formas da subjetividade são irrecuperavelmente marcadas pela facticidade
biológica de corpos sexuados, de corpos infantis que são incapazes de
automanutenção, de todos os corpos que comem, bebem, copulam, defecam,
deterioram e morrem (por exemplo, BUTLER, 1990, 1993). Essa ambivalência está
resumida na asserção de Braidotti de que "o ponto de partida para as
redefinições feministas da subjetividade é uma nova forma de materialismo que
coloca ênfase na estrutura corporificada e, portanto, sexualmente diferenciada,
do sujeito falante" (1994a, p. 199, ênfase minha). E tal é a aparente
compulsão de uma tal forma de pensar que mesmo uma escritora antinaturalista
como Elizabeth Grosz, que quer questionar todos os essencialismos e todos os
binarismos, sugere que "o corpo" é o material sobre o qual a cultura,
a história e a técnica escrevem e, portanto, "a bifurcação de corpos
sexuados é um universal cultural irredutível" (GROSZ, 1994, p. 160).
Mas "o
corpo" é, ele próprio, um fenômeno histórico. Nossa presente imagem dos
lineamentos e da topografia do "corpo" – seus órgãos, processos,
fluidos vitais e fluxos – é o resultado de uma história
168 ▲
cultural, científica e técnica particular. As
propriedades do corpo – andar, sorrir, cavar, nadar – não são propriedades
naturais mas conquistas técnicas (MAUSS, 1979a). Mesmo o caráter aparentemente
natural dos limites e das fronteiras do corpo, que parece definir como que
inevitavelmente a coerência de uma unidade orgânica, é um fato recente e
pertence a uma cultura específica (FOUCAULT, 1994; cf. GROSZ, 1994, sobre a
história da noção de "imagem do corpo"). E quanto aos "dois
sexos", há tantos estudos históricos mostrando quão diversa é essa
aparentemente imutável divisão, que trabalhos intelectuais estiveram
implicados em estabilizá-la na forma da natureza duplicada do corpo masculino e
do corpo feminino, em fazer de nosso desejo sexual nosso desejo secreto,
conectando prazer, sexo, vontade, saber, reprodução e companheirismo em uma
"sexualidade ciborgue" que acabamos por habitar como sendo nossa
verdade (por exemplo, FEHER, NADAFF & TAZI,
1989; LAQUEUR, 1990; BROWN, 1989; cf. VALVERDE, 1985, sobre nossa fabricação
como sujeitos sexualmente desejantes). Daí que grande parte da recente ênfase,
na escrita feminista, sobre o corpo e sobre a corporificação, conserva a
própria analítica que busca subverter, deslocando a normalização
"iluminista" das propriedades da razão e da abstração, ao
simplesmente inverter o velho tropa de que as mulheres são mais corpóreas, mais
carnais, mas retendo, entretanto, a carne como a perspectiva governante da
razão feminista. Mas os corpos são sempre "corpos pensados" ou
"corpos-pensamento": algum dia, talvez, nós viremos a olhar retrospectivamente
para o "sexo-pensamento-corpo"
169 ▲
que tanto tem afetado nosso próprio século,
nossa própria repetitiva e cansativa ansiedade sobre nossos corpos
sexuais, nossos compromissos com a diferença de gênero que nos marca tão
indelevelmente, as forças transgressivas e os poderes restauradores do sexual e
tudo o resto, com um certo deleite perverso (cf. FOUCAULT, 1985a).
Abandonemos, pois,
esse "carnalismo" do corpo de uma vez por todas.10 O corpo é muito menos unificado, muito menos
"material" do que cotumamos pensar. É possível, pois, que não exista
essa coisa de "o corpo": um
envelope limitado que pode ser revelado para conter no seu interior uma profundidade
e um conjunto de operações que funcionem à maneira
de uma lei. Deveríamos estar preocupados não com corpos, mas com as ligações estabelecidas
entre superfícies, forças e energias particulares. Em vez de falar de "o
corpo", precisaríamos analisar apenas como um particular "regime de
corpo" foi produzido, descrevendo a canalização de processos, órgãos,
fluxos, conexões, bem como o alinhamento de um aspecto com outro. Em vez de
"o corpo", tem-se, pois, uma série de "máquinas" possíveis,
agenciamentos – de dimensões variadas – de humanos com outros elementos e
materiais: conectados a livros para formar uma máquina literária, a ferramentas
para formar uma máquina de trabalho, a bens para formar uma máquina de consumo...
O corpo é, pois, "não uma
totalidade orgânica que é capaz de expressar globalmente a subjetividade, uma
concentração das emoções, atitudes, crenças ou experiências do sujeito, mas um
agenciamento de órgãos, processos, prazeres, paixões,
170 ▲
atividades, comportamentos, ligados por tênues
linhas e imprevisíveis redes a outros elementos, segmentos e agenciamentos"
(GROSZ, 1994, p. 120). E os próprios órgãos são "tácteis": o olho, o
nariz, o ouvido, o tato, reúnem pensamento e objeto em sensuais relações de
contato, troca e interpenetração, criando uma multiplicidade de novos sentidos
através de cada qual "reluzem momentos de conexão mimética,
simultaneamente corporificados e mentalizados, simultaneamente individuais e
sociais" (TAUSSIG, 1993, p. 23; embora o argumento seja de Taussig, ele
está discutindo aqui o trabalho de Walter Benjamin).
Nosso regime de
corporeidade deveria, assim, ele próprio, ser visto como a resultante instável
dos agenciamentos nos quais os humanos são surpreendidos, induzindo uma certa
relação consigo mesmos como corporificados;
tornando o corpo organicamente unificado, atravessado por processos
vitais; diferenciando – hoje por meio do sexo, em grande parte de nossa
história por meio da "raça"; dando-lhe uma certa profundidade e um
certo limite; equipando-o com uma sexualidade; estabelecendo as coisas que ele
pode e não pode fazer; definindo sua vulnerabilidade em relação a certos
perigos; tornando-o praticável a fim de amarrá-lo a práticas e a atividades
(sobre "o corpo da mulher", ver, por exemplo, LAQUEUR, 1990, DUDEN,
1991; sobre o corpo racializado, ver GILMAN, 1985). A questão de Deleuze, que
para ele era a questão de Spinoza, "De que um corpo é capaz?" (o que
ele pode fazer; que afectos ele pode ter; como esses afectos reforçam,
enfraquecem, capacitam-no de diferentes formas; como o multiplicam; como o
171▲
metamorfoseiam?) é um ponto
de partida (DELEuzE, 1992b, cap. 14). Mas isso apenas na medida em que
concordemos que um corpo não é "o corpo", mas apenas uma relação
particular, capaz de ser afetada de formas particulares. Trata-se de uma questão
de órgãos, de músculos, de nervos, de aparelhos que são, eles próprios, enxames
de células em troca constante entre si, ligando e separando, morrendo,
reconfigurando, conectando e combinando, onde o lado de fora de um é,
simultaneamente, o lado de dentro de outro. Trata-se também de uma questão de
cérebros, hormônios, moléculas químicas, que conectam e transformam as
capacidades das várias partes – excitando-as, coordenando-as, fundindo-as ou
desligando-as.
Esses
agenciamentos não são delineados pelo envelope da pele, mas ligam o "lado
de fora" e o "lado de dentro" – visões, sons, aromas, toques,
coleções – juntando-os com Outros elementos, maquinando desejos, afecções, tristeza, terror e até mesmo morte.
Consideremos as variadas maquinações das quais o corpo é capaz: a coragem do
guerreiro na batalha, a ternura ou a violência do amante, a resistência do
prisioneiro político sob tortura, as transformações efetuadas pelas práticas da
ioga, a experiência da morte vodu, as capacidades de transe que tornam os órgãos
capazes de suportar queimaduras ou de recuperar-se de feridas. Não se trata de
propriedades de "o corpo", mas de maquinações do "corpo
pensado", cujos elementos, órgãos, forças, energias, paixões, temores são
reunidos por meio de conexões com palavras, sonhos, técnicas, cantos, hábitos,
julgamentos, armas, ferramentas, grupos.
172▲
Isso
não significa sugerir que os humanos possam ser anjos, que possam voar pelas
janelas ou que possam movimentar-se como minhocas, mas que apelos
"materialistas" à corporeidade
como o "material" sobre o qual a cultura trabalha não são coisas
"boas para pensar". Os corpos são capazes de muita coisa, em virtude,
ao menos em parte, de "serem pensados" e nós não sabemos os limites
do que essas máquinas-corpo-pensamento são capazes.11 Se nos tornamos criaturas
psicológicas não foi por causa do caráter dado de um interior, nem por causa
dos significados de uma cultura, mas por causa das formas pelas quais, em
tantos locais e práticas, os vetores psi acabaram por atravessar e por ligar
essas maquinações.
Duas
metáforas para as maquinações dos corpos-sujeito foram recentemente propostas:
performatividade e inscrição. Judith Butler propôs a noção de performatividade
ao desenvolver uma análise da construção da "identidade de gênero"
que não supõe qualquer sujeito essencial ou pré-dado situado por detrás de suas
ações. Para Butler, não precisamos "nenhuma teoria da identidade de
gênero por detrás de expressões de gênero... a identidade é performativamente
constituída pelas próprias 'expressões' que se supõe ser seus resultados"
(BUTLER, 1990). Sua noção de performatividade baseia-se, aqui, em Austin e
Derrida, para argumentar que o gênero é o resultado de atos performativos.
"Um ato performativo é aquele que faz nascer ou coloca em ação aquilo que
nomeia, marcando, assim, o poder constitutivo ou produtivo do discurso... Para
que um performativo funcione, ele deve basear-se e
173▲
recitar um conjunto de
convenções lingüísticas que têm tradicionalmente funcionado para assegurar ou
implicar certos tipos de efeitos" (BUTLER, 1995, p. 134). O gênero é, pois, uma
fantasia "instituída e inscrita na superfície de nossos corpos",
constituído por meio dos efeitos de significação engendrados pelas perfomances
da linguagem (1990, p. 136). Mas essa noção de performatividade limita-se a si
própria ao manter a ênfase no lingüística. Consideremos este argumento sobre a
performance da feminilidade, o qual devo a Susan Bordo (BORDO, 1993, p.19):12
Sente-se
em uma cadeira reta. Cruze suas pernas na altura dos tornozelos e mantenha seus
joelhos pressionados um contra o outro. Tente fazer isso enquanto está
conversando com alguém, mas tente o tempo todo manter seus joelhos fortemente
pressionados Um contra o Outro... Corra uma certa distância,
mantendo seus joelhos juntos. Você descobrirá que terá que dar passos curtos,
altos... Ande por uma rua da cidade... Olhe, em direção reta, para a frente. Toda
vez que um homem passar por você, desvie seu olhar e não mostre nenhuma
expressão no rosto.
"Transformar-se
em uma pessoa 'dotada' de gênero", como reconhece Butler; juntamente com
muitas Outras pessoas, significa seguir uma prescrição meticulosa e
continuamente repetida da conduta, da aparência, da fala, do pensamento, da
vontade, do intelecto, na qual as pessoas são reunidas em uma montagem não
apenas ao serem conectadas com os vocabulários mas também com regimes de
conduta
174▲
(andar, olhar, fazer
gestos), com artefatos (roupas, sapatos, maquiagem, automóveis, panelas, instrumentos
para escrever, livros), com espaços e lugares (salas de aula, bibliotecas,
estações de trem, museus) e com os objetos que os habitam (mesas, cadeiras,
livros, plataformas, vitrines). A performatividade, ao menos no sentido do
modelo da enunciação lingüística, em que é definida em termos de citações e
convenções, é uma imagem bastante enganadora para pensar esse processo de
montagem da pessoa: é necessário insistir que nós não somos "constituídos pela
linguagem".
Tampouco
é suficiente uma imagem lingüística diferente, a da escrita ou da inscrição.
Essa noção é utilizada tanto por Butler quanto por Grosz para descrever a
relação entre, por um lado, o corpo e suas superfícies (concebidos como
marcados, inscritos, gravados) e, por outro, "o traçado de textos
pedagógicos, jurídicos, médicos e econômicos, de leis e práticas na carne a fim
de entalhar um sujeito social como tal, um sujeito capaz de trabalho, de
produção e manipulação, um sujeito capaz de agir como um sujeito e, ao mesmo
tempo, capaz de ser decifrado, interpretado, compreendido" (GROSZ, 1994,
p. 117). Em vez de pensar em uma analítica da inscrição, na qual a cultura
seria escrita na carne, considero ser mais útil pensar em termos de tecnologia.
Na verdade, como sugeri, a linguagem, a escrita, a memória podem ser, elas
próprias, vistas como elementos de uma técnica, cada uma delas implicando
verdades, técnicas, gestos, hábitos, aparatos, reunidos, por meio do
treinamento, em uma montagem, e inseridos em associações mais ou menos
175▲
duráveis. Poderemos compreender melhor as práticas
de subjetivação se as concebermos em termos das complexas interconexões,
técnicas e linhas de força que se estabelecem entre componentes heterogêneos,
incitando, tornando possível e estabilizando relações particulares conosco
mesmos, em locais e lugares específicos. As tecnologias da subjetivação são,
pois, as maquinações, as operações pelas quais somos reunidos, em uma montagem,
com instrumentos intelectuais e práticos, componentes, entidades e aparatos
particulares, produzindo certas formas de ser-humano, territorializando,
estratificando, fixando, organizando e tornando duráveis as relações
particulares que os humanos podem honestamente estabelecer consigo mesmos.
Não existe nenhuma
necessidade de supor qualquer "meio de propulsão" por detrás de
todas essas tecnologias, nem qualquer força ou desejo primordial que circule
por esses agenciamentos, fazendo com que seja possível que eles se movam, ajam,
mudem, resistam, sofram mutações. A assim chamada "questão da
agência" coloca um falso problema. Para dar conta da capacidade para agir
não precisamos de nenhuma teoria do sujeito que seja anterior e que resista àquilo
que a apreenderia – tais capacidades para a ação surgem dos regimes e tecnologias
específicos que maquinam os humanos de variadas formas (nesse caso estou de
acordo com BUTLER, 1995, p. 136). A heterogeneidade dessas pdticas e técnicas
– seus múltiplos conflitos, divergências, interconexões e alianças, as
diferentes promessas que elas fazem e as variáveis exigências que elas representam
para o ser humano – podem produzir todos
176 ▲
os efeitos de resistência, apropriação,
utilização, transformação e transgressão que os teóricos do pós-moderno têm
ressaltado, sem a necessidade de invocar uma concepção unificante de
"agência humana". Para dizê-lo de outra forma, a agência é, ela própria,
um efeito, um resultado distribuído de tecnologias particulares de
subjetivação, as quais invocam os seres humanos como sujeitos de um certo tipo
de liberdade e fornecem as normas e técnicas pelas quais aquela liberdade deve
ser reconhecida, agenciada e exercida em domínios específicos. Na verdade, as
disciplinas psi tiveram, ao longo do século passado, um papel bastante particular
na criação das condições para a emergência da nossa capacidade de nos
relacionar conosco mesmos como certo tipo de agente – como
"personagens", por exemplo, com funções nervosas, as quais, quar1do
moldadas pelo efeito do hábito e da influência sobre a constituição da
pessoa, produzia a impulsividade ou o controle, dependendo do caso: se a
pessoa era homem ou mulher, amo ou ama, trabalhador temporário, funcionário ou
servo (cf. SMITH, 1992, cap. I); ao longo do século XX,
como "personalidades", como um tipo que estava em posse de certos traços,
manifestados nas formas pelas quais a pessoa reagia à experiência, expressava seus sentimentos e se associava a
artefatos, gostos, formas de vestir, estilos de gesticulação e expressão; na
segunda metade do século XX, como "agentes livres" de escolha e
autodesenvolvimento, em guerra contra todas as máquinas que nos maquinariam
como bons sujeitos da burocracia e do conformismo, que diminuiriam
177▲
nossa auto-estima e impediriam nosso autodesenvolvimento.
Para nossa própria
cultura, a agência é, obvia- . mente, parte de uma "experiência" de
internalidade – ela parece acumular-se e emergir de nossas profundidades, de
nossos instintos, desejos ou aspirações interiores. Não há dúvida de que nem
sempre foi assim. A clássica interpretação da Ilíada e da Odisséia, feita
por E. A. Dodds, sugere que a descrição homérica dos humanos é mais do que uma
questão de convenção estética: os humos, para Homero, eram agenciamentos
dispersos, cujos elementos eram a psyche (alma), athumos
(vontade) e o noos (intelecto),
cada um deles com seu modo independente de operação. A ação era entendida não
em termos de qualquer faculdade interna da agência, mas em termos de forças
tais como ate, que obrigavam a
pessoa a um curso particular de ação, por meio da intervenção dos deuses, das
deusas do Destino, das Fúrias, de sonhos e visões (DODDS, 1973; cf. HIRST E WOOLLEY, 1982). Esses exemplos poderiam,
obviamente, ser multiplicados: os poderes explicativos das vozes das deidades ou
dos demônios, os efeitos motivadores dos xamãs e dos rituais, e mais próximo
de nós, talvez, as conseqüências das multidões ou bandos em arrebatar o
indivíduo em um novo e multicéfalo agente com uma única – ainda que maligna – vontade.
A agência é, sem dúvida, uma "força", mas é uma força que Surge não
de qualquer propriedade essencial de "o sujeito", mas das formas
pelas quais os humanos têm se reunido em um agenciamento.
178 ▲
ALMAS DOBRADAS
Se hoje vivemos
nossas vidas como sujeitos psicológicos que vemos como sendo a origem de
nossas ações, se nos sentimos obrigados a nos colocar a nós próprios com
sujeitos com uma certa e desejada antologia, uma vontade de ser, isso se deve
às formas pelas quais relações particulares do exterior têm sido invaginadas,
dobradas, para formar um lado de dentro ao qual um lado de fora deve sempre
fazer referência. Uma vez mais, é Deleuze quem refletiu mais instrutivamente
sobre uma filosofia da dobra (DELEUZE, 1992a, 1992b, veja especialmente o uso
dessa noção em sua discussão da subjetivação em seu livro sobre Foucault:
DELEUZE, 1988, p. 94123). "O que
importa, sempre, é dobrar, desdobrar, redobrar" (DELEUZE, 1992a, p. 137). O conceito de dobra pode fazer surgir um
diagrama generalizável para pensar as relações, as conexões, as multiplicidades
e as superfícies – sua formação de profundidades, singularidades,
estabilizações. Esse diagrama da dobra descreve uma figura na qual o lado de
dentro, o subjetivo, é, ele próprio, não mais que um momento, ou uma série de
momentos, por meio do qual uma "profundidade" foi constituída no ser
humamo. A profundidade e sua singularidade não são, pois, mais do que aquelas
coisas que foram escavadas para criar, um espaço ou uma série de cavidades,
plissados e campos que só existem em relação àquelas mesmas forças, linhas,
técnicas e invenções que as sustentam.
As linguagens, as
técnicas, os locais institucionais e as relações enunciativas da medicina
clínica
179▲
introduziram dobras profundas no corpo, o lado
de dentro do lado de fora, o lado de dentro como uma operação do lado de fora,
como sugere Deleuze em sua discussão da arqueologia que Foucault faz do olhar
clínico. Ou, de novo, em relação às técnicas éticas introduzidas pelos gregos,
essas devem ser entendidas "no sentido de que a relação consigo adquire independência. É como se as relações do lado de fora se
dobrassem, se curvassem para formar um forro e deixar surgir uma relação
consigo, constituir um lado de dentro que se escava e desenvolve segundo uma
dimensão própria" (DELEUZE, 1991, p.l07). Uma vez que essa nova dimensão
tenha sido estabelecida, o sujeito é agenciado/montado de novas formas, em
termos de um problema de "autodomínio", fazendo com que incida sobre
si mesmo – aquele lado de dentro amando sobre si mesmo – o poder que fazemos
incidir sobre outros. Nesse mesmo processo, o poder que se faz incidir sobre
os outros é reconfigurado como uma relação de poder entre o lado de dentro da
gente e o lado de dentro do outro.
Esse lado de dentro
singularizado e dobrado é, assim, inevitavelmente estabilizado, não em relação
a UM domínio de processos
psicológicos, mas em relação a uma configuração de forças, corpos, edifícios e
técnicas que o mantêm no lugar. Para os gregos, isso compreendia todo o
aparato de formação ética estabelecido na cidade, as relações de família, os
tribunais, os jogos de poder e de lazer e as relações eróticas por meio dos
quais aqueles varões que exerciam o poder eram agenciados. "Eis o que fizeram
os gregos: dobraram a força, sem que ela deixasse de ser força. Eles a
relacionaram consigo
180 ▲
mesma. Longe de ignorarem a interioridade, a individualidade,
a subjetividade, eles inventaram o sujeito, mas como uma derivada, como o
produto de uma 'subjetivação'" (DELEUZE, 1991, p. 108). Essa relação
consigo mesmo, esse dobramento que produz os efeitos de subjetivação, não é
algo passivo. De novo, como observa Deleuze, ela é criada apenas ao ser praticada, ao ser levada a efeito, ao se
envolver com as técnicas de governo do corpo e de controle da dieta, com as
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