quinta-feira, 7 de junho de 2012

GILLES DELEUZE - A ILHA DESERTA E OUTROS TEXTOS - Textos e entrevistas (1953-1974)



David Lapoujade

Este primeiro volume reagrupa a quase totalidade dos textos de Gilles Deleuze publicados na França e fora dela entre 1953 e 1974, desde o aparecimento de Empirismo e subjetividade, sua primeira obra, até os debates subseqüentes à publicação de O anti-Édipo, escrito com Félix Guattari. No essencial, esta compilação compõe-se de textos já publicados – artigos, resenhas, prefácios, entrevistas, conferências – mas que não figuram em obra alguma já existente de Deleuze.
A fim de não impor uma opinião preconcebida ao sentido ou à orientação dos textos, adotamos uma ordem estritamente cronológica. Uma classificação temática teria tido, talvez, a vantagem de inscrever-se na linhagem da compilação denominada Conversações e de um projeto de bibliografia redigido por volta de 1989 DL, mas isso teria tido a desvantagem maior de alimentar a crença na reconstituição de algum livro “de” Deleuze ou que ele teria projetado.
As únicas condições fixadas por Deleuze – e que respeitamos, evidentemente – são as seguintes: não publicar textos anteriores a 1953, nada de publicações póstumas ou de inéditos. Entretanto, o leitor encontrará alguns textos publicados aqui pela primeira vez, mas estão todos mencionados no esboço de bibliografia de 1989.
Assim, esta compilação procura tornar disponíveis textos quase sempre pouco acessíveis por se encontrarem dispersos em revistas, jornais, obras coletivas etc. Por razões evidentes, excluímos deste conjunto [8] certos textos. Portanto, não figuram no presente volume:
·           as publicações anteriores a 1953;
·           os cursos, seja qual for a forma dada a eles (quer tenham sido publicados conforme transcrições de materiais sonoros ou visuais ou resumidos pelo próprio Deleuze, como, por exemplo, o curso de 1959-1960 sobre Rousseau, redigido por Deleuze para o Centro de Documentação Universitária da Sorbonne);
·           - os artigos que Deleuze retomou em seus outros livros (por exemplo, “Reverter o platonismo”, que figura em apêndice de Lógica do sentido). As correções feitas nunca são suficientemente importantes para justificar a reedição do artigo sob sua forma inicial;
·           - as resenhas de obras escritas para revistas especializadas, que se reduzem freqüentemente a algumas linhas (com exceção dos textos de nº 3, 12 e 21, mais longos, e que dão testemunho de interesses precisos para Deleuze);
·           - os extratos de textos (passagens de cartas, retranscrições de falas, palavras de agradecimentos etc.);
·           - os textos coletivos (petições, questionários, comunicados etc.);
Por comodidade, a ordem cronológica procede de acordo com a data de aparecimento e não segundo a data de redação conhecida ou presumida.
A cada vez, reproduzimos o texto em sua versão inicial, acrescentando correções usuais. Todavia, considerando que Deleuze redigia todas as suas entrevistas, conservamos certas características próprias da sua escrita (pontuação, uso de maiúsculas etc.) DL.

Não quisemos sobrecarregar os textos com notas. Limitamo-nos a dar algumas precisões biográficas antes de cada texto, quando elas podiam esclarecer as circunstâncias de um texto ou de uma colaboração. Na falta de indicações suficientemente precisas, demos, em alguns casos, um título a artigos que não o possuíam, especificando isso a cada vez. [9]
Quando faltavam certas referências de citações, nós, igualmente, as precisamos. As notas do editor são precedidas de letras.
No final do volume, o leitor encontrará um índice geral de nomes, assim como uma bibliografia completa de todos os artigos publicados no curso do período 1953-1974.
Sob o título Dois regimes de loucos e outros textos, está em preparação um segundo volume que reagrupa o conjunto dos textos de 1975 a 1995. Algumas notas aqui presentes remetem a esse segundo volume sob a abreviação DRF, seguida da menção do título do texto.
Agradecimentos:
De início, quero agradecer profundamente a Fanny Deleuze pela confiança e amizade que dela recebi ao longo de todo este trabalho. É claro que sem sua ajuda e suas indicações esta compilação não teria vindo à luz. Agradeço também a Emilie e a Julien Deleuze pelo apoio constante.
Agradeço também a Jean-Paul Manganaro e a Giorgio Passerone pela amigável e preciosa colaboração; a Daniel Defert pelos seus conselhos; a Philippe Artières, responsável pelo Centro Michel Foucault, pela sua ajuda.
Finalmente, esta compilação deve muito ao indispensável trabalho bibliográfico conduzido por Timothy S. Murphy, a quem agradeço pela sua importante ajuda.
. . .
Tradução de

Luiz B. L. Orlandi


[11]                                                              1

CAUSAS E RAZÕES DAS ILHAS DESERTAS DL

[Manuscrito dos anos 50]


Os geógrafos dizem que há dois tipos de ilhas. Eis uma informação preciosa para a imaginação, porque ela aí encontra uma confirmação daquilo que, por outro lado, já sabia. Não é o único caso em que a ciência torna a mitologia mais material e em que a mitologia torna a ciência mais animada. As ilhas continentais são ilhas acidentais, ilhas derivadas: estão separadas de um continente, nasceram de uma desarticulação, de uma erosão, de uma fratura, sobrevivem pela absorção daquilo que as retinha. As ilhas oceânicas são ilhas originárias, essenciais: ora são constituídas de corais, apresentando-nos um verdadeiro organismo, ora surgem de erupções submarinas, trazendo ao ar livre um movimento vindo de baixo; algumas emergem lentamente, outras também desaparecem e retornam sem que haja tempo para anexa-las.  Esses dois tipos de ilhas, originárias ou continentais, dão testemunho de uma oposição profunda entre o oceano e a terra. Umas nos fazem lembrar que o mar está sobre a terra, aproveitando-se do menor decaimento das estruturas mais elevadas; as outras lembram-nos que a terra está ainda aí, sob o mar, e congrega suas forças para romper a superfície. Reconheçamos que os elementos, em geral, se detestam, que eles têm horror uns dos outros. Nada de tranqüilizador nisso tudo. Do mesmo modo, deve parecer-nos filosoficamente normal que uma ilha esteja deserta. O homem só pode viver bem, e em segurança, ao supor findo (pelo menos dominado) o combate vivo entre a terra e o mar. Ele quer chamar esses dois elementos de pai e mãe [12], distribuindo os sexos à medida do seu devaneio. Em parte, ele deve persuadir-se de que não existe combate desse gênero; em parte, deve fazer de conta que esse combate já não ocorre. De um modo ou de outro, a existência das ilhas é a negação de um tal ponto de vista, de um tal esforço e de uma tal convicção. Será sempre causa de espanto que a Inglaterra seja povoada, já que o homem só pode viver sobre uma ilha esquecendo o que ela representa. Ou as ilhas antecedem o homem ou o sucedem.


Mas tudo o que nos dizia a geografia sobre dois topos de ilhas, a imaginação já o sabia por sua conta e de uma outra maneira. O impulso NT do homem, esse que o conduz em direção às ilhas, retoma o duplo movimento que produz as ilhas em si mesmas. Sonhar ilhas, com angústia ou alegria, pouco importa, é sonhar que se está separando, ou que já se está separado, longe dos continentes, que se está só ou perdido; ou, então, é sonhar que se parte de zero, que se recria, que se recomeça. Havia ilhas derivadas, mas a ilha é também aquilo em direção ao que se deriva; e havia ilhas originárias, mas a ilha é também a origem, a origem radical e absoluta. Separação e recriação não se excluem, sem dúvida: é preciso ocupar-se quando se está separado, é preferível separar-se quando se quer recriar; contudo, uma das duas tendências domina sempre. Assim, o movimento da imaginação das ilhas retoma o movimento de sua produção, mas ele não tem o mesmo objeto. É o mesmo movimento, mas não o mesmo móbil. Já não é a ilha que se separou do continente, é o homem que, estando sobre a ilha, encontra-se separado do mundo. Já não é a ilha que se cria do fundo da terra através das águas, é o homem que recria o mundo a partir da ilha e sobre as águas. Então, por sua conta, o homem retoma um e outro dos movimentos da ilha e o assume sobre uma ilha que, justamente, não tem esse movimento: pode-se derivar em direção a uma ilha todavia original, e criar numa ilha tão-somente derivada. Pensando bem, encontrar-se-á aí uma nova razão pela qual toda ilha é e permanecerá teoricamente deserta.
Para que uma ilha deixe de ser deserta, não basta, com efeito, que ela seja habitada. Se é verdade que o movimento do homem em direção à ilha retoma o movimento da ilha antes dos homens, ela pode ser ocupada por homens em geral, mas é ainda deserta, mais deserta ainda, desde que eles estejam suficientemente, isto é, [13] absolutamente separados, desde que eles sejam suficientemente, isto é, absolutamente criadores. Sem dúvida, de fato, isso nunca é assim, se bem que o náufrago se aproxime de uma tal condição. Mas, para que isso seja assim, há de se impelir na imaginação o movimento que conduz o homem à ilha. É só em aparência que um tal movimento vem romper o deserto da ilha; na verdade, ele retoma e prolonga o impulso que a produzia como ilha deserta; longe de compromete-la, esse movimento leva-a à sua perfeição, ao seu apogeu. Em certas condições que o atam ao próprio movimento das coisas, o homem não rompe o deserto, sacraliza-o. Os homens que vêm à ilha, ocupam-na realmente e a povoam; mas, na verdade, se estivessem suficientemente separados, se fossem suficientemente criadores, eles apenas dariam à ilha uma imagem dinâmica dela mesma, uma
consciência do movimento que a produziu, de modo que, através do homem, a ilha, enfim, tomaria consciência de si como deserta e sem homens. A ilha seria tão-somente o sonho do homem, e o homem seria a pura consciência da ilha. Para tanto, ainda uma vez, uma única condição: seria preciso que o homem se sujeitasse ao movimento que o conduz à ilha, movimento que prolonga e retoma o impulso que produzia a ilha. Então, a geografia se coligaria com o imaginário. Desse modo, a única resposta à questão cara aos antigos exploradores (“que seres existem na ilha deserta?”) é que o homem já existe aí, mas um homem pouco comum, um homem absolutamente separado, absolutamente criador, uma Idéia de homem, em suma, um protótipo, um homem que seria quase um deus, uma mulher que seria uma deusa, um grande Amnésico, um puro Artista, consciência da Terra e do Oceano, um enorme ciclone, uma bela bruxa, uma estátua da Ilha de Páscoa. Eis o homem que precede a si mesmo. Na ilha deserta, uma tal criatura seria a própria ilha deserta na medida em que ela se imagina e se reflete em seu movimento primeiro. Consciência da terra e do oceano, tal é a ilha deserta, pronta para recomeçar o mundo. Porém, dado que os homens, mesmo voluntários, não são idênticos ao movimento que os põe na ilha, eles não reatam o impulso que a produz; é sempre de fora que encontram a ilha e o fato de sua presença contraria, nela, o deserto. Portanto, a unidade da ilha deserta e do seu habitante não é real, mas imaginária, como a idéia de ver [14] atrás da cortina quando ali não se está. E mais: é duvidoso que a imaginação individual possa por si mesma elevar-se até essa admirável identidade; veremos que isso requer a imaginação coletiva no que ela tem de mais profundo, nos ritos e nas mitologias.
A confirmação, pelo menos negativa, de tudo isso pode ser encontrada nos próprios fatos, quando se pensa naquilo que uma ilha deserta é realmente, geograficamente. A ilha e ilha deserta, com mais forte razão, são noções extremamente pobres ou frágeis do ponto de vista da geografia; elas têm apenas um fraco teor científico. Isso é um privilégio para elas. Não há unidade objetiva alguma no conjunto das ilhas. Menos ainda nas ilhas desertas. Sem dúvida, a ilha deserta pode ter um solo extremamente pobre. Deserta, ela pode ser um deserto, mas isso não é necessário. Se o verdadeiro deserto é inabitado, isso ocorre na medida em que não apresenta as condições de direito que tornariam possível a vida, vida vegetal, anima ou humana. Contrariamente, que a ilha deserta esteja inabitada mantém-se como puro fato devido às circunstâncias, isto é, aos arredores. A ilha é o que o mar circunda e aquilo em torno do que se dão voltas, é como um ovo. Ovo do mar, ela é arredondada. Tudo se passa como se ela tivesse posto em torno de si o seu deserto, fora dela. O que está deserto é o
oceano que a circunda inteiramente. É em virtude das circunstâncias, por razões distintas do princípio do qual ela depende, que os navios passam ao largo e não param. Mais do que ser um deserto, ela é desertada. Desse modo, mesmo que ela, em si mesma, possa conter as mais vivas fontes, a fauna mais ágil, a flora mais colorida, os mais surpreendentes alimentos, os mais vivos selvagens e, como seu mais precioso fruto, o náufrago, além de contar, finalmente, por um instante, com o barco que a vem procurar, apesar de tudo isso ela não deixa de ser a ilha deserta. Para modificar tal situação, seria preciso operar uma redistribuição geral dos continentes, do estado dos mares, das linhas de navegação.
Novamente, isso quer dizer que a essência da ilha deserta é imaginária e não real, mitológica e não geográfica. Simultaneamente, seu destino está submetido às condições humanas que tornam possível uma mitologia. A mitologia não nasceu de uma simples vontade, e os povos admitiram bem cedo não compreender seus mitos. É nesse mesmo momento que uma [15] literatura começa. A literatura é o ensaio que procura interpretar muito engenhosamente os mitos que já não se compreende, no momento em que eles já não são compreendidos, porque já não se sabe sonha-los e nem reproduzi-los. A literatura é o concurso dos contra-sensos que a consciência opera naturalmente e necessariamente sobre os temas do inconsciente; como todo concurso, ela tem seus preços. Seria preciso mostrar como a mitologia entra em falência nesse sentido e morre em dois romances clássicos da ilha deserta, Robinson e Suzana. Suzana e o PacíficoDL acentua o aspecto separado das ilhas, a separação da moça que aí se encontra; Robinson NT acentua o outro aspecto, o da criação, o do recomeço. É verdade que são bem diferentes as maneiras pelas quais a mitologia entra em falência nesses dois casos. Com a Suzana de Giraudoux a mitologia sofre a morte mais bonita, a mais graciosa. Com Robinson, a mais penosa. É difícil imaginar um romance tão aborrecido, e é uma tristeza ver ainda crianças lendo-o. A visão de mundo de Robinson reside exclusivamente na propriedade e jamais se viu proprietário tão moralizante. A recriação mítica do mundo a partir da ilha deserta cede lugar à recomposição da vida cotidiana burguesa a partir de um capital. Tudo é tirado do barco, nada é inventado, tudo é penosamente aplicado na ilha. O tempo é tão-só um tempo necessário ao capital para obter um ganho ao final de um trabalho. E a função providencial de Deus é garantir o lucro. Deus
reconhece os seus, as pessoas de bem, porque elas têm belas propriedades, ao passo que os maus têm péssimas propriedades, maltratadas. A companhia de Robinson não é Eva, mas Sexta Feira, dócil ao trabalho, feliz por ser escravo, muito rapidamente enfastiado de antropofagia. Todo leitor sadio sonharia vê-lo finalmente comer Robinson. Esse romance representa a melhor ilustração da tese que afirma o liame entre capitalismo e protestantismo. Robinson Crusoe desenvolve a falência e a morte da mitologia no puritanismo. Tudo muda com Suzana. Com ela, a ilha deserta é um conservatório de objetos já prontos, de objetos luxuosos. A ilha já é imediatamente portadora daquilo que a civilização levou séculos para produzir, para [16] aperfeiçoar, amadurecer. Porém, com Suzana, a mitologia também morre, é verdade que de uma maneira parisiense. Suzana nada tem para recriar; a ilha deserta lhe dá o duplo de todos os objetos da cidade, de todas as vitrines de magazines, duplo inconsistente, separado do real, pois ele não recebe a solidez que os objetos ganham ordinariamente nas relações humanas, no seio das vendas e compras, das trocas e dos presentes. É uma moça insípida. Seus companheiros não são Adão, mas jovens cadáveres; e quando reencontrar os homens vivos, ela os amará com um amor uniforme, à maneira de párocos, como se o amor fosse o limiar mínimo de sua percepção.
Trata-se de reencontrar a vida mitológica da ilha deserta. Contudo, na própria falência, Robinson nos dá uma indicação: inicialmente, ele precisaria de um capital. Quanto à Suzana, antes de tudo, ela estava separada. E nem ele nem ela, finalmente, poderiam ser o elemento de um par. É preciso restituir essas três indicações à sua pureza mitológica e retornar ao movimento da imaginação que faz da ilha deserta um modelo, um protótipo da alma coletiva. Primeiramente, é verdade que não se opera a própria criação a partir da ilha deserta, mas a re-criação, não o começo, mas o re-começo. Ela é a origem, mas origem segunda. A partir dela tudo recomeça. A ilha é o mínimo necessário para esse recomeço, o material sobrevivente da primeira origem, o núcleo ou o ovo irradiante que deve bastar para re-produzir tudo. Evidentemente, isso tudo supõe que a formação do mundo se dê em dois tempos, em dois estágios, nascimento e renascimento; supõe que o segundo seja tão necessário e essencial quanto o primeiro; supõe, portanto, que o primeiro esteja necessariamente comprometido, que ele tenha nascido para uma retomada e já re-negado numa catástrofe. Somente há um segundo nascimento porque houve uma catástrofe e, inversamente, há catástrofe após a origem porque deve haver, desde a origem, um segundo nascimento. Podemos encontrar em nós a fonte desse tema: para apreciar a vida, nós a alcançamos não em sua produção, mas em sua reprodução. O animal, cujo modo de reprodução se ignora, ainda não ocupou lugar entre os vivos. Não basta que tudo comece, é preciso que tudo se repita, uma vez encerrado o ciclo das combinações possíveis. O segundo momento não é [17] aquele que sucede o primeiro, mas é o reaparecimento do primeiro quando se encerrou o ciclo dos outros momentos. A segunda origem, portanto, é mais essencial que a primeira, porque ela nos dá a lei da série, a lei da repetição, da qual a primeira origem apenas nos dava os momentos. Porém, mais ainda do que nos nossos devaneios, esse tema se manifesta em todas as mitologias. Ele é bem conhecido como mito do dilúvio. A arca se detém na única porção da terra que não está submersa, lugar circular e sagrado de onde o mundo recomeça. É uma ilha ou uma montanha, ambas ao mesmo tempo, pois a ilha é uma montanha marinha e a montanha é uma ilha ainda seca. Eis a primeira criação tomada numa recriação que se concentra numa terra santa ou no meio do oceano. Segunda origem do mundo, mais importante do que a primeira é a ilha santa: muitos mitos nos dizem que aí se encontra um ovo, um ovo cósmico. Como ela forma uma segunda origem, ela é confiada ao homem, não aos deuses. Ela está separada, separada por toda a espessura do dilúvio. O oceano e a água, com efeito, são o princípio de uma tal segregação que, nas ilhas santas, são constituídas por comunidades exclusivamente femininas, como as de Circe e Calipso. Enfim, o começo partia de Deus e de um par, mas não o recomeço, que parte de um ovo, de modo que a maternidade mitológica é freqüentemente uma partenogênese. A idéia de uma segunda origem dá todo seu sentido à ilha deserta, sobrevivência da ilha santa num mundo que tarda para recomeçar. No ideal do recomeço há algo que precede o próprio começo, que o retoma para aprofunda-lo e recua-lo no tempo. A ilha deserta é a matéria desse imemorial ou desse mais profundo.
Tradução de
 Luiz B. L. Orlandi

[18]
2
JEAN HYPPOLITE, LÓGICA E EXISTÊNCIA DL
[1954]

Gênese e estrutura da Fenomenologia do Espírito NT conservava tudo de Hegel e o comentava. A intenção deste novo livro é muito diferente. Hyppolite questiona a Lógica, a Fenomenologia e a Enciclopédia a partir de uma idéia precisa e sobre um ponto preciso. A filosofia deve ser ontologia, não pode ser outra coisa; mas não há ontologia da essência, só há ontologia do sentido. Aí está, parece, o tema desse livro essencial, cujo próprio estilo é de uma grande potência. Que a filosofia seja uma ontologia significará, primeiramente, que ela não é antropologia.
A antropologia quer ser um discurso sobre o homem. Como tal, ela supõe o discurso empírico do homem, no qual estão separados aquele que fala e aquilo de que ele fala. A reflexão está de um lado e, de outro, está o ser. O conhecimento, assim compreendido, é um movimento que não é um movimento da coisa, permanecendo, pois, fora do objeto. Portanto, o conhecimento é uma potência de abstrair, e a reflexão é uma reflexão exterior e formal. Desse modo, o empirismo remete a um formalismo, assim como o formalismo remete a um empirismo. “A [19] consciência empírica é uma consciência que se dirige ao ser preexistente e relega a reflexão à subjetividade”. A subjetividade será tratada, pois, como um fato, e a antropologia se constituirá como a ciência desse fato. Que a subjetividade, com Kant, devenha um direito, nada muda no essencial. “A consciência crítica é uma consciência que reflete o si do conhecimento, mas que relega o ser à coisa em si”. É certo que Kant se eleva à identidade sintética



do sujeito e do objeto, mas somente de um objeto relativo ao sujeito: essa própria identidade é a síntese da imaginação, não é posta no ser. Kant ultrapassa o psicológico e o empírico, mas permanecendo no antropológico. Enquanto a determinação for apenas subjetiva, não saímos da antropologia. Se é preciso sair dela, como faze-lo? As duas questões são apenas uma: o meio de sair dela é também a necessidade de sair dela. Que o pensamento se ponha como pressuposto, Kant o viu admiravelmente: ele se põe, porque ele se pensa e se reflete, e ele se põe como pressuposto porque o todo dos objetos o supõe como aquilo que torna possível um conhecimento. Assim, em Kant, o pensamento e a coisa são idênticos, mas o que é idêntico ao pensamento é somente uma coisa relativa, não a coisa enquanto ser, em si mesma. Para Hegel, portanto, trata-se de elevar-se à verdadeira identidade da posição e do pressuposto, isto é, ao Absoluto. Na Fenomenologia, o livro mostra-nos que a diferença geral do ser e da reflexão, do em-si e do para-si, da verdade e da certeza, desenvolve-se nos momentos concretos de uma dialética, cujo próprio movimento consiste em suprimir essa diferença ou somente conserva-la como aparência necessária. Nesse sentido, a Fenomenologia parte da reflexão humana para mostrar que tal reflexão e sua seqüência conduzem ao saber absoluto que elas pressupõem. Trata-se, precisamente, como diz Hyppolite, de “reduzir” o antropológico, de “resgatar a hipoteca” de um saber cuja fonte é alóctone. Mas não é somente no final ou no início que o saber absoluto é. Já se encontra em todos os momentos: uma figura da consciência é, de uma outra maneira, um momento do conceito; a diferença exterior entre a reflexão e o ser é, de uma outra maneira, a diferença interna do próprio Ser, vale dizer [20], é o Ser idêntico à diferença, à mediação. “Uma vez que a diferença da consciência é retornada ao si, esses momentos apresentam-se, então, como conceitos determinados e como seu movimento orgânico fundado em si mesmo”.
Dir-se-á que há “orgulho” tomar-se por Deus, dar-se o saber absoluto. Mas é preciso compreender o que é o ser em relação ao dado. O Ser, segundo Hyppolite, não é a essência, mas o sentido. Dizer que basta este mundo-aqui não é somente dizer que ele nos basta, mas que ele basta a si e que ele remete ao ser, não como à essência para além da aparência, não como a um segundo mundo, que seria o Inteligível, mas como ao sentido deste mundo-aqui. Já encontramos esta substituição da essência pelo sentido em Platão, sem dúvida, quando ele mostra que o próprio segundo mundo é o tema de uma dialética que faz dele o sentido deste mundo-aqui, não um outro mundo. Mas o grande agente da substituição é ainda Kant, porque a crítica troca a possibilidade formal pela possibilidade transcendental, o ser do possível pela possibilidade do ser, a
identidade lógica pela identidade sintética da recognição, o ser da lógica pela logicidade do ser – em suma, a essência pelo sentido. Que não haja segundo mundo é, assim, de acordo com Hyppolite, a grande proposição da Lógica hegeliana, porque ela é a razão de transformar a metafísica em lógica e, ao mesmo tempo, em lógica do sentido. Que não haja além-mundo significa que não há um além do mundo (porque o Ser é somente o sentido), significa que não há no mundo um além-mundo do pensamento (porque no pensamento é o ser que se pensa), significa, enfim, que não há no próprio pensamento um além da linguagem. O livro de Hyppolite é uma reflexão sobre as condições de um discurso absoluto; os capítulos sobre o inefável e sobre a poesia são essenciais a esse respeito. As pessoas que tagarelam são as mesmas que acreditam no inefável. Porque o Ser é o sentido, o verdadeiro saber não é o saber de um Outro, nem de outra coisa. De certa maneira, o saber absoluto é o mais próximo, o mais simples, ele está aí. “Nada há para se ver atrás da cortina” ou, como diz Hyppolite, “o segredo é que não há segredo”.
Vê-se, então, qual é a dificuldade, aquela que o autor assinala fortemente: se a ontologia é uma ontologia do sentido e não da [21] essência, se não há segundo mundo, como pode o saber absoluto distinguir-se ainda do saber empírico? Não recaímos na simples antropologia que tínhamos criticado? É preciso que o saber absoluto compreenda todo o saber empírico e nada compreenda além disso, pois nada distinto dele há para ser compreendido, e, contudo, é preciso, ao mesmo tempo, que ele compreenda sua diferença radical relativamente ao saber empírico. A idéia de Hyppolite é a seguinte: o essencialismo, apesar das aparências, não era o que nos protegia do empirismo e nos permitia ultrapassa-lo. Na visão da essência, a reflexão não é menos exterior do que no empirismo ou na pura crítica. O empirismo punha a determinação como puramente subjetiva; o essencialismo vai tão-somente ao fundo dessa limitação ao opor as determinações entre si e estas ao Absoluto. Estão ambos do mesmo lado. A ontologia do sentido, ao contrário, é o Pensamento total que só conhece a si em suas determinações, que são momentos da forma. No empírico e no absoluto há o mesmo ser e o mesmo pensamento; mas a diferença empírica, externa, entre o pensamento e o ser, cede lugar à diferença idêntica ao Ser, à diferença interna do Ser que se pensa. Por isso, o saber absoluto distingue-se efetivamente do saber empírico, mas só se distingue deste ao negar, também, o saber da essência indiferente. Portanto, na lógica, ao contrário do que ocorre no empírico, não se tem, de um lado, o que eu digo e, de outro, o sentido daquilo que digo – sendo a persecução de um pelo outro a dialética da Fenomenologia. Meu discurso é logicamente ou propriamente filosófico, ao contrário, quando digo o
sentido daquilo que digo, e quando, deste modo, o Ser se diz. Um tal discurso, estilo particular da filosofia, só pode ser circular. É de se notar, a esse respeito, as páginas de Hyppolite sobre o problema do começo em filosofia, problema que não é apenas lógico, mas pedagógico.
Hyppolite ergue-se, portanto, contra toda interpretação antropológica ou humanista de Hegel. O saber absoluto não é uma reflexão do homem, mas uma reflexão do Absoluto no homem. O Absoluto não é um segundo mundo e, todavia, o saber absoluto distingue-se efetivamente do saber empírico, assim como a filosofia distingue-se de toda antropologia. [22]. Sobre isso, entretanto, se devemos considerar como decisiva a distinção feita por Hyppolite entre a Lógica e a Fenomenologia, a filosofia da história não teria com a Lógica uma relação mais ambígua? Hyppolite diz: como sentido, o Absoluto é devir; mas, como não se trata, sem dúvida, de um devir histórico, (histórico designando aqui algo totalmente distinto da simples característica de um fato), qual é a relação do devir da Lógica com a história? A relação entre a ontologia e o homem empírico está perfeitamente determinada, mas não a relação entre a ontologia e o homem histórico. E quando Hyppolite sugere que é preciso reintroduzir a própria finitude no Absoluto, não corremos o risco de um retorno ao antropologismo, sob nova forma? A conclusão de Hyppolite permanece aberta: ela cria o caminho de uma ontologia. Mas gostaríamos de indicar que a fonte da dificuldade já se encontrava, talvez, na própria Lógica. Se a filosofia tem uma significação, ela o tem somente por ser uma ontologia, e uma ontologia do sentido, o que se pode reconhecer justamente a partir de Hyppolite. O que se tem no empírico e no absoluto é o mesmo ser e é o mesmo pensamento; mas a diferença entre o pensamento e o ser é ultrapassada no absoluto pela posição do Ser idêntico à diferença, ser que, como tal, se pensa e se reflete no homem. Esta identidade absoluta do ser e da diferença chama-se sentido. Porém, em tudo isso há um ponto no qual Hyppolite mostra-se completamente hegeliano: o Ser só pode ser idêntico à diferença na medida em que a diferença seja levada ao absoluto, ou seja, à contradição. A diferença especulativa é o Ser que se contradiz. A coisa se contradiz porque, distinguindo-se de tudo aquilo que não é, ela encontra seu ser nessa própria diferença; ela só se reflete refletindo-se no outro, pois o outro é seu outro. É este o tema que Hyppolite desenvolve ao analisar os três momentos da Lógica: o ser, a essência e o conceito. Hegel criticava em Platão e em Leibniz o não terem ido até a contradição, de terem permanecido, um, na simples alteridade e, o outro, na pura diferença. Isto supõe, pelo menos, que não só os momentos da Fenomenologia e os momentos da Lógica não são momentos no mesmo sentido, mas supõe também que há duas maneiras, a
fenomenológica e a lógica, de se [23] contradizer. De acordo com este tão rico livro de Hyppolite, poder-se-ia perguntar o seguinte: não se poderia fazer uma ontologia da diferença que não tivesse de ir até a contradição, justamente porque a contradição seria menos e não mais do que a diferença? A contradição não é somente o aspecto fenomênico e antropológico da diferença? Hyppolite diz que uma ontologia da pura diferença nos restituiria a uma reflexão puramente exterior e formal e, afinal de contas, se revelaria ontologia da essência. Entretanto, a mesma questão poderia ser levantada de outro modo: é a mesma coisa dizer que o Ser se exprime e dizer que ele se contradiz? Se é verdade que a segunda e a terceira parte do livro de Hyppolite fundam uma teoria da contradição no Ser, na qual a própria contradição é o absoluto da diferença, em troca disso, na primeira parte (teoria da linguagem) e em todo o livro (alusões ao esquecimento, à reminiscência, ao sentido perdido), não estaria Hyppolite fundando uma teoria da expressão, na qual a diferença é a própria expressão e, a contradição, seu aspecto apenas fenomênico?
. . .
Tradução de

Luiz B. L. Orlandi
































[24]
3
INSTINTOS E INSTITUIÇÕES
(1955)
         Os termos instinto e instituição são empregados para designar, essencialmente, procedimentos satisfação. Às vezes, reagindo por natureza a estímulos externos, o organismo retira do mundo os elementos de satisfação de suas tendências e de suas necessidades, elementos que, para diferentes os animais, formam mundos específicos. Outras vezes, instituindo um mundo original entre suas tendências e o mundo exterior, o sujeito elabora meios de satisfação artificiais, meis que liberam o organismo da natureza ao submete-lo a outra coisa e que transformam a própria tendência ao introduzi-la em um novo meio; é verdade que o dinheiro livra da fome, com a condição de se te-lo, e que o casamento poupa do trabalho de se procurar um parceiro, mas traz consigo outras obrigações. Isto quer dizer que toda experiência individual supõe, como um a priori, a preexistência de um meio no qual a experiência é levada a cabo, meio específico ou meio institucional. O instinto e a instituição são as duas formas organizadas de uma satisfação possível.
            Não há dúvida de que a tendência se satisfaz na instituição: no casamento a sexualidade, na propriedade a avidez. Pode-se objetar, apontando o exemplo de instituições, como o Estado, às quais nenhuma tendência corresponde. Mas é claro que tais instituições são secundárias, que elas já supõem [25] comportamentos institucionalizados, que elas invocam uma utilidade derivada propriamente social, a qual, em última instância, encontra o princípio do qual deriva na relação do social com as tendências. A instituição se apresenta sempre como um sistema organizado de meios. É aí que está, aliás, a diferença entre a instituição e a lei: esta é uma limitação das ações, aquela, um modelo positivo de ação. Contrariamente às teorias da lei, que colocam o positivo fora do social (direitos naturais) e o social no negativo (limitação contratual), a teoria da



instituição põe o negativo fora do social (necessidades) para apresentar a sociedade como essencialmente positiva, inventiva (meios originais de satisfação). Tal teoria nos dará, enfim, critérios políticos: a tirania é um regime onde há muitas leis e poucas instituições, a democracia é um regime onde há muitas instituições e muito poucas leis. A opressão se mostra quando as leis são aplicadas diretamente sobre os homens, e não sobre as instituições prévias que garantem os homens.
Mas, se é verdade que a tendência se satisfaz na instituição, a instituição não se explica pela tendência. As mesmas necessidades sexuais jamais explicarão as múltiplas formas possíveis de casamento. Nem o negativo explica o positivo, nem o geral explica o particular. O “desejo de abrir o apetite” não explica o aperitivo, porque há mil outras maneiras de abrir o apetite. A brutalidade não explica absolutamente a guerra; no entanto, ela aí encontra seu melhor meio. Eis o paradoxo da sociedade: nós falamos de instituições quando nos encontramos diante de processos de satisfação que não são desencadeados e nem determinados pela tendência que neles está em vias de se satisfazer – assim como não são eles explicados pelas características da espécie. A tendência é satisfeita por meios que não dependem dela. Do mesmo modo, ela nunca é satisfeita sem ser, ao mesmo tempo, coagida ou maltratada, e transformada, sublimada. De modo que a neurose é possível. Além disso, se a necessidade encontra na instituição uma satisfação tão-somente indireta, “obliqua”, não basta dizer que “a instituição é útil”, pois é preciso ainda perguntar: para quem ela é útil? Para todos aqueles que dela têm necessidade? Ou antes, para alguns (classe privilegiada), ou somente para aqueles que põem em funcionamento a instituição (burocracia)? O mais profundo problema sociológico consiste, então, em procurar qual [26] é esta outra instância da qual dependem diretamente as formas sociais da satisfação das tendências. Ritos de uma civilização, meios de produção? Seja o que for, a utilidade humana é sempre algo distinto de uma utilidade. A instituição social remete-nos a uma atividade social constitutiva de modelos dos quais não somos conscientes, e que não se explicam pela tendência ou pela utilidade, visto que esta última, como utilidade humana, ao contrário, a supõe. Neste sentido, o padre, o homem do ritual, é sempre o inconsciente do usuário.
Qual a diferença em relação ao instinto? Neste, nada ultrapassa a utilidade, salvo a beleza. A tendência era satisfeita indiretamente pela instituição, o instinto a satisfaz diretamente. Não há interdições, coerções instintivas, só repugnâncias são instintivas. Desta vez, é a própria tendência que, sob a forma de um fator fisiológico interno, dispara um comportamento qualificado. E, sem dúvida, o fator interno não explicará que, mesmo idêntico a si, ele, no entanto, desencadeia comportamentos diferentes nas diferentes espécies. Mas isto quer dizer que o instinto se encontra no cruzamento de uma dupla causalidade, a dos fatores fisiológicos individuais e a da própria espécie - hormônio e especificidade. Assim, perguntar-se-á somente em que medida o instinto pode remeter ao simples interesse do indivíduo: caso em que, no limite, não será mais preciso falar de instinto, mas de reflexo, de tropismo, de hábito e de inteligência. Ou o instinto só pode ser compreendido no quadro de uma utilidade da espécie, de um bem da espécie, de uma finalidade biológica primeira? “Para quem é útil?” é uma questão que reencontra aqui, mas mudou o seu sentido. Sob seu duplo aspecto, o instinto se apresenta como uma tendência lançada a reações específicas em um organismo.
              O problema comum ao instinto e à instituição é sempre este: como se faz a síntese da tendência e do objeto que a satisfaz? A água que eu bebo não se assemelha, com efeito, aos hidratos dos quais meu organismo carece. Quanto mais o instinto é perfeito em seu domínio, quanto mais ele pertence à espécie, mais ele parece constituir uma potência de síntese original, irredutível. Quanto mais é ele perfectível, e, portanto, imperfeito, mais está ele submetido à variação, à indecisão, mais ele se deixa reduzir unicamente ao jogo de fatores individuais internos [27] e de circunstâncias exteriores, - mais ele dá lugar à inteligência. Ora, no limite, como uma tal síntese, que dá à tendência um objeto que convém a esta, poderia ser inteligente, visto que ela, para ser feita, implica um tempo que o indivíduo não vive e tentativas às quais ele não sobreviveria? 
            Impõe-se reencontrar a idéia de que a inteligência é coisa social mais que individual, e que ela encontra no social o meio intermediário, o terceiro meio que a torna possível. Qual é o sentido do social com relação às tendências? Integrar as circunstâncias em um sistema de antecipação, e integrar os fatores internos em um sistema que regra sua aparição, substituindo a espécie. É bem este o caso da instituição. É noite porque a gente se deita; almoça-se porque é meio dia. Não há tendências sociais, mas somente meios sociais de satisfazer as tendências, meios que são originais porque eles são sociais. Toda instituição impõe ao nosso corpo, mesmo em suas estruturas involuntárias, uma série de modelos, e dão à nossa inteligência um saber, uma possibilidade de prever e de projetar. Reencontramos a seguinte conclusão: o homem não tem instintos, ele faz instituições. O homem é um animal em vias de despojar-se da espécie. Do mesmo modo, o instinto traduziria as urgências do animal, e a instituição as exigências do homem: no homem, a urgência da fome devém reivindicação de ter pão. Finalmente, no seu ponto mais agudo, o problema do instinto e da instituição será apreendido, não nas “sociedades” animais, mas nas relações entre animal e homem, quando as exigências do homem incidem sobre o animal, integrando-o em instituições (totemismo e domesticação), quando as urgências do animal encontram o homem, seja fugir ou atacar escapar ou atacá-lo, seja para conseguir alimento e proteção.
. . .
Tradução de
Hélio Rebello Cardoso Junior



[28]
4
BERGSON, 1859-1941 DL
[1956]


Um grande filósofo é aquele que cria novos conceitos: esses conceitos ultrapassam as dualidades do pensamento ordinário e, ao mesmo tempo, dão às coisas uma verdade nova, uma distribuição nova, um recorte extraordinário. O nome de Bergson permanece ligado às noções de duração, memória, impulso vital, intuição. Sua influência e seu gênio se avaliam graças à maneira pela qual tais conceitos se impuseram, foram utilizados, entraram e permaneceram no mundo filosófico. Desde Os dados imediatos, o conceito original de duração estava formado; em Matéria e memória, um conceito de memória; em A evolução criadora, o de impulso vital. A relação das três noções vizinhas deve indicar-nos o desenvolvimento e o progresso da filosofia bergsoniana. Qual é, pois, essa relação?
Em primeiro lugar, entretanto, nós nos propomos estudar somente a intuição, não que ela seja o essencial, mas porque ela é capaz de nos ensinar sobre a natureza dos problemas bergsonianos. Não é por acaso que, falando da intuição, Bergson nos mostra qual é a importância, na vida do espírito, de uma atividade que põe e constitui os problemas [1]: há mais falsos problemas do que falsas soluções, e eles aparecem antes de haver falsas soluções para os verdadeiros problemas. Ora, se uma certa intuição encontra-se sempre no coração da doutrina de um filósofo, uma das [29] originalidades de Bergson está em que sua doutrina organizou a própria intuição como um verdadeiro método, método para eliminar os falsos problemas, para propor os problemas com verdade, método que os propõe então em termos de duração. “As questões relativas ao sujeito e ao objeto, à sua distinção e à sua união, devem ser propostas mais em função do tempo do que do espaço” [2]. Sem dúvida, é a duração que julga a intuição, como Bergson lembrou várias vezes, mas, ainda assim, é somente a intuição que pode, quando  tomou consciência de si como método, buscar a duração nas coisas, evocar a duração, requerer a duração, precisamente porque ela deve à duração tudo o que ela é. Portanto, se a intuição não é um simples gozo, nem um pressentimento, nem simplesmente um procedimento afetivo, nós devemos determinar primeiramente qual é o seu caráter realmente metódico.
A primeira característica da intuição é que, nela e por ela, alguma coisa se apresenta, se dá em pessoa, ao invés de ser inferida de outra coisa  e concluída. O que está em questão, aqui, é já a orientação geral da filosofia; com efeito, não basta dizer que a filosofia está na origem das ciências e que ela foi sua mãe; agora que elas estão adultas e bem constituídas, é preciso perguntar por que há ainda filosofia, em que a ciência não basta. Ora, a filosofia respondeu de apenas duas maneiras a uma tal questão, e isto porque, sem dúvida, há somente duas respostas possíveis: uma vez dito que a ciência nos dá um conhecimento das coisas, que ela está, portanto, em certa relação com elas, a filosofia pode renunciar a rivalizar com a ciência, pode deixar-lhe as coisas, e só apresentar-se de uma maneira crítica como uma reflexão sobre esse conhecimento que se tem delas. Ou então, ao contrário, a filosofia pretende instaurar, ou antes restaurar, uma outra relação com as coisas, portanto um outro conhecimento, conhecimento e relação que a ciência precisamente nos ocultava, de que ela nos privava, porque ela nos permitia somente concluir e inferir, sem jamais nos apresentar, nos dar a coisa em si mesma. É nessa segunda via que Bergson se empenha, [30] repudiando as filosofias críticas, quando ele nos mostra na ciência, e também na atividade técnica, na inteligência, na linguagem cotidiana, na vida social e na necessidade prática, enfim e sobretudo, no espaço, outras tantas formas e relações que nos separam das coisas e de sua interioridade.
Mas a intuição tem uma segunda característica: assim compreendida, ela se apresenta como um retorno. Com efeito, a relação filosófica que nos insere nas coisas, ao invés  de nos deixar de fora, é mais restaurada do que instaurada pela filosofia, é mais reencontrada do que inventada. Estamos separados das coisas, o dado imediato não é, portanto, imediatamente dado; mas nós não podemos estar separados por um simples acidente, por uma mediação que viria de nós, que concerniria tão-somente a nós: é preciso que esteja fundado nas próprias coisas o movimento que as desnatura; para que terminemos por perdê-las, é preciso que as coisas comecem por se perder; é preciso que um esquecimento esteja fundado no ser. A matéria é justamente, no ser, aquilo que prepara e acompanha o espaço, a inteligência e a ciência. É graças a isso que Bergson faz coisa totalmente distinta de uma psicologia,  vez que,  mais do  que ser a  simples inteligência  um  princípio  psicológico  da matéria e do espaço, a própria matéria é um princípio ontológico da inteligência[3]. É por isso também que ele não recusa direito algum ao conhecimento científico, e nos diz que esse conhecimento não nos separa simplesmente das coisas e de sua verdadeira natureza, mas que apreende pelo menos uma das duas metades do ser, um dos dois lados do absoluto, um dos dois movimentos da natureza, aquele em que a natureza se distende e se põe ao exterior de si [4]. Bergson irá mesmo mais longe, uma vez que, em certas condições, a ciência pode unir-se à filosofia, ou seja, ter acesso com ela a uma compreensão total [5]. De qualquer maneira, nós  podemos dizer desde já que não haverá em Bergson a menor distinção de dois mundos, um sensível, outro inteligível, mas somente dois movimentos ou antes dois sentidos de um único e mesmo movimento: um deles é tal que o movimento tende a se congelar em seu produto, no resultado que [31] o interrompe; o outro sentido é o que retrocede, que reencontra no produto o movimento do qual ele resulta. Do mesmo modo, os dois sentidos são naturais, cada um à sua maneira: o primeiro se faz segundo a natureza, mas  esta corre aí o risco de se perder a cada repouso, a cada respiração; o segundo se faz contra a natureza, mas ela aí se reencontra, ela se retoma na tensão. O segundo só pode ser encontrado sob o primeiro, e é sempre assim que ele é reencontrado. Nós reencontramos o imediato porque, para encontrá-lo, precisamos retornar. Em filosofia, a primeira vez é já a segunda; é essa a noção de fundamento. Sem dúvida, de certa maneira, o produto é que é, e o movimento é que não é, que não é mais. Mas não é nesses termos que se deve propor o problema do ser. A cada instante, o movimento já não é, mas isso porque, precisamente, ele não se compõe de instantes, porque os instantes são apenas as suas paradas reais ou virtuais, seu produto e a sombra de seu produto. O ser não se compõe com presentes. De outra maneira, portanto, o produto é que não é  e o movimento é que já era. Em um passo de Aquiles, os instantes e os pontos não são segmentados. Bergson nos mostra isso em seu livro mais difícil: não é o presente que é e o passado que não  é mais, mas o presente é útil, o ser é o passado, o ser era [6] –  veremos que essa tese funda o imprevisível e o contingente, ao invés de suprimi-los. Bergson substituiu a distinção de dois mundos pela distinção de dois movimentos, de dois sentidos de um único e mesmo movimento, o espírito e a matéria, de dois tempos na mesma duração, o passado e o presente, que ele soube conceber como coexistentes justamente porque eles estavam na mesma duração, um sob o outro e não um depois do outro. Trata-se de nos levar, ao mesmo tempo, a compreender a distinção necessária como diferença de tempo, e também a compreender tempos diferentes, o presente e o passado, como contemporâneos um do outro, e formando o mesmo mundo. Nós veremos de que maneira.
Por que dar o nome de imediato àquilo que reencontramos? O que é imediato? Se a ciência é um conhecimento real da coisa, um conhecimento da realidade, o que ela [32] perde ou simplesmente corre o risco de perder não é exatamente a coisa. O que a ciência corre o risco  de perder, a menos que se deixe penetrar de filosofia, é menos a própria coisa do que a diferença da coisa, o que faz seu ser, o que faz que ela seja sobretudo isto do que aquilo, sobretudo isto do que outra coisa. Bergson denuncia com energia o que lhe parece ser falsos problemas: por que há, sobretudo, algo ao invés de nada, por que, sobretudo, a ordem ao invés da desordem [7] ?  Se tais problemas são falsos, mal propostos, isso acontece por duas razões. Primeiro, porque eles fazem do ser uma generalidade, algo de imutável e de indiferente que, no conjunto imóvel em que é tomado, pode distinguir-se tão-somente do nada, do não ser. Em seguida, mesmo que se tente dar um movimento ao ser imutável assim posto, tal movimento será apenas o da contradição, ordem e desordem, ser e nada, uno e múltiplo. Mas, de fato, assim como o movimento não se compõe de pontos do espaço ou de instantes, o ser não pode se compor de dois pontos de vista contraditórios: as malhas seriam muito frouxas [8]. O ser é um mau conceito enquanto serve para opor tudo o que é ao nada, ou a própria coisa a tudo aquilo que ela não é: nos dois casos, o ser abandonou, desertou das coisas, não passa de uma abstração. Portanto, a questão bergsoniana não é: por que alguma coisa ao invés de nada? mas: por que isto ao invés de outra coisa? Por que tal tensão da duração[9] ? Por que esta velocidade ao invés de uma outra[10] ? Por que tal proporção[11] ? E por que uma percepção vai evocar tal lembrança, ou colher certas freqüências, umas ao invés de outras[12] ? Isso quer dizer que o ser é a diferença, e não o imutável ou o indiferente, tampouco a contradição, que é somente um falso movimento. O ser é a própria diferença da coisa, aquilo que Bergson chama freqüentemente de nuança. “Um empirismo digno deste nome [...] talha para o objeto um conceito apropriado ao objeto apenas, conceito do qual mal se pode dizer que ainda seja um conceito, [33] uma vez que ele só se aplica unicamente a esta coisa” [13] . E, em um texto curioso, no qual Bergson atribui a Ravaisson  a intenção de opor a intuição intelectual à idéia geral como a luz branca à simples idéia de cor, lê-se ainda:  “Em lugar de diluir seu pensamento no geral, o filósofo deve concentrá-lo no  individual [...] O objeto da metafísica é reapreender, nas existências individuais, seguindo-o até a fonte de que ele emana, o raio particular que, conferindo a cada uma delas sua nuança própria, torna assim a ligá-la à luz universal” [14]. O imediato é precisamente a identidade da coisa e de sua diferença, tal como a filosofia a reencontra ou a “reapreende”. Na ciência e na metafísica, Bergson denuncia um perigo comum: deixar escapar a diferença, porque uma concebe a coisa como um produto e um resultado, porque a outra concebe o ser como algo de imutável a servir de princípio. Ambas pretendem atingir o ser ou recompô-lo a partir de semelhanças e de oposições cada vez mais vastas, mas a semelhança e a oposição são quase sempre categorias práticas, não ontológicas. Donde a insistência de Bergson em mostrar que, graças a uma semelhança, corremos o risco de pôr coisas extremamente diferentes sob uma mesma palavra, coisas que diferem por natureza [15]. O ser, de fato, está do lado da diferença, nem uno nem múltiplo. Mas o que é a nuança, a diferença da coisa, o que é a diferença do pedaço de açúcar?  Não é simplesmente sua diferença em relação a uma outra coisa: nós só teríamos aí uma relação puramente exterior, remetendo-nos em última instância ao espaço. Não é tampouco sua diferença em relação a tudo o que o pedaço de açúcar não é: seríamos remetidos a uma dialética da contradição. Já Platão não queria que se confundisse a alteridade com uma contradição; mas, para Bergson, a alteridade  ainda não basta para fazer que o ser  alcance as coisas e seja verdadeiramente o ser das coisas. Ele substitui o conceito platônico de alteridade por um conceito aristotélico, aquele de alteração, para fazer desta a própria substância. O ser é [34] alteração, a alteração é substância[16]. E é bem isso que Bergson denomina duração, pois todas as características pelas quais ele a define, desde Os dados imediatos, voltam sempre a isto: a duração é o que difere ou o que muda de natureza , a qualidade, a heterogeneidade, o que difere de si mesmo. O ser do pedaço de açúcar se definirá por uma duração, por um certo modo de durar, por uma certa distensão ou tensão da duração.
Como a duração tem esse poder? A questão pode ser proposta de outra maneira:  se o ser é a diferença da coisa,  o que daí resulta para a própria  coisa? Encontramos aqui uma terceira característica da intuição, mais profunda que as precedentes. Como método, a intuição é um método que busca a diferença. Ela se apresenta como buscando e encontrando as diferenças de natureza, as “articulações do real”. O ser é articulado; um falso problema é aquele que não respeita essas diferenças. Bergson gosta de citar o texto em que Platão compara o filósofo ao bom cozinheiro que corta segundo as articulações naturais; ele censura constantemente a ciência e a metafísica por terem perdido esse sentido das diferenças de natureza, por terem retido somente diferenças de grau aí onde havia uma coisa totalmente distinta, por terem, assim, partido de um “misto” mal analisado. Uma das passagens mais célebres de Bergson nos mostra que a intensidade recobre de fato diferenças de natureza que a intuição pode reencontrar [17]. Mas sabemos que a ciência e mesmo a metafísica não inventam seus próprios erros ou suas ilusões: alguma coisa os funda no ser. Com efeito, enquanto nos achamos diante de produtos, enquanto as coisas com as quais estamos às voltas são ainda resultados, não podemos apreender as diferenças de natureza pela simples razão de que elas não estão aí: entre duas coisas, entre dois produtos, só há e só pode haver diferenças de grau, de proporção. O que difere por natureza nunca é uma coisa, mas uma tendência. A diferença de natureza não está entre dois produtos, entre duas coisas, mas em uma única e mesma coisa, entre duas tendências que a atravessam, está em um único e mesmo produto, entre duas tendências que aí se encontram [18]. Portanto, [35] o  que é puro nunca é a coisa; esta é sempre um misto que é preciso dissociar; somente a tendência é pura: isso quer dizer que a verdadeira coisa ou a substância é a própria tendência. Assim, a intuição aparece como um verdadeiro método de divisão: ela divide o misto em duas tendências que diferem por natureza. Reconhece-se o sentido dos dualismos caros a Bergson: não somente os títulos de muitas de suas obras, mas cada um dos  capítulos, e o anúncio que precede cada página, dão testemunho de um tal dualismo. A quantidade e a qualidade, a inteligência e o instinto, a ordem geométrica e a ordem vital, a ciência e a metafísica, o fechado e o aberto: essas são as figuras mais conhecidas. Sabe-se que, em última instância, elas se reconduzem à distinção, sempre reencontrada, da matéria e da duração. E matéria e duração nunca se distinguem como duas coisas, mas como dois movimentos, duas tendências, como a distensão e a contração. Mas é preciso ir mais longe: se o tema e a idéia de pureza têm uma grande importância na filosofia de Bergson, é porque as duas tendências não são puras em cada caso, ou não são igualmente puras. Só uma das duas tendências é pura, ou simples, sendo que a outra, ao contrário, desempenha o papel de uma impureza que vem comprometê-la ou perturbá-la [19]. Na divisão do misto, há sempre uma metade direita, a que nos remete à duração. Com efeito, mais do que diferença de natureza entre as duas tendências que recortam a coisa, a própria diferença da coisa era uma das duas tendências. E se nos elevamos até a dualidade  da matéria e da duração, vemos bem que a duração nos apresenta a própria natureza da diferença, a diferença de si para consigo, ao passo que a matéria é apenas o indiferente, aquilo que se repete ou o simples grau, o que não pode mais mudar de natureza. Não se vê ao mesmo tempo que o dualismo é um momento já ultrapassado na filosofia de Bergson? Com efeito, se há uma metade privilegiada na divisão, é preciso que tal metade contenha em si o segredo da outra. Se toda diferença está de um lado, é preciso que este lado compreenda sua diferença em relação ao outro, e, de uma certa maneira, o próprio outro ou sua possibilidade. A duração difere da matéria, mas porque ela é, inicialmente, o que difere em si e de si, de modo que a [36] matéria da qual ela difere é ainda duração.  Enquanto ficamos no dualismo, a coisa está no ponto de encontro de dois movimentos: a duração, que não tem graus por si própria, encontra a matéria como um movimento contrário, como um certo obstáculo, uma certa impureza que a perturba, que interrompe seu impulso , que lhe dá aqui tal grau, ali tal outro [20] . Porém, mais profundamente, é em si que a duração é suscetível de graus, porque ela é o que difere de si, de modo que cada coisa é inteiramente definida na duração, aí compreendida a própria matéria. Em uma perspectiva ainda dualista, a duração e a matéria se opunham como o que difere por natureza e o que só tem graus; porém, mais profundamente, há graus da própria diferença, sendo a matéria somente o mais baixo, o próprio ponto  onde a diferença, justamente, é tão-somente uma diferença de grau [21] . Se é verdadeiro que a inteligência está do lado da matéria em função do objeto sobre o qual ela incide, resta que só se pode defini-la em si, mostrando de que maneira ela, que domina seu objeto, dura. E, se se trata de definir, enfim, a própria matéria, não bastará mais apresentá-la como obstáculo e como impureza; será sempre preciso mostrar como ela, cuja vibração ocupa ainda vários instantes, dura.  Assim, toda coisa é completamente definida do lado direito, reto, por uma certa duração, por um certo grau da própria duração.
Um misto se decompõe em duas tendências, das quais uma é a duração, simples e indivisível; mas, ao mesmo tempo, a duração se diferencia em duas direções, das quais a outra é a matéria. O espaço é decomposto em matéria e em duração, mas a duração se diferencia em contração e em distensão, sendo esta o princípio da matéria. Portanto, se o dualismo é ultrapassado em direção ao monismo, o monismo nos dá um novo dualismo, dessa vez controlado, dominado, pois não é do mesmo modo que o misto se decompõe e o simples se diferencia. Assim, o método da intuição tem uma quarta e última característica: ele não se contenta em seguir as articulações naturais para segmentar as coisas, ele remonta [37] ainda às “linhas de fatos”, às linhas de diferenciação, para reencontrar o simples como uma convergência de probabilidades; ele não apenas corta, mas recorta, torna a cortar [22]. A diferenciação é o poder do que é simples, indivisível, do que dura. Aqui é que vemos sob qual aspecto a própria duração é um impulso vital. Bergson encontra na Biologia, particularmente na evolução das espécies, a marca de um processo essencial à vida, justamente o da diferenciação como produção das diferenças reais, processo do qual ele vai procurar o conceito e as conseqüências filosóficas. As páginas admiráveis que ele escreveu em A evolução criadora e em As duas fontes nos mostram uma tal atividade da vida, culminando na planta e no animal, ou então no instinto e na inteligência, ou ainda nas diversas formas de um mesmo instinto. Para Bergson, a diferenciação parece ser o modo do que se realiza, se atualiza ou se faz. Uma virtualidade que se realiza é, ao mesmo tempo, o que se diferencia, isto é, aquilo que dá séries divergentes, linhas de evolução, espécies. “A essência de uma tendência é desenvolver-se  em forma de feixe, criando, tão-só pelo fato do seu crescimento, direções divergentes” [23]. O impulso vital, portanto, será a própria duração à medida que se atualiza, à medida que se diferencia. O impulso vital é a diferença à medida que ela passa ao ato. Desse modo, a diferenciação não vem simplesmente de uma resistência da matéria, mas, mais profundamente, de uma força da qual a duração é em si mesma portadora: a dicotomia é a lei da vida. E a censura que Bergson dirige ao mecanicismo e ao finalismo em biologia, assim como à dialética em filosofia, é que eles, de pontos de vista diferentes, sempre compõem o movimento como uma relação entre termos atuais, em vez de aí verem a realização de um virtual. Mas, se a diferenciação é assim o modo original e irredutível pelo qual uma virtualidade se realiza, e se o impulso vital é a duração que se diferencia, eis que a própria duração é a virtualidade. A evolução criadora traz a Os dados imediatos o aprofundamento assim como o prolongamento necessários. Com efeito, desde Os dados imediatos a duração se apresentava como o virtual ou o [38] subjetivo, porque ela era menos o que não se deixa dividir do que o que muda de natureza ao dividir-se [24]. Compreendemos que o virtual não é um atual, mas não é menos um modo de ser; bem mais, ele é, de certa maneira, o próprio ser: nem a duração, nem a vida, nem o movimento são atuais, mas aquilo em que toda atualidade, toda realidade se distingue e se compreende, tem sua raiz. Realizar-se é sempre o ato de um todo que não se torna inteiramente real ao mesmo tempo, no mesmo lugar, nem na mesma coisa, de  modo que ele produz espécies que diferem por natureza, sendo ele próprio essa diferença de natureza entre as espécies que produz. Bergson dizia constantemente que a duração era a mudança de natureza, de qualidade. “Entre a luz e a obscuridade, entre cores, entre nuanças, a diferença é absoluta. A passagem de uma à outra é também um fenômeno absolutamente real”[25].
Temos, portanto, como que dois extremos, a duração e o impulso vital, o virtual e sua realização. É preciso dizer, ainda, que a duração já é impulso vital, porque é da essência do virtual realizar-se; portanto, é preciso um terceiro aspecto que nos mostre isto, um aspecto de algum modo intermediário em relação aos dois precedentes. É justamente sob este terceiro aspecto que a duração se chama memória. Por todas as suas características, com efeito, a duração é uma memória, porque ela prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra distintamente a imagem sempre crescente do passado, seja sobretudo porque ele, pela sua contínua mudança de qualidade, dá testemunho da carga cada vez mais pesada que alguém carrega em suas costas à medida que vai cada vez mais envelhecendo” [26]. Anotemos que a memória é sempre apresentada por Bergson de duas maneiras: memória-lembrança e memória-contração, sendo a segunda a essencial [27]. Por que essas duas figuras, figuras que  vão dar à memória um estatuto filosófico inteiramente novo? A primeira nos remete a uma sobrevivência do passado. Mas, dentre todas as teses de Bergson, talvez seja esta a mais profunda e a menos bem compreendida, a tese segundo a qual [39] o passado sobrevive em si [28].  Porque essa própria sobrevivência é a duração, a duração é em si memória. Bergson nos mostra que a lembrança não é a representação de alguma coisa que foi; o passado é isso em que nós nos colocamos de súbito para nos lembrar [29]. O passado não tem porque sobreviver psicologicamente e nem fisiologicamente em nosso cérebro, pois ele não deixou de ser, parou  apenas de ser útil; ele é, ele sobrevive em si. E esse ser em si do passado é tão-somente a conseqüência imediata de uma boa  proposição do problema: pois se o passado devesse esperar não mais ser, se ele não fosse de imediato e desde já “passado em geral”, jamais poderia ele tornar-se o que é, jamais seria ele este passado. Portanto, o passado é o em si, o inconsciente ou, justamente, como diz Bergson, o virtual  [30]. Mas em que sentido é ele virtual? É aí que devemos encontrar a segunda figura da memória. O passado não se constitui depois de ter sido  presente, ele coexiste consigo como presente. Se refletirmos sobre isto, veremos bem que a dificuldade filosófica da própria noção de passado vem do estar ele de algum modo interposto entre dois presentes: o presente que ele foi e o atual presente em relação a qual ele é agora passado. A falha da psicologia, propondo mal o problema, foi ter retido o segundo presente e, conseqüentemente,  ter buscado o passado a partir de alguma coisa de atual, além de, finalmente, tê-lo mais ou menos posto no cérebro. Mas, de fato, “a memória de modo algum consiste em uma regressão do presente ao passado” [31]. O que Bergson nos mostra é que, se o passado não é passado ao mesmo tempo em que é  presente, ele jamais poderá constituir-se e, menos ainda, ser reconstituído a partir de um presente ulterior. Eis, portanto, em que sentido o passado coexiste consigo como presente: a duração é tão-somente essa própria coexistência, essa coexistência de si consigo. Logo, o passado e o presente devem ser pensados como dois graus extremos coexistindo na duração, graus que se distinguem, um pelo seu estado de distensão, o outro por seu estado de contração. Uma metáfora célebre nos diz que, a cada [40] nível do cone, há todo o nosso passado, mas em graus diferentes: o presente é somente o grau mais contraído do passado. “A mesma vida psíquica seria, portanto, repetida um número indefinido de vezes, em camadas sucessivas da memória, e o mesmo ato do espírito poderia se exercer em muitas alturas diferentes”; “tudo se passa como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nessas milhares de reduções possíveis de nossa vida passada”; tudo é mudança de energia, de tensão, e nada mais [32]. A cada grau há tudo, mas tudo coexiste com tudo, ou seja, com os outros graus. Assim, vemos finalmente o que é virtual: são os próprios graus coexistentes e como tais [33].  Tem-se razão em definir a duração como uma sucessão , mas falha-se em insistir nisso, pois ela só é efetivamente sucessão real por ser coexistência virtual. A propósito da intuição, Bergson escreve: “Somente o método de que falamos permite ultrapassar o idealismo tanto quanto o realismo, afirmar a existência de objetos inferiores e superiores a nós, conquanto sejam em certo sentido interiores a nós, e fazê-los coexistir juntos sem dificuldade” [34]. E se, com efeito, pesquisamos a passagem de Matéria e memória à Evolução criadora, vemos que os graus coexistentes são ao mesmo tempo o que faz da duração algo de virtual e o que, entretanto, faz que a duração se atualize a cada instante, porque eles desenham outros tantos planos e níveis que determinam todas as linhas de diferenciação possíveis. Em resumo, as séries realmente divergentes nascem, na duração, de graus virtuais coexistentes. Entre a inteligência e o instinto, há uma diferença de natureza, porque eles estão nos extremos de duas séries que divergem; mas o que essa diferença de natureza exprime enfim senão dois graus que coexistem na duração, dois graus diferentes de distensão e de contração? É assim que cada coisa, cada ser é o todo, mas o todo que se realiza em tal ou qual grau. Nas primeiras obras de Bergson, a duração pode parecer uma realidade sobretudo psicológica; mas o que é psicológico é somente nossa duração, ou seja, um certo grau bem determinado. “Se, em lugar de [41] pretender analisar a duração (ou seja, no fundo, fazer sua síntese com conceitos), instalamo-nos primeiramente nela por um esforço de intuição, teremos o sentimento de uma certa tensão bem determinada, cuja própria determinação aparece como uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis. Perceberemos então numerosas durações, tantas quanto queiramos, todas muito diferentes umas das outras...” [35]. Eis por que o segredo do bergsonismo está sem dúvida em Matéria e memória; aliás, Bergson nos diz que sua obra consistiu em refletir sobre isto: que tudo não está dado. Que tudo não esteja dado, eis a realidade do tempo. Mas o que significa uma tal realidade? Ao mesmo tempo,  que o dado supõe um movimento que o inventa ou cria, e que esse movimento não deve ser concebido à imagem do dado [36]. O que Bergson critica na idéia de possível  é que esta nos apresenta  um simples decalque do produto, decalque em seguida projetado ou antes retroprojetado sobre o movimento de produção, sobre a invenção [37].  Mas o virtual não é a mesma coisa que o possível: a realidade do tempo é finalmente a afirmação de uma virtualidade que se realiza, e para a qual realizar-se é inventar. Com efeito, se tudo não está dado, resta que o virtual é o todo. Lembremo-nos de que o impulso vital é finito: o todo é o que se realiza em espécies, que não são à sua imagem, como tampouco são elas à imagem umas das outras; ao mesmo tempo, cada uma corresponde a um certo grau do todo, e difere por natureza  das outras, de maneira que o próprio todo apresenta-se, ao mesmo tempo, como a diferença de natureza na realidade e como a coexistência dos graus no espírito.
Se o passado coexiste consigo como presente, se o presente é o grau mais contraído do passado coexistente, eis que esse mesmo presente, por ser  o ponto preciso onde o passado se lança em direção ao futuro, se define como aquilo que muda de natureza, o sempre novo, a eternidade de vida [38]. Compreende-se que um tema lírico percorra toda a obra de Bergson: um verdadeiro canto em louvor ao novo, ao imprevisível, à invenção, à liberdade. Não há aí uma renúncia da filosofia, [42] mas uma tentativa profunda e original para descobrir o domínio próprio da filosofia, para atingir a própria coisa para além da ordem do possível, das causas e dos fins. Finalidade, causalidade, possibilidade estão sempre em relação com a coisa uma vez pronta, e supõem sempre que “tudo” esteja dado. Quando Bergson critica essas noções, quando nos fala em indeterminação, ele não nos está convidando a abandonar as razões, mas a alcançarmos a verdadeira razão da coisa em vias de se fazer, a razão filosófica, que não é determinação, mas diferença. Encontramos todo o movimento do pensamento bergsoniano concentrado em Matéria e Memória sob a tríplice forma da diferença de natureza, dos graus coexistentes da diferença, da diferenciação. Bergson nos mostra inicialmente que há uma diferença de natureza entre o passado e o presente, entre a lembrança e a percepção, entre a duração e a matéria: os psicólogos e os filósofos falharam ao partir, em todos os casos, de um misto mal analisado. Em seguida, ele nos mostra que ainda não basta falar em uma diferença de natureza entre a matéria e a duração, entre o presente e o passado, uma vez que toda a questão é justamente saber  o que é uma diferença de natureza: ele mostra que a própria duração é essa diferença, que ela é a natureza da diferença, de modo que ela compreende a matéria como seu mais baixo grau, seu grau mais distendido, como um passado infinitamente dilatado, e compreende a si mesma ao se contrair como um presente extremamente comprimido, retesado . Enfim, ele nos mostra que, se os graus coexistem na duração, a duração é a cada instante o que se diferencia, seja porque se diferencia em passado e em presente ou, se se prefere, seja porque o presente se desdobra em duas direções, uma em direção ao passado, outra em direção ao futuro. A esses três tempos correspondem, no conjunto da obra, as noções de duração, de memória e de impulso vital. O projeto que se encontra em Bergson, o de alcançar as coisas, rompendo com as filosofias críticas, não é absolutamente novo, mesmo na França, uma vez que ele define uma concepção geral da filosofia e sob vários de seus aspectos participa do empirismo inglês. Mas o método é profundamente novo, assim como os três conceitos essenciais que lhe dão seu sentido.
Tradução de
Lia Guarino NRT

































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5

A CONCEPÇÃO DA DIFERENÇA EM BERGSON DL

(1956)


A noção de diferença deve lançar uma certa luz sobre a filosofia de Bergson, mas, inversamente, o bergsonismo deve trazer a maior contribuição para uma filosofia da diferença. Uma tal filosofia opera sempre sobre dois planos, metodológico e ontológico. De um lado, trata-se de determinar as diferenças de natureza entre as coisas: é somente assim que se poderá “retornar” às próprias coisas, dar conta delas sem reduzi-las a outra coisa, apreendê-las em seu ser. Mas, por outro lado, se o ser das coisas está de um certo modo em suas diferenças de natureza, podemos esperar que a própria diferença seja alguma coisa, que ela tenha uma natureza, que ela nos confiará enfim o Ser. Esses dois problemas, metodológico e ontológico, remetem-se perpetuamente um ao outro: o problema das diferenças de natureza e o da natureza da diferença. Em Bergson, nós os reencontramos em seu liame,  nós  surpreendemos a passagem de um ao outro.
O que Bergson censura essencialmente a seus antecessores é não terem visto as verdadeiras diferenças de natureza. A constância de uma tal crítica nos mostra ao mesmo tempo a importância do tema em Bergson. Aí onde havia diferenças de natureza foram retidas apenas diferenças de grau. Sem dúvida, surge por vezes a censura inversa; aí onde havia somente diferenças de grau foram postas diferenças de natureza, por exemplo, entre a faculdade dita perceptiva do cérebro e as funções reflexas da medula, entre a [44] percepção da matéria e a própria matéria[39].  Mas esse segundo aspecto da mesma crítica não tem a freqüência nem a importância do primeiro.  Para julgar acerca do mais importante, é preciso que se interrogue a respeito do alvo da filosofia. Se a filosofia tem uma relação  positiva e direta com as coisas,  isso somente ocorre na  medida em que ela pretende apreender a coisa mesma a partir daquilo que tal coisa é,  em sua diferença a respeito de tudo aquilo que não é ela, ou seja, em sua diferença interna. Objetar-se-á que a diferença interna não tem sentido, que uma tal noção é absurda; mas, então, negar-se-á, ao mesmo tempo, que haja diferenças de natureza entre coisas do mesmo gênero. Ora, se há diferenças de natureza entre indivíduos de um mesmo gênero, deveremos reconhecer, com efeito, que a própria diferença não é simplesmente espaço-temporal, que não é tampouco genérica ou específica, enfim, que não é exterior ou superior à coisa. Eis por que é importante, segundo Bergson, mostrar que as idéias gerais nos apresentam, ao menos mais freqüentemente, dados extremamente diferentes em um agrupamento tão-só utilitário: “Suponhais que, examinando os estados agrupados sob o nome de prazer, nada de comum se descubra entre eles,  a não ser serem estados buscados pelo homem: a humanidade terá classificado coisas muito diferentes em um mesmo gênero, porque encontrava nelas o mesmo interesse prático e reagia a todas da mesma maneira” [40]. É nesse sentido que as diferenças de natureza são já a chave de tudo: é preciso partir delas, é preciso inicialmente reencontrá-las.  Sem prejulgar a natureza da diferença como diferença interna, sabemos já que ela existe, supondo-se que haja diferenças de natureza entre coisas de um mesmo gênero.  Logo, ou bem a filosofia se proporá esse meio e esse alvo (diferenças de natureza para chegar à diferença interna), ou bem ela só terá com as coisas uma relação negativa ou genérica, ela desembocará no elemento da crítica ou da generalidade, em todo caso em um estado da reflexão tão-só exterior. Situando-se no primeiro ponto de vista, Bergson propõe o ideal da filosofia: talhar, “para o objeto, um conceito apropriado tão-somente ao objeto, conceito do qual mal se pode dizer [45] que seja ainda um conceito, uma vez que só se aplica unicamente a esta coisa” [41]. Essa unidade da coisa e do conceito é a diferença interna, à qual nos elevamos pelas diferenças de natureza.
A intuição é o gozo da diferença. Mas ela não é somente o gozo do resultado do método, ela própria é o método. Como tal, ela não é um ato único, ela nos propõe  uma pluralidade de atos, uma pluralidade de esforços e de direções[42]. Em seu primeiro esforço, a intuição é a determinação das diferenças de natureza. E como essas diferenças estão entre as coisas,  trata-se de uma verdadeira distribuição, de um problema de distribuição. É  preciso dividir a realidade segundo suas articulações[43], e Bergson cita de bom grado o famoso texto de Platão sobre o corte e o bom cozinheiro. Mas a diferença de natureza entre duas coisas não é ainda a diferença interna da própria coisa. Das articulações do real devemos distinguir as linhas de fatos [44], que definem um outro esforço da intuição. E, se em relação às articulações do real a filosofia bergsoniana se apresenta como um verdadeiro “empirismo”, em relação às linhas de fatos ela se apresentará sobretudo como um “positivismo”, e mesmo como um probabilismo. As articulações do real distribuem as coisas segundo suas diferenças de natureza, formam uma diferenciação. As linhas de fatos são direções, cada uma das quais se segue até a extremidade, direções que convergem para uma única e mesma coisa; elas definem uma integração, constituindo cada qual uma linha de probabilidade. Em A energia espiritual, Bergson nos mostra a natureza da consciência no ponto de convergência de três linhas de fatos[45]. Em As duas fontes, a imortalidade da alma está na convergência de duas linhas de fatos[46]. Neste sentido, a intuição não se opõe à hipótese, mas a engloba como hipótese. Em resumo, as articulações do real correspondem a um corte e as linhas de fato correspondem a uma “interseção” [47]. O real, a um só tempo, é o que se corta [46] e se interseciona. Seguramente, os caminhos são os mesmos nos dois casos, mas o importante é o sentido que se tome neles, seguindo a divergência ou pegando o rumo da convergência. Pressentimos sempre dois aspectos da diferença: as articulações do real nos dão as diferenças de natureza entre as coisas; as linhas de fatos nos mostram a coisa mesma idêntica a sua diferença, a diferença interna idêntica a alguma coisa.   
Negligenciar as diferenças de natureza em proveito dos gêneros é, portanto, mentir para com a filosofia. Perdemos as diferenças de natureza. Encontramo-nos diante de uma ciência que as substituiu por simples diferenças de grau, e diante de uma metafísica que, mais especialmente, as substituiu  por simples diferenças de intensidade. A primeira questão é concernente à ciência: como fazemos para ver somente diferenças de grau?  “Dissolvemos as diferenças qualitativas na homogeneidade do espaço que as subtende” [48]. Sabemos que Bergson invoca as operações conjugadas da necessidade, da vida social e da linguagem, da  inteligência e do espaço,  sendo o  espaço aquilo que  a inteligência faz de uma matéria que a isso se presta. Em resumo, substituímos as articulações do real pelos modos só utilitários de agrupamento. Mas não é isso o mais importante; a utilidade não pode fundar o que a torna possível. Assim, é preciso insistir sobre dois pontos. Primeiramente, os graus têm uma realidade efetiva e, sob uma outra forma que não a espacial, estão eles já compreendidos de um certo modo nas diferenças de natureza: “por detrás de nossas distinções de qualidade”, há quase sempre números[49]. Veremos que uma  das idéias mais curiosas de Bergson é que a própria diferença tem um número, um número virtual,  uma espécie de número numerante. A utilidade, portanto, tão-somente libera e expõe os graus compreendidos na diferença até que esta seja apenas uma diferença de grau. Mas, por outro lado, se os graus podem se liberar para, por si sós,  formar diferenças, devemos buscar a razão disso no estado da experiência. O que o espaço apresenta ao entendimento, o que o entendimento encontra no espaço, são coisas, produtos, resultados e nada mais. Ora, entre coisas (no sentido de [47] resultados), só há e só pode haver diferenças de proporção[50] . O que difere por natureza não são as coisas, nem os estados de coisas, não são as características, mas as tendências. Eis porque a concepção da diferença específica não é satisfatória: é preciso estar atento não à presença de características, mas a sua tendência a desenvolver-se. “O grupo não se definirá mais pela  posse  de  certas características,  mas  por sua tendência a acentuá-las” [51]. Assim, em toda sua obra, Bergson mostrará que a tendência é primeira não só em relação ao seu produto, mas em relação às causas deste no tempo, sendo as causas sempre obtidas retroativamente a partir do próprio produto: em si mesma e em sua verdadeira natureza, uma coisa é a expressão de uma tendência antes de ser o efeito de uma causa. Em uma palavra, a simples diferença de grau será o justo estatuto das coisas separadas da tendência e apreendidas em suas causas elementares. As causas são efetivamente do domínio da quantidade. Consoante seja ele encarado em seu produto ou em sua tendência, o cérebro humano, por exemplo,  apresentará com o cérebro animal uma simples diferença de grau ou toda uma diferença de natureza [52]. Assim, diz Bergson, de um certo ponto de vista,  as  diferenças  de  natureza  desaparecem  ou  antes  não  podem  aparecer. “Colocando-se nesse ponto de vista”,  escreve ele a propósito da religião estática e da religião dinâmica, “aperceber-se-iam uma série de transições e como que diferenças de grau, lá onde realmente há uma diferença radical de natureza” [53]. As coisas, os produtos, os resultados, são sempre mistos. O espaço apresentará sempre e a inteligência só encontrará mistos, misto do fechado e do aberto, da ordem geométrica e da ordem vital, da percepção e da afecção, da percepção e da memória...etc. É preciso compreender que o misto é sem dúvida uma mistura de tendências que diferem por natureza,  mas,  como mistura, é um estado de coisas em que é impossível apontar qualquer diferença de natureza. O misto é o que se vê do ponto de vista em que, por natureza, nada difere de [48] nada. O homogêneo é o misto por definição, porque o simples é sempre alguma coisa que difere por natureza: somente as tendências são simples,  puras. Assim, só podemos encontrar o que difere realmente reencontrando a tendência para além de seu produto. É preciso que nos sirvamos daquilo que o misto nos apresenta, das diferenças de grau ou de proporção, uma vez que não dispomos de outra coisa, mas delas nos serviremos somente como uma medida da tendência para chegar à tendência como à razão suficiente da proporção. “Esta diferença de proporção bastará para definir o grupo em que ela se encontra, se se pode estabelecer que ela não é acidental e que o grupo, à medida que evoluía, tendia cada vez mais a pôr o acento sobre essas características particulares” [54].
A metafísica, por sua vez, só retém diferenças de intensidade. Bergson nos mostra essa visão da intensidade percorrendo a metafísica grega: como esta define o espaço e o tempo como uma simples distensão, uma diminuição de ser, ela só encontra entre os seres propriamente ditos diferenças de intensidade, situando-os entre os dois limites de uma perfeição e de um nada [55]. Precisamos ver como nasce tal ilusão, o que a leva a fundar-se, por sua vez, nas próprias diferenças de natureza. Notemos, desde já, que ela repousa menos sobre as idéias mistas do que sobre as pseudo-idéias, a desordem, o nada. Mas estas são ainda uma espécie de idéias mistas [56],  e a ilusão de intensidade repousa em última instância sobre a de espaço. Finalmente, só  há  um tipo de falsos problemas, os problemas que não respeitam em seu enunciado as diferenças de natureza. É um dos papéis da intuição o de denunciar  seu caráter arbitrário.
Para chegar às verdadeiras diferenças, é preciso reencontrar o ponto de vista que permita dividir o misto. São as tendências que se opõem duas a duas, que diferem por natureza. A tendência é que é sujeito. Um ser não é o sujeito, mas a expressão da tendência, e, ainda, um ser é somente a expressão da tendência à medida que ela é contrariada por uma outra tendência. Assim, a intuição apresenta-se como um método [49] da diferença ou da divisão: dividir o misto em duas tendências. Esse método é coisa distinta de uma análise espacial, é mais do que uma descrição da experiência e menos (aparentemente) do que uma análise transcendental. Ele eleva-se até as condições do dado, mas tais condições são tendências-sujeito, são elas mesmas dadas de uma certa maneira, são vividas. Além disso. são ao mesmo tempo o puro e o vivido, o vivente e o vivido, o absoluto e o vivido. Que o fundamento seja fundamento, mas que não deixe de ser constatado, é isso o essencial, e sabemos o quanto Bergson insiste sobre o caráter empírico do impulso vital. Não devemos então nos elevar às condições como às condições de toda experiência possível, mas como às condições da experiência real: Schelling já se propunha esse alvo e definia sua filosofia como um empirismo superior. A fórmula é também adequada ao bergsonismo. Se tais condições podem e devem ser apreendidas em uma intuição, é justamente porque elas são  as condições da experiência real,  porque elas não são mais amplas que o condicionado, porque o conceito que elas formam é idêntico ao seu objeto. Portanto, não é o caso de se espantar quando se encontra em Bergson uma espécie de princípio de razão suficiente e dos indiscerníveis. O que ele recusa é uma distribuição que põe a razão no gênero ou na categoria e que deixa o indivíduo na contingência, ou seja, no espaço. É preciso que a razão vá até ao indivíduo, que o verdadeiro conceito vá até a coisa, que a compreensão chegue até o “isto”. Por que isto antes que aquilo, eis a questão da diferença, que Bergson propõe sempre. Por que uma  percepção vai evocar tal lembrança antes que uma outra? [57]  Por que a percepção vai “colher” certas freqüências, por que estas antes que outras? [58]  Por que tal tensão da duração? [59] De fato, é preciso que a razão seja razão disso que Bergson denomina nuança. Na vida psíquica não há acidentes [60]: a nuança é a essência. Enquanto não achamos o conceito que só convenha ao próprio objeto, “o conceito único”, contentamo-nos com explicar o objeto por meio de vários [50] conceitos, de idéias gerais “das quais se supõe que ele participe” [61] : o que escapa, então, é que o objeto seja este antes que um outro do mesmo gênero, e que neste gênero haja tais proporções antes que outras. Só a tendência é a unidade do conceito e de seu objeto, de tal  modo que o objeto não é mais contingente nem o conceito geral. Mas é provável que todas essas precisões concernentes ao método não evitem o impasse em que esse parece culminar. Com efeito, o misto deve ser dividido em duas tendências: as diferenças de proporção no próprio misto não nos dizem como encontraremos tais  tendências,  qual é a regra de divisão. Ainda mais, das duas tendências, qual será a boa? As duas não se equivalem,  diferem em valor,  havendo sempre uma tendência dominante. E é somente a tendência dominante que define a verdadeira natureza do misto,  apenas ela é conceito único e só ela  é pura,  pois ela é a pureza da coisa correspondente: a outra tendência é a impureza que vem comprometer a primeira, contrariá-la. Os comportamentos animais nos apresentam o instinto como tendência dominante, e os comportamentos humanos apresentam a inteligência. No misto da percepção e da afecção, a afecção desempenha o papel da impureza que se mistura à percepção pura [62]. Em outros termos, na divisão, há uma metade esquerda e uma metade direita. Sobre o que nos regulamos para determiná-las? Reencontramos sob essa forma uma dificuldade que Platão já encontrava. Como responder a Aristóteles, quando este notava que o método platônico da diferença era apenas um silogismo fraco, incapaz de concluir em qual metade do gênero dividido se alinhava a idéia buscada, uma vez que o termo médio faltava? E Platão parece ainda mais bem armado que Bergson,  porque a idéia de um Bem transcendente pode efetivamente guiar a escolha da boa metade. Mas Bergson recusa em geral o recurso à finalidade, como se ele quisesse que o método da diferença se bastasse a si  próprio.
A dificuldade talvez seja ilusória. Sabemos que as articulações do real não definem a essência e o alvo do método. A diferença de natureza entre as duas [51] tendências é sem dúvida um progresso sobre a diferença de grau entre as coisas, sobre a diferença de intensidade entre os seres. Mas ela não deixa de ser uma diferença exterior, uma diferença ainda externa. Nesse ponto não falta à intuição bergsoniana, para ser completa, um termo exterior que lhe possa servir de regra; ao contrário, ela apresenta ainda muita exterioridade. Tomemos um exemplo: Bergson mostra que o tempo abstrato é um misto de espaço e de duração e que, mais profundamente, o próprio espaço é um misto de matéria e duração, de matéria e memória. Então, eis que o misto se divide em duas tendências: com efeito, a matéria é uma tendência, já que é definida como um afrouxamento; a duração é uma tendência, sendo uma contração. Mas, se consideramos todas as definições, as descrições e as características da duração na obra de Bergson, apercebemo-nos que a diferença de natureza, finalmente, não está entre essas duas tendências. Finalmente, a própria diferença de natureza é uma das duas tendências, e se opõe à outra. Com efeito, o que é a duração? Tudo o que Bergson diz acerca dela volta sempre a isto: a duração é o que difere de si. A  matéria, ao contrário, é o que não difere de si, o que se repete. Em Os dados imediatos, Bergson não mostra somente que a intensidade é um misto que se divide em duas tendências, qualidade pura e quantidade extensiva, mas, sobretudo, que a intensidade não é uma propriedade da sensação, que a sensação é qualidade pura, e que a qualidade pura ou a sensação difere por natureza de si mesma. A sensação é o que muda de natureza e não de grandeza[63]. A vida psíquica, portanto, é a própria diferença de natureza: na vida psíquica há sempre outro sem jamais haver número ou vários[64]. Bergson distingue três tipos de movimentos, qualitativo, evolutivo e extensivo[65], mas a essência de todos eles, mesmo da pura translação como o percurso de Aquiles, é a alteração. O movimento é mudança qualitativa, e a mudança qualitativa é movimento[66]. Em suma, a duração é o que difere, e o que difere não é mais o que difere de outra coisa, mas o que difere [52] de si. O que difere tornou-se ele próprio uma coisa, uma substância. A tese de Bergson poderia exprimir-se assim: o tempo real é alteração, e a alteração é substância. A diferença de natureza, portanto, não está mais entre duas coisas, entre duas tendências, sendo ela própria uma coisa, uma tendência que se opõe à outra. A decomposição do misto não nos dá simplesmente duas tendências que diferem por natureza, ela nos dá a diferença de natureza como uma das duas tendências. E, do mesmo modo que a diferença se tornou substância, o movimento não é mais a característica de alguma coisa, mas tomou ele próprio um caráter substancial, não pressupõe qualquer outra coisa,  qualquer móvel [67]. A duração, a tendência é a diferença de si para consigo; e o que difere de si mesmo é  imediatamente a unidade da substância e do sujeito.
Sabemos, ao mesmo tempo, dividir o misto e escolher a boa tendência, uma vez que há sempre à direita o que difere de si mesmo, ou seja,  a duração, que nos é revelada em cada caso sob um aspecto,  em uma de suas “nuanças”. Notar-se-á, entretanto, que, segundo o misto, um mesmo termo está ora à direita, ora à esquerda. A divisão dos comportamentos  animais põe a inteligência do lado esquerdo – uma vez que a duração, o impulso vital, se exprime através deles como instinto – ao passo que está à direita na análise dos comportamentos humanos. Mas a inteligência só pode mudar de lado ao revelar-se, por sua vez, como uma expressão da duração, agora na humanidade: se a inteligência tem a forma da matéria, ela tem o sentido da duração, porque é órgão de dominação da matéria, sentido unicamente manifestado no homem [68]. Não é de admirar que a duração tenha, assim, vários aspectos, que são as nuanças, pois ela é o que difere de si mesmo; e será preciso ir mais longe, até o fim, até ver enfim na matéria uma derradeira nuança da duração. Mas, para compreendermos esse último ponto, o mais importante, precisamos, inicialmente, lembrar o que a diferença deveio. Ela não está entre duas tendências, ela própria é uma das tendências e se põe sempre à direita. A diferença externa deveio diferença interna. [53] A diferença de natureza, ela própria, deveio uma natureza. Bem mais, ela o era desde o início. É nesse sentido que as articulações do real e as linhas de fatos remetiam umas às outras: as articulações do real desenhavam também linhas de fatos que nos mostravam, ao menos, a diferença interna como o limite de sua convergência, e, inversamente, as linhas de fatos nos davam também as articulações do real; por exemplo, em Matéria e memória, a convergência de três linhas diversas nos leva à verdadeira distribuição do que cabe ao sujeito, do que cabe ao objeto [69]. A diferença de natureza era exterior somente em aparência. Nessa mesma aparência, ela já se distinguia da diferença de grau, da diferença de intensidade, da diferença específica. Mas, no estado da diferença interna, outras distinções devem ser feitas agora. Com efeito, se a duração pode ser apresentada como a própria substância, é por ser ela simples, indivisível. A alteração deve, então, manter-se e achar seu estatuto sem se deixar reduzir à pluralidade, nem mesmo à contradição, nem mesmo à alteridade. A diferença interna deverá se  distinguir da contradição, da alteridade e da negação. É aí que o método e a teoria bergsoniana da diferença se oporão a esse outro método, a essa outra teoria da diferença que se chama dialética, tanto a dialética da alteridade, de Platão, quanto a dialética da contradição, de Hegel, ambas implicando a presença e o poder do negativo. A originalidade da concepção bergsoniana está em mostrar que a diferença interna não vai e não deve ir até a contradição, até a alteridade, até o negativo, porque essas três noções são de fato menos profundas que ela ou são visões que incidem sobre ela apenas de fora. Pensar a diferença interna como tal, como pura diferença interna, chegar até o puro conceito de diferença, elevar a diferença ao absoluto, tal é o sentido do esforço de Bergson.
A duração é somente uma das duas tendências, uma das duas metades;  mas, se é verdadeiro que em todo seu ser ela difere de si mesma, não conteria ela o segredo da outra metade? Como deixaria ainda no exterior de si isto de que ela [54] difere, a outra tendência? Se a duração difere de si mesma, isto de que ela difere é ainda duração, de um certo modo. Não se trata de dividir a duração como se dividia o misto: ela é simples, indivisível,  pura. Trata-se de uma outra coisa: o simples não se divide, ele se diferencia. Diferenciar-se é a própria essência do simples ou o movimento da diferença. Assim, o misto se decompõe em duas tendências, uma das quais é o indivisível, mas o indivisível se diferencia em duas tendências, uma das quais, a outra, é o princípio do divisível. O espaço é decomposto em matéria e duração, mas a duração se diferencia em contração e distensão, sendo a distensão o princípio da  matéria. A forma orgânica é decomposta em matéria e impulso vital, mas o impulso  vital se diferencia em instinto e em inteligência,  sendo a inteligência  princípio da transformação da matéria em espaço. Não é da mesma maneira, evidentemente, que o misto é decomposto e que o simples se diferencia: o método da diferença é o conjunto desses dois movimentos. Mas, agora, é a respeito deste poder de diferenciação que é preciso interrogar. É ele que nos levará até o conceito puro da diferença interna. Determinar esse conceito, enfim, será mostrar de que modo o que difere da duração, a outra metade, pode ser ainda duração. 
   Em Duração e simultaneidade, Bergson atribui à duração um curioso poder de englobar a si própria e, ao mesmo tempo, de se repartir em fluxo e de se concentrar em uma só corrente, segundo a natureza da atenção[70]. Em Os dados imediatos, aparece a idéia fundamental de virtualidade, que será retomada e desenvolvida em Matéria e memória: a duração, o indivisível, não é exatamente o que não se deixa dividir,  mas o que muda de natureza ao dividir-se, e o que muda assim de natureza define o virtual ou o subjetivo. Mas é sobretudo em A evolução criadora que acharemos os ensinamentos necessários. A biologia nos mostra o processo da diferenciação operando-se. Buscamos o conceito da diferença enquanto esta não se deixa reduzir ao grau, nem à intensidade, nem à alteridade, nem à contradição: uma tal diferença é vital, mesmo que seu conceito não seja  propriamente biológico. A vida é o processo da diferença. Aqui Bergson pensa menos na [55] diferenciação embriológica do que na diferenciação das espécies, ou seja, na evolução. Com Darwin, o problema da diferença e o da vida foram identificados nessa idéia de evolução, ainda que Darwin, ele próprio, tenha chegado a uma falsa concepção da diferença vital. Contra um certo mecanicismo, Bergson mostra que a diferença vital é uma diferença interna. Mas ele também mostra que a diferença interna não pode ser concebida como uma simples determinação: uma determinação pode ser acidental, ao menos ela só pode dever o seu ser a uma causa, a um fim ou a um acaso, implicando, portanto, uma exterioridade subsistente; além do mais, a relação de várias determinações é tão-somente de associação ou de adição[71]. A diferença vital não só deixa de ser uma determinação, como é ela o contrário disso; é, se se quiser, a própria indeterminação. Bergson insiste sempre no caráter imprevisível das formas vivas: “indeterminadas, quero dizer,  imprevisíveis”  [72]; e, para ele, o imprevisível, o indeterminado não é o acidental, mas, ao contrário,  o essencial, a negação do acidente. Fazendo da diferença uma simples determinação, ou bem a entregamos ao acaso, ou bem a tornamos necessária em função de alguma coisa, mas tornando-a acidental ainda em relação à vida. Mas, em relação à vida, a tendência para mudar não é acidental; mais ainda, as próprias mudanças não são acidentais[73], sendo o impulso vital “a causa profunda das variações” [74]. Isso quer dizer que a diferença não é uma determinação, mas é, nessa relação essencial com a vida, uma diferenciação. Sem dúvida, a diferenciação vem da resistência encontrada pela vida do lado da matéria, mas, inicialmente, ela vem, sobretudo, da força explosiva interna que a vida traz em si. “A essência de uma tendência vital é desenvolver-se em forma de feixe, criando, tão-só pelo fato do seu crescimento, direções divergentes entre as quais se distribuirá o impulso” [75]: a virtualidade existe de tal modo que se realiza dissociando-se, sendo forçada a dissociar-se para se realizar. [56] Diferenciar-se é o movimento de uma virtualidade que se atualiza. A vida difere de si mesma, de tal modo que nos acharemos diante de linhas de evolução divergentes e, em cada linha, diante de procedimentos originais; mas é ainda e somente de si mesma que ela difere, de tal modo que, também em cada linha acharemos certos aparelhos, certas estruturas de órgãos idênticos obtidos por meios diferentes [76]. Divergência das séries, identidade de certos aparelhos, tal é o duplo movimento da vida como um todo. A noção de diferenciação traz ao mesmo tempo a simplicidade de um virtual, a divergência das séries nas quais ele se realiza e a semelhança de certos resultados fundamentais que ele produz nessas séries. Bergson explica a que ponto a semelhança é uma categoria biológica importante [77] : ela é a identidade do que difere de si mesmo, ela prova que uma mesma virtualidade se realiza na divergência das séries, ela mostra a essência subsistindo na mudança, assim como a divergência mostrava a própria mudança agindo na essência. “Que chance haveria para que duas evoluções totalmente diferentes culminassem em resultados similares através de duas séries inteiramente diferentes de acidentes que se adicionam?” [78].
Em As duas fontes, Bergson retorna a esse processo de diferenciação: a dicotomia é a lei da vida [79]. Mas aparece algo de novo: ao lado da diferenciação biológica aparece uma diferenciação propriamente histórica. Sem dúvida, a diferenciação biológica encontra seu princípio na própria vida, mas ela não está menos ligada à matéria, de tal modo que seus produtos permanecem separados, exteriores um ao outro. “A materialidade que elas”, as espécies, “deram a si as impede de voltar a unir-se para restabelecer de maneira mais forte, mais complexa, mais evoluída, a tendência original” DLa. No plano da história, ao contrário, é no mesmo indivíduo e na mesma sociedade que evoluem as tendências que se constituíram por dissociação. Desde então elas evoluem sucessivamente, mas no mesmo ser: o homem [57] irá o  mais longe possível em uma direção, depois retornará rumo à outra [80]. Esse texto é ainda mais importante por ser um dos raros em que Bergson reconhece uma especificidade do histórico em relação ao vital. Qual é o seu sentido?  Significa que com o homem, e somente com o homem, a diferença torna-se consciente, eleva-se à consciência de si. Se a própria diferença é biológica,  a consciência da diferença é histórica. É verdade que não se deveria exagerar a função dessa consciência histórica da diferença. Segundo Bergson, mais ainda do que trazer o novo, ela libera do antigo. A consciência já estava aí, com e na própria diferença. A duração por si mesma é consciência, a vida por si mesma é consciência, mas ela o é de direito [81]. Se a história é o que reanima a consciência, ou, antes, o lugar no qual ela se reanima e se coloca de fato, é somente porque essa consciência idêntica à vida estava adormecida, entorpecida na matéria, consciência anulada, não consciência nula[82]. De maneira alguma a consciência é histórica em Bergson, e a história é somente o único ponto em que a consciência sobressai, tendo atravessado a matéria. Desse modo, há uma identidade de direito entre a própria diferença e a consciência da diferença: a história sempre é tão-somente de fato. Tal identidade de direito da diferença e da consciência da diferença é a memória: ela deve nos propiciar, enfim, a natureza do puro conceito.
Porém, antes de chegar aí, é preciso ainda ver como o processo da diferenciação basta para distinguir o método bergsoniano e a dialética. A grande semelhança entre Platão e Bergson é que ambos fizeram uma filosofia da diferença em que esta é pensada como tal e não se reduz à contradição, não vai até a contradição[83]. Mas o ponto de separação, não o único, mas o mais importante, parece estar na presença necessária de um [58] princípio de finalidade em Platão: apenas o Bem dá conta da diferença da coisa e nos faz compreendê-la em si mesma, como no exemplo famoso de Sócrates sentado em sua prisão. Ademais, em sua dicotomia, Platão tem necessidade do Bem como da regra da escolha. Não há intuição em Platão, mas uma inspiração pelo Bem. Nesse sentido, pelo menos um texto de Bergson seria muito platônico: em  As duas fontes, ele mostra que, para encontrar as verdadeiras articulações do real, é preciso interrogar a respeito das funções. Para que serve cada faculdade, qual é, por exemplo, a função da fabulação?[84]. A diferença da coisa lhe vem aqui do seu uso, do seu fim, da sua destinação, do Bem. Mas sabemos que o recorte ou as articulações do real são tão-somente uma primeira expressão do método. O que preside o recorte das coisas é efetivamente sua função, seu fim, de tal modo que, nesse nível, elas parecem receber de fora sua própria diferença. Mas é justamente por essa razão que Bergson, ao mesmo tempo, critica a finalidade e não se atém às articulações do real: a própria coisa e o fim correspondente são de fato uma única e mesma coisa, que, de um lado, é encarada como o misto que ela forma no espaço e, por outro, como a diferença e a simplicidade de sua duração pura [85]. Já não se trata de falar de fim: quando a diferença tornou-se a própria coisa, não há mais lugar para dizer que a coisa recebe sua diferença de um fim. Assim, a concepção que Bergson tem da diferença de natureza permite-lhe evitar, ao contrário de Platão, um verdadeiro recurso à finalidade. Do mesmo modo, a partir de alguns textos de Bergson, pode-se prever as objeções que ele faria a uma dialética de tipo hegeliano, da qual, aliás, ele está muito mais longe do que daquela de Platão. Em Bergson, e graças à noção de virtual, a coisa, inicialmente, difere imediatamente de si mesma. Segundo Hegel, a coisa difere de si mesma porque ela, primeiramente, difere de tudo o que ela não é, de tal maneira que a diferença vai até à contradição. Pouco nos importa aqui a distinção do contrário e da contradição, sendo esta tão-só a apresentação de um todo como contrário. De qualquer maneira, nos dois casos, substituiu-se a diferença [59] pelo jogo da determinação. “Não há realidade concreta em relação à qual não se possa ter ao mesmo tempo as duas visões opostas, e que, por conseguinte, não se subsuma aos dois conceitos antagonistas”[86].  Com essas duas visões pretende-se em seguida recompor a coisa, dizendo-se, por exemplo, que a duração é síntese da unidade e da multiplicidade. Ora, se a objeção que Bergson podia fazer ao platonismo era a de ater-se este a uma concepção da diferença ainda externa, a objeção que ele fez a uma dialética da contradição é a de ater-se esta a uma concepção da diferença somente abstrata. “Essa combinação (de dois conceitos contraditórios) não poderá apresentar nem uma diversidade de graus nem uma variedade de formas: ela é ou não é”[87]. O que não comporta nem graus nem nuanças é uma abstração. Assim, a dialética da contradição falseia a própria diferença, que é a razão da nuança. E a contradição, finalmente, é tão-só uma das numerosas ilusões retrospectivas que Bergson denuncia. Aquilo que se diferencia em duas tendências divergentes é uma virtualidade e, como tal, é algo de absolutamente simples que se realiza. Nós o tratamos como um real, compondo-o com os elementos característicos de duas tendências, que, todavia, só foram criadas pelo seu próprio desenvolvimento.  Acreditamos que a duração difere de si mesma por ser ela, inicialmente, o produto de duas determinações contrárias; esquecemos que ela se diferenciou por ser de início, justamente, o que difere de si mesma. Tudo retorna à crítica que Bergson faz do negativo: chegar à concepção de uma diferença sem negação, que não contenha o negativo, é este o maior esforço de Bergson. Tanto em sua crítica da desordem, quanto do nada ou da contradição, ele tenta mostrar que a negação de um termo real por outro é somente a realização positiva de uma virtualidade que continha ao mesmo tempo os dois termos. “A luta é aqui tão-só o aspecto superficial de um progresso”[88]. Então, é por ignorância do virtual que se crê na contradição, na negação. A oposição dos dois termos é somente a realização da virtualidade que continha todos dois: isso quer dizer [60] que a diferença é mais profunda que a negação, que a contradição.
Seja qual for a importância da diferenciação, ela não é o mais profundo. Se o fosse, não haveria qualquer razão para falar de um conceito da diferença: a diferenciação é uma ação, uma realização. O que se diferencia é, primeiramente, o  que  difere de si mesmo, isto  é,  o  virtual.  A diferenciação não  é  o conceito, mas a produção de objetos que acham sua razão no conceito. Ocorre que, se é verdadeiro que o que difere de si deve ser um tal conceito, é necessário que o virtual tenha uma consistência, consistência objetiva que o torne capaz de se diferenciar, que o torne apto a produzir tais objetos. Em páginas essenciais consagradas a Ravaisson, Bergson explica que há duas maneiras de determinar o que as cores têm em comum[89] . Ou bem extraímos a idéia abstrata e geral de cor, “apagando do vermelho o que faz dele vermelho, do azul o que faz dele azul, do verde o que faz dele verde”, o que, então, nos coloca diante de um conceito que é um gênero, diante de objetos que são vários para um mesmo conceito, de modo que o conceito e o objeto fazem dois, sendo de subsunção a relação entre ambos, enquanto permanecemos, assim, nas distinções espaciais, em um estado da diferença exterior à coisa. Ou bem fazemos que as coisas sejam atravessadas por uma lente convergente que as conduza a um mesmo ponto, e, neste caso, o que obtemos é “a pura luz branca”, aquela que “fazia ressaltar as diferenças entre as tintas”, de modo que, então, as diferentes cores já não são objetos sob um conceito, mas as nuanças ou os graus do próprio conceito, graus da própria diferença, e não diferenças de graus, sendo agora a relação não mais de subsunção, mas de participação. A luz branca é ainda um universal, mas um universal concreto, que nos faz compreender o particular, porque está ele próprio no extremo do particular. Assim como as coisas se tornaram nuanças ou graus do conceito, o próprio conceito tornou-se a coisa. É uma coisa universal, se se quer, uma vez que os objetos se desenham aí como graus, mas um concreto, não um gênero ou uma generalidade. Propriamente falando, não há vários objetos para um mesmo conceito, [61] mas o conceito é idêntico à própria coisa; ele é a diferença entre si dos objetos que lhe são relacionados, não sua semelhança. O conceito devindo conceito da diferença: é esta a diferença interna. O que era preciso fazer para atingir esse objetivo filosófico superior?  Era preciso renunciar a pensar no espaço: a distinção espacial, com efeito, “não comporta graus”[90]. Era preciso substituir as diferenças espaciais pelas diferenças temporais. O próprio da diferença temporal é fazer do conceito uma coisa concreta, porque as coisas aí são nuanças ou graus que se apresentam no seio do conceito. É nesse sentido que o bergsonismo pôs no tempo a diferença e, com ela, o conceito. “Se o  mais humilde papel do espírito é ligar os momentos sucessivos da duração das coisas, se é nessa operação que ele toma contato com a matéria, e se é também graças a esta operação que ele, inicialmente, se distingue da matéria, concebe-se uma infinidade de graus entre a matéria e o espírito plenamente desenvolvido”[91]. As distinções do sujeito e do objeto, do corpo e do espírito são temporais e, nesse sentido, dizem respeito a graus[92], mas não são simples diferenças de grau. Vemos, portanto, como o virtual torna-se o conceito puro da diferença, e o que um tal conceito pode ser: um tal conceito é a coexistência possível dos graus ou das nuanças. Se, malgrado o paradoxo aparente, chamamos memória essa coexistência possível, como o faz Bergson, devemos dizer que o impulso vital é menos profundo que a memória, e esta menos profunda que a duração. Duração, memória, impulso vital formam três aspectos do conceito, aspectos que se distinguem com precisão. A duração é a diferença consigo mesma; a memória é a coexistência dos graus da diferença; o impulso vital é a diferenciação da diferença. Esses três níveis definem um esquematismo na filosofia de Bergson. O sentido da memória é dar à virtualidade da própria duração uma consistência objetiva que faça desta um universal concreto, que a torne apta a se realizar. Quando a virtualidade se realiza, isto é, quando ela se diferencia, é pela vida e é sob uma forma vital;  nesse sentido, é verdadeiro que a diferença é vital. Mas a virtualidade só pôde diferenciar-se [62] a partir dos graus que coexistiam nela. A diferenciação é somente a separação do que coexistia na duração. As diferenciações do impulso vital são mais profundamente os graus da própria diferença. E os produtos da diferenciação são objetos absolutamente conformes ao conceito, pelo menos em sua pureza, porque, na verdade, são tão-somente a posição complementar dos diferentes graus do próprio conceito. É sempre nesse sentido que a teoria da diferenciação é menos profunda que a teoria das nuanças ou dos graus.
O virtual define agora um modo de existência absolutamente positivo. A duração é o virtual; e este ou aquele grau da duração é real à medida que esse grau se diferencia. Por exemplo, a duração não é em si psicológica, mas o psicológico representa um certo grau da duração, grau que se realiza dentre outros e no meio de outros [93]. Sem dúvida, o virtual é em si o modo daquilo que não age, uma vez que ele só agirá diferenciando-se, deixando de ser em si, mas  guardando algo de sua origem. Mas, por isso mesmo, ele é o modo daquilo que é. Essa tese de Bergson é particularmente célebre: o virtual é a lembrança pura, e a lembrança pura é a diferença. A lembrança pura é virtual, porque seria absurdo buscar a marca do passado em algo de atual e já realizado [94]; a lembrança não é a representação de alguma coisa, ela nada representa, ela é, ou, se continuamos a falar ainda de representação, “ela não nos representa algo que tenha sido, mas simplesmente algo que é [...] é uma lembrança do presente” [95]. Com efeito, ela não tem que se fazer, formar-se, não tem que esperar que a percepção desapareça, ela não é posterior à percepção. A coexistência do passado com o presente que ele foi é um tema essencial do bergsonismo. Mas, a partir dessas características, quando dizemos que a lembrança assim definida é a própria diferença, estamos dizendo duas coisas ao mesmo tempo. De um lado, a lembrança pura é a diferença, porque nenhuma lembrança se assemelha a uma outra, porque cada lembrança é imediatamente perfeita, porque ela é uma vez o que será [63] sempre: a diferença é o objeto da lembrança, como a semelhança é o objeto da percepção [96]. Basta sonhar para se aproximar desse mundo onde nada se assemelha a nada; um puro sonhador jamais sairia do particular, ele só apreenderia diferenças. Mas a lembrança é a diferença em um outro sentido ainda, ela é portadora da diferença; pois, se é verdadeiro que as exigências do presente introduzem alguma semelhança entre nossas lembranças, inversamente a lembrança introduz a diferença no presente, no sentido de que ela constitui cada momento seguinte como algo novo. Do fato mesmo de que o passado se conserva, “o momento seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança que este lhe deixou” [97]; “a duração interior é a vida contínua de uma memória que prolonga o passado no presente, seja porque o presente encerra diretamenteNRT a imagem sempre crescente do passado, seja, sobretudo, porque ele, pela sua contínua mudança de qualidade, dá testemunho da carga cada vez mais pesada que alguém carrega em suas costas à medida que vai cada vez mais envelhecendo” [98]. De uma maneira distinta da de Freud, mas tão profundamente quanto, Bergson viu que a memória era uma função do futuro, que a memória e a vontade eram  tão-só uma mesma função, que somente um ser capaz de memória podia desviar-se do seu passado, desligar-se dele, não repeti-lo, fazer o novo. Assim, a palavra “diferença” designa, ao mesmo tempo, o particular que é e o novo que se faz.  A lembrança é definida em relação à percepção da qual é contemporânea e, ao mesmo tempo, em relação ao momento seguinte no qual ela  se prolonga. Reunindo-se os dois sentidos, tem-se uma impressão incomum: a de ser agido e a de agir ao mesmo tempo[99]. Mas como deixar de reunir esses dois sentidos, uma vez que minha percepção é já o momento seguinte?
Comecemos pelo segundo sentido. Sabe-se qual é a importância que a idéia de novidade terá para Bergson em sua teoria do futuro e da liberdade. Mas devemos estudar essa noção no nível mais preciso, quando ela se forma, parece-nos que no segundo capítulo do Ensaio sobre os dados Imediatos . Dizer que o [64] passado se conserva em si e que se prolonga no presente é dizer que o momento seguinte aparece sem que o precedente tenha desaparecido. Isso supõe uma contração, e é a contração que define a duração [100]. O que se opõe à contração é a repetição pura ou a matéria: a repetição é o modo de um presente que só aparece quando o outro desapareceu, o próprio instante ou a exterioridade, a vibração, a distensão. A contração, ao contrário, designa a diferença, porque, em sua essência, ela torna impossível uma repetição, porque ela destrói a própria condição de toda repetição possível. Nesse sentido, a diferença é o novo, a própria novidade.  Mas como definir a aparição de algo de novo em geral?  No segundo capítulo do Ensaio, encontra-se a retomada desse problema, ao qual Hume tinha vinculado seu nome. Hume propunha o problema da causalidade, perguntando como uma pura repetição, repetição de casos semelhantes que nada produz de novo no objeto, pode, entretanto, produzir algo de novo no espírito que a contempla.  Esse “algo de novo”, a espera da milionésima vez, eis a diferença. A resposta era que, se a repetição produzia uma diferença no espírito que a observava, isso ocorria em virtude de princípios da natureza humana e, notadamente, do princípio do hábito. Quando Bergson analisa o exemplo das batidas do relógio ou do martelo, ele propõe o problema do mesmo modo e o resolve de maneira análoga : o que se produz de novo nada é nos objetos, mas no espírito que os  contempla, é uma “fusão”, uma “interpenetração”, uma “organização”, uma conservação do precedente que não desaparece quando o outro aparece, enfim, uma contração que se faz no espírito. A semelhança vai ainda mais longe entre Hume e Bergson: assim como, em Hume, os casos semelhantes se fundiam na imaginação, mas permaneciam ao mesmo tempo distintos no entendimento, em Bergson os estados se fundem na duração, mas guardam ao mesmo tempo algo da exterioridade da qual eles advêm; é graças a esse último ponto que Bergson dá conta da construção do espaço. Portanto, a contração começa por se fazer de [65] algum modo no espírito; ela é como que a origem do espírito; ela faz nascer a diferença. Em seguida, mas somente em seguida, o espírito a retoma por sua conta,  ele contrai e se contrai,  como se vê na doutrina bergsoniana da liberdade [101]. Mas já nos basta ter apreendido a noção em sua origem.
Não somente a duração e a matéria diferem por natureza, mas o que assim difere é a própria diferença e a repetição. Reencontramos, então, uma antiga dificuldade: havia diferença de natureza entre duas tendências e, ao mesmo tempo e mais profundamente, ela era uma das duas tendências. E não havia apenas esses dois estados da diferença, mas dois outros ainda: a tendência privilegiada, a tendência direita diferenciando-se em dois estados, e podendo diferenciar-se porque, mais profundamente, havia graus na diferença. São esses quatro estados que é preciso agora reagrupar: a diferença de natureza, a diferença interna, a diferenciação e os graus da diferença. Nosso fio condutor é este: a diferença (interna) difere (por natureza) da repetição. Mas vemos muito bem que uma tal frase não se equilibra: simultaneamente, a diferença aí é dita interna e difere no exterior. Entretanto, se antevemos o esboço de uma solução, é porque Bergson se dedica a nos mostrar que a diferença é ainda uma repetição e que a repetição é já uma diferença. Com efeito, a repetição, a matéria é bem uma diferença; as oscilações são bem distintas, uma vez que “uma se esvanece quando a outra aparece”. Bergson admite que a ciência tente atingir a própria diferença e possa consegui-lo; ele vê na análise infinitesimal um esforço desse gênero, uma verdadeira ciência da diferença [102]. Mais ainda: quando Bergson nos mostra o sonhador vivendo no particular até apreender somente as diferenças puras, ele nos diz que essa região do espírito reencontra a matéria[103], e que sonhar é desinteressar-se, é ser indiferente. Portanto, seria incorreto confundir a repetição com a generalidade, pois esta, ao contrário, supõe a contração do espírito. A repetição nada cria no objeto, deixa-o subsistir, e mesmo o mantém em sua particularidade. Sem dúvida, a repetição forma gêneros objetivos; [66] porém, em si mesmos, tais gêneros não são idéias gerais, pois não englobam uma pluralidade de objetos que se assemelham, mas nos apresentam somente a particularidade de um objeto que se repete idêntico a si mesmo [104]. A repetição, portanto, é uma espécie de diferença, mas uma diferença sempre no exterior de si, uma diferença indiferente a si. Inversamente, a diferença, por sua vez,  é uma repetição. Com efeito, vimos que, em sua  própria origem e no ato dessa origem, a diferença era uma contração. Mas qual é o efeito de tal contração? Ela eleva à coexistência o que se repetia em outra parte. Em sua origem, o espírito é tão-somente a contração dos elementos idênticos, e por isso ele é memória. Quando Bergson nos fala da memória, ele a apresenta sempre sob dois aspectos, dos quais o segundo é mais profundo que o primeiro: a memória-lembrança e a memória-contração [105]. Contraindo-se,  o elemento da repetição coexiste consigo, multiplica-se se se quer, retém-se a si mesmo. Assim, definem-se graus de contração, cada um dos quais, no seu nível, apresenta-nos a coexistência consigo mesmo do próprio elemento, ou seja o todo. Portanto, é sem paradoxo que a memória é definida como a coexistência em pessoa, pois, por sua vez, todos os graus possíveis de coexistência coexistem consigo mesmos e formam a memória. Os elementos idênticos da repetição material fundem-se em uma contração; tal contração apresenta-nos, ao mesmo tempo, algo de novo, a diferença, e graus que são os graus dessa própria diferença. É nesse sentido que a diferença é ainda uma repetição, tema este ao qual Bergson retorna constantemente: “A mesma vida psicológica, portanto, seria repetida um número indefinido de vezes, em níveis sucessivos da memória, e o mesmo ato do espírito poderia efetuar-se em alturas diferentes” [106]; as seções do cone são “outras tantas repetições de nossa vida passada inteira” [107]; “tudo se passa, pois,  como se nossas lembranças fossem repetidas um número indefinido de vezes nessas mil reduções possíveis de [67] nossa vida passada” [108]. Vê-se a distinção que resta a fazer entre a repetição material e essa repetição psíquica: é no mesmo momento em que toda nossa vida passada é infinitamente repetida; vale dizer, a repetição é virtual. Além disso, a virtualidade não tem outra consistência além daquela que recebe de tal repetição original. “Esses planos não são dados [...] como coisas prontas, superpostas umas às outras. Eles existem, sobretudo, virtualmente, gozam dessa existência que é própria das coisas do espírito” [109]. Nesse ponto, seria quase possível dizer que, em Bergson, é a matéria que é sucessão, e a duração, coexistência: “Uma atenção à vida que fosse suficientemente potente, e suficientemente destacada de todo interesse prático, abarcaria assim em um presente indiviso toda a história  passada da pessoa consciente” [110]. Mas a duração é uma coexistência virtual; o espaço é uma coexistência de um gênero inteiramente distinto, uma coexistência real, uma simultaneidade. Eis por que a coexistência virtual, que define a duração, é ao mesmo tempo uma sucessão real, ao passo que a matéria, finalmente, nos dá menos uma sucessão do que a simples matéria de uma simultaneidade, de uma coexistência real, de uma justaposição. Em resumo, os graus psíquicos são outros tantos planos virtuais de contração, de níveis de tensão. A filosofia de Bergson remata-se em uma cosmologia, na qual tudo é mudança de tensão e de energia e nada mais.[111] A duração, tal como se dá à intuição, apresenta-se como capaz de mil tensões possíveis, de uma diversidade infinita de distensões e contrações. A combinação de conceitos antagonistas é censurada por Bergson pelo fato de só poder nos apresentar uma coisa em um bloco, sem graus nem nuanças, ao passo que a intuição, contrariamente, nos dá “uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis” [112], “uma continuidade de durações que devemos tentar seguir seja para baixo, seja para cima” [113].
Como se reúnem os dois sentidos da diferença: a diferença como particularidade que é, e a diferença como [68] personalidade, indeterminação, novidade que se faz?  Os dois sentidos só podem se unir por e nos graus coexistentes da contração. A particularidade apresenta-se efetivamente como a maior distensão, um desdobramento, uma expansão; nas seções do cone, é a base a portadora das lembranças sob sua forma individual. “Elas tomam uma forma mais banal quando a memória se fecha mais, mais pessoal quando ela se dilata” [114]. Quanto mais a contração se distende, mais as lembranças são individuais, distintas uma das outras, e se localizam [115]. O particular encontra-se no limite da distensão ou da expansão, e seu movimento será prolongado pela própria matéria que ele prepara. A matéria e a duração são dois níveis extremos de distensão e da contração, como o são, na própria duração, o passado puro e o puro presente, a lembrança e a percepção. Vê-se, portanto, que o presente, em sua oposição à particularidade, se definirá como a semelhança ou mesmo como a universalidade. Um ser que vivesse no presente puro evoluiria no universal; “o hábito é para a ação o que a generalidade é para o pensamento” [116]. Mas os dois termos que assim se opõem são somente os dois graus extremos que coexistem. A oposição é sempre apenas a coexistência virtual de dois graus extremos: a lembrança coexiste com aquilo de que ela é a lembrança, coexiste com a percepção correspondente; o presente é tão-somente o grau mais contraído da memória, é um passado imediato [117]. Entre os dois, portanto, encontraremos todos os graus intermediários, que são os da generalidade ou, antes, os que formam eles próprios a idéia geral. Vê-se a que ponto a matéria não era a generalidade: a verdadeira generalidade supõe uma percepção das semelhanças, uma contração. A idéia geral é um todo dinâmico, uma oscilação; “a essência da idéia geral é  mover-se sem cessar entre a esfera da ação e a da memória pura”, “ ela consiste na dupla corrente que vai de uma à outra” [118]. Ora, sabemos que os graus intermediários entre dois extremos estão aptos a restituir esses extremos como [69] os próprios produtos de uma diferenciação. Sabemos que a teoria dos graus funda uma teoria da diferenciação: basta que dois graus possam ser opostos um ao outro na memória para que, ao mesmo tempo, sejam a diferenciação do intermediário em duas tendências ou movimentos que se distinguem por natureza. Por serem o presente e o passado dois graus inversos, eles se distinguem por natureza, são a diferenciação, o desdobramento do todo. A cada instante, a duração se desdobra em dois jatos simétricos, ”um dos quais recai em direção ao passado, enquanto o outro se lança para o futuro” [119]. Dizer que o presente é o grau mais contraído do passado é dizer também que ele se opõe por natureza ao passado, que é um porvir iminente. Entramos no segundo sentido da diferença: algo de novo. Mas o que é esse novo, exatamente? A idéia geral é esse todo que se diferencia em imagens particulares e em atitude corporal, mas tal diferenciação é ainda o todo dos graus que vão de um extremo a outro, e que põe um no outro [120]. A idéia geral é o que põe a lembrança na ação, o que organiza as lembranças com os atos, o que transforma a lembrança em percepção; mais exatamente, ela é o que torna as imagens oriundas do próprio passado cada vez mais “capazes de se inserir no esquema motor” [121]. O particular posto no universal, eis a função da idéia geral. A novidade, o algo de novo, é justamente que o particular esteja no universal. O novo não é evidentemente o presente puro: este, tanto quanto a lembrança particular, tende para o estado da matéria, não em virtude do seu desdobramento, mas de sua instantaneidade. Mas, quando o particular desce no universal ou a lembrança no movimento, o ato automático dá lugar à ação voluntária e livre.  A novidade é o próprio de um ser que, ao mesmo tempo, vai e vem do universal ao particular, opõe um ao outro e coloca este naquele. Um tal ser pensa, quer e lembra-se ao mesmo tempo. Em resumo, o que une e reúne os dois sentidos da diferença são todos os graus da generalidade.
Para muitos leitores, Bergson dá uma [70] certa impressão de vagueza e de incoerência. De vagueza, porque o que ele nos ensina, finalmente, é que a diferença é o imprevisível, a própria indeterminação. De incoerência, porque ele, por sua vez, parece retomar uma após outra cada uma das noções que criticou. Sua crítica incidiu sobre os graus, mas ei-los retornando ao primeiro plano da própria duração, a tal ponto que o bergsonismo é uma filosofia dos graus: “Por graus insensíveis, passamos das lembranças dispostas ao longo do tempo aos movimentos que desenham sua ação nascente ou possível no espaço” [122]; “assim, a lembrança transforma-se gradualmente em percepção” [123]. Do mesmo modo, há graus da liberdade [124]. A crítica bergsoniana incidiu especialmente sobre a intensidade, mas eis que a distensão e a contração são invocadas como princípios de explicação fundamentais;  “entre a matéria bruta e o espírito mais capaz de reflexão, há todas as intensidades possíveis da memória ou, o que dá no mesmo, todos os graus da liberdade” [125]. Finalmente, sua crítica incidiu sobre o negativo e a oposição, mas ei-los reintroduzidos com a inversão: a ordem geométrica diz respeito ao negativo, nasceu da “inversão da positividade verdadeira”, de uma “interrupção” [126];  se  comparamos a ciência e a filosofia, vemos que a ciência não é relativa, mas “diz respeito a uma realidade de ordem inversa” [127]. – Todavia, não acreditamos que essa impressão de incoerência seja justificada. Inicialmente, é verdadeiro que Bergson retorna aos graus, mas não às diferenças de grau. Toda sua idéia é a seguinte: que não há diferenças de grau no ser, mas graus da própria diferença. As teorias que procedem por diferenças de grau confundiram precisamente tudo, porque não viram as diferenças de natureza, perderam-se no espaço e nos mistos que este nos apresenta. Acontece que o que difere por natureza é, finalmente, aquilo que, por natureza, difere de si próprio, de modo que aquilo de que ele difere é somente seu mais baixo grau; o que assim difere de si próprio é a duração, definida como [71] a diferença de natureza em pessoa. Quando a diferença de natureza entre duas coisas torna-se uma das duas coisas, a outra é somente o último grau desta. É assim que, em pessoa, a diferença de natureza é exatamente a coexistência virtual de dois graus extremos. Como eles são extremos, a dupla corrente que vai de um a outro forma graus intermediários. Estes constituirão o princípio dos mistos, e nos farão crer em diferenças de grau, mas somente se os consideramos em si mesmos, esquecendo que as extremidades que reúnem são duas coisas que diferem por natureza, sendo na verdade os graus da própria diferença. Portanto, o que difere é a distensão e a contração, a matéria e a duração como graus, como intensidades da diferença. E se Bergson não cai assim em uma simples visão das diferenças de grau em geral, ele tampouco retorna, em particular, à visão das diferenças de intensidade. A distensão e a contração são graus da própria diferença tão-somente porque se opõem e enquanto se opõem. Extremos, eles são inversos. O que Bergson censura na metafísica é não ter ela visto que a distensão e a contração são o inverso, e ter, assim, acreditado que se tratava apenas de dois graus mais ou menos intensos na degradação de um mesmo Ser imóvel, estável, eterno[128]. De fato, assim como os graus se explicam pela diferença e não o contrário, as intensidades se explicam pela inversão e a supõem. Não há no princípio um Ser imóvel e estável; aquilo de que é preciso partir é a própria contração, é a duração, da qual a distensão é a inversão. Encontrar-se-á sempre em Bergson esse cuidado de achar o verdadeiro começo, o verdadeiro ponto do qual é preciso partir: assim, quanto à percepção e à afecção, “em lugar  de partir da afecção, da qual nada se pode dizer, pois não há qualquer razão para que ela seja o que é e não seja qualquer outra coisa, partimos da ação” [129]. Por que é a distensão o inverso da contração, e não a contração o inverso da distensão? Porque fazer filosofia é justamente começar pela diferença, e porque a diferença de natureza é a duração, [72] da qual a matéria é somente o mais baixo grau. A diferença é o verdadeiro começo; é por aí que Bergson se separaria mais de Schelling, pelo menos em aparência; começando por outra coisa, por um Ser imóvel e estável, coloca-se no princípio um indiferente, toma-se um menos por um mais, cai-se numa simples visão das intensidades. Mas, quando funda a intensidade na inversão, Bergson parece escapar dessa visão, mas para tão-somente retornar ao negativo, à oposição. Mesmo nesse caso, tal censura não seria exata. Em última instância, a oposição dos dois termos que diferem por natureza é tão-só a realização positiva de uma virtualidade que continha a ambos. O papel dos graus intermediários está justamente nessa realização: eles põem um no outro, a lembrança no movimento. Não pensamos, portanto, que haja incoerência na filosofia de Bergson, mas, ao contrário, um grande aprofundamento do conceito de diferença. Finalmente, não pensamos tampouco que a indeterminação seja um conceito vago. Indeterminação, imprevisibilidade, contingência, liberdade significam sempre uma independência em relação às causas: é neste sentido que Bergson enaltece o impulso vital com muitas contingências [130]. O que ele quer dizer é que, de algum modo, a coisa vem antes de suas causas, que é preciso começar pela própria coisa, pois as causas vêm depois. Mas a indeterminação jamais significa  que a coisa ou a ação teriam podido ser outras. “Poderia o ato ser outro?” é uma questão vazia de sentido. A exigência bergsoniana é a de levar a compreender por que a coisa é mais isto do que outra coisa. A diferença é que é explicativa da própria coisa, e não suas causas. “É preciso buscar a liberdade em uma certa nuança ou qualidade da própria ação e não em uma relação desse ato com o que ele não é ou teria podido ser” [131]. O bergsonismo é uma filosofia da diferença e da realização da diferença: há a diferença em pessoa, e esta se realiza como novidade.
. . .
Tradução de
Lia Guarino e
Fernando Fagundes RibeiroNRT




































[73]                                                               6
JEAN-JACQUES ROUSSEAU – PRECURSOR
DE KAFKA, DE CÉLINE E DE PONGE DL
[1962]
            Arriscamo-nos de duas maneiras a ignorar um grande autor. Por exemplo, ao desconhecer sua lógica profunda ou o caráter sistemático de sua obra. (Falamos, então, de suas, “incoerências”, como se elas nos dessem um prazer superior). Ou, de outro modo, ao ignorar sua potência e seu gênio cômicos, de onde a obra retira geralmente o máximo de sua eficácia anticonformista. (Preferimos falar das angústias e do aspecto trágico). Na verdade, não se pode admirar Kafka sem rirmos ao lê-lo. Estas duas regras valem eminentemente para Rousseau.
            Em uma de suas teses mais célebres, Rousseau explica que o homem no estado de natureza é bom, ou pelo menos não é mau. Isso não é uma declaração generosa nem uma manifestação de otimismo; é um manifesto lógico extremamente preciso. Rousseau quer dizer: o homem, tal como se pode supô-lo em um estado de natureza, não pode ser mau, pois as condições objetivas que tornam possíveis a maldade e seu exercício não existem na própria natureza. O estado de natureza é um estado no qual o homem está em relação com as coisas, e não com outros homens (salvo de maneira fugaz). “Os homens, se quisermos, se agrediam ao se encontrarem, mas eles pouco se encontravam. Por toda parte reinava o estado de guerra, e toda a terra estava em paz”DLa. [74] O estado de natureza não é somente um estado de independência, mas de isolamento. Um dos temas constantes de Rousseau é que a necessidade não é um fator de aproximação: ela não reúne, ao contrário, isola. Por serem moderadas, nossas necessidades no estado de natureza entram necessariamente em uma espécie de equilíbrio com nossos poderes, adquirem uma espécie de auto-suficiência. Mesmo a sexualidade, no estado de natureza, apenas engendra aproximações fugazes ou nos deixa na solidão. (Rousseau tem muito a dizer, e diz muito sobre este ponto, que é como o reverso humorístico de uma teoria profunda.)
            Como os homens poderiam ser maus quando lhes faltam as condições para tanto? As condições que tornam a maldade possível confundem-se com um estado social determinado. Não há maldade desinteressada, embora seja isso o que dizem os próprios malvados e os imbecis. Toda maldade é lucro ou compensação. Não há maldade humana que não se inscreva em relações de opressão, conforme interesses sociais complexos. Rousseau é um desses autores que souberam analisar a relação opressiva e as estruturas sociais que ela supõe. Será preciso esperar Engels para que se relembre e renove este princípio de uma lógica extrema: que a violência e a opressão não formam um fato primeiro, mas supõem um estado civil, situações sociais, determinações econômicas. Se Robinson escravizou Sexta-Feira, não foi por gosto natural, não foi nem mesmo à força; foi com um pequeno capital e meios de produção, que ele salvou das águas, e para submeter Sexta-Feira a tarefas sociais que não se apagaram da memória de Robinson durante o naufrágio.
            A sociedade nos coloca constantemente em situações em que temos interesse em ser malvados. Por vaidade, adoraríamos crer que somos maus naturalmente. Mas, na verdade, é bem pior: nós nos tornamos maus sem saber, sem mesmo nos darmos conta disso. É difícil ser herdeiro de alguém sem desejar inconscientemente sua morte por este ou aquele motivo. “Em tais situações, apesar de nos conduzir um sincero amor pela virtude, mais cedo ou mais tarde, sem que se perceba, fraquejamos, e nos tornamos injustos e maus ao agir, sem deixarmos de ser justos e bons [75] na alma” DLb. Ora, parece que, por um estranho destino, a bela alma é constantemente empurrada para situações das quais ela não sai sem grande sofrimento. A bela alma usará de sua ternura e sua timidez para extrair das piores situações os elementos que, não obstante, lhe permitirão conservar sua virtude. “Desta oposição contínua entre minha situação e minhas inclinações, nascem pecados enormes, desgraças inauditas, e todas as virtudes, exceto a força, que podem honrar a adversidade” DLc.  Achar-se em situações impossíveis é o destino da bela alma. Toda a verve de Rousseau vem de ser ele um extraordinário cômico de ocasião. Ora, As Confissões acabam como um livro trágico e alucinado, mas começam como um dos livros mais alegres da literatura. Mesmo os vícios preservam Rousseau da maldade para a qual eles o deveriam arrastar; e Rousseau se esmera na análise desses mecanismos ambivalentes e salutares.
            A bela alma não se contenta com o estado de natureza; ela sonha afetuosamente com as relações humanas. Ora, essas relações sempre se encarnam em situações delicadas. Sabe-se que o sonho apaixonado de Rousseau é reencontrar as figuras de uma Trindade perdida: seja a mulher amada que ama outro, que será como um pai ou irmão mais velho: sejam duas mulheres amadas, uma como uma mãe severa e que castiga, a outra como uma mãe terna que faz renascer. (Rousseau já persegue essa busca apaixonada de duas mães, ou de um duplo nascimento, em um de seus amores de infância.) Mas as situações reais onde esta fantasia se encarna são sempre ambíguas. Elas acabam mal: ou nós nos conduzimos mal ou nos excedemos, ou ambas as alternativas ao mesmo tempo. Rousseau não reconhece seu terno devaneio quando ele se encarna em Teresa e na mãe Teresa, antes mulher ávida e desagradável do que mãe severa. Nem quando Madame de Warens quer que ele desempenhe o papel de irmão mais velho com relação a um novo favorito
[76].
            Rousseau explica com freqüência e com alegria que ele tem as idéias lentas e os sentimentos rápidos. Mas as idéias, de formação lenta, emergem subitamente na vida, dão-lhe novas direções, inspiram-lhe estranhas invenções. Nos poetas e nos filósofos, nós devemos apreciar mesmo as manias, as bizarrices que testemunham combinações da idéia e do sentimento. Baseado nisso, Thomas de Quincey criou um método apropriado para nos levar a amar os grandes autores. Em um pequeno livro sobre Kant (“Os últimos dias de Emmanuel Kant”, que Schwob traduziu) DLd, Quincey descreve o aparelho extremamente complexo que Kant inventou para lhe servir como suporte para meias. O mesmo se pode dizer do traje de armênio de Rousseau quando ele morava em Motiers e amarrava os sapatos nos degraus de entrada de sua casa enquanto conversava com as moças. Há aí verdadeiros modos de vida, são anedotas de “pensador”.
            Como evitar as situações em que nos interessa ser maldosos? Sem dúvida, uma alma forte pode, por um ato de vontade, agir sobre a própria situação e modificá-la. Por exemplo, pode-se renunciar a um direito de herança para não estar na situação de desejar a morte de um pai. Da mesma forma, em A Nova Heloísa, Júlia compromete-se a não se casar com Saint-Preux, mesmo que seu marido venha a morrer: assim “ela troca o interesse que ela tinha em sua perda pelo interesse em conservá-la” Dle. Mas Rousseau, segundo seu próprio testemunho, não é uma alma forte. Ele ama a virtude mais do que é virtuoso. Salvo em matéria de herança, ele tem imaginação demais para renunciar por antecipação e por vontade. Ele precisa de mecanismos mais sutis para evitar as situações tentadoras ou para delas sair. Ele tudo arrisca, mesmo sua frágil saúde, para preservar suas aspirações virtuosas. Ele próprio explica como a doença de sua bexiga foi um fator essencial em sua grande reforma moral: por medo de não se agüentar em presença do rei, ele prefere renunciar à pensão. A doença o inspira como fonte de humor (Rousseau relata seus problemas de audição com uma verve semelhante à de Céline mais tarde). [77] Mas o humor é o contrário da moral: melhor ser copista de música que pensionista do rei.
            Em Nova Heloísa, Rousseau elabora um método profundo, apto para conjurar o perigo das situações. Uma situação não nos tenta unicamente por ela mesma, mas devido a todo o peso de um passado que nela se encarna. É a procura do passado nas situações presentes, é a repetição do passado que nos inspira nossas paixões e nossas tentações mais violentas. É sempre no passado que amamos, e as paixões são doenças próprias à memória. Para curar Saint-Preux e para trazê-lo ou convertê-lo à virtude, M. de Wolmar emprega um método pelo qual ele conjura os prestígios do passado. Ele força Julie e Saint-Preux a se beijar no mesmo bosque que viu seus primeiros amores: “Julie não mais temia esse asilo, ela acabara se ser profanado” DLf. É necessário fazer da virtude o interesse presente de Saint-Preux: “não é por Julie de Wolmar que ele está apaixonado, mas por Julie d’Etange; ele não me odeia absolutamente como o que se apossou da pessoa que ele ama, mas como o raptor daquela que ele amou... Ele a ama no tempo passado; eis a chave do enigma: corte-lhe a memória, ele não terá mais amor” DLg. É na relação com os objetos, com os lugares, por exemplo um bosque, que conhecemos a fuga do tempo e que saberemos, enfim, querer nofuturo, em lugar de nos apaixonarmos no passado. Isso é o que Rousseau chamava de “o materialismo do sábio” DLh ou cobrir o passado com o presente.
            Os dois pólos da obra filosófica de Rousseau são o Emílio e o Contrato social. O mal, na sociedade contemporânea, é que nós não somos mais nem homem privado nem cidadão: o homem tornou-se “homo oeconomicus”, isto é, “burguês”, animado pelo dinheiro. As situações em que há interesse em sermos maus implicam sempre relações de opressão,na quais o homem entra em relação com homem para obedecer ou comandar, senhor ou escravo. O Emílio é a reconstituição do homem privado, o Contrato social, a do cidadão. A primeira regra pedagógica de Rousseau é esta: nós chegaremos a nos constituir enquanto homens privados quando restaurarmos nossa relação natural com as coisas, [78] com isso preservando-nos das relações artificiais demasiado humanas que, desde a infância, acarretam em nós uma perigosa tendência a comandar. (E é a mesma tendência que nos faz escravo e que nos faz tirano.) “Ao exercer o direito de serem obedecidas, as crianças saem do estado de natureza quase ao nascer” Dli. A verdadeira correção pedagógica consiste em subordinar a relação dos homens à relação do homem com as coisas. O gosto das coisas é uma constante na obra de Rousseau (os exercícios de Francis Ponge têm algo de rousseauniano). Daí a famosa regra de Emílio, regra que requer apenas  vigor: jamais trazer as coisas para a criança, mas levar a criança até as coisas.
            O homem privado é aquele que, devido à sua relação com as coisas, conjurou a situação infantil que lhe confere o interesse em ser mau. Mas o cidadão é aquele que entra em relações com os homens, onde ele tem exatamente interesse em ser virtuoso. Instaurar uma situação objetiva e atual em que a justiça e o interesse se reconciliem, parece ser, segundo Rousseau, a tarefa efetivamente política. E a virtude retoma aqui seu sentido mais profundo, que remete à determinação pública do cidadão. O Contrato social é, com certeza, um dos grandes livros da filosofia política. Um aniversário de Rousseau é a ocasião certa de ler ou de reler o Contrato social. Nele, o cidadão aprende qual é a mistificação da separação dos poderes; como a República define-se pela existência de um único poder, o legislativo. A análise do conceito de lei, tal como aparecia em Rousseau, dominará por muito tempo a reflexão filosófica e a domina ainda.
. . .
Tradução de
Hélio Rebello Cardoso Júnior

[79]                                                                7
A IDÉIA DE GÊNESE NA ESTÉTICA DE KANTDL
[1963]

As dificuldades da estética kantiana, na primeira parte da Crítica da faculdade de julgarNT, estão ligadas a uma diversidade de pontos de vista. Kant nos propõe tanto uma estética do espectador, como na teoria do juízo de gosto, quanto uma estética, ou, mais ainda, uma meta-estética do criador, como na teoria do gênio. Tanto uma estética do belo na natureza quanto uma estética do belo na arte. Tanto uma estética da forma, de inspiração "clássica", quanto uma meta-estética da matéria e da Idéia, próxima do romantismo. Só a compreensão dos pontos de vista diversos, e da passagem necessária de um ao outro, determina a unidade sistemática da Crítica da faculdade de julgar. Esta compreensão deve explicar as dificuldades aparentes do plano, ou seja, de um lado, o lugar da Analítica do sublime (entre a Analítica do belo e a dedução dos juízos de gosto) e, de outro lado, o lugar da teoria da arte e do gênio (no final da dedução).

O juízo de gosto "é belo" exprime no espectador um acordo, uma harmonia de duas faculdades: imaginação e entendimento. Com efeito, se o juízo de gosto se distingue do juízo de preferência, é por que ele pretende uma certa necessidade, uma certa universalidade a priori. Ele toma do entendimento, portanto, sua legalidade. Mas esta legalidade [80] não aparece aqui em conceitos determinados. A universalidade no juízo de gosto é aquela de um prazer; a coisa bela é singular, e permanece sem conceito. O entendimento intervém como a faculdade dos conceitos em geral, mas feita abstração de todo conceito determinado. A imaginação, por sua vez, exerce-se livremente, já que ela não está submetida a tal ou qual conceito. Que a imaginação entre em acordo com o entendimento no juízo de gosto significa, então, o seguinte; exercendo-se como livre, a imaginação entra em acordo com o entendimento tomado como indeterminado. O próprio do juízo de gosto é exprimir um acordo, ele mesmo livre e indeterminado, entre a imaginação e o entendimento. De modo que o prazer estético, longe de ser primeiro em relação ao juízo, depende dele, ao contrário: o prazer é o acordo das próprias faculdades, na medida em que este acordo, fazendo-se sem conceito, só pode ser sentido. Dir-se-á que o juízo de gosto só começa com o prazer, mas não deriva dele.
Devemos refletir sobre este primeiro ponto: tema de um acordo entre várias faculdades. A idéia de um tal acordo é uma constante da Crítica kantiana. Nossas faculdades diferem por natureza e, contudo, exercem-se harmoniosamente. Na Crítica da razão pura, o entendimento, a imaginação e a razão entram numa relação harmoniosa, em conformidade com o interesse especulativo. Igualmente, a razão e o entendimento, na Crítica da razão prática (deixamos de lado o exame de um papel possível da imaginação neste interesse prático). Mas vemos que, nesses casos, uma das faculdades desempenha sempre um papel predominante. "Predominante" quer dizer aqui três coisas: determinado em relação a um interesse, determinante em relação a objetos, determinante em relação às outras faculdades. Assim, na Crítica da razão pura, o entendimento dispõe de conceitos a priori perfeitamente determinados no interesse especulativo; ele aplica seus conceitos a objetos (fenômenos) que lhe são necessariamente submetidos; ele induz as outras faculdades (imaginação e razão) a preencher tal ou qual função neste interesse de conhecer e em relação a esses objetos de conhecimento. Na Crítica da razão prática: as Idéias da razão, e inicialmente a Idéia de liberdade, encontram-se determinadas pela lei moral; por intermédio desta lei, a razão determina objetos supra-sensíveis que lhe são [81] necessariamente submetidos; enfim, ela induz o entendimento a um certo exercício, em função do interesse prático. Nas duas primeiras Críticas, já nos encontramos diante do princípio de uma harmonia das faculdades entre si. Mas esta harmonia é sempre proporcionada, constrangida e determinada: há sempre uma faculdade determinante que legisla, seja o entendimento no interesse especulativo, seja a razão no interesse prático.
Voltemos ao exemplo da Crítica da razão pura. É bem conhecido que o esquematismo é um ato da imaginação, original e irredutível: só a imaginação pode e sabe esquematizar. Porém, a imaginação não esquematiza por si mesma, em nome de sua liberdade. Ela só o faz na medida em que o entendimento a determina, a induz a fazê-lo. Ela só esquematiza no interesse especulativo, em função de conceitos determinados do entendimento, quando o próprio entendimento tem o papel legislador. É por isto que seria errado perscrutar os mistérios do esquematismo, como se eles encerrassem a última palavra da imaginação na sua essência ou na sua livre espontaneidade. O esquematismo é um segredo, mas não o mais profundo segredo da imaginação. Abandonada a si mesma, a imaginação faria outra coisa que esquematizar. O mesmo vale para a razão: o raciocínio é um ato original da razão, mas a razão só raciocina no interesse especulativo, no sentido em que o entendimento a determina a fazê-lo, quer dizer, a induz a procurar um meio termo para a atribuição de um dos seus conceitos aos objetos que ele subsume. Por si mesma, a razão faria outra coisa que raciocinar; vê-se bem isto na Crítica da razão prática.
No interesse prático, a razão se torna legisladora. Por sua vez, então, ela determina o entendimento a um exercício original conforme ao novo interesse. Eis que o entendimento extrai da lei natural sensível um "tipo" para uma natureza supra-sensível: só ele pode cumprir esta tarefa, mas ele não a cumpriria se não fosse determinado pela razão no interesse prático. Assim, as faculdades entram em relações ou proporções harmoniosas segundo a faculdade que legisla em tal ou qual interesse. Concebem-se, pois, diversas proporções, ou permutações na relação de faculdades. O entendimento legisla no interesse especulativo; a razão, no interesse prático. Em [82] cada um desses casos, um acordo surge entre as faculdades, mas este acordo é determinado por aquela que vem a legislar. Ora, uma tal teoria das permutações deveria conduzir Kant a um problema extremo. Jamais as faculdades entrariam em um acordo determinado ou fixado por uma dentre elas se, de início, elas não fossem capazes em si mesmas e espontaneamente de um acordo indeterminado, de uma livre harmonia, de uma harmonia sem proporção fixa[132]. Seria vão invocar aqui a superioridade do interesse prático sobre o interesse especulativo; o problema não seria resolvido, seria mais adiado e acentuado. Como uma faculdade, legisladora em um interesse qualquer, poderia induzir as outras faculdades a tarefas complementares indispensáveis, se todas as faculdades juntas não fossem antes capazes de um livre acordo espontâneo, sem legislação, sem interesse nem predominância?
Isto quer dizer que a Crítica da faculdade de julgar, em sua parte estética, não vem simplesmente completar as duas outras: na realidade, ela as funda. Ela descobre um livre acordo entre as faculdades como o fundo suposto pelas duas outras Críticas. Todo acordo determinado remete ao livre acordo indeterminado que o torna possível em geral. Mas por que é precisamente o juízo estético que revela esse fundo, escondido nas duas críticas precedentes? No juízo estético, a imaginação encontra-se liberada tanto da dominação do entendimento quanto daquela da razão. Com efeito, o prazer estético é ele mesmo um prazer desinteressado: ele não é somente independente do interesse empírico, mas também do interesse especulativo e do interesse prático. Por isso mesmo, o juízo estético não legisla, não implica faculdade alguma que legisle sobre objetos. Além disso, como seria de outro modo, já que há apenas dois tipos de objetos, os fenômenos e as coisas em si, uns remetendo à legislação do entendimento no interesse especulativo, os outros, à legislação da razão no interesse prático? Kant pode então dizer de pleno direito que a Crítica da faculdade de julgar, contrariamente às duas outras, não tem "domínio" que lhe seja próprio; e que o juízo não é legislativo nem autônomo, mas somente [83] heautônomo (ele só legisla sobre si mesmo)[133]. As duas primeiras Críticas desenvolviam o seguinte tema: a idéia de uma submissão necessária de um tipo de objetos em relação a uma faculdade dominante ou determinante. Mas não há objetos que sejam necessariamente submetidos ao juízo estético. As belas coisas na Natureza encontram-se somente em acordo contingente com o juízo, quer dizer, com as faculdades que se exercem juntas no juízo estético enquanto tal. Vê-se a que ponto seria inexato conceber a Crítica da faculdade de julgar como completando as duas outras. Pois, no juízo estético, a imaginação não acede de modo algum a um papel comparável ao que tinham o entendimento no juízo especulativo e a razão no juízo prático. A imaginação se libera da tutela do entendimento e daquela da razão. Mas ela não se torna legisladora por sua vez: mais profundamente, ela dá o sinal para um exercício das faculdades tal que cada uma deve se tornar capaz de jogar livremente por sua conta. De dois pontos de vista, a Crítica da faculdade de julgar nos introduz num elemento novo, que é como o elemento de fundo: acordo contingente dos objetos sensíveis com todas as nossas faculdades juntas, em lugar de uma submissão necessária a uma das faculdades; harmonia livre indeterminada das faculdades entre si, em lugar de uma harmonia determinada sob a presidência de uma delas.
Kant chega a dizer que a imaginação, no juízo estético, "esquematiza sem conceito” [134]. Esta fórmula é mais brilhante do que exata. O esquematismo é um ato original da imaginação, mas com relação a um conceito determinado do entendimento. Sem conceito do entendimento, a imaginação faz outra coisa que esquematizar. Com efeito, ela reflete. É este o verdadeiro papel da imaginação no juízo estético: ela reflete a forma do objeto. Por forma, aqui, não se deve entender forma da intuição (sensibilidade). Pois as formas da intuição se reportam ainda a objetos existentes que constituem nelas uma matéria sensível; e elas mesmas fazem parte do conhecimento desses objetos. A forma estética [84], ao contrário, confunde-se com a reflexão do objeto na imaginação. Ela é indiferente à existência do objeto refletido; é por isso que o prazer estético é desinteressado. Ela não é menos indiferente à matéria sensível do objeto; e Kant chegará a dizer que uma cor ou um som não podem ser belos por si mesmos, visto serem excessivamente materiais, demasiadamente entranhados em nossos sentidos para se refletir livremente na imaginação. Só o desenho conta, só a composição conta. Estes são os elementos constituintes da forma estética, ao passo que as cores e os sons são apenas coadjuvantes[135]. De todo modo, devemos distinguir, portanto, a forma intuitiva da sensibilidade e a forma refletida da imaginação.
Todo acordo das faculdades define um senso comum. O que Kant reprova no empirismo é somente ter ele concebido o senso comum como uma faculdade empírica particular, ao passo que ele é a manifestação de um acordo a priori das faculdades em conjunto[136]. A Crítica da razão pura também invoca um senso comum lógico, "sensus communis logicus", sem o qual o conhecimento não seria comunicável de direito. Do mesmo modo, a Crítica da razão prática invoca freqüentemente um senso comum propriamente moral, que exprime o acordo das faculdades sob a legislação da razão. Mas a livre harmonia devia levar Kant a reconhecer um terceiro senso comum: "sensus communis aestheticus", que estabelece de direito a comunicabilidade do sentimento ou a universalidade do prazer estético[137]. "Este senso comum não pode ser fundado na experiência, pois ele pretende autorizar juízos que contêm uma obrigação; ele não diz que cada um admitirá nosso juízo, mas que cada um deve admiti-lo"[138]. Nós não queremos mal àquele que diz: eu não gosto de limonada, eu não gosto de queijo. Mas julgamos severamente aquele que diz: eu não gosto de Bach, prefiro Massenet a Mozart. O juízo [85] estético reclama, portanto, uma universalidade e uma necessidade de direito, representadas num senso comum. É aqui que começa a verdadeira dificuldade da Crítica da faculdade de julgar. Com efeito: qual é a natureza do senso comum estético?
Nós não podemos afirmar categoricamente este senso comum. Uma tal afirmação implicaria conceitos determinados do entendimento, que só podem intervir no senso lógico. Nós não podemos, ademais, postulá-lo: os postulados implicam, com efeito, conhecimentos que se deixem determinar praticamente. Parece, então, que um senso comum puramente estético pode ser apenas presumido, suposto[139]. Mas é fácil ver a insuficiência desta solução. O acordo livre indeterminado das faculdades é o fundo, a condição de qualquer outro acordo; o senso comum estético é o fundo, a condição de qualquer outro senso comum. Como seria suficiente supô-lo, dar-lhe somente uma existência hipotética, a ele que deve servir de fundamento para todas as relações determinadas entre nossas faculdades? Como poderíamos escapar à questão: de onde vem o acordo livre e indeterminado das faculdades entre si? Como explicar que nossas faculdades, diferindo por natureza, entrem espontaneamente em uma relação harmoniosa? Não podemos nos contentar em presumir um tal acordo. Devemos engendrá-lo na alma. É esta a única saída: fazer a gênese do senso comum estético, mostrar como o acordo livre das faculdades é necessariamente engendrado.
Se esta interpretação é exata, o conjunto da analítica do belo tem um objeto bem preciso: analisando o juízo estético do espectador, Kant descobre o livre acordo da imaginação e do entendimento como um fundo da alma, pressuposto pelas duas outras Críticas. Esse fundo da alma aparece na idéia de um senso comum mais profundo que qualquer outro. Mas é suficiente presumir esse fundo, "supô-lo" simplesmente? Como exposição, a Analítica do belo não pode ir mais longe. Ela só pode terminar fazendo-nos sentir a necessidade de uma gênese do senso do belo: há um princípio que nos prescreva produzir em nós o senso comum estético? "O gosto é uma faculdade primordial [86] e natural, ou somente a idéia de uma faculdade que precisamos adquirir"?. Uma gênese do senso do belo não pode pertencer à Analítica como exposição ("é suficiente para nós, no momento, decompor a faculdade do gosto em seus elementos e reuni-los na idéia de um senso comum"[140]). A gênese só pode ser objeto de uma dedução, dedução dos juízos estéticos. Na Crítica da razão pura, a dedução se propõe mostrar como objetos são necessariamente submetidos ao interesse especulativo e ao entendimento que preside à sua realização. Mas no juízo de gosto, o problema de uma tal submissão necessária não se coloca mais. Propõe-se, em contrapartida, um problema de dedução para a gênese do acordo entre faculdades, problema que não aparecia enquanto as faculdades eram consideradas como já tomadas numa relação determinada pela legislação de uma dentre elas.

Os pós-kantianos, notadamente Maïmon e Fichte, dirigiam a Kant uma objeção fundamental: Kant teria ignorado as exigências de um método genético. Esta objeção tem dois sentidos, objetivo e subjetivo: Kant apóia-se em fatos, dos quais ele procura somente as condições; mas, também, invoca faculdades já prontas, das quais ele determina tal relação ou tal proporção, já supondo que elas são capazes de uma harmonia qualquer. Se se considera que a Filosofia transcendental de Maïmon é de 1790, é preciso reconhecer que Kant, em parte, previa as objeções de seus discípulos. As duas primeiras Críticas invocavam fatos, procuravam condições para esses fatos, encontravam-nos em faculdades já formadas. Por isso mesmo, remetiam a uma gênese que elas eram incapazes de assegurar por sua conta. Mas na Crítica da faculdade de julgar estética, Kant levanta o problema de uma gênese das faculdades em seu livre acordo primeiro. Ele descobre, então, o fundamento último, que faltava ainda às outras críticas. A Critica em geral deixa de ser um simples condicionamento, para devir uma Formação transcendental, uma Cultura transcendental, uma Gênese transcendental. [87]
A questão que nos ficava da Analítica do belo era esta: de onde vem o acordo livre indeterminado das faculdades entre si, qual é a gênese das faculdades neste acordo? A Analítica do belo não vai adiante, precisamente, porque ela não tem os meios para responder à questão; nota-se, ao mesmo tempo, que o juízo "é belo" coloca em jogo apenas o entendimento e a imaginação (sem lugar para a razão). A Analítica do belo é sucedida pela Analítica do sublime; esta faz apelo à razão. Mas o que Kant espera disso, para a solução de um problema de gênese relativo ao próprio senso do belo?
O juízo "é sublime" não mais exprime um acordo da imaginação e do entendimento, mas da razão e da imaginação. Ora, esta harmonia do sublime é bastante paradoxal. Razão e imaginação só entram em acordo no seio de uma tensão, de uma contradição, de uma dilaceração dolorosa. Há acordo, mas acordo discordante, harmonia na dor. E é somente a dor que torna possível um prazer. Kant insiste neste ponto: a imaginação sofre uma violência, ela parece mesmo perder sua liberdade. Sendo o sentimento do sublime experimentado diante do informe ou disforme da natureza (imensidade ou potência), a imaginação não pode mais refletir a forma de um objeto. Mas longe de descobrir para si uma outra atividade, ela acede a sua própria Paixão. Com efeito, a imaginação tem duas dimensões essenciais, a apreensão sucessiva e a compreensão simultânea. Se a apreensão vai sem dificuldade ao infinito, a compreensão (como compreensão estética independente de todo conceito numérico) tem sempre um máximo. Eis que o sublime coloca a imaginação em face desse máximo, força-a a atingir seu próprio limite, confronta-a com suas limitações. A imaginação é empurrada até o limite do seu poder[141].. Mas o que é que empurra e constrange assim a imaginação? É somente em aparência, ou por projeção, que o sublime se reporta à natureza sensível. Na verdade, somente a razão nos obriga a reunir em um todo o infinito do mundo sensível; nada mais força a imaginação a enfrentar seu limite. A imaginação descobre, então, a [88] desproporção da razão, ela é forçada a confessar que toda sua potência nada é nada em relação a uma Idéia racional[142].
E, contudo, um acordo nasce no seio deste desacordo. Jamais Kant esteve tão próximo de uma concepção dialética das faculdades. A razão coloca a imaginação em presença de seu limite no sensível; mas, inversamente, a imaginação desperta a razão como faculdade capaz de pensar um substrato supra-sensível para a infinidade deste mundo sensível. Sofrendo uma violência, a imaginação parece perder sua liberdade; mas ela também se eleva a um exercício transcendente, tomando por objeto seu próprio limite. Ultrapassada por todos os lados, ela própria ultrapassa suas limitações, é verdade que de maneira negativa, representando-se a inacessibilidade da Idéia racional e fazendo dessa inacessibilidade alguma coisa de presente na natureza sensível. "A imaginação, que fora do sensível não encontra nada em que se apegar, sente-se, entretanto, ilimitada graças ao desaparecimento de suas limitações; e essa abstração é uma apresentação do infinito que, por essa razão, só pode ser negativa, mas que, no entanto, alarga a alma"[143]. No mesmo momento em que ela crê perder sua liberdade, sob a violência da razão, ela se libera de todas as constrições do entendimento, ela entra em acordo com a razão para descobrir aquilo que o entendimento lhe ocultava, quer dizer, sua destinação supra-sensível, que é também como que sua origem transcendental. Na sua própria Paixão, a imaginação descobre a origem e a destinação de todas as suas atividades. É esta a lição da Analítica do sublime: mesmo a imaginação tem uma destinação supra-sensível[144]. O acordo da imaginação e da razão encontra-se efetivamente engendrado no desacordo. O prazer é engendrado na dor. Mais ainda, tudo se passa como se as duas faculdades se fecundassem reciprocamente e reencontrassem o princípio de sua gênese, uma na vizinhança de seu limite, a outra, para além do sensível, ambas em um "ponto de concentração" que define o mais profundo da alma como unidade supra-sensível de todas as faculdades.
A Analítica do sublime nos dá um resultado que a Analítica [89] do belo era incapaz de conceber: no caso do sublime, o acordo das faculdades em presença é o objeto de uma verdadeira gênese. Eis porque Kant reconhece que, contrariamente ao senso do belo, o senso do sublime é inseparável de uma Cultura: "nas provas da força da natureza, nas suas devastações... o homem grosseiro só percebe as penas, os perigos, as misérias"[145]. O homem grosseiro permanece no "desacordo". Não que o sublime seja assunto de uma cultura empírica e convencional; mas as faculdades que ele coloca em jogo remetem a uma gênese do seu acordo no seio do desacordo imediato. Trata-se de uma gênese transcendental, não de uma formação empírica. A partir daí, a Analítica do sublime tem dois sentidos. Ela tem, em primeiro lugar, um sentido por si mesma, do ponto de vista da razão e da imaginação. Mas ela também tem o valor de modelo: como estender ou adaptar ao senso do belo esta descoberta que vale para o sublime? Quer dizer: o acordo da imaginação e do entendimento, que define o senso do belo, não deve ser, ele também, objeto de uma gênese da qual a Analítica do sublime nos mostrou o exemplo?

O problema de uma dedução transcendental é sempre objetivo. Por exemplo, na Crítica da razão pura, depois de ter mostrado que as categorias eram representações a priori do entendimento, Kant pergunta por que e como objetos são necessariamente submetidos às categorias, quer dizer, ao entendimento legislador ou ao interesse especulativo. Mas se nós consideramos o juízo do sublime, vemos que nenhum problema objetivo de dedução se coloca a seu respeito. O sublime se relaciona certamente a objetos, mas somente por projeção de nosso estado de alma; e esta projeção é possível imediatamente, porque ela se faz sobre aquilo que há de informe ou de disforme no objeto[146]. Ora, à primeira vista, parece ser o caso também para o juízo de gosto ou de beleza: nosso prazer é desinteressado, nós [90] fazemos abstração da existência e até da matéria do objeto. Nenhuma faculdade é legisladora; nenhum objeto é necessariamente submetido ao juízo de gosto. É por isso que Kant sugere que o problema do juízo de gosto é apenas subjetivo[147].
Contudo, a grande diferença entre o sublime e o belo é que o prazer do belo resulta da forma de um objeto: Kant diz que este caráter é suficiente para fundar a necessidade de uma "dedução" do juízo de gosto[148]. Por mais indiferentes que sejamos à existência do objeto, não deixa de haver um objeto a propósito do qual, por ocasião do qual nós experimentamos a livre harmonia do nosso entendimento e de nossa imaginação. Em outros termos, a natureza é apta a produzir objetos que se refletem formalmente na imaginação: contrariamente ao que se passa no sublime, a natureza manifesta aqui uma propriedade positiva "que nos fornece a ocasião de alcançar a finalidade interna da relação de nossas faculdades mentais por meio do juízo incidente sobre algumas de suas produções"[149]. Eis então que o acordo interno de nossas faculdades entre si implica um acordo exterior entre a natureza e essas mesmas faculdades. Este segundo acordo é muito especial. Ele não deve ser confundido com uma submissão necessária dos objetos da natureza; mas, do mesmo modo, não deve ser tomado por um acordo final ou teleológico. Se houvesse submissão necessária, o juízo de gosto seria autônomo e legislador; se houvesse finalidade real objetiva, o juízo de gosto deixaria de ser heautônomo ("precisaríamos aprender da natureza o que deveríamos achar belo, de modo que o juízo estaria submetido a princípios empíricos")[150]. O acordo é, portanto, sem alvo: a natureza só obedece a suas próprias leis mecânicas, enquanto que nossas faculdades obedecem a suas leis específicas. "Acordo apresentando-se sem alvo, por si mesmo, como apropriado por acaso à necessidade do juízo relativamente à natureza e a suas formas"[151]. Como diz Kant, não é a natureza que nos faz um [91] favor, nós é que somos organizados de tal maneira que a recebemos favoravelmente.
Retornemos ao que víamos. O senso do belo, como senso comum, define-se pela universalidade suposta do prazer estético. O prazer estético, ele mesmo, resulta do livre acordo da imaginação e do entendimento, livre acordo que só pode ser sentido. Mas não basta supor, por sua vez, a universalidade e a necessidade do acordo. É preciso que ele seja engendrado a priori de tal maneira que sua pretensão seja fundada. O verdadeiro problema da dedução começa aqui: é preciso explicar "porque, no juízo de gosto, se atribui o sentimento a todos, de certo modo como um de dever"[152]. Ora, o juízo de gosto nos pareceu ligado a uma determinação objetiva. Trata-se de saber se, ao lado dessa determinação, não encontraremos um princípio para a gênese do acordo das faculdades no próprio juízo. Um tal ponto de vista teria a vantagem de dar conta da ordem das idéias: 1º a Analítica do belo descobre um acordo livre do entendimento e da imaginação, mas só pode estabelece-lo como presumido; 2º a Analítica do sublime descobre um acordo livre da imaginação e da razão, mas em condições internas tais que traça ao mesmo tempo sua gênese; 3º a dedução do juízo de gosto descobre um princípio exterior a partir do qual o acordo entendimento-imaginação é, por sua vez, engendrado a priori, de modo que essa dedução se serve, portanto, do modelo fornecido pelo sublime, mas com meios originais, e sem que o sublime, por sua vez, tenha necessidade de dedução.
Como se faz essa gênese do senso do belo? É que a idéia do acordo sem alvo entre a natureza e nossas faculdades define um interesse da razão, interesse racional ligado ao belo. É claro que esse interesse não é um interesse pelo belo como tal, e que ele totalmente diferente do juízo estético. Senão, toda a Critica da faculdade de julgar seria contraditória: com efeito, o prazer do belo é inteiramente desinteressado, e o juízo estético exprime o acordo da imaginação e do entendimento sem intervenção da razão. Trata-se de um interesse sinteticamente ligado ao juízo. Ele não incide sobre o belo como tal, mas sobre a aptidão da natureza para produzir [92] coisas belas. Ele é concernente à natureza, na medida em que esta apresenta um acordo sem alvo com nossas faculdades. Mais precisamente, como esse acordo é exterior ao acordo das faculdades entre si, como ele define somente a ocasião na qual nossas faculdades concordam entre si, o interesse ligado ao belo não faz parte do juízo estético. Assim sendo, ele pode, sem contradição, servir de princípio de gênese para o acordo a priori das faculdades nesse juízo. Em outros termos, o prazer estético é desinteressado, mas nós experimentamos um interesse racional pelo acordo das produções da natureza com nosso prazer desinteressado. "Como é do interesse da razão que as idéias tenham uma realidade objetiva..., quer dizer, que a natureza indique,  ao menos por um traço ou por um signo, que ela encerra um princípio que permite admitir um acordo legítimo de suas produções com nossa satisfação, independentemente de todo interesse..., é preciso que a razão se interesse por toda manifestação natural de um semelhante acordo"[153]. Não é de espantar, portanto, que o interesse ligado ao belo incida sobre determinações às quais o senso do belo permanecia indiferente. No senso do belo desinteressado, a imaginação reflete a forma. Escapa-lhe o que se deixa dificilmente refletir, cores, sons, matérias. Ao contrário, o interesse ligado ao belo incide sobre sons e cores, a cor das flores e o canto dos pássaros[154]. Também nisso não se verá contradição alguma. O interesse é concernente às matérias, pois é com matérias que a natureza, conforme suas leis mecânicas, produz objetos que se encontram aptos para serem refletidos formalmente. Kant chega a definir assim a matéria prima que intervém na produção natural do belo: matéria fluida, da qual uma parte se separa ou se evapora, e cujo resto se solidifica bruscamente (formação de cristais)[155].
Desse interesse ligado ao belo, ou ao juízo de beleza, dizemos que ele é meta-estético. Como esse interesse da razão assegura a gênese do acordo entendimento-imaginação no próprio juízo de beleza? Nos sons, cores e livres matérias, a Razão descobre outras tantas apresentações de suas idéias. Por exemplo, nós não nos contentamos em subsumir a cor sob um conceito do entendimento [93], nós a relacionamos ainda a um conceito totalmente distinto (Idéia da razão), que não tem, por sua vez, um objeto de intuição, mas que determina seu objeto por analogia com o objeto de intuição correspondente ao primeiro conceito. Assim, transportamos "a reflexão sobre um objeto da intuição para um conceito totalmente distinto, ao qual, talvez, jamais possa corresponder diretamente uma intuição"[156]. O lírio branco não é mais simplesmente reportado aos conceitos de cor e de flor, mas desperta a Idéia de pura inocência, cujo objeto, jamais dado, é um análogo reflexivo do branco na flor-de-lis[157]. Mas, assim, o interesse meta-estético da razão tem duas conseqüências: de um lado, os conceitos do entendimento encontram-se alargados ao infinito, de maneira ilimitada; de outro lado, a imaginação encontra-se liberada da sujeição aos conceitos determinados do entendimento, que ela ainda sofria no esquematismo. Como exposição, a Analítica do belo permitia-nos somente dizer: no juízo estético, a imaginação torna-se livre ao mesmo tempo em que o entendimento torna-se indeterminado. Mas como ela se liberava? Como o entendimento se tornava indeterminado? É a razão que o diz, e que, por esse meio, assegura a gênese do acordo livre indeterminado das duas faculdades no juízo. A dedução NT e NRT do juízo estético dá conta do que a Analítica do belo não podia explicar: ela encontra na razão o princípio de uma gênese transcendental. Mas era preciso passar antes pelo modelo genético do Sublime.

O tema de uma apresentação das Idéias na natureza sensível é, em Kant, um tema fundamental. É que há vários modos de apresentação. O Sublime é o primeiro modo: apresentação direta que se faz por projeção, mas que permanece negativa, incidindo sobre a inacessibilidade da Idéia. O segundo modo é definido pelo interesse racional ligado ao belo: trata-se de uma apresentação indireta, mas positiva, que se faz por símbolo. O terceiro modo aparece no Gênio: apresentação [94] ainda positiva, mas segunda, fazendo-se por criação de uma "outra" natureza. Enfim, um quarto modo é teleológico: apresentação positiva, primária e direta, que se faz sob conceitos de fim e de acordo final. Não nos cabe analisar este último modelo. Em contrapartida, do ponto de vista que nos ocupa, o modo do gênio levanta um problema essencial na estética de Kant.
O interesse racional nos deu a chave de uma gênese do acordo a priori das faculdades no juízo de gosto. Mas sob que condição? À condição de que se junte à experiência particular do belo "o pensamento de que a natureza produziu essa beleza"[158]. Nesse nível, portanto, aparece uma disjunção: aquela do belo na natureza e do belo na arte. Nada na Analítica do belo como exposição autorizava uma tal distinção: é somente a dedução que a introduz, quer dizer, o ponto de vista meta-estético do interesse ligado ao belo. Este interesse diz respeito exclusivamente à beleza natural; a gênese, portanto, tem por objeto, o acordo da imaginação e do entendimento, mas somente enquanto ele se produz na alma do espectador da natureza. Face à obra de arte, o acordo das faculdades permanece ainda sem princípio ou fundamento.
A última tarefa da estética kantiana é encontrar para a arte um princípio análogo àquele do belo na natureza. Este princípio é o Gênio. Do mesmo modo que o interesse racional é a instância pela qual a natureza dá uma regra ao juízo, o gênio é a disposição subjetiva pela qual a natureza dá regras à arte (é nesse sentido que ele é "dom da natureza")[159]. Do mesmo modo que o interesse racional incide sobre as matérias com as quais a natureza produz belas coisas, o Gênio traz matérias com as quais o sujeito que ele inspira produz belas obras: "o gênio fornece essencialmente uma rica matéria às belas artes"[160]. O Gênio é um princípio meta-estético do mesmo modo que o interesse racional. Com efeito, ele se define como um modo de apresentação das Idéias. É verdade que Kant fala aqui de Idéias estéticas, e as distingue das Idéias da razão: estas seriam conceitos sem intuição; aquelas seriam intuições sem conceito. Mas essa oposição [95] é apenas uma aparência; não há dois  tipos de Idéias. Se a Idéia estética ultrapassa todo conceito, é porque ela produz a intuição de uma outra natureza que não aquela que nos é dada: ela cria uma natureza na qual os fenômenos são imediatamente acontecimentos do espírito e os acontecimentos do espírito são fenômenos da natureza. Assim, os seres invisíveis, o reino dos bem-aventurados, o inferno, tomam um corpo; e o amor, a morte, tomam uma dimensão que os torna adequados a seu sentido espiritual[161]. A partir daí, se pensará que a intuição do gênio é precisamente a intuição que faltava às Idéias da razão. A intuição sem conceito é a que faltava ao conceito sem intuição. De modo que, na primeira fórmula, são os conceitos do entendimento que se encontram transbordados e desqualificados; na segunda, são as intuições da sensibilidade. Mas no gênio, a intuição criadora, como intuição de uma outra natureza, e os conceitos da razão, como Idéias racionais, unem-se adequadamente[162]. A Idéia racional contém algo de inexprimível; mas a Idéia estética exprime o inexprimível, por criação de uma outra natureza. Também a Idéia estética é verdadeiramente um modo de apresentação das Idéias, próximo do simbolismo, ainda que procedendo diferentemente. E ela tem um efeito análogo: ela "dá o que pensar", ela alarga os conceitos do entendimento de maneira ilimitada, ela libera a imaginação das constrições do entendimento. O Gênio "anima", "vivifica". Princípio meta-estético, ele torna possível, engendra o acordo estético da imaginação e do entendimento. Ele engendra cada uma das faculdades nesse acordo: a imaginação como livre, o entendimento como ilimitado. Então, a teoria do Gênio vem preencher o fosso que, do ponto de vista meta-estético, se tinha escavado entre o belo na natureza e o belo na arte. O Gênio dá um princípio genético às faculdades em relação à obra de arte. É por isso que, depois que o parágrafo 42 da Crítica da faculdade de julgar disjungiu as duas espécies do belo, os parágrafos 58 e 59 podem restaurar a unidade sob a idéia de uma gênese das faculdades que lhes são comuns. [96]
Não seria preciso, contudo, levar muito longe o paralelo entre o interesse ligado ao belo na natureza e o gênio relativo ao belo na arte. É que, com o gênio, entramos numa gênese muito mais complexa. Para engendrar o acordo da imaginação e do entendimento, foi-nos preciso, aqui, deixar o ponto de vista do espectador. O gênio é o dom do criador artista. E é no artista, de início, que a imaginação se libera e que o entendimento se alarga. A dificuldade é esta: como pode a gênese ter um alcance universal, já que ela tem por regra a singularidade do gênio? Parece bem que, no gênio, não encontramos uma subjetividade universal, mas bem mais uma intersubjetividade excepcional. Com efeito, o Gênio é sempre um apelo lançado para o nascimento de outros gênios. Mas que desertos é preciso atravessar antes que o gênio responda ao gênio. "O gênio é a originalidade exemplar dos dons naturais de um sujeito no livre uso de suas faculdades de conhecimento. Assim, a obra do gênio é um exemplo, não para ser imitado, mas para fazer nascer na sua seqüência um outro gênio, despertando nele o sentimento de sua originalidade própria e excitando-o a exercer sua arte com total independência das regras... O gênio é um favorito da natureza, e aparece raramente"[163]. Contudo, essa última dificuldade se resolve, se se considera que o artista de gênio tem duas atividades. De um lado, ele cria NT NRT. Vale dizer: ele produz a matéria de sua obra, ele leva sua imaginação a uma função livre criadora, pela invenção de uma outra natureza adequada às Idéias. Mas, de outro lado, o artista forma: ele ajusta sua imaginação liberada a seu entendimento indeterminado, de modo que ele próprio dá à sua obra a forma de um objeto de gosto ("para dar essa forma à obra de arte, o gosto basta")[164]. Precisamente, o que é inimitável no gênio é o primeiro aspecto: a enormidade da Idéia, a espantosa matéria, a deformidade genial. Mas, sob o segundo aspecto, a obra de gênio pode se tornar um exemplo para todos: ela inspira imitadores, suscita espectadores, engendra por toda parte o acordo livre indeterminado da imaginação e do entendimento que constitui o gosto. E enquanto um outro gênio não tiver responde ao gênio [97], não estamos, todavia, em um simples deserto: os homens de gosto, alunos e admiradores povoam o intervalo entre dois gênios, e permitem aguardar[165]. Desse modo, a gênese que parte do gênio ganha efetivamente um valor universal (o gênio criador engendra o acordo das faculdades no próprio espectador): "O gosto, como o juízo em geral, é a disciplina do gênio... Ele coloca, assim, clareza e ordem na massa de pensamentos e dá consistência às idéias, ele também as torna suscetíveis de um sucesso durável tanto quanto universal, próprias para servirem de exemplo aos outros e a se adaptarem a uma cultura sempre em progresso"[166].
A estética de Kant nos coloca, portanto, em presença de três gêneses paralelas: a partir do sublime, gênese do acordo razão-imaginação; a partir do interesse ligado ao belo, gênese do acordo imaginação-entendimento em função do belo na natureza; a partir do gênio, gênese do acordo imaginação-entendimento em função do belo na arte. Mais ainda, para cada caso, são as faculdades consideradas que são engendradas em seu estado livre original e em seu acordo recíproco. Assim, a Crítica da faculdade de julgar revela-nos um domínio totalmente diferente do das duas outras Críticas. As duas Críticas precedentes partiam de faculdades já formadas, entrando em relações determinadas, assumindo tarefas organizadas sob a presidência de uma dentre ela: o entendimento legislava no interesse racional especulativo, a razão legislava em seu próprio interesse prático. Quando Kant se esforça para definir a novidade da Crítica da faculdade de julgar, ele diz o seguinte: ela assegura de uma só vez a passagem do interesse especulativo ao interesse prático, e a subordinação do primeiro ao segundo[167]. Por exemplo, o sublime já mostra que a destinação supra-sensível de nossas faculdades só se explica como a predestinação de um ser moral; e o interesse ligado ao belo na natureza dá testemunho de uma alma que se destine à moralidade; enfim, o gênio, ele próprio, permite integrar o belo artístico ao mundo moral, e [98] ultrapassar, a esse respeito, a disjunção das duas espécies do belo (é o belo na arte, não menos que o belo na natureza, que é finalmente dito "símbolo da moralidade")[168].
Mas se a Crítica da faculdade de julgar nos abre uma passagem, isso ocorre, de início, porque ela desvela um fundo que permanecia escondido nas duas outras Críticas. Tomando literalmente a idéia de passagem, faríamos da Critica da faculdade de julgar um simples complemento, uma arrumação: de fato, ela constitui o fundo originário de onde derivam as duas outras Críticas. Sem dúvida, ela mostra como o interesse especulativo pode ser subordinado ao interesse prático, como a Natureza pode estar em acordo com a liberdade, como nossa destinação é uma predestinação moral. Mas ela só mostra isso por relacionar o juízo, no sujeito e fora dele, " a alguma coisa que não é nem a natureza nem a liberdade"[169]. E o interesse ligado ao belo não é em si mesmo nem moral nem especulativo. E se nós temos o destino de um ser moral, é porque este destino desenvolve, explica uma destinação supra-sensível de todas as nossas faculdades; esta destinação não permanece menos envolvida como o verdadeiro núcleo de nosso ser, como um princípio mais profundo do que todo destino formal. Com efeito, é este o sentido da Crítica da faculdade de julgar: sob as relações determinadas e condicionadas das faculdades, ela descobre o livre acordo indeterminado, incondicionado. Ora, jamais uma relação determinada de faculdades, condicionada por uma dentre elas, seria possível se não fosse primeiro tornado possível por este livre acordo incondicionado. Igualmente, a Crítica da faculdade de julgar não se atém ao ponto de vista do condicionamento tal como aparecia nas duas outras Críticas: ela nos faz entrar na Gênese. As três gêneses da Crítica da faculdade de julgar não são somente paralelas, elas convergem para um mesmo princípio: a descoberta do que Kant chama de Alma, ou seja, a unidade supra-sensível de todas as nossas faculdades, "o ponto de concentração", o princípio vivificante a partir do qual cada faculdade se encontra "animada", engendrada em seu livre exercício como em seu livre acordo com as outras[170]. Uma imaginação livre original, que não se contenta em esquematizar sob a constrição [99] do entendimento; um entendimento ilimitado original, que não se dobra ainda sob o peso especulativo de seus conceitos determinados, assim como já não está submetido aos fins da razão prática; uma razão original que não tomou ainda o gosto por comandar, mas que se libera a si mesma liberando as outras faculdades - tais são as descobertas extremas da Crítica da faculdade de julgar, onde cada faculdade reencontra o princípio de sua gênese ao convergir em direção ao ponto focal, "ponto de concentração no supra-sensível" do qual todas as nossas faculdades tiram, de uma só vez, sua força e sua vida

Nosso problema era duplo. Como explicar que o liame entre a exposição e a dedução do juízo de beleza seja interrompido pela análise do sublime sem que o sublime tenha dedução correspondente? E como explicar que a dedução do juízo de beleza se prolongue nas teorias do interesse, da arte e do gênio, que parecem responder a preocupações bem diferentes? Acreditamos que o sistema da Crítica da faculdade de julgar, na sua primeira parte, pode ser reconstituído da seguinte maneira:
1º Analítica do belo como exposição: estética formal do belo em geral, do ponto de vista do espectador. Os diferentes momentos dessa Analítica mostram que o entendimento e a imaginação entram em um livre acordo, e que este livre acordo é constitutivo do juízo de gosto. Define-se, assim, o ponto de vista estético de um espectador do belo em geral. Este ponto de vista é formal, posto que o espectador reflete a forma do objeto. Mas o último momento da Analítica, o da modalidade, levanta um problema essencial. O acordo livre indeterminado deve ser a priori. Mais ainda, ele é o mais profundo da alma; toda proporção determinada das faculdades supõe a possibilidade de sua harmonia livre e espontânea. Neste sentido, a Crítica da faculdade de julgar deve ser o verdadeiro fundamento das duas outras Críticas. Portanto, é evidente que não podemos nos contentar em presumir o acordo a priori do entendimento e da imaginação no juízo de gosto. Esse acordo deve constituir o objeto de uma gênese transcendental. Mas a Analítica do belo é incapaz de assegurar essa gênese [100]: ela assinala a necessidade dela, mas não pode, por sua conta, ultrapassar uma simples "presunção".
2º Analítica do sublime, ao mesmo tempo como exposição e dedução: estética informal do sublime do ponto de vista do espectador. O gosto não colocava em jogo a razão. O sublime, ao contrário, explica-se pelo livre acordo da razão e da imaginação. Mas este novo acordo "espontâneo" ocorre em condições muito especiais: na dor, na oposição, no constrangimento, no desacordo. Aqui, a liberdade ou a espontaneidade são experimentadas em regiões-limites, face ao informe e ao disforme. Mais ainda, a Analítica do sublime nos dá um princípio genético para o acordo das faculdades que ela coloca em jogo. Por isso mesmo, ela vai mais longe que a Analítica do belo.
3º) Analítica do belo como dedução: meta-estética material do belo na natureza do ponto de vista do espectador. Se o juízo de gosto reclama por uma dedução particular, é porque ele se reporta pelo menos à forma do objeto; de outro lado, ele tem, por sua vez, necessidade de um princípio genético para o acordo das faculdades que ele exprime, entendimento e imaginação. O Sublime nos dá um modelo genético; é preciso encontrar um equivalente dele para o belo, com outros meios. Procuramos uma regra sob a qual estamos no direito de supor a universalidade do prazer estético. Enquanto nos contentamos em invocar o acordo da imaginação e do entendimento como um acordo presumido, a dedução permanece fácil. O difícil é fazer a gênese desse acordo a priori. Ora, precisamente porque a razão não intervém no juízo de gosto, ela pode nos dar um princípio a partir do qual é engendrado o acordo das faculdades nesse juízo. Existe um interesse racional ligado ao belo: esse interesse meta-estético incide sobre a aptidão da natureza em produzir belas coisas, sobre as matérias que ela emprega para tais "formações". Graças a esse interesse, que não é nem prático nem especulativo, a razão nasce para si mesma, alarga o entendimento, libera a imaginação. Ela assegura a gênese de um acordo livre indeterminado da imaginação e do entendimento. Reúnem-se os dois aspectos da dedução: referência objetiva a uma natureza capaz de produzir coisas belas; referência subjetiva a um princípio capaz de engendrar o acordo das faculdades. [101]
4º Seqüência da dedução na teoria do Gênio: meta-estética ideal do belo na arte do ponto de vista do artista criador. O interesse ligado ao belo só assegura a gênese excluindo o caso do belo artístico. O Gênio intervém, então, como princípio meta-estético próprio às faculdades que se exercem em arte. Ele tem propriedades análogas às do interesse: ele traz uma matéria, ele encarna as Idéias, faz com que a razão nasça para si, libera a imaginação e alarga o entendimento. Mas todas essas propriedades, ele as exerce primeiro do ponto de vista da criação de uma obra de arte. É preciso, enfim, que o gênio, sem nada perder de seu caráter excepcional e singular, dê um valor universal ao acordo que ele engendra, e comunique às faculdades do espectador um pouco de sua vida própria e de sua animação: assim, a estética de Kant forma um todo sistemático em que se reúnem as três gêneses.
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Tradução de
Cíntia Vieira da Silva

































[102]
8
 RAYMOND ROUSSEL
OU O HORROR DO VAZIO DL
[1963]

            A obra de Raymond Roussel, cuja publicação foi retomada pelas edições Pauvert, compreende dois tipos de livros: os livros-poemas, que traçam a minuciosa descrição de objetos miniaturas (por exemplo, todo um espetáculo sobre uma etiqueta de garrafa de água de Evian) ou objetos dublês (atores, maquinários e máscaras de carnaval). Um segundo tipo são os livros-procedimento: partindo, explicitamente, ou não, de uma frase indutora (ex. “les lettres du blanc sur les bandes du vieux billard”), acaba-se por reencontrar a mesma frase ou quase (les lettres du blanc sur les bandes du vieux pillard”), mas no intervalo terá surgido todo um mundo de descrições e enumerações, onde duas palavras tomadas em dois sentidos vivem vidas diferentes, ou melhor, são deslocadas para comporem outras palavras (“j’ai du bon tabac...” = “jade tube onde aubade...”)1.
            Este autor, que tanta influência teve sobre os surrealistas e hoje a tem sobre Robbe-Grillet, continua pouco conhecido. Michel Foucault publica um comentário impressionante, de uma grande força poética e filosófica. Ele encontra as chaves da obra em uma direção bastante diferente da que os surrealistas haviam indicado. [103] Parece indispensável associar a leitura do livro de Foucault àquela do próprio Raymond Roussel. Como explicar o “procedimento”? Segundo Michel Foucault, existe na linguagem uma espécie de distância essencial, de deslocamento, de desmembramento ou de rasgão. Acontece que as palavras são menos numerosas que as coisas e que cada palavra tem vários sentidos. A literatura do absurdo acreditava que faltava sentido; de fato, o que falta são os signos.
            Há, então, um vazio que se abre no interior de uma palavra: a repetição de uma palavra deixa escancarada a diferença de seus sentidos. Seria a prova de uma impossibilidade da repetição? Não, e é aí que aparece a tentativa de Roussel: trata-se de aumentar esse vazio ao máximo, tornando-o determinável e mensurável, e de preenchê-lo, então, com toda uma maquinaria, com toda uma fantasmagoria que religa e integra as diferenças à repetição.
            Por exemplo, as palavras “demoiselle à prétendant” induzem “demoiselle (hie) à reitre en dents” e, como numa equação, o problema torna-se o da execução de um mosaico com a ajuda de um maço NRT . É preciso que a repetição se torne uma repetição paradoxal, poética e compreensiva. É preciso que ela compreenda em si a diferença, ao invés de a reduzir. É preciso que a pobreza da linguagem se torne sua própria riqueza. Foucault diz: “Não a repetição lateral das coisas reditas, mas a repetição radical que passou por cima da não-linguagem e que deve a esse vazio transposto o seu ser poesia DLa.”.
O vazio será preenchido e transposto pelo quê? Por extraordinárias máquinas, por estranhos atores-artesãos. As coisas e os seres seguem aqui a linguagem. Tudo nos mecanismos e nos comportamentos é imitação, reprodução, récita. Mas récita de uma coisa única, de um acontecimento incrível, absolutamente diferentes. Como se as máquinas de Roussel tivessem tomado para si a técnica do procedimento: a exemplo do trabalho de turbina, que remete por sua vez a uma profissão que nos força a levantar cedo NT. Ou o verme que toca cítara arremessando gotas de água sobre cada corda. Roussel elabora várias séries de repetição que liberam: os prisioneiros salvarão sua vida através da repetição e da récita, pela invenção de máquinas correspondentes. [104]
            Precisamente, estas repetições liberadoras são poéticas, porque elas não suprimem a diferença, mas, ao contrário, a experimentam e a autenticam ao interiorizar o Único. Quanto ás obras sem procedimento, obras-poema, elas se explicam de uma maneira análoga. Desta feita, são as próprias coisas que se abrem em favor de uma miniaturização, ou melhor, à custa de um dublê, de uma máscara. E o vazio é agora atravessado pela linguagem, que dá surgimento a todo um mundo no interstício dessas máscaras e dublês. Desta forma, as obras sem procedimento são como o avesso do próprio procedimento. Em ambos os casos o problema é o de falar e fazer ver ao mesmo tempo, falar e dar a ver.
            O que dissemos ainda está aquém da riqueza e da profundidade do livro de Foucault. Esse enlace da diferença com a repetição contém também a vida, a morte e a loucura. Pois parece que o vazio interior às coisas e às palavras é um signo de morte e aquilo que o preenche é presença da loucura.
            Todavia, isso não quer dizer que a loucura individual de Raymond Roussel e sua obra poética tenham um elemento positivamente comum. Ao contrário, seria necessário falar de um elemento a partir do qual a obra e a loucura se excluem mutuamente. Ele é comum apenas nesse sentido; esse elemento é a linguagem. Pois a loucura pessoal e a obra poética, o delírio e o poema representam dois investimentos da linguagem, em níveis diversos, exclusivos.
            Foucault, em seu último capítulo, esboça, a partir desse ponto de vista, toda uma interpretação das relações obra-loucura, que se aplicaria, e que talvez aplicará a outros poetas (Artaud?). O livro de Foucault não é decisivo somente em função de Roussel; ele marca uma etapa importante nas pesquisas pessoais do autor, dedicadas, em primeiro lugar, às relações entre a linguagem, o olhar, a morte e a loucura2.
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Tradução de
Hélio Rebello Cardoso Júnior

 [105]
9
AO CRIAR A PATAFÍSICA JARRY ABRIU CAMINHO PARA A FENOMENOLOGIA DL
[1964]


            Encontra-se muitas vezes, entre os autores modernos mais importantes, um pensamento que tem o duplo aspecto de uma constatação e de uma profecia: a metafísica está e deve ser ultrapassada. A filosofia, na medida em que seu destino é concebido como metafísico, dá e deve dar lugar a outras formas de pensamento, a outros modos de pensar.
            Esta idéia moderna é encontrada em contextos variados, que a dramatizam: 1º Deus está morto (seria interessante fazer uma antologia de todas as versões de Deus-morto, de todas as encenações dessa morte. Por exemplo, a volta de bicicleta de Jarry DLa. Somente em Nietzsche pode-se encontrar uma dúzia de versões, e a primeira delas de maneira alguma é a da Gaia Ciência, mas a do Viandante e sua sombra, no admirável texto do guarda da prisão DLb. Mas, seja como for, a morte de Deus significa para a filosofia a abolição da distinção cosmológica entre dois mundos, da distinção metafísica entre essência e aparência, da distinção lógica entre verdadeiro e falso. A morte de Deus reivindica, pois, uma nova forma de pensamento, uma transmutação de valores).
            2º O homem também morre (deixa de crer na substituição de Deus pelo homem, de crer no homem-Deus que ficaria no lugar de Deus-homem. Com efeito, nada muda com a troca de lugar, [106] os velhos valores permanecem. É necessário que o niilismo vá até o fim de si mesmo, no homem que quer morrer, no último homem, o homem da era atômica anunciada por Nietzsche).
            3º Esse algo distinto que está por vir é concebido como uma força que age desde já na subjetividade humana, mas se ocultando nela e também a destruindo. (Cf. “Algo me pensa” de Rimbaud.) A ação dessa força se efetiva segundo duas vias, a da história real e do desenvolvimento da técnica, e a da poesia e da criação poética de máquinas fantásticas imaginárias. Tal concepção reclama um novo pensador (um novo sujeito do pensamento, “morte ao Cogito”), novos conceitos (um novo objeto pensado), novas formas de pensamento (que integrem o velho inconsciente poético e as potências mecânicas atuais, Heráclito e a cibernética). De certo modo, essa tentativa de ultrapassar a metafísica já é conhecida. Pode ser encontrada em graus diversos, em Nietzsche, em Marx, em Heidegger. O único nome geral que lhe convém foi o criado por Jarry, patafísica. A patafísica deve ser definida: “Um epifenômeno é o que se sobrepõe a um fenômeno. A patafísica... é a ciência do que se sobrepõe à metafísica, seja nela mesma, seja fora dela mesma, estendendo-se tanto para além desta quanto esta para além da física. Ex.: se o epifenômeno é usualmente o acidente, a patafísica será sobretudo a ciência do particular, embora se diga que somente há ciências do geral” DLc. Falemos para os especialistas: o Ser é o epifenômeno de todos os entes, que deve ser pensado pelo novo pensador, que é, ele próprio, epifenômeno do homem.
            Numa proporção de humor negro e sisudez branca, em que é difícil separá-los, mas que são exigidos pelo novo pensamento, misturam-se em um livro lançado por Kosta Axelos, Vers la pensée planétaire (Éditions de Minuit) DLd. Ele escreveu precedentemente Marx penseur de la technique [107] e Heráclito e a filosofia. É justo que a casa editorial que se abriu para o nouveau roman fosse testemunha igualmente de uma filosofia nova. Kosta Axelos, que dirige a coleção “Argumentos”, tem uma formação dupla, marxista e heideggeriana. E mais, a força e inspiração de um grego, sutil ou sábio. Ele censura seus  mestres por não haverem rompido suficientemente com a metafísica, por não terem concebido suficientemente as potências de uma técnica ao mesmo tempo real e imaginária, por serem ainda prisioneiros das perspectivas que eles mesmos denunciavam. Na noção de planetário, ele encontra o motivo e a condição, o objeto e o sujeito, o positivo e o negativo do novo pensamento. E por esta via ele escreve um livro impressionante - para nós, o acabamento da patafísica.
            O método de Axelos procede por enumeração de sentidos. Essa enumeração não é uma justaposição, pois cada sentido participa dos outros. Não de acordo com Regras que remeteriam ainda à antiga metafísica, mas de acordo com um Jogo que compreende em si todas as regras possíveis, que tem como regra interna apenas afirmar tudo o que “pode” ser afirmado (incluindo o acaso, incluindo o não-sentido) e negar tudo que “pode” ser negado (incluindo Deus, incluindo o homem). Donde a lista fundamental de sentidos da palavra planetário: global, itinerante, errante, planificação, banalidade, engrenagem. “O jogo do pensamento e da era planetária é, pois, global, errante, itinerante, organizador, planificador e banalizante, preso na engrenagem” (p. 46).
            Esse planetarismo, que dá uma extrema mobilidade a cada um de seus sentidos, se apresenta assim: achar o fragmento representado por cada objeto, de modo que o pensamento faça a soma (e a subtração) sempre aberta de todos os fragmentos que subsistam como tal. Axelos instaura um diálogo irredutível entre o fragmento e o todo. Nenhuma totalidade a não ser a de Dionísio, mas de Dionísio desmembrado. Neste novo pluralismo, o Uno só pode se dizer do múltiplo e deve se dizer do múltiplo; o Ser se diz apenas do devir e do tempo, a Necessidade, somente do acaso; e o Todo, dos fragmentos. Potência desenvolvida daquilo que Jarry chamava “o epifenômeno” [108] – mas Axelos lança um termo totalmente distinto, e uma outra idéia: “o ser em devir da totalidade fragmentária e fragmentada”.
            Destaque-se duas noções fundamentais: a de Jogo, que deve substituir a relação metafísica do relativo e do absoluto; e a de Errância, que deve ultrapassar a oposição metafísica do verdadeiro e do falso, do erro e da verdade. Sobre a errância, Axelos escreve páginas brilhantes. O mesmo se pode dizer de seus comentários profundos sobre Pascal e sobre Rimbaud, sobre Freud (o texto sobre Rimbaud está entre os mais belos). E este livro brilhante e insólito é tão somente introdutório. Será preciso que Axelos invente suas novas formas de expressão, suas próprias versões da morte de Deus, suas máquinas fantásticas reais. Até chegar à bela síntese, que deve reunir os dois aspectos de uma verdadeira “patafísica” - o lado ubuesco RT , o lado pedante ou faustoso. Como diz Axelos, em uma de suas estranhas fórmulas de cortesia: “com e sem alegria e tristeza...”. Mas jamais com indiferença. Planetarismo ou patafísica.
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Tradução de
Hélio Rebello Cardoso Júnior

[109]
10

“ELE FOI MEU MESTRE” DL
[1964]


Tristeza das gerações sem « mestres ». Nossos mestres não são apenas os professores públicos, ainda que tenhamos uma grande necessidade de professores. No momento em que atingimos a idade adulta, nossos mestres são aqueles que nos tocam com uma novidade radical, aqueles que sabem inventar uma técnica artística ou literária e encontrar as maneiras de pensar que correspondem à nossa modernidade, quer dizer, tanto às nossas dificuldades como aos nossos entusiasmos difusos. Sabemos que existe apenas um valor de arte e até mesmo de verdade : a « primeira mão », a novidade autêntica daquilo que se diz, a  « musiquinha » com a qual aquilo é dito. Sartre foi isso para nós (para a geração que tinha vinte anos no momento da Liberação). Quem, na época, soube dizer algo de novo além de Sartre ? Quem nos ensinou novas maneiras de pensar ? Por mais brilhante e profunda que tenha sido, a obra de Merleau-Ponty era professoral e dependia daquela de Sartre em muitos aspectos. (Sartre assimilava de bom grado a existência do homem ao não-ser de um “buraco” no mundo : pequenos lagos de nada, dizia. Mas Merleau-Ponty os considerava como dobras, simples dobras e dobramentos. Assim se distinguiam um existencialismo duro e penetrante e um existencialismo mais brando, mais reservado.) E Camus, ai! Ora se tratava de um virtuosismo afetado, ora de uma absurdidade de segunda mão. Camus valia-se de pensadores malditos, mas toda sua filosofia nos conduzia a Lalande e a Meyerson, autores já bem conhecidos dos alunos do terceiro grau. Os novos temas, um certo estilo novo, uma nova maneira polêmica e agressiva de levantar os problemas, tudo isso veio de Sartre. Na desordem e nas [110] esperanças da Liberação, descobria-se, redescobria-se tudo : Kafka, o romance americano, Husserl e Heidegger, os acertos de contas sem fim com o marxismo, o impulso em direção a um novo romance…Tudo passava por Sartre, não apenas porque, sendo um filósofo, possuía um gênio da totalização, mas porque sabia inventar o novo. As primeiras representações de As Moscas, a aparição de O Ser e o nada, a conferência O Existencialismo é um humanismo foram acontecimentos : aprendia-se aí, depois de longas noites, a identidade do pensamento e da liberdade.
Os « pensadores privados » opõem-se, de uma certa maneira, aos « professores públicos ». Até mesmo a Sorbonne precisa de uma anti-Sorbonne, e os estudantes só escutam bem seus professores quando têm também outros mestres. Nietzsche, no seu tempo, deixara de ser professor para tornar-se pensador privado : também Sartre o fez, num outro contexto e com uma outra saída. Os pensadores privados têm duas características: uma espécie de solidão que permanece como propriamente sua em qualquer circunstância; mas também uma certa agitação, uma certa desordem do mundo, na qual eles surgem e falam. Além do mais, só falam em seu próprio nome, sem « representar » nada; e solicitam presenças brutas no mundo, potências nuas que de modo algum são « representáveis ». Já em Que é a literatura? Sartre traçava o ideal do escritor : « O escritor retomará o mundo tal e qual, todo nu, todo suado, todo fedido, todo cotidiano, para apresentá-lo às liberdades fundado sobre uma liberdade…Não é suficiente conceder ao escritor a liberdade de dizer tudo ! É preciso que ele escreva a um público que tenha a liberdade de mudar tudo, o que significa – além da supressão das classes – a abolição de toda ditadura, a renovação perpétua dos cargos, a derrubada contínua da ordem – a partir do momento em que ameaça se fixar. Em uma só palavra, a literatura é essencialmente a subjetividade de uma sociedade em revolução permanente” DLa. Desde o início Sartre concebeu o escritor sob a forma de um homem como os outros, dirigindo-se aos outros do ponto de vista único de sua liberdade. Toda sua filosofia se inseria num movimento especulativo que contestava a noção de representação, a própria ordem da representação: a filosofia mudava de lugar, abandonava a esfera do juízo, [111] para se instalar no mundo mais colorido do « pré-judicativo », do « sub-representativo ». Sartre acaba de recusar o prêmio Nobel. Continuação prática da mesma atitude, horror à idéia de representar algo praticamente, ainda que seja dos valores espirituais ou, como ele, diz, de ser institucionalizado.
O pensador privado precisa de um mundo que comporte um mínimo de desordem, mesmo que seja apenas uma esperança revolucionária, um grão de revolução permanente.  Em Sartre, há uma espécie de fixação na Liberação, nas esperanças desiludidas desse momento. Foi preciso a guerra da Argélia para reencontrar algo da luta política ou da agitação liberatória e, então, em condições muito mais complexas, já que não éramos mais os oprimidos mas, precisamente, aqueles que deviam se voltar contra si mesmos. Ah ! juventude. Só resta Cuba e a guerrilha venezuelana. Porém, maior ainda do que a solidão do pensador privado, há a solidão dos que buscam um mestre, dos que gostariam de um mestre e que só poderiam encontrá-lo num mundo agitado. A ordem moral, a ordem « representativa » fechou-se sobre nós. Até o medo atômico tomou ares de um medo burguês. Agora acontece até de propor-se aos jovens Teilhard de Chardin como modelo de pensador. Tem-se o que se merece. Depois de Sartre, não apenas Simone Weil, mas a Simone Weil da imitação. Porém, não é que não existam coisas profundamente novas na literatura atual. Citemos ao acaso : o novo romance, os livros de Gombrowicz, os contos de Klossowski, a sociologia de Lévi-Strauss, o teatro de Genet e de Gatti, a filosofia da « desrazão » que Foucault elabora…Mas o que falta hoje, o que Sartre soube reunir e encarnar para a geração precedente, são as condições de uma totalização: aquela em que a política, o imaginário, a sexualidade, o inconsciente, a vontade se reúnem nos direitos da totalidade humana. Hoje nós subsistimos com os membros esparsos. Sartre dizia de Kafka : sua obra é « uma reação livre e unitária ao mundo judeo-cristão da Europa central ; seus romances são o ultrapassamento sintético de sua situação de homem, de judeu, de tcheco, de noivo relutante, de tuberculoso etc. » DLb. Mas o próprio Sartre : sua obra é [112] uma reação ao mundo burguês, tal como o comunismo o põe em questão. Ela exprime o ultrapassamento de sua própria situação de intelectual burguês, de ex-aluno da École Normale, de noivo livre, de homem feio (já que Sartre se apresentava freqüentemente assim)… etc. : tudo isso que se reflete e ecoa no movimento de seus livros.
Falamos de Sartre como se ele pertencesse a uma época acabada. Mas ai! Nós é que estamos já acabados na ordem moral e no conformismo atual. Pelo menos Sartre nos permite uma vaga espera dos momentos futuros, de retomadas nas quais o pensamento se reformará e refará suas totalidades, como potência ao mesmo tempo coletiva e privada. É por isso que Sartre continua sendo nosso mestre. O último livro de Sartre, A crítica da razão dialética, é um dos livros mais belos e mais importantes surgidos nestes últimos anos. Ele dá a O ser e o nada seu complemento necessário, no sentido em que as exigências coletivas completam a subjetividade da pessoa. E quando pensamos novamente em O ser e o nada é para reencontrar o espanto que tínhamos diante em face dessa renovação da filosofia. Agora já sabemos melhor que as relações de Sartre com Heidegger, sua dependência de Heidegger, eram falsos problemas que se apoiavam em mal-entendidos. O que nos tocava em O ser e o nada era unicamente sartreano e dava a envergadura da contribuição de Sartre : a teoria da má-fé, em que a consciência, no seu interior, brincava com a sua dupla potência de não ser o que é e de ser o que não é; a teoria do Outrem, em que o olhar de outrem bastava para fazer o mundo vacilar e « roubá –lo » de mim ; a teoria da liberdade, em que esta se limitava a si mesma ao se constituir em situações ; a psicanálise existencial, onde se podia reencontrar as escolhas de base de um indivíduo no centro de sua vida concreta. E cada vez, a essência e o exemplo entravam em relações complexas que davam um estilo novo à filosofia. O garçom do café, a moça apaixonada, o homem feio e, principalmente, meu amigo-Pierre-que-nunca-estava-presente, formavam verdadeiros romances na obra filosófica e percutiam as essências ao ritmo de seus exemplos existenciais. Por toda parte brilhava uma sintaxe violenta, feita de rachaduras e de estiramentos, lembrando as duas obsessões sartreanas : os lagos de não-ser, as viscosidades da matéria. [113]
A recusa do prêmio Nobel é uma boa notícia. Finalmente, alguém que não tenta explicar que é um delicioso paradoxo para um escritor, para um pensador privado, aceitar honras e representações públicas. Muitos espertinhos já tentam levar Sartre à contradição : demonstram-lhe sentimentos de despeito, vindo o prêmio tarde demais ; objetam dizendo que, de qualquer maneira, ele representa algo ;  recordam-lhe que, de todo modo, seu sucesso foi e permanece sendo burguês ; deixam entender que sua recusa não é nem sensata nem adulta ; mostram-lhe o exemplo daqueles que aceitaram-recusando, dando pelo menos o dinheiro à caridade. Melhor seria não provocar muito, Sartre é um polemista perigoso…Não há gênio sem paródia de si mesmo. Mas qual é a melhor paródia? Tornar-se um velho adaptado, uma autoridade espiritual coquete? Ou então querer ser o abobado da Liberação? Ver-se acadêmico ou sonhar em ser combatente venezuelano ? Quem não vê a diferença de qualidade, a diferença de gênio, a diferença vital entre essas duas escolhas ou essas duas paródias? Ao que Sartre é fiel? Sempre ao amigo Pierre-que-nunca-está-presente. É o destino desse autor trazer ar puro quando ele fala, mesmo que seja difícil respirar esse ar puro, o ar das ausências.
. . .
Tradução de
Francisca Maria Cabrera

 [114]
11
FILOSOFIA DA SÉRIE NOIRE DL
[1966]


A coleção de romances Série Noire está festejando um acontecimento importante, seu número 1000. Há uma coerência dessa coleção, uma idéia dessa coleção, que deve tudo ao seu diretor. A literatura é como a consciência, ela é chega sempre tarde. No entanto, sobre a polícia, sobre o crime e suas relaçõres, todo mundo sabia algumas coisas, mesmo que apenas através da leitura de casos nos jornais ou pelo conhecimento de memorandos especializadas. Mas essas coisas não haviam encontrado sua expressão literária corrente ou não tinham passado ao estado de lugares-comuns da literatura. Coube a Marcel Duhamel DLa remediar esse atraso, numa época particularmente favorável. Malraux havia dito o essencial no seu prefácio à tradução de Santuário : « Faulkner sabe perfeitamente que os detetives não existem; que a polícia não  depende tanto da psicologia ou da perspicácia mas antes da delação ; e que não são Moustachu nem Tapinois, modestos pensadores do Quai des Orfèvres, que prendem o assassino em fuga, mas sim a polícia das delegacias »… etc. A Série Noire foi primeiro uma adaptação de Santuário para o grande público (prova disso é Não há orquídeas [Pas d’orchidées] de Chase e uma generalização do prefácio de Malraux.
Na antiga concepção do romance policial, mostravam-nos um detetive genial que consagrava toda sua força psicológica à busca e à descoberta da verdade. A verdade era aí concebida de uma maneira bem filosófica, isto é, como produto do esforço e das operações do espírito. E então o inquérito policial baseava-se no modelo [115] da investigação filosófica e, inversamente, dava a esta um objeto insólito, o crime a elucidado.
Ora, existiam duas escolas da verdade : a escola francesa (Descartes), na qual a verdade fica mais ou menos por conta de uma intuição intelectual de base, da qual deve ser deduzido o resto com rigor – e a escola inglesa (Hobbes), segundo a qual o verdadeiro é sempre induzido de outra coisa, interpretado à partir de indícios sensíveis. Enfim, dedução e indução. O romance policial, num movimento que lhe era próprio, reproduzia essa dualidade e a ilustrava com obras-primas. A escola inglesa : Conan Doyle, com Sherlock Holmes, prodigioso intérprete de signos, gênio indutivo. A escola francesa : Gaboriau, com Tabaret e Lecoq, e logo Gaston Leroux, com Rouletabille (Rouletabille invoca sempre « o bom bocado da razão », « o círculo entre as duas protuberâncias de sua testa », para, explicitamente, opor sua teoria das certezas ao método indutivo, à teoria anglo-saxônica dos signos).
O interesse pode também passar para o lado do criminoso. Seguindo uma lei da reflexão metafísica, o criminoso é tão extraordinário quanto o policial. Ele também reivindica a justiça e a verdade, assim como as potências indutiva e dedutiva. Donde a possibilidade de duas séries romanescas, uma tendo como herói o policial, a outra, o criminal. Leroux consegue essa dupla série com Rouletabille et Chéri-Bibi. Os dois não se encontram, animam séries diferentes (eles não poderiam se encontrar sem que um ou o outro se tornasse ridículo; cf . a tentativa de Leblanc com Arsène Lupin e Sherlock Holmes)DLb. Mas Rouletabille e Chéri-Bibi, sendo cada um é o duplo do outro, têm o mesmo destino, a mesma dor, a mesma busca do verdadeiro. Esse destino, essa busca, é aquele de Édipo (Rouletabille destinado a matar seu pai, ou Chéri-Bibi assistindo uma representação de Édipo e gritando : «É igualzinho a mim ! »). Depois da filosofia, a tragédia grega.
Ninguém deve se espantar muito que o romance policial reproduza tão bem a tragédia grega, já que se invoca sempre Édipo para marcar essa coincidência, mas Édipo é justamente a única tragédia grega já dotada dessa [116] estrutura policial. Espantemo-nos que o Édipo de Sófocles seja policial e não que o romance policial seja edipiano. Rendamos homenagem a Leroux : prodigioso romancista da literatura francesa, gênio das fórmulas, « as mãos não, as mãos não », « o mais feio dos homens », « Fatalitas », « os abridores de porta e os fechadores de alçapão », « o círculo entre as duas protuberâncias »… etc.
Ora, com a Série Noire morre o romance propriamente policial. Sem dúvida, na massa dessa coleção, muitos livros se contentam com mudar o jeito do próprio detetive (torná-lo bêbado, erótico, agitado), mas conservam a velha estrutura : designação surpreendente de um culpado inesperado no fim do livro com todos os personagens reunidos para uma última explicação. O novo não está aí.
O que era novo, enquanto uso e exploração literários, era, em primeiro lugar, nos ensinar que a atividade policial não tem nada a ver com a investigação metafísica ou científica da verdade. O laboratório da polícia é tão dessemelhante da ciência quanto as ligações telefônicas do informante, os relatórios da polícia ou os procedimentos de tortura não se assemelham a um discurso metafísico. Como regra geral, pode-se distinguir dois casos : o assassinato profissional, sobre o qual a polícia sabe mais ou menos rapidamente quem é o culpado; o assassinato sexual, no qual o culpado pode ser qualquer um. Mas, nos dois casos, o problema não se coloca em termos de verdade. Trata-se, sobretudo, de uma espantosa compensação de erros. Seja fixar o suposto culpado (alguém conhecido, mas cuja culpa não está provada) em outros domínios estranhos à sua atividade criminosa (assim, por exemplo, o esquema americano do gângster impune mas detido e expulso por uma falsa declaração de impostos) ; seja esperar que o culpado se manifeste ou recomece, provocando-o, forçando-o a se manifestar, preparando-lhe armadilhas.
A Série Noire nos habituou ao tipo do policial que arremete completamente ao acaso, mesmo correndo o risco de multiplicar os erros, mas acreditando que daí sairá sempre alguma coisa. Por outro lado, fazem-nos assistir à preparação minuciosa de um golpe e ao encadeiamento de pequenos erros que se tornam enormes na hora de sua realização (é deste ponto de vista que a Série Noire teve influência sobre o cinema). E, inocente, o leitor acaba se espantando com tantos erros de um lado e de outro. Até [117] a polícia, quando prepara um golpe sujo, o faz tão desajeitadamente que parece debochar da opinião.
É porque a verdade não é de modo algum o elemento do inquérito: não se pode nem sequer pensar que a compensação dos erros tenha como objetivo final a descoberta da verdade. Ao contrário, essa compensação tem sua dimensão própria, sua suficiência, uma espécie de equilíbrio ou de restabelecimento do equilíbrio, um processo de restituição que permite a uma sociedade, nos limites do cinismo, esconder o que ela quer esconder, mostrar o que ela quer mostrar, negar a evidência e proclamar o inverossímil. O assassino não encontrado pela polícia pode acabar morto pelos seus em nome dos erros que cometeu, e a polícia pode sacrificar os seus por outros erros, e eis que essas compensações não têm outro objeto a não ser a perpetuação de um equilíbrio que representa a sociedade inteira na sua mais alta potência do falso.
É o processo de restituição, de equilíbrio ou de compensação que aparece também na tragédia grega (mas desta vez na de Ésquilo).  O maior romance desse gênero, o mais admirável sob todos os aspectos, não é da Série Noire, mas o Les Gommes, de Robbe-Grillet, que desenvolve uma prodigiosa compensação de erros, sob o duplo signo de um equilíbrio esquiliano e de uma busca edipiana.
Com a Série Noire,  a potência do falso tornou-se o elemento policial por excelência, do ponto de vista literário. O que implica ainda uma outra consequência : as relações do policial e do criminoso não são mais, evidentemente, aquelas de uma reflexão metafísica. A penetração é real, os pactos profundos e compensadores. Um dá de cá, outro de lá, uma troca de serviços, traições não menos freqüentes de um lado que do outro. Tudo nos leva sempre à grande trindade da potência do falso : delação-corrupção-tortura. Mas nem é preciso dizer que a polícia não instaura por si mesma, por sua iniciativa, essa inquietante cumplicidade. A reflexão metafísica do antigo romance deu lugar ao espelho do outro. Uma sociedade se reflete bem na sua polícia e nos seus crimes, ao mesmo tempo em que ela aí se preserva, através de profundas alianças de base.
Sabe-se que uma sociedade capitalista perdoa mais facilmente o estupro, o assassinato, a tortura da criança do que o cheque sem fundos, único crime teológico, o crime contra o espírito. Sabe-se bem [118] que os grandes « negócios » comportam um certo número de escândalos e de crimes reais ; inversamente, o crime é organizado em negócios rigorosos, com uma estrutura tão precisa quanto aquela de um conselho de administração ou de gerentes. A Série Noire nos colocou a par de uma combinação negócios políticos-crime que, apesar de todas as provas da História antiga e presente, não tinha recebido sua expressão literária corrente.
O relatório Kefauver DLc e, sobretudo, o livro de Turkus, Société anonyme pour assassinats, estiveram na origem de muitos textos da Série Noire. Muitos se contentaram em disfarçá-los, descaracterizá-los, no mínimo os transpunham ao romance comum. Que o regime de Trujillo ou de Batista – ou Hitler ou Franco (o que mais ? já que todo mundo está pensando no caso Ben Barka) – comportem uma mistura do tipo Série Noire ; que Asturias tenha escrito um romance genial :  M. le Président DLd [171]; que nós todos estejamos buscando o segredo dessa unidade do grotesco e do aterrador, do terrível e da palhaçada, que ligam juntos o poder político, a potência econômica, a atividade policial e criminosa – tudo isso já está em Suetônio, em Shakespeare, em Jarry, em Asturias : a Série Noire retomou tudo e nós avançamos na compreensão dessa liga do grotesco e do aterrador que, segundo as circunstâncias, vai dispor da vida de cada um de nós ?
Portanto, a Série Noire transformou nossas avaliações, nossos devaneios policiais. Tinha chegado o momento. Foi bom que participássemos na « leitura corrente » desse estado de coisas, que perdia por isso mesmo um pouco de sua realidade e nos roubava uma certa potência de indignação ? A indignação surge graças ao real ou graças às grandes obras. Parece que a Série Noire copiou cada grande escritor romancista: um falso Faulkner, mas também um falso Steinbeck, um falso Caldwell, um falso Asturias. E seguiu a moda : primeiro a americana, depois redescobrindo os problemas criminais franceses.
Ela está cheia de estereotipias : a apresentação pueril da sexualidade e, sobretudo, dos olhos dos assassinos (apenas Chase soube dar uma certa vida fria aos assassinos inconformados, de personalidade forte). A grandeza, porém, da Série Noire, [119] idéia de Duhamel, é uma das mais importantes da editoração recente : um remanejamento da visão do mundo que cada homem honesto leva consigo no concernente à polícia e aos criminosos.
É evidente que um realismo novo não basta para fazer boa literatura. O real, enquanto tal é, para a má literatura, objeto de estereotipias, de puerilismos, de sonhos baratos, muito mais do que uma imaginação imbecil seria capaz de fazer. Porém, mais profundo do que o real e o imaginário, é a paródia. A Série Noire sofreu de uma produção demasiado abundante ; mas ela guardava uma unidade, uma tendência, que encontrava periodicamente sua expressão em belos livros (o sucesso atual de James Bond, que não se integrou na Série Noire, parece representar uma forte regressão literária, que foi compensada, é verdade, pelo cinema, mas às custas de um retorno a uma concepção cor-de-rosa do agente secreto).
Há belíssimos livros da Série Noire quando o real encontra uma paródia que lhe é própria, e quando essa paródia nos mostra direções no real que nunca teríamos encontrados sozinhos. Cada um ao seu modo, os grandes livros paródicos são Miss Shumway jette un sort, de Chase ; Fantasia chez les ploucs, de Williams ; os romances negros de Himes, que têm sempre momentos extraordinários. A paródia é a categoria que ultrapassa o real e o imaginário. Ora, na Série Noire havia o número 50: Tendre femelle,  de James Gunn.
Era no momento em que a moda era totalmente americana: dizia-se que certos romancistas escreviam sob pseudônimos americanos. Tendre femelle é um livro admirável : a potência do falso ao maximo grau, uma velha senhora que persegue pelo faro um assassino, uma tentativa de assassinato nas dunas, grande paródia, seria preciso lê-lo ou relê-lo. Quem é James Gunn, que publicou sob seu nome apenas um livro na Série Noire ? No momento em que a coleção comemora seu número 1000, e reedita tantos livros, ao mesmo tempo em que presta homenagem a Marcel Duhamel, nós nos permitimos pedir a reedição do número 50.
. . .
Tradução de
Francisca Maria Cabrera



[120]
12
GILBERT SIMONDON, O INDIVÍDUO
E SUA GÊNESE FÍSICO-BIOLÓGICA DL
[1966]

O princípio de individuação é respeitado, julgado venerável, mas parece que a filosofia moderna se absteve até agora de retomar o problema por sua conta. As conquistas da física, da biologia e da psicologia nos levaram a relativizar, a atenuar o princípio, mas não a reinterpreta-lo. Já é um grande mérito de Gilbert Simondon apresentar uma teoria profundamente original da individuação, teoria que implica toda uma filosofia. Simondon parte de duas observações críticas: 1º Tradicionalmente, o princípio de individuação é reportado a um indivíduo já pronto, já constituído. Pergunta-se apenas o que constitui a individualidade de um tal ser, isto é, o que caracteriza um ser já individuado. E porque se “mete” o indivíduo após a individuação, “mete-se” no mesmo lance o princípio de individuação antes da operação de individuar, acima da própria individuação; 2º Por conseguinte, “mete-se” a individuação em toda parte; faz-se dela um caráter coextensivo ao ser, pelo menos ao ser concreto (mesmo que seja ele divino). Faz-se dele todo o ser e o primeiro momento do ser fora do conceito. Este erro é correlativo do precedente. Na realidade, o indivíduo só pode ser contemporâneo de sua individuação e, a individuação, contemporânea do princípio: o princípio deve ser verdadeiramente genético, não simples princípio de reflexão. E o indivíduo não é somente resultado, [121] porém meio de individuação. Contudo, precisamente deste ponto de vista, a individuação já não é coextensiva ao ser; ela deve representar um momento que não é nem todo o ser nem o primeiro. Ela deve ser situável, determinável em relação ao ser, num movimento que nos levará a passar do pré-individual ao indivíduo.
A condição prévia da individuação, segundo Simondon, é a existência de um sistema metaestável. Foi por não ter reconhecido a existência de tais sistemas que a filosofia caiu nas duas aporias precedentes. Mas o que define essencialmente um sistema metaestável, é a existência de uma “disparação”, ao menos de duas ordens de grandeza, de duas escalas de realidade díspares, entre as quais não existe ainda comunicação interativa. Ele implica, portanto, uma diferença fundamental, como um estado de dissimetria. Todavia, se ele é sistema, ele o é na medida em que, nele, a diferença existe como energia potencial, como diferença de potencial repartida em tais ou quais limites. Parece-nos que a concepção de Simondon pode ser, aqui, aproximada de uma teoria das quantidades intensivas; pois é em si mesma que cada quantidade intensiva é diferença. Uma quantidade intensiva compreende uma diferença em si, contém fatores do tipo E-E’ ao infinito, e se estabelece, primeiramente, entre níveis díspares, entre ordens heterogêneas que só mais tarde, em extensão, entrarão em comunicação. Ela, assim como o sistema metaestável, é estrutura (não ainda síntese) do heterogêneo.
Já se nota a importância da tese de Simondon. Descobrindo a condição prévia da individuação, ele distingue rigorosamente singularidade e individualidade, pois o metaestável, definido como ser pré-individual, é perfeitamente provido de singularidades que correspondem à existência e à repartição dos potenciais. (Não é justamente isso que se tem na teoria das equações diferençaisNT, na qual a existência e a repartição das “singularidades” são de natureza distinta da forma “individual” das curvas integrais em sua vizinhança?). Singular sem ser individual, eis o estado do ser pré-individual. Ele é diferença, disparidade, disparação. E entre as mais belas páginas do livro há aquelas nas quais Simondon mostra como a disparidade, como primeiro momento do ser, como momento singular, é efetivamente suposta por todos [122] os outros estados, sejam eles de unificação, de integração, de tensão, de oposição, de resolução de oposições... etc. Notadamente contra Lewin e a Gestaltheorie, Simondon sustenta que a idéia de disparação é mais profunda do que a de oposição, que a idéia de energia potencial é mais profunda do que a de campo de forças: “Antes do espaço hodológico há esse acavalamento de perspectivas que não permite apreender o obstáculo determinado, porque não há dimensões em relação às quais o conjunto único se ordenaria; a fluctuatio animi, que precede a ação determinada, não é hesitação entre vários objetos ou mesmo entre diversas vias, mas recobrimento movente de conjuntos incompatíveis, quase semelhantes e, todavia, díspares” (p. 223) NT. Mundo imbricado de singularidades discretas, tanto mais imbricado quanto mais estas não estejam ainda se comunicando ou não estejam tomadas numa individualidade: é este o primeiro momento do ser.
Como vai a individuação proceder a partir desta primeira condição? Dir-se-á tanto que ela estabelece uma comunicação interativa entre as ordens díspares de grandeza ou de realidade; ou que ela atualiza a energia potencial ou integra as singularidades; ou que ela resolve o problema posto pelos díspares, organizando uma dimensão nova na qual eles formam um conjunto único de grau superior (por exemplo, a profundidade no caso das imagens retinianas). No pensamento de Simondon, a categoria do “problemático” ganha uma grande importância, justamente na medida em que ela está provida de um sentido objetivo: com efeito, ela já não mais designa um estado provisório do nosso conhecimento, um conceito subjetivo indeterminado, mas um momento do ser, o primeiro momento pré-individual. E, na dialética de Simondon, o problemático substitui o negativo. A individuação, portanto, é a organização de uma solução, de uma “resolução” para um sistema objetivamente problemático. Esta resolução deve ser concebida de duas maneiras complementares. De um lado, como ressonância interna, sendo esta o “modo mais primitivo da comunicação entre realidades de ordem diferente” (e acreditamos que Simondon tenha conseguido fazer da “ressonância interna” um conceito filosófico extremamente rico, suscetível de toda sorte de aplicações, mesmo e sobretudo em psicologia, no domínio da afetividade). Por outro lado, como informação, [123] sendo que esta, por sua vez,  estabelece uma comunicação entre dois níveis díspares, um definido por uma forma já contida no receptor, o outro definido pelo sinal trazido do exterior (reencontramos aqui as preocupações de Simondon concernentes à cibernética e toda uma teoria da “significação” em suas relações com o indivíduo). De toda maneira, a individuação aparece bem como o advento de um novo momento do Ser, o momento do ser fasado, acoplado a si mesmo. “É a individuação que cria as fases, pois as fases são tão-somente esse desenvolvimento de uma parte e outra do próprio ser... O ser pré-individual é o ser sem fases, ao passo que o ser após a individuação é o ser fasado. Uma tal concepção identifica, ou pelo menos reata individuação e devir do ser” (p. 276) NT.
Até agora indicamos apenas os princípios mais gerais do livro. No detalhe, a análise organiza-se em torno de dois centros. Primeiramente, um estudo de diferentes domínios de individuação; notadamente, as diferenças entre a individuação física e a individuação vital são objeto de uma profunda exposição. O regime de ressonância interna aparece como diferente nos dois casos; o indivíduo físico contenta-se em receber informação de uma só vez e reitera uma singularidade inicial, ao passo que o vivente recebe, sucessivamente, vários aportes de informação e contabiliza várias singularidades; e, sobretudo, a individuação física se faz e se prolonga no limite do corpo, por exemplo, do cristal, ao passo que o vivente cresce no interior e no exterior, sendo que o conteúdo todo do seu espaço interior mantém-se “topologicamente” em contato com o conteúdo do espaço exterior NT; (sobre esse ponto, Simondon escreve um capítulo admirável, “topologia e ontogênese”). É de estranhar que Simondon não tenha levado mais em conta, no domínio da biologia, os trabalhos da escola de Child sobre os gradientes e os sistemas de resolução no desenvolvimento do ovo DL, pois esses trabalhos sugerem a idéia de uma individuação por intensidade, a idéia de um campo intensivo de individuação, que confirmaria suas teses em muitos pontos. Porém, isso ocorre, sem dúvida, por que Simondon não quer [124] ater-se a uma determinação biológica da individuação, mas precisar níveis cada vez mais complexos: assim, há uma individuação propriamente psíquica, que surge, precisamente, quando as funções vitais já não bastam para resolver os problemas postos ao vivente, e quando uma nova carga de realidade pré-individual é mobilizada numa nova problemática, em um novo processo de solução (cf. uma teoria muito interessante da afetividade). E o psiquismo, por sua vez, abre-se a um “coletivo trans-individual”.
Vê-se qual é o segundo centro das análises de Simondon. Em certo sentido, trata-se de uma visão moral do mundo, pois a idéia fundamental é que o pré-individual permanece e deve permanecer associado ao indivíduo, “fonte de estados metaestáveis futuros”. O estetismo é então condenado como o ato pelo qual o indivíduo se separa da realidade pré-individual na qual ele mergulha, fecha-se numa singularidade, recusa comunicar-se e provoca, de certa maneira, uma perda de informação. “Há ética na medida em que há informação, isto é, uma significação encimando uma disparação de elementos de seres e fazendo, assim, com que seja também exterior aquilo que é interior” (p. 297) NT. A ética percorre, portanto, uma espécie de movimento que vai do pré-individual ao trans-individual pela individuação. (O leitor se pergunta, todavia, se, em sua ética, Simondon não restaura a forma de um Eu [Moi] que ele, entretanto, havia conjurado em sua teoria da disparidade ou do indivíduo concebido como ser defasado e polifasado).
Em todo caso, poucos livros levam-nos, como este, a sentir a que ponto um filósofo pode inspirar-se na atualidade da ciência e, ao mesmo tempo, porém, reencontrar os grandes problemas clássicos, transformando-os, renovando-os. Os novos conceitos estabelecidos por Simondon parecem-nos de uma extrema importância: sua riqueza e sua originalidade impressionam vivamente ou influenciam o leitor. E o que Simondon elabora é toda uma ontologia, segundo a qual o Ser nunca é Uno: pré-individual, ele é mais que um metaestável, superposto, simultâneo a si mesmo; individuado, ele é ainda múltiplo porque “polifasado”, “fase do devir que conduzirá a novas operações”.
. . .
Tradução de
Luiz B. L. Orlandi.








































[125]
13
O HOMEM, UMA EXISTÊNCIA DUVIDOSA DL
[1966]
           
                                                                                                                 
Esse livro, As palavras e as coisas, começa por uma minuciosa descrição das Meninas de Velásquez, ou antes, do espaço desse quadro: o pintor é visto olhando; olhando a tela que está pintando, mas da qual só vemos o avesso; os personagens convergem para um ponto que emerge aquém do quadro; e o verdadeiro modelo, o rei, que se reflete somente em um espelho lá no fundo do quadro, contemplando tudo aquilo que o contempla, formando a grande ausência que é, no entanto, o centro extrínseco da obra. À medida que se lê essas páginas belíssimas de Michel Foucault, vê-se destacarem-se ao mesmo tempo os elementos e os momentos daquilo que se chama uma representação: seu sistema de identidade, de diferença, de redobramento e de reflexão, seu espaço próprio, até esse vazio essencial que designa o personagem para quem toda representação existe, que se representa a si mesmo nela, e que, no entanto, não está pessoalmente presente - "o lugar do rei".
É que, através da noção de representação, Foucault define a idade clássica, a forma do saber na idade clássica, entre a Renascença e nossa modernidade. A Renascença ainda compreendia seu saber como uma "interpretação de signos", sendo que a relação do signo com aquilo que ele significa estava coberta pelo rico domínio das "similitudes".  E ainda, desde o início do livro, as análises de Foucault são de uma tal precisão, de um tom tão novo que o leitor sente aproximar-se uma nova maneira de pensar nessa aparente reflexão sobre a história. Todo saber, segundo Foucault, se desenrola em um "espaço" característico. Ora, com o século XVII, o espaço dos signos tende [126] a desfazer-se para dar lugar ao da representação, que reflete as significações e decompõe as similitudes, dando surgimento à nova ordem das identidades e das diferenças. (Dom Quixote é, precisamente, a primeira grande constatação da falência dos signos em proveito de um mundo da representação.) Essa Ordem, essa forma da representação, será preenchida por ordens positivas fundadas sobre séries empíricas: "História natural", "Teoria da moeda e do valor", "Gramática geral". Entre essas três ordens positivas produzem-se toda sorte de ressonâncias que advêm de sua comum pertença ao espaço da representação: a "característica" é a representação dos indivíduos da natureza, a "moeda", a dos objetos da necessidade, o "nome", a da própria linguagem.
Ora, por mais que se fale de ciências do homem, que teriam se constituído desde o século XVIII, o resultado das análises precedentes mostra, ao contrário, que o homem não existe e não pode existir nesse espaço clássico da representação. Sempre o lugar do rei: "a natureza humana" é certamente representada, e o é num desdobramento da representação que remete essa natureza humana à Natureza, mas o homem não existe ainda em seu ser próprio ou em seu domínio sub-representativo. Ele não existe "como realidade espessa e primeira, como objeto difícil e sujeito soberano de todo conhecimento possível”.DLa. É neste sentido que Foucault dá ao seu livro o subtítulo: "Uma arqueologia das ciências humanas”. Em quais condições as ciências do homem foram possíveis na forma do saber, ou qual é, verdadeiramente, a data de nascimento do homem?
A resposta é bastante precisa: o homem só existe no espaço do saber a partir do momento em que o mundo "clássico" da representação desaba, por sua vez, sob o golpe de instâncias não representáveis e não representativas. É o surgimento do obscuro, ou de uma dimensão de profundidade. É preciso, primeiro, que a biologia nasça, assim como a economia política e a filologia: as condições de possibilidade do vivente são buscadas na própria vida (Cuvier), as condições da troca e do lucro são buscadas na profundidade do trabalho [127] (Ricardo), a possibilidade do discurso e da gramática é buscada na profundidade histórica das línguas, no sistema de flexões, série de desinências e modificações do radical (Grimm, Bopp). "Quando, abandonando o espaço da representação, os seres vivos se alojaram na profundidade específica da vida, as riquezas, no impulso progressivo das formas de produção, as palavras, no devir da linguagem" DLb , então a história natural dá lugar à biologia, a teoria da moeda à economia política, a gramática geral à filologia.
Ao mesmo tempo, o homem se descobre de duas maneiras. Por um lado, como dominado pelo trabalho, pela vida, pela linguagem; por conseguinte, como objeto de ciências positivas novas que deverão colher modelo junto à biologia, à economia política ou à filologia. Por outro lado, como quem funda essa nova positividade sobre a categoria de sua própria finitude: a metafísica do infinito é substituída por uma analítica do finito que encontra na vida, no trabalho e na linguagem suas estruturas "transcendentais". O homem tem, portanto, um ser duplo. O que desabou foi a soberania do idêntico na representação. O homem é atravessado por uma disparidade essencial, como por uma alienação de direito, separado dele mesmo pelas palavras, pelos trabalho, pelos desejos. E nesta revolução que explode a representação, é o mesmo que deve se dizer do Diferente e não mais a diferença se subordinar ao mesmo: a revolução de Nietzsche.
Certamente, trata-se, para Foucault, de fundar as ciências do homem. Mas é uma fundação envenenada, uma arqueologia que despedaça seus ídolos. Presente malicioso. Tentemos resumir a idéia de Foucault: as ciências do homem não se constituíram de forma alguma quando o homem se tomou por objeto de representação, nem mesmo quando ele descobriu para si uma história. Ao contrário, elas se constituíram, quando o homem se "des-historicizou", quando as coisas (as palavras, os viventes, as produções) receberam uma historicidade que as liberava do homem e de sua representação. Assim, as ciências do homem se constituíram imitando  as novas ciências positivas da biologia, da economia política e da filologia. Para afirmar sua especificidade, [128] elas restauraram a ordem da representação, acumulando-a com recursos do inconsciente.
Este falso equilíbrio já mostra que as ciências do homem não são ciências. Elas pretenderam preencher o lugar vazio na representação. Mas esse lugar do rei não pode, não deve ser preenchido: a antropologia é uma mistificação. Da idade clássica à modernidade, passamos de um estado no qual o homem ainda não existe a um estado no qual ele já desapareceu. "Em nossos dias, só se pode pensar no vazio do homem desaparecido. Pois esse vazio não aprofunda uma falta: ele não prescreve uma lacuna a ser preenchida. Ele é nada mais nada menos que a desdobra de um espaço onde, enfim, é novamente possível pensar” DLc. Com efeito, é a isso que a análise da finitude nos convida: não a fazer a ciência do homem, mas a erigir uma nova imagem do pensamento: um pensamento que não mais se oponha de fora ao impensável ou não-pensado, mas que o alojaria nele, que estaria em uma relação essencial com ele (o desejo é “o que permanece sempre impensado no coração do pensamento” NRT); um pensamento que estaria por ele mesmo em relação com o obscuro, e que, de direito,  seria atravessado por uma sorte de fenda sem a qual ele não poderia se exercer. A fenda não pode ser preenchida, pois ela é o mais elevado objeto do pensamento: o homem não a preenche e nem recola suas bordas; ao contrário, no homem, a fenda é o fim do homem ou o ponto originário do pensamento. Cogito para um eu dissolvido... E, no saber concernente ao homem, somente a etnologia, a psicanálise e a lingüística o superam efetivamente, formando os três grandes eixos da analítica do finito.
Compreende-se melhor como esse livro prolonga a reflexão de Foucault sobre a loucura, sobre a transformação do conceito de loucura da idade clássica à idade moderna. Vê-se, sobretudo, que os três grandes livros de Foucault, História da loucura na idade clássica, Nascimento da clínica: uma arqueologia do olhar médico, As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas, se encadeiam para realizar um projeto tão novo para a filosofia como para a história das ciências. O próprio Foucault, portanto, apresenta seu método como arqueológico. [129]. Por arqueológico, deve-se entender o estudo do "subsolo", do "solo" sobre o qual se exerce o pensamento e no qual ele mergulha para formar seus conceitos. Que haja camadas bem diferentes nesse solo, que haja mesmo mutações nele, agitações topográficas, organizações de novos espaços, é o que mostra Foucault: por exemplo, a mutação que torna possível a imagem clássica do pensamento, ou a que prepara a imagem moderna. Sem dúvida, pode-se apontar as causalidades sociológicas ou mesmo psicológicas para essa "história"; mas, na realidade, as causalidades se desdobram em espaços que já supõem uma imagem do pensamento. É preciso conceber acontecimentos do pensamento puro, acontecimentos radicais ou transcendentais que determinam em tal época um espaço de saber.
Ao invés de um estudo histórico das opiniões (ponto de vista que ainda rege a concepção tradicional da história da filosofia) desenha-se um estudo sincrônico do saber e de suas condições: não as condições que o tornam possível em geral, mas que o tornam real e o determinam em tal momento.  
Um tal método tem ao menos dois resultados paradoxais: ele desloca a importância dos conceitos, e mesmo a dos autores. Assim, o importante, para definir a idade clássica, não é o mecanicismo nem a matemática, mas essa agitação no regime de signos, que deixam de ser uma figura do mundo e oscilam na representação: só isto torna possível a mathesis e o mecanicismo. Do mesmo modo o importante não é saber se Cuvier é fixista, mas como ele forma, reagindo contra o ponto de vista da história natural do qual Lamarck é ainda prisioneiro, uma biologia que torna possível o evolucionismo e as discussões sobre o evolucionismo. Em regra geral, e o livro abunda em exemplos decisivos, os grandes debates de opiniões são menos importantes que o espaço de saber que os torna possíveis; e não são necessariamente os mesmos autores que são grandes no nível da história mais visível e no nível da arqueologia. Foucault pode dizer: "... eu aprendi isso mais claramente com Cuvier, Bopp e Ricardo do que com Kant ou Hegel"; e nunca ele é tão filósofo do que quando recusa as grandes linhagens em proveito de uma genealogia subterrânea, mais secreta.
Uma nova imagem do pensamento, uma nova concepção do que significa pensar é hoje a tarefa da filosofia. É aí que ela pode mostrar sua capacidade de mutações e de novos "espaços", capacidade não menor que a das ciências ou das artes. À questão: o que acontece de novo em filosofia? os livros de Foucault trazem por si mesmos uma resposta profunda, a mais viva e também a mais convincente. Cremos que As palavras e as coisas são um grande livro, um grande livro sobre novos pensamentos.
. . .
Tradução de
Tiago Seixas Themudo
































[131]
14
O MÉTODO DE DRAMATIZAÇÃO DL
[1967]


Senhor Gilles Deleuze, encarregado de ensino na Faculdade de Letras e Ciências de Lyon, propõe-se desenvolver diante dos membros da Sociedade Francesa de Filosofia os seguintes argumentos:
Não está assegurado que a questão que é? seja uma boa questão para descobrir a essência ou a Idéia. É possível que questões do tipo: quem?, quanto?, como?, onde?, quando?, sejam melhores – tanto para descobrir a essência quanto para determinar algo mais importante concernente à Idéia.
Os dinamismos espaço-temporais têm várias propriedades: 1º, eles criam espaços e tempos particulares; 2º, eles formam uma regra de especificação para os conceitos que, sem eles, permaneceriam incapazes de se dividirem logicamente; 3º, eles determinam o duplo aspecto da diferenciação, qualitativo e quantitativo (qualidades e extensos, espécies e partes); 4º, eles comportam ou designam um sujeito, mas um sujeito “larvar”, “embrionado”; 5º, eles constituem um teatro especial; 6º, eles exprimem Idéias. – Sob todos esses aspectos, eles figuram o movimento da dramatização.
Sob a dramatização, a Idéia encarna-se ou atualiza-se, diferencia-se [132]. É ainda preciso que a Idéia, em seu conteúdo próprio, já apresente características que correspondam aos dois aspectos da diferenciação. Com efeito, nela mesma, ela é sistema de relações diferençais e repartição de pontos notáveis ou singulares que resultam dessas relações (acontecimentos ideais). Quer dizer: a Idéia é plenamente diferençada [différentiée] nela mesma, antes de se diferenciar [différencier] no atual. Esse estatuto da Idéia dá conta do seu valor lógico, que não é o claro-e-distinto, mas o distinto-obscuro, como pressentiu Leibniz. Em seu conjunto, o método de dramatização é representado no conceito complexo                                                                                                                        
ç                                                                                                                            
de       diferen --- ação, que deve dar um sentido às questões das quais partimos NT.
ci                                                                                                                               

 

Ata da sessão

A sessão foi aberta às 16:30 horas, na Sorbonne, Anfiteatro Michelet, sob a presidência do Senhor Jean Wahl, Presidente da Sociedade.
Jean Wahl. – Não apresentarei o senhor Gilles Deleuze: os senhores conhecem seus livros, tanto sobre Hume quanto sobre Nietzsche e sobre Proust, e conhecem também seu grande talento. Dou-lhe imediatamente a palavra.
Gilles Deleuze. – A Idéia, a descoberta da Idéia, é inseparável de um certo tipo de questão. Primeiramente, a Idéia é uma “objetidade” [“objectité”] que, como tal, corresponde a uma maneira de levantar as questões. Ela só responde ao apelo de certas questões. É no platonismo que a questão da Idéia é determinada sob a forma: Que é...? Esta questão nobre é tida como concernente à essência e opõe-se a questões vulgares que remetem apenas ao exemplo ou ao acidente. Assim, não se perguntará pelo que é belo, mas o que é o Belo. Não onde e quando há justiça, mas o que é o Justo. Não como “dois” é obtido, mas o que é a díade. Não quanto, mas o que... Portanto, o platonismo todo parece opor uma questão maior, sempre retomada e repetida por Sócrates, como a da essência ou da Idéia, [133] a questões menores da opinião, que apenas exprimem maneiras confusas de pensar, seja nos velhos e crianças inábeis, seja nos sofistas e retores muito hábeis.
Todavia, esse privilégio do Que é...? revela-se, ele próprio, confuso e duvidoso, mesmo no platonismo e na tradição platônica, pois a questão Que é...? acaba animando apenas os diálogos ditos aporéticos. É possível que a questão da essência seja a da contradição, e que ela própria nos lance em contradições inextrincáveis? Desde que a dialética platônica se torna uma coisa séria e positiva, vemo-la tomar outras formas: quem? no Político, quanto? no Filebo, onde e quando? no Sofista, em qual caso? no Parmênides. É como se a Idéia só fosse positivamente determinável em função de uma tipologia, de uma topologia, de uma posologia, de uma casuística transcendentais. Então, os sofistas são censurados, menos por utilizarem formas em si mesmas inferiores de questão, e mais por não terem sabido determinar as condições nas quais elas ganham seu alcance e seu sentido ideais. E ao considerarmos o conjunto da história da filosofia, procuramos em vão qual filósofo pôde proceder pela questão “que é?”. Aristóteles não, sobretudo Aristóteles. Talvez Hegel. Talvez apenas Hegel, precisamente porque sua dialética, sendo a da essência vazia e abstrata, não se separa do movimento da contradição. A questão Que é? prejulga a Idéia como simplicidade da essência; então, é forçoso que a essência simples se contradiga, pois ela tem de compreender o não-essencial, e  compreende-lo em essência. Um outro procedimento (tal como se encontra esboçado na filosofia de Leibniz), deve ser inteiramente distinguido da contradição: desta vez, é o não-essencial que compreende o essencial, e o compreende somente no caso. A subsunção sob “o caso” forma uma linguagem original das propriedades e acontecimentos. Devemos denominar vice-dicção esse procedimento inteiramente diferente daquele da contradição. Ele consiste em percorrer a Idéia como uma multiplicidade. A questão não é saber se a Idéia é una ou múltipla, ou as duas coisas ao mesmo tempo; empregada como substantivo, “multiplicidade” designa um domínio no qual a Idéia está, por si mesma, muito mais [134] próxima do acidente do que da essência abstrata, e onde ela só pode ser determinada com as questões quem? como? quanto? onde e quando? em que caso? – formas essas que traçam suas verdadeiras coordenadas espaço-temporais.
           
Perguntamos, primeiramente: qual é o traço característico ou distintivo de uma coisa em geral? Um tal traço é duplo: a ou as qualidades que ela possui, a extensão que ela ocupa. Mesmo quando não se pode distinguir partes divisíveis atuais, distingue-se regiões e pontos notáveis; e não se deve considerar somente a extensão interior, mas a maneira pela qual a coisa determina e diferencia todo um espaço exterior, como o da área de caça de um animal. Em suma, toda coisa está no cruzamento de uma dupla síntese: de qualificação ou de especificação e de partição, composição ou organização. Não há qualidade sem uma extensão que a subtende e na qual ela se difunde; não há espécie sem partes ou pontos orgânicos. As partes são o número da espécie, assim como a espécie é a qualidade das partes. São esses os dois aspectos correlativos da diferenciação: espécies e partes, especificação e organização. Eles constituem as condições da representação das coisas em geral.
Mas, se a diferenciação tem, assim, duas formas complementares, qual é o agente dessa distinção e dessa complementaridade? Sob a organização, assim como sob a especificação, encontramos tão-somente dinamismos espaço-temporais: isto é, agitações de espaço, buracos de tempo, puras sínteses de velocidades, de direções e de ritmos. Então, as características mais gerais de ramificação, de ordem e de classe, e até as características genéricas e específicas, já dependem de tais dinamismos ou de tais direções de desenvolvimento. E, simultaneamente, sob os fenômenos partitivos da divisão celular, encontram-se ainda instâncias dinâmicas, migrações celulares, dobramentos, invaginações, estiramentos que constituem uma “dinâmica do ovo”. A esse respeito, o mundo inteiro é um ovo. Nenhum conceito receberia uma divisão lógica na representação se essa divisão não estivesse determinada por dinamismos [135] sub-representativos: vê-se bem isso no processo platônico da divisão, que age apenas em função de duas direções, da direita e da esquerda, e com a ajuda, como no exemplo da pesca com linha, de determinações do tipo “cercar-bater”, “bater de cima para baixo – de baixo para cima”.
Esses dinamismos supõem sempre um campo no qual eles se produzem, fora do qual eles não se produziriam. Esse campo é intensivo, isto é, implica uma distribuição em profundidade de diferenças de intensidade. Ainda que a experiência nos coloque sempre na presença de intensidades já desenvolvidas em extensos, já recobertas por qualidades, devemos conceber, precisamente como condição da experiência, intensidades puras envolvidas numa profundidade, num spatium intensivo que preexiste a toda qualidade assim como a todo extenso. A profundidade é a potência do puro spatium inextenso; a intensidade é tão-só a potência da diferença ou do desigual em si, e cada intensidade é já diferença do tipo E – E’, em que E, por sua vez, remete a e – e’, e e’, a є – є’ etc.Tal campo intensivo constitui um meio de individuação. Eis porque não basta lembrar que a individuação não opera nem por especificação prolongada (species ínfima), nem por composição ou divisão de partes (pars ultima). Não basta descobrir uma diferença de natureza entre a individuação, de um lado e, de outro, a especificação e a partição, pois, a individuação é, ademais, a condição prévia sob a qual a especificação e a partição ou a composição operam no sistema. A individuação é intensiva e se encontra suposta por todas as qualidades e espécies, por todos os extensos e partes que vêm preencher ou desenvolver o sistema.
Sendo a intensidade diferença, é preciso ainda que as diferenças de intensidade entrem em comunicação. É preciso como que um “diferenciante” da diferença, que reporta o diferente ao diferente. Cabe esse papel ao que denominamos precursor sombrio. O raio fulgura entre intensidades diferentes, mas é precedido por um precursor sombrio, invisível, insensível, que de antemão lhe determina o caminho invertido e escavado, porque o precursor é, primeiramente, o agente da comunicação das séries de diferenças. Se é verdade que todo sistema é um campo [136] intensivo de individuação construído sobre séries heterogêneas ou disparatadas, a comunicação das séries, levada a cabo sob a ação do sombrio precursor, induz fenômenos de acoplamento entre as séries, de ressonância interna no sistema, de movimento forçado sob a forma de uma amplitude que transborda as próprias séries de base. É sob todas essas condições que um sistema preenche-se de qualidades e se desenvolve em extensão, pois uma qualidade é sempre um signo ou um acontecimento que sai das profundezas, que fulgura entre intensidades diferentes e que dura todo o tempo necessário para a anulação da sua diferença constitutiva. Primeiramente, e antes de tudo, é o conjunto dessas condições que determina os dinamismos espaço-temporais, eles mesmos geradores dessas qualidades e desses extensos.
De modo algum o sujeito está ausente dos dinamismos. Mas os sujeitos que eles têm só podem ser esboços não ainda qualificados nem compostos, são mais pacientes do que agentes, únicos capazes de suportar a pressão de uma ressonância interna ou a amplitude de um movimento forçado. Composto, qualificado, um adulto pereceria aí. Há movimentos que somente o embrião pode suportar, e aí está a verdade da embriologia: aqui o sujeito só pode ser larvar. O próprio pesadelo talvez seja um desses movimentos que nem o homem acordado e nem mesmo o sonhador podem suportar, mas somente o adormecido sem sonho, o adormecido em sono profundo. E o pensamento, considerado como dinamismo próprio ao sistema filosófico, talvez seja, por sua vez, um desses movimentos terríveis inconciliáveis com um sujeito formado, qualificado e composto como o do cogito na representação. A “regressão” é mal compreendida enquanto não se vê nela a ativação de um sujeito larvar, único paciente capaz de sustentar as exigências de um dinamismo sistemático.
O conjunto dessas determinações: campo de individuação, séries de diferenças intensivas, precursor sombrio, acoplamento, ressonância e movimento forçado, sujeitos larvares, dinamismos espaço-temporais – esse conjunto desenha as coordenadas múltiplas que correspondem às questões quanto? quem? como? onde? e quando?, e que dão a estas um alcance transcendente para além dos exemplos empíricos. Com efeito, de modo algum esse conjunto de determinações está ligado a tal ou qual [137] exemplo tirado de um sistema físico ou biológico, mas enuncia as categorias de todo sistema em geral.  Não menos do que uma experiência física, experiências psíquicas do tipo proustiano implicam a comunicação de séries disparatadas, a intervenção de um precursor sombrio, ressonâncias e movimentos forçados que dele decorrem. Constantemente, acontece a dinamismos qualificados de uma certa maneira num domínio serem retomados de modo totalmente distinto num outro domínio. O dinamismo geográfico da ilha (ilha por ruptura com o continente e ilha por surgimento fora das águas) é retomado no dinamismo mítico do homem sobre a ilha deserta (ruptura derivada e recomeço original). Ferenczi, a respeito da vida sexual, mostrou como o dinamismo físico de elementos celulares se achava retomado no dinamismo biológico de órgãos, e mesmo no dinamismo psíquico de pessoas.
É que os dinamismos e seus concomitantes trabalham sob todas as formas e extensões qualificadas da representação, e constituem, mais do que um desenho, um conjunto de linhas abstratas saídas de uma profundidade inextensa e informal. Estranho teatro feito de determinações puras, agitando o espaço e o tempo, agindo diretamente sobre a alma, tendo larvas por atores – e para o qual Artaud havia escolhido a palavra “crueldade”. Essas linhas abstratas formam um drama que corresponde a tal ou qual conceito e que, ao mesmo tempo, dirige sua especificação e divisão. É o conhecimento científico, mas é também o sonho, e são também as coisas em si mesmas que dramatizam. Dado um conceito, pode-se sempre procurar o drama que a ele corresponde, e o conceito jamais se dividiria nem se especificaria no mundo da representação sem os dinamismos dramáticos que assim o determinam num sistema material sob toda representação possível. Seja o conceito de verdade: não basta levantar a questão abstrata “que é o verdadeiro?”. Desde que nos perguntemos “quem quer o verdadeiro, quando e onde, como e quanto?”, temos a tarefa de consignar sujeitos larvares (o ciumento, por exemplo), e puros dinamismos espaço temporais (ora fazer surgir a “coisa” em pessoa, numa certa hora, num certo lugar; ora acumular os indícios e os signos, de hora em hora, e segundo um caminho que jamais acaba). Quando, [138] em seguida, aprendemos que o conceito de verdade, na representação, divide-se em duas direções, uma segundo a qual o verdadeiro surge em pessoa e numa intuição, a outra segundo a qual o verdadeiro é sempre inferido de outra coisa, concluído de indícios como aquilo que não está aí, não nos é difícil reencontrar sob essas teorias tradicionais da intuição e da indução os dinamismos da inquisição e da confissão, da acusação ou do inquérito, que trabalham em silêncio e dramaticamente, de maneira a determinar a divisão teórica do conceito.

O que denominamos drama assemelha-se, particularmente, ao esquema kantiano. Com efeito, segundo Kant, o esquema é bem uma determinação a priori do espaço e do tempo correspondente a um conceito: o mais curto é o drama, o sonho ou, sobretudo, o pesadelo da linha reta. É exatamente o dinamismo que divide o conceito de linha em reta e curva, e que, além disso, como na concepção arquimediana dos limites, permite medir a curva em função da reta. Entretanto, o que ainda permanece totalmente misterioso é a maneira pela qual o esquema tem esse poder em relação ao conceito. De certo modo, todo o pós-kantismo tentou elucidar o mistério dessa arte oculta, de acordo com a qual determinações dinâmicas espaço-temporais têm verdadeiramente o poder de dramatizar um conceito, embora elas sejam de uma natureza totalmente distinta da dele.
A resposta talvez esteja na direção que certos pós-kantianos indicavam: os dinamismos espaço-temporais puros têm o poder de dramatizar os conceitos, porque eles, primeiramente, atualizam, encarnam Idéias. Dispomos de um ponto de partida para verificar tal hipótese: se é verdade que os dinamismos comandam os dois aspectos inseparáveis da diferenciação – especificação e partição, qualificação de uma espécie e organização de um extenso --, seria preciso que a Idéia, por sua vez, apresentasse dois aspectos dos quais estes derivam de uma certa maneira. Devemos, portanto, interrogar-nos sobre a natureza da Idéia, sobre sua diferença de natureza relativamente ao conceito.
Uma Idéia tem duas características principais. De um lado, ela [139] consiste num conjunto de relações diferençaisNT entre elementos destituídos de forma sensível e de função, elementos que só existem pela sua determinação recíproca. Tais relações são do tipo dx/dy (embora a questão do infinitamente pequeno de modo algum tenha de intervir aqui). Nos mais diversos casos, podemos perguntar se nos encontramos efetivamente diante de elementos ideais, isto é, sem figura e sem função, mas reciprocamente determináveis numa rede de relações diferençais: os fonemas estão neste caso? E tais ou quais partículas físicas? E os genes biológicos? Em cada caso, devemos perseguir nossa pesquisa até a obtenção desses diferençais, que só existem e são determinados uns em relação aos outros. Invocamos, então, um princípio, dito de determinação recíproca, como primeiro aspecto da razão suficiente. Por outro lado, às relações diferençais correspondem distribuições de “singularidades”, repartições de pontos notáveis e de pontos ordinários, tais que um ponto notável engendra uma série prolongável sobre todos os pontos ordinários até a vizinhança de uma outra singularidade. As singularidades são acontecimentos ideais. É possível que as noções de singular e de regular, de notável e de ordinário, tenham para a própria filosofia uma importância ontológica e epistemológica muito maior do que as de verdadeiro e de falso, pois o sentido depende da distinção e da distribuição desses pontos brilhantes na Idéia. Concebe-se que uma determinação completa da Idéia, ou da coisa em Idéia, opere-se assim, constituindo o segundo aspecto da razão suficiente. A Idéia, portanto, aparece como uma multiplicidade que deve ser percorrida em dois sentidos: do ponto de vista da variação de relações diferençais e do ponto de vista da repartição das singularidades que correspondem a certos valores dessas relações. O que antes denominamos procedimento da vice-dicção confunde-se com esse duplo percurso ou essa dupla determinação, que é recíproca e completa.
Várias conseqüências decorrem disso. Em primeiro lugar, a Idéia, assim definida, não dispõe de atualidade alguma. Ela é virtual, ela é pura virtualidade. Todas as relações diferençais e todas as repartições de singularidades coexistem na multiplicidade virtual das Idéias em virtude, respectivamente, da determinação recíproca e da determinação completa, [140]. A Idéia só se atualiza, precisamente, na medida em que suas relações diferençais se encarnam em espécies ou qualidades separadas, e na medida em que as singularidades concomitantes se encarnam num extenso que corresponde a essa qualidade. Uma espécie é feita de relações diferençais entre genes, como as partes orgânicas são feitas de singularidades encarnadas (cf. os “loci”). Devemos sublinhar, entretanto, a condição absoluta de não-semelhança: a espécie ou a qualidade não se assemelha às relações diferençais que elas encarnam, do mesmo modo que as singularidades não se assemelham ao extenso organizado que as atualiza.
Se é verdade que a qualificação e a partição constituem os dois aspectos da diferenciação, dir-se-á que a Idéia se atualiza por diferenciação. Para ela, atualizar-se é diferenciar-se. Nela mesma e na sua virtualidade, portanto, a Idéia é totalmente indiferenciada. Todavia, de modo algum ela é indeterminada. É preciso atribuir a maior importância à diferença das duas operações, diferença marcada pelo traço distintivo ç/ci: diferençar e diferenciar. Nela mesma, a Idéia, ou a coisa em Idéia, de modo algum é diferenciada, pois lhe faltam as qualidades e as partes necessárias. Mas ela é plenamente e completamente diferençada, pois dispõe de relações e singularidades que se atualizarão sem semelhança nas qualidades e partes. Então, parece que toda coisa tem como que duas “metades” ímpares, dessemelhantes e dissimétricas, sendo que cada uma dessas metades divide-se em duas: uma metade ideal, mergulhando no virtual, e constituída, ao mesmo tempo, por relações diferençais e singularidades concomitantes; uma metade atual, constituída pelas qualidades que encarnam essas relações e, ao mesmo tempo, pelas partes que encarnam essas singularidades. A questão do “ens omni modo determinatum” deve ser assim formulada: uma coisa em Idéia pode ser completamente determinada (diferençada), e, todavia, carecer das determinações que constituem a existência atual (ela é indiferenciada). Se denominarmos distinto o estado da idéia plenamente diferençada, e claro o estado da Idéia atualizada, isto é, diferenciada, devemos romper com a regra de proporcionalidade do claro e do distinto: nela mesma, a Idéia não é clara e distinta, mas, ao contrário, distinta e obscura. É neste sentido que a Idéia é dionisíaca, nessa zona de distinção obscura [141] que ela conserva em si, nessa indiferenciação que não deixa de ser perfeitamente determinada: sua embriaguez.
Devemos, finalmente, tornar precisas as condições sob as quais a palavra “virtual” pode ser empregada rigorosamente (à maneira, por exemplo, pela qual Bergson a empregava, ainda recentemente, ao distinguir as multiplicidades virtuais e as atuais, ou pela qual o senhor Ruyer a emprega hoje Dla). Virtual não se opõe a real; possível é que se opõe a real. Virtual se opõe a atual, e, a esse título, possui uma plena realidade.Vimos que essa realidade do virtual é constituída por relações diferençais e distribuições de singularidades. A respeito disso tudo, o virtual corresponde à fórmula pela qual Proust definia seus estados de experiência: “reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos” DLb. O virtual e o possível opõem-se de múltiplas maneiras. De um lado, o possível é tal que o real é construído à sua semelhança. É justamente por isso, em função dessa tara original, que nunca se poderá limpa-lo da suspeita de ser retrospectivo ou retroativo, isto é, de ser construído depois, à semelhança do real que ele teria hipoteticamente precedido. Eis também porque, quando se pergunta o que há de mais no real, nada se pode consignar, salvo “a mesma” coisa enquanto posta fora da representação. O possível é somente o conceito como princípio de representação da coisa, sob as categorias da identidade do representante e da semelhança do representado. O virtual, ao contrário, pertence à Idéia, e não se assemelha ao atual, assim como o atual não se assemelha a ele. A Idéia é uma imagem sem semelhança; o virtual não se atualiza por semelhança, mas por divergência e diferenciação. A diferenciação, ou atualização, é sempre criadora em relação ao que ela atualiza, ao passo que a realização é sempre reprodutora ou limitativa. A diferença entre virtual e atual já não é a do Mesmo enquanto situado uma vez na representação e outra vez fora da representação, mas é a do Outro enquanto aparece uma vez na Idéia e outra vez, de modo totalmente diferente, no processo de atualização da Idéia.
[142]
            O extraordinário mundo leibniziano coloca-nos em presença de um contínuo ideal. Segundo Leibniz, essa continuidade de modo algum se define pela homogeneidade, mas pela coexistência de todas as variações de relações diferençais e distribuições de singularidades que lhes correspondem. O estado desse mundo é bem exprimido nas imagens do rumor, do oceano, do moinho d’água, do desfalecimento ou mesmo da embriaguez, imagens que dão o testemunho de um fundo dionisíaco retumbante sob essa filosofia aparentemente apolínea. Perguntou-se muitas vezes em que consistiam as noções de “compossível”, de “incompossível”, e qual era exatamente a diferença entre elas e as de possível e impossível. Talvez seja difícil dar a resposta, porque toda a filosofia de Leibniz mostra uma certa hesitação entre uma concepção clara do possível e a concepção obscura do virtual. Na verdade, o incompossível e o compossível nada têm a ver com o contraditório e o não-contraditório. Trata-se de uma coisa totalmente distinta: trata-se da divergência e da convergência. O que define a compossibilidade de um mundo é a convergência das séries, sendo cada uma delas construída na vizinhança de uma singularidade até a vizinhança de uma outra singularidade. A incompossíbilidade dos mundos, ao contrário, surge no momento em que as séries obtidas divergiriam. O melhor dos mundos, portanto, é aquele que compreende um máximo de relações e singularidades sob a condição da continuidade, isto é, sob a condição de um máximo de convergência das séries. Então, compreende-se como, num tal mundo, formam-se as essências individuais ou mônadas. Leibniz diz que o mundo não existe fora das mônadas que o exprimem e, ao mesmo tempo, entretanto, diz que Deus, relativamente às mônadas, criou preferencialmente o mundo (Deus não criou Adão pecador, mas o mundo em que Adão pecou). É que as singularidades do mundo servem de princípio para a constituição de individualidades: cada indivíduo envolve um certo número de singularidades e exprime claramente as relações entre elas, fazendo-o em relação ao seu próprio corpo. Assim sendo, o mundo exprimido preexiste virtualmente às individualidades expressivas, mas não existe atualmente fora dessas individualidades que o exprimem de próximo em próximo. E é esse processo da individuação que determina as relações e singularidades do mundo ideal a se encarnarem nas qualidades e nos extensos que preenchem [143] efetivamente os intervalos entre indivíduos. O percurso do “fundo” como povoado de relações e de singularidades, a constituição que dele decorre das essências individuais, e a determinação que se segue das qualidades e extensos formam o conjunto de um método de vice-dicção, o que constitui uma teoria das multiplicidades, e que consiste sempre em subsumir “sob o caso”.
                                           
            A noção de diferenç/ciação não exprime apenas um complexo matemático-biológico, mas a própria condição de toda cosmologia, como das duas metades do objeto. A diferençação exprime a natureza de um fundo pré-individual que de modo algum se reduz a um universal abstrato, mas que comporta relações e singularidades que caracterizam as multiplicidades virtuais ou Idéias. A diferenciação exprime a atualização dessas relações e singularidades em qualidades e extensos, espécies e partes como objetos da representação. Os dois aspectos da diferenciação correspondem, pois, aos dois aspectos da diferençação, mas não se lhes assemelham: é preciso um terceiro que determine a Idéia a atualizar-se, a encarnar-se assim. Tentamos mostrar como os campos intensivos de individuação – com os precursores que os colocavam em estado de atividade, com os sujeitos larvares que se constituíam em torno de singularidades, com os dinamismos que preenchiam o sistema – tinham, com efeito, esse papel. A noção completa é a de indi-diferenç/ciação. São os dinamismos espaço-temporais no seio dos campos de individuação que determinam as Idéias a se atualizarem nos aspectos diferenciados do objeto. Dado um conceito na representação, nós ainda nada sabemos. Só aprendemos na medida em que descobrimos a Idéia que opera sob esse conceito, o ou os campos de individuação, o ou os sistemas que envolvem a Idéia, os dinamismos que a determinam a encarnar-se; é somente sob essas condições que podemos penetrar o mistério da divisão do conceito. São todas essas condições que definem a dramatização e seu cortejo de questões: em qual caso, quem, como, quanto? O mais curto é o esquema do conceito [144] de reta, mas apenas porque ele é, primeiramente, o drama da Idéia de linha, o diferencial da reta e da curva, o dinamismo que opera em silêncio. O claro e distinto é a pretensão do conceito no mundo apolíneo da representação; mas, sob a representação, há sempre a Idéia e seu fundo distinto-obscuro, um “drama” sob todo logos.

Discussão
            Jean Wahl DLc. – Nós o agradecemos vivamente por tudo o que disse. Raramente estivemos em presença de uma tal tentativa – não quero dizer de sistema – mas de visão por diferenciação, escrita duplamente, de um mundo descrito talvez de maneira quádrupla. Mas paro por aqui, pois o ato do Presidente é calar-se e deixar a palavra aos outros.
            Pierre-Maxime Schuhl DLd . – Enunciarei uma questão a Deleuze. Gostaria de saber como, em seu modo de ver as coisas, se apresentaria a oposição entre o natural e o artificial, que não é espontaneamente dinamizada, mas que se pode dinamizar por auto-regulação.
            G. Deleuze. – Não seria porque o artifício implica dinamismos próprios que não têm equivalente na natureza? O senhor freqüentemente mostrou a importância das categorias de natural e de artificial, notadamente no pensamento grego. Essas categorias não são diferenciadas, precisamente, em função de dinamismos – em função de percursos, de lugares e de direções? Mas, tanto nos artifícios quanto nos sistemas da natureza, há organizações intensivas, precursores, sujeitos-esboços, toda uma sorte de vitalidade, um caráter vital, se bem que de um outro modo...
            P.-M. Schuhl. – Isso vem a ser muito nervaliano NT.
            D. Deleuze. – Com efeito, eu o desejaria.
            P.-M. Schuhl. – No Filebo, em 64 b, Sócrates diz que se [145] completou a criação de uma ordem abstrata tal que ela poderá animar a si própria. No domínio do espírito isso vai por si só. Resta esse imenso domínio da matéria...
            G. Deleuze. – Seria preciso classificar os diferentes sistemas de intensidade. Desse ponto de vista, os procedimentos de regulação aos quais o senhor aluidu há pouco teriam uma importância decisiva.
            P.-M. Schuhl. – Eu gostaria de acrescentar uma simples anedota a propósito da alusão feita por Deleuze às diferentes maneiras de conceber a pesca no Sofista; o senhor Leroi-Gourhan publicou há alguns anos uma obra de tecnologia que recobre exatamente as distinções platônicas. Perguntei-lhe se havia pensado no Sofista e ele me respondeu que nunca tivera essa preocupação. Isso confirma a permanência de certas divisões, o que o senhor sublinhou.
            Noël Mouloud Dle. – Não acompanharei o senhor Deleuze na profundidade ontológica de sua concepção da Idéia. Tomado dessa maneira, o problema transborda meus hábitos de pensamento. O que muito me interessou na conferência do senhor Deleuze foi essa concepção da arte; é certo que o artista retoma uma temporalidade não serial, que ainda não está organizada, ou uma espacialidade ou multiplicidade de espacialidades vividas e pré-categoriais, e que, pelo seu artifício, aliás, ele as conduz a uma certa linguagem, a uma certa sintática. Seu estilo, ou sua recriação pessoal consiste em impor, como objetivas, estruturas que são tomadas de um estágio não objetivo. Enfim, há aí uma boa parte do dinamismo da arte.
            Eu gostaria de levantar algumas questões sobre os pontos que me incomodam um pouco. Assim, como aplicar essa concepção de uma prioridade da espacialidade ou da temporalidade à ciência, por exemplo. De uma certa maneira, pode-se invocar o espaço, o tempo, o dinamismo como o oposto do conceito, isto é, como o que introduz a variedade num conceito que tende à estabilidade. Mas há a contrapartida: o espaço e o tempo, pelo menos como eles são acessíveis à nossa intuição, têm tendência a uma certa estabilidade, a uma certa [146] imobilidade. Uma primeira física e uma primeira química começaram por uma mecânica fortemente apoiada na idéia de continuidades espaciais ou de composição dos elementos num composto. Ou uma primeira biologia começou com uma espécie de intuição da duração, do devir, de um desdobramento contínuo que religava as formas aparentes e que ultrapassava a separação destas. Parece-me que a matematização, por sua vez, introduziu uma segunda dramatização. Neste caso, a dramatização vem do conceito, não vem de tal modo da intuição. Assim, quando a química chega ao estágio da análise eletrônica, já não há para ela substâncias verdadeiras, valências verdadeiras, há funções de ligação que se criam à medida que se desenvolve o processo e que são compreendidas umas após as outras. Tem-se um processo que só é analisável por uma matemática do elétron. E à medida que a química se torna quântica, ou ondulatória, uma combinação já não pode, absolutamente, ser compreendida como uma transição simples e necessária. É uma probabilidade que resulta de um cálculo com base energética, no qual é preciso levar em conta, por exemplo, a dissimetria ou a simetria spinorial dos elétrons ou o recobrimento dos campos de duas ondas que cria uma energia particular etc. Somente o algebrista, e não o geômetra, pode fazer avaliação energética. De maneira um pouco semelhante, a biologia moderna começou quando interveio a combinatória dos elementos genéticos ou quando se interrogou sobre os efeitos químicos ou radioativos que podiam afetar o desenvolvimento dos genes e criar mutações. Assim, a primeira intuição dos biologistas que acreditavam numa evolução contínua foi destruída e retomada de certa maneira por uma ciência mais matemática e mais operatória. Eu gostaria muito de frisar meu sentimento de que os aspectos da concepção – os mais dramáticos se o senhor quiser, em todo caso os mais dialéticos – são trazidos não pela imaginação mas pelo trabalho da racionalização.
            No conjunto, não vejo muito bem que o desenvolvimento dos conceitos nas ciências matemáticas possa ser comparado a um desdobramento biológico, ao “crescimento de um ovo”. O desenvolvimento é mais nitidamente dialético: os sistemas se constroem de maneira coerente, ocorrendo até [147] a necessidade de quebrá-los para reconstruí-los. Mas não quero prolongar em excesso minha intervenção.
            G. Deleuze. – Sua opinião é também a minha. Nossa diferença não é, sobretudo, terminológica? Parece-me que os conceitos regem menos a dramatização do que a sofrem. Os conceitos diferenciam-se graças a procedimentos que não são exatamente conceituais, que remetem, sobretudo, a Idéias. Uma noção como aquela que o senhor invoca por alusão, a de “ligação não-localizável”, ultrapassa o campo da representação e da localização dos conceitos nesse campo. São ligações “ideais”.
            N. Mouloud. – Para dizer a verdade, não desejo defender a noção de conceito, que é ambígua, sobre-saturada de tradições filosóficas: pensa-se no conceito aristotélico como em um modelo de estabilidade. Eu definiria o conceito científico como obra de um pensamento essencialmente matemático. É este que quebra incessantemente as ordens pré-estabelecidas da nossa intuição. E, por outro lado, penso no uso ambíguo que poderia ser feito do termo idéia se o aproximássemos em demasia, como Bergson o faz, de um esquema organizador que tem suas bases numa intuição profunda, de algum modo biológica. As ciências, e mesmo as ciências da vida, não são desenvolvidas sob a direção de semelhantes esquemas. Ou, se elas começaram por aí, os modelos matemáticos e experimentais puseram em questão esses esquemas.
            J. Wahl. – Ainda vejo aí um acordo possível e mais uma diferença de linguagem do que uma diferença de concepção.
            Ferdinand Alquié DLf. – Admirei muito a exposição do nosso amigo Deleuze. A questão que eu gostaria de propor a ele é muito simples, e incide sobre o início de sua conferência. Deleuze, desde o começo, condenou a questão “Que é?” e não a retomou. Aceito o que ele disse em seguida, e percebo a extrema riqueza das outras questões que ele quis propor. Mas lastimo a rejeição, um tanto quanto rápida, da questão “Que é?”, e não poderia aceitar o que ele nos disse inicialmente, intimidando-nos um pouco, a saber, que nenhum filósofo, salvo Hegel, levantara essa questão. Devo [148] dizer-lhe que isso me surpreende um pouco: conheço, com efeito, muitos filósofos que levantaram a questão “Que é?”. Leibniz perguntou, efetivamente, “que é um sujeito?” ou “que é uma mônada?”. Berkeley perguntou efetivamente “que é ser?”, “qual é a essência e a significação da palavra ser?”. O próprio Kant perguntou efetivamente “que é um objeto?”. Poder-se-ia citar muitos outros exemplos que de modo algum me contestariam, espero. Portanto, pareceu-me que Deleuze, em seguida, tenha querido, sobretudo, orientar a filosofia em direção a outros problemas, problemas que talvez não sejam especificamente os dela, ou melhor, pareceu-me que ele censurou – não sem razão, de resto – a filosofia clássica por não fornecer-nos conceitos mui precisamente adaptáveis à ciência ou à análise psicológica, ou ainda à análise histórica. Isso me parece perfeitamente verdadeiro e, nesse sentido, eu não precisaria louvar bastante o que ele nos disse. Todavia, o que me afligiu, é que todos os exemplos que ele empregou não eram exemplos propriamente filosóficos. Falou-nos da linha reta, que é um exemplo matemático, do ovo, que é um exemplo fisiológico, dos genes, que é um exemplo biológico. Quando ele chegou à verdade, eu disse a mim mesmo: finalmente, eis um exemplo filosófico! Mas, depressa, esse exemplo não acabou bem, pois Deleuze nos diz que era preciso perguntar: quem quer a verdade? por que se quer a verdade? será que o ciumento é que quer a verdade? etc., questões muito interessantes, sem dúvida, mas que não tocam a própria essência da verdade, que talvez não sejam, pois, questões estritamente filosóficas. Ou melhor, são questões de uma filosofia voltada para problemas psicológicos, psicanalíticos etc. Assim sendo, de minha parte, eu gostaria, simplesmente, de propor a seguinte questão: compreendi bem que o senhor Deleuze censure a filosofia por ela ter da Idéia uma concepção que não é adaptável, como ele o desejaria, a problemas científicos, psicológicos, históricos. Mas penso que, ao lado desses problemas, permanecem problemas classicamente filosóficos, a saber, problemas de essência. Em todo caso, não me parece que se possa dizer, como Deleuze, que os grandes filósofos jamais levantaram semelhantes problemas.
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            G. Deleuze. – É bem verdade, senhor, que um grande número de filósofos levantou a questão Que é? Mas, para eles, não seria essa uma maneira cômoda de exprimir-se? Kant certamente pergunta “que é um objeto?”, mas ele pergunta isso no quadro de uma questão mais profunda, de um como?, do qual ele soube renovar o sentido: “Como é possível?”. O que me parece mais importante é essa nova maneira pela qual Kant interpreta a questão como?. E Leibniz, quando ele se contenta em perguntar “Que é?”, obtém ele outra coisa além de definições que ele denomina nominais? Quando, ao contrário, ele chega a definições reais, não é graças aos como?, de que ponto de vista, em qual caso? Há, nele, toda uma topologia, toda uma casuística que se exprime notadamente no seu interesse pelo direito. Mas, sobre tudo isso, fui muito rápido.
            Sua outra crítica toca-me sobremodo. É que acredito inteiramente na especificidade da filosofia, e é mesmo ao senhor que devo esta convicção. Ora, o senhor diz que o método que descrevo toma suas aplicações um pouco de toda parte, de diferentes ciências, mas muito pouco da filosofia. E que o único exemplo filosófico por mim invocado, aquele da verdade, logo se deu mal, pois ele consistiu em dissolver o conceito de verdade em determinações psicológicas ou psicanalíticas. Se isso ocorreu, então fracassei. Com efeito, a Idéia, como virtual-real, não deve ser descrita em termos unicamente científicos, mesmo que a ciência intervenha necessariamente em seu processo de atualização. Mesmo conceitos como os de singular e de regular, de notável e de ordinário, não são esgotados pelas matemáticas. Eu invocaria as teses de Lautman: uma teoria dos sistemas deve mostrar como o movimento dos conceitos científicos participa de uma dialética que os ultrapassa. Quanto aos dinamismos, menos ainda se reduzem eles a determinações psicológicas (e quando eu citava o ciumento como “tipo” do pesquisador de verdade, não o fazia a título de um caráter psicológico, mas como um complexo de espaço e de tempo, como uma “figura” pertencente à própria noção de verdade). Parece-me que não somente a teoria dos sistemas é filosófica, mas que essa teoria forma um sistema de tipo muito [150] particular – o sistema filosófico, tendo ele, como totalmente específicos, seus dinamismos, seus precursores, seus sujeitos larvares, seus filósofos. É somente nessas condições, pelos menos, que esse método teria um sentido.
            Maurice de Gandillac DLg. – Adivinho atrás do seu vocabulário, como sempre sugestivo e poético, um pensamento sólido e profundo, mas, confesso-o, eu gostaria de contar com algumas precisões complementares sobre o tema da dramatização que figura como título da sua conferência, e que não acreditou ser necessário definir, como se se tratasse de um conceito recebido de maneira comum e que se explicitasse por si. Na vida cotidiana, quando falamos em dramatizar, é em geral de maneira um tanto quanto pejorativa para censurar nosso interlocutor por dar um aspecto demasiado teatral a um incidente miúdo (como se diz numa linguagem mais popular: “Deixe de fazer cena!”. Etimologicamente, um drama é uma ação, mas encenada, estilizada, apresentada a um público. Ora, não me é fácil imaginar uma situação desse gênero a propósito de sujeitos fantasmáticos que o senhor acaba de evocar, esses embriões, essas larvas, esses diferenciados indiferençadosNT que são também esquemas dinâmicos, pois empregais termos muito vagos que são de algum modo palavras para qualquer uso em filosofia e que só valem pelo seu contexto. Mais precisamente, já que o senhor recusa a questão (na medida em que ela visaria uma ousía), o senhor parece admitir o tís como sujeito de um fazer (tís  poiei  ti). Mas pode-se falar de um sujeito que faz algo no nível das larvas?
            Minha segunda questão concerne a relação entre dramático e trágico. Como a tragédia, o drama em que o senhor pensa, pergunto, remete a um conflito por si mesmo insolúvel entre duas metades ímpares que encontram duas outras metades ímpares numa muito sutil harmonia desarmônica? Sua alusão a Artaud e ao teatro da crueldade mostra suficientemente que o senhor não é um filósofo otimista, ou que, sendo-o, é um pouco ao modo de Leibniz, cuja visão do mundo é, finalmente, uma das mais cruéis que se possa conceber. Sua dramatização seria a de uma [151] Teodicéia situada desta vez não nos palácios celestes evocados pelo famoso apólogo de Sextus, mas no nível dos lêmures do segundo Fausto?
            G. Deleuze. – Tento definir mais rigorosamente a dramatização: são dinamismos, determinações espaço-temporais dinâmicas, pré-qualitativas e pré-extensivas que têm “lugar” em sistemas intensivos onde se repartem diferenças em profundidade, que têm por “pacientes” sujeitos-esboços, que têm por “função” atualizar Idéias...
            M. de Gandillac. – Mas, para traduzir tudo isso (que percebo um pouco confusamente), por que esse termo dramatização?
            G. Deleuze. – Quando se procura corresponder um tal sistema de determinações espaço-temporais a um conceito, parece-me que um logos é substituído por um “drama”, parece-me que se estabelece o drama desse logos. O senhor diz, por exemplo, dramatiza-se em família. É verdade que a vida cotidiana está repleta de dramatizações. Alguns psicanalistas empregavam essa palavra, creio, para designar o movimento pelo qual o pensamento lógico se dissolve em puras determinações espaço-temporais, como no adormecimento. E isso não se distancia muito das célebres experiências da escola de Wurtzbourg. Seja um caso de neurose obsessiva, no qual o sujeito não pára de retalhar: os lenços e os guardanapos são perpetuamente cortados, primeiro em duas metades, depois estas são recortadas, um cordão de campainha na sala de jantar é regularmente diminuído, de modo que a campainha se aproxima do teto, tudo é aparado, miniaturizado, posto em caixas. Trata-se efetivamente de um drama, na medida em que o doente, ao mesmo tempo organiza um espaço, agita um espaço e exprime nesse espaço uma Idéia do inconsciente. Uma cólera é uma dramatização que põe em cena sujeitos larvares. O senhor deseja, então, perguntar-me se a dramatização em geral está ligada ou não ao trágico. Nenhuma referência privilegiada me parece haver aí. Trágico, cômico são ainda categorias da representação. Haveria, sobretudo, um liame fundamental entre a dramatização e um certo mundo do terror, mundo que pode comportar o máximo de bufonaria, de grotesco... O senhor mesmo diz que, no fundo, o mundo de Leibniz é, finalmente, o mais cruel dos mundos.
[152]
            M. de Gandillac. – A bufonaria, o grotesco, a chacota pertencem, creio, à região do trágico. Sua conclusão evocava temas nietzscheanos, finalmente mais dionisíacos que apolíneos.
            J. Wahl. – Creio que a resposta que Deleuze teria podido dar é a questão quando?, porque há momentos em tudo isso vem a ser trágico e há momentos em que isso vem a ser...
            G. Deleuze. – Sim, perfeitamente.
            Michel SouriauDLh. – É uma pergunta de referência que quero apresentar. O senhor Deleuze citou alguns filósofos, não muitos, mas alguns enfim, e há um cujo tom acreditei ter ouvido, mas ele não o citou, é Malebranche. Há várias coisas em Malebranche que lhe serão estranhas, por exemplo, a visão em Deus: no seu caso, tratar-se-ia, sobretudo, de uma espécie de “visão em Mefistófeles”. Mas há também o Malebranche da extensão inteligível; quando o senhor falava desse devir – inicialmente obscuro e em todo caso dinâmico – das idéias, e dessa extensão que de modo algum é do espaço, mas que tende a devir espaço, tratava-se efetivamente da extensão inteligível de Malebranche.
            G. Deleuze. – Não sonhava com essa aproximação. Com efeito, na extensão inteligível há certamente algo como um spatium puro, pré-extensivo. O mesmo ocorre com a distinção leibniziana entre o spatium e a extensio.
            Lucy Prenant DLi . – Minha questão encadeia-se com a do senhor Souriau. O que o senhor denomina obscuro e distinto não seria denominado não-imaginável e inteligível por Leibniz? Não imaginável corresponde a obscuro -- ao que denomina obscuro. Para Leibniz, obscuro é o pensamento que não pode determinar seu objeto – nas Meditações, por exemplo: uma fugaz lembrança de imagem. Ao contrário, o conhecimento que os analistas de metais têm do ouro compõe a lei de uma série de propriedades; isso não cai sob os sentidos, isso não toma forma de imagem e, por conseguinte, creio que ele não o traduziria por obscuro, creio que ele não teria gostado dessa palavra, mas por imaginável, em oposição a claro. E isso pode mesmo ir até o que ele denominava pensamento cego -- não [153] em todas as condições, pois ele pode conduzir ao verbalismo e ao erro, como ele diz em sua crítica da prova ontológica. Mas isso pode corresponder a certas formas do pensamento cego; por exemplo, à característica -- a formas rigorosamente montadas.
            Mas, em última instância, essas idéias “distintas e cegas” de Leibniz não devem apoiar-se, precisamente, em “visões distintas”? Leibniz vê que uma reta deve poder prolongar-se ao infinito, porque ele vê a razão disso: a similitude dos segmentos. Portanto, é preciso, ainda assim, ir às “noções primitivas” que “são para si mesmas suas próprias marcas” e ao alfabeto dos pensamentos humanos. Em outras palavras, não creio que o pensamento possa permanecer integralmente “obscuro” – no sentido do senhor Deleuze – de um extremo ao outro da sua caminhada. Ele precisa, pelo menos, “ver uma razão”, apreender uma lei.
            G. Deleuze. – Estou impressionado com suas observações sobre o rigor da terminologia leibniziana. Mas não é verdade, madame, que “distinto” tem muitos sentidos em Leibniz?NT.  Os textos sobre o mar insistem nisso: há elementos distinguidos nas pequenas percepções, isto é, pontos notáveis que, por combinação com pontos notáveis do nosso corpo, determinam um limiar de tomada de consciência, de percepção consciente. Esta percepção, por si mesma consciente, é clara e confusa (não-distinta), mas os elementos diferençais que ela atualiza são, eles próprios, distintos e obscuros. É verdade que se trata, então, de um fundo que, de certa maneira, talvez transborde a própria razão suficiente...
            L. Prenant. – Creio, aliás, que quando uma substância simples “exprime” o universo, ela não o exprime sempre por imagem; ela o exprime necessariamente por alguma qualidade – consciente ou não (quando muito, parcialmente consciente para a atividade finita de uma substância criada) – que corresponde a um sistema de relações variáveis segundo o “ponto de vista”. Somente Deus pode pensar a totalidade dessas virtualidades com uma distinção perfeita – o que anula para ele toda necessidade do cálculo das probabilidades...
            Mas quero levantar uma segunda questão. Essa virtualidade, que pretende corresponder à existência, não é embaraçosa para o cientista que busca uma classificação e que encontra amostras “sujas” que o obrigam a remanejar [154] suas espécies? Em outras palavras, não é ela tão-somente uma expressão progressiva e móvel?
G. Deleuze. – Parece-me que a virtualidade nunca pode corresponder ao atual como uma essência a uma existência. Isto seria confundir  o virtual com o possível. Em todo caso, o virtual e o atual correspondem, mas não se assemelham. Eis porque a procura dos conceitos atuais pode ser infinita; há sempre um excesso das Idéias virtuais que os anima.
            Jean UllmoDLk . – Sinto-me um tanto quanto subjugado por uma exposição tão puramente filosófica, uma exposição que muito admirei, primeiro pela sua forma, seguramente, e seu valor poético, mas também por esse sentimento – mas seria um sentimento? – que constantemente tive ao ouvi-la, e que, apesar da minha ignorância propriamente filosófica, apesar da minha ingenuidade em relação aos conceitos, aos métodos, às referências que o senhor utilizou, tive a impressão que eu o compreendia, ou, antes, que eu podia tentar a cada instante traduzir aquilo que eu ouvia numa linguagem muito mais humilde, a linguagem da epistemologia, a linguagem em que pude manifestar uma reflexão científica que agora se apóia em não poucos anos e em não poucas experiências. Sem dúvida, esses dois domínios não se recobrem exatamente, e, em certos momentos, perdi o pé. Mas, graças às questões que foram levantadas, compreendi também porque perdi o pé, pois havia alusões precisas a domínios filosóficos que ignoro. Porém, dito isto, penso que quase tudo que o senhor expôs pode ser traduzido na linguagem da epistemologia moderna, e penso, com efeito, que esse projeto que o senhor persegue, o de dar aos conceitos filosóficos um alcance genético, um alcance evolutivo, essa espécie de diferenciação interna que lhes permite adaptar-se ao domínio da ciência e ao domínio da história, e também ao domínio da biologia, admitindo que esse domínio seja mais evoluído que o da ciência da matéria que dominamos até o presente, penso que esse projeto é muito interessante e que o senhor o fez progredir.
            Georges Bouligan DLk. – Gostaria, simplesmente, de fazer uma [155] pequena observação a propósito das “sujas amostras” evocadas pela senhora Prenant; lembro que, para os matemáticos, as ditas amostras são contra-exemplos. Um pesquisador que de boa fé examina um tema, tira deste uma visão prospectiva em conformidade com certos exemplos que o “induzem” na direção de um pretenso “teorema θ”. Um caso familiar que ele consulta acaba colocando-o, de pronto, à prova de um “contra-exemplo”. Donde, para o prospectivista, um “choque psicológico”, às vezes brutal, mas logo dominado por quem mede finalmente o alcance de casos que ele de início afastava “praticamente”, tachando-os de “estranhos”! Fenômeno freqüente, aliás: ele advém por ocasião de tentativas empreendidas em torno de um ponto h de uma superfície S – com normal vertical em h – para justificar um “mínimo de cota” em h sob as seguintes hipóteses: toda vertical encontra S num só ponto; além disso, o mínimo se produziria em h para toda linha de S obtida como interseção de S e de um plano vertical arbitrário que contém a vertical de h. O retorno à visão clara das coisas é às vezes penoso: trata-se, com efeito, ao partir de impressões mais ou menos subjetivas, de reencontrar o pleno acordo com o rigor lógico.
            Jacques Merleau-Ponty DLl. – O senhor falou várias vezes em dinamismos espaço-temporais, e é visível que isso desempenha um papel muito importante, que creio ter em parte compreendido em sua exposição. Mas, e isso pode ser feito sem dúvida, poder-se-ia distinguir o que é espacial e o que é temporal nesses dinamismos. Ora, a comparação de duas das imagens que o senhor utilizou me leva a pensar que seria talvez importante precisar esse ponto. O senhor empregou a imagem do raio; não sei se a encontrou em Leibniz ou se a encontrou sozinho, pouco importa. Mas é claro que, no caso dessa imagem, estamos tratando com o que o senhor denominou o intensivo, que seria, especificamente, o potencial. Estamos tratando de uma dispersão instantânea e puramente espacial. Temos o movimento das cargas, a onda sonora etc. Em seguida, o senhor empregou a imagem do embrião; mas, neste caso, é evidente que o aspecto temporal está estreitamente associado ao aspecto espacial, [156] de modo que a diferenciação está aí regrada no tempo de maneira tão rigorosa quanto no espaço. Então, gostaria de saber se o senhor tem alguma precisão a acrescentar sobre esse ponto, pois, no fundo, meu pensamento é este: encontrei, e isso não me espantou muito, não sei qual ressonância bergsoniana em sua exposição, mas o raio, justamente, de modo algum é bergsoniano, porque, em Bergson, não há ruptura do tempo, ou, pelo menos eu não vejo isso nele.
            G. Deleuze. – Sua questão é muito importante. Seria preciso distinguir o que diz respeito ao espaço e o que diz respeito ao tempo nesses dinamismos, e qual é, em cada caso, a particular combinação espaço-tempo. Cada vez que uma Idéia se atualiza, há um espaço e um tempo de atualização. Certamente, as combinações são variáveis. De um lado, se é verdade que uma Idéia tem dois aspectos, relações diferençais e pontos singulares, o tempo de atualização remete aos primeiros e o espaço de atualização remete aos segundos. Por outro lado, se consideramos os dois aspectos do atual, qualidades e extensos, as qualidades resultam, antes de tudo, do tempo de atualização: o próprio das qualidades é durar, e durar justo o tempo em que um sistema intensivo mantém e faz com que se  comuniquem suas diferenças constituintes. Quanto aos extensos, por sua vez, eles resultam do espaço de atualização ou do movimento pelo qual as singularidades se encarnam. Vê-se bem, em biologia, como ritmos diferençais determinam a organização do corpo e sua especificação temporal.
            J. Merleau-Ponty. – A propósito dessa questão, penso numa imagem que o senhor não usou em sua exposição, a da linhagem. Numa conferência sobre Proust, há alguns anos, o senhor falou da linhagem; as duas linhagens que saem do grande hermafrodita etc. Essa imagem não conviria também a sua conferência de hoje?
            G. Deleuze. – Sim, os dinamismos determinam “linhagens”. Falei hoje de linhas abstratas, assim como do fundo do qual saem essas linhas.
            Jean Beaufret DLm. – Gostaria de levantar uma questão, não [157] sobre a própria exposição, mas sobre uma das respostas de Deleuze ao senhor de Gandillac, a última delas. No final do diálogo havido entre ambos, foram evocados Apolo e Dioniso, e tudo acabou nisto: a oposição é intransponível. O que entendi foi isso mesmo?
            G. Deleuze. – Sim, creio.
            J. Beaufret. – Então, levantarei a questão: por quem? até que ponto? como? onde? quando? Por quem ela pode ser transposta? Suponho ou sinto que...
            G. Deleuze. – Por quem poderia ela ser transposta? Seguramente, não pelo próprio Dioniso, que não tem interesse algum nisso. Dioniso atem-se a que permaneça obscuro aquilo que é distinto. Nenhuma razão e nenhuma vantagem o liga à idéia da conciliação, que ele não pode suportar. Ele não pode suportar o claro-e-distinto. Ele encarregou-se do distinto e quer que esse distinto seja para sempre obscuro. É essa sua vontade própria, suponho... Mas quem quer transpor essa oposição? Vejo bem que o sonho, que uma reconciliação do claro e do distinto só possa explicar-se do lado do claro. Quem quer transpor a oposição é Apolo. É ele que suscita a reconciliação do claro e do distinto, e é ele que inspira o artesão dessa reconciliação: o artista trágico. Reencontro o tema de há pouco, o do senhor de Gandillac. O trágico é o esforço de reconciliação, que vem necessariamente de Apolo. Mas, em Dioniso, há sempre algo que se retira e recusa, algo que quer manter o distinto obscuro...
            J. Beaufret. – Creio que a gente se satisfaz um pouco rapidamente com essa oposição Dioniso-Apolo, que, com efeito, aparece muito destacada em O nascimento da tragédia. Mas parece-me cada vez mais que há um terceiro personagem, se posso dizer, que surge em Nietzsche, e que ele tem a crescente tendência de nomear Alcion. Não sei o que ele faz, mas o que me toca é que esse Alkyonische, como ele diz, que é cada vez mais o céu de Nice, é como uma dimensão que não se identifica exatamente nem com a dimensão do dionisíaco e nem com a dimensão do apolíneo. No final de Além do bem e do mal, ele fala do seu encontro com Dioniso e diz que o deus lhe respondeu com “seu sorriso alciônico” NT. Perguntei-me: o que, exatamente, queria dizer o “sorriso alciônico” [158] de Dioniso? Em todo caso, aí está porque penso que Nietzsche talvez tenha sido mais reticente que o senhor. Creio que seja uma descoberta tardia.
            G. Deleuze. – Seguramente, a significação de Alcion permanece um grande problema nos últimos escritos de Nietzsche.
            Stanislas Breton DLn. – Certamente, a questão que é? de quase nada me adianta na descoberta da essência ou da Idéia. Mas ela me parece ter uma função reguladora indispensável. Ela abre um espaço de pesquisa que somente as questões com função heurística: quem? como? etc., podem preencher. Longe de poderem substituí-la, estas me parecem, portanto, requere-la. Elas constituem sua mediação indispensável. É para responder à questão que é? que me proponho as outras questões. Os dois tipos de questão, portanto, são heterogêneos e complementares.
            Além disso, essas questões parecem-me fundadas sobre uma idéia prévia da “coisa”, idéia que, de uma maneira global, já responde à questão que é? Elas supõem um sujeito “larvar” que se desprega num intervalo de realização que os dinamismos espaço-temporais concretizam.
            Desse modo, em virtude do que se denominou conversão da substância em sujeito, a essência é menos o que aí já está NTa do que um το τι εν ειναι  (o que está  em vias de ser)  NTb. A esse respeito, Hegel falará de uma Bestimmtheit que devém Bestimmung. A determinação da coisa seria o passado da sua “dramatização”. Esse sequitur operari (em vez de operari sequitur esse). A ontologia tradicional seria tão-somente a aproximação lógica de uma ontogenia cujo centro seria a causa sui ou, ainda, Αυθυπόστατον, de que fala Proclo.
            Situando vossas reflexões neste horizonte ontológico, não pretendo diminuir nem o interesse e nem o alcance delas. Procuro compreende-las melhor. Há, todavia, uma questão prévia. Ao que se aplica, exatamente, seu método de dramatização? Em qual horizonte preciso de realidade o senhor situa as questões “tópicas” do quis? do quomodo? etc.? Não têm elas um sentido tão-somente no mundo dos homens? Ou aplicam-se elas às “coisas” da experiência comum ou científica? Os dinamismos espaço-temporais são objetos de [159] pesquisa em psicologia dinâmica e em microfísica. Que relações de analogia há entre esses dinamismos espaço-temporais tão diferentes? Podemos, para liga-los, imaginar um processo de diferenciação?
            G. Deleuze. – Não estou seguro de que os dois tipos de questão possam ser conciliados. O senhor diz que a questão: que é? precede e dirige o que está em questão nas outras. E que estas outras, inversamente, permitem dar-lhe uma resposta. Antes de tudo, não seria o caso de temer que, começando-se pelo que é?, não mais se possa chegar às outras questões?NT. A questão que é? prejulga o resultado da pesquisa, supõe que a resposta é dada na simplicidade de uma essência, mesmo que seja próprio dessa essência simples desdobrar-se, contradizer-se etc. Estamos aí no movimento abstrato, não se pode mais reaver o movimento real, aquele que percorre uma multiplicidade como tal. Os dois tipos de questão parecem-me implicar métodos que não são conciliáveis. Por exemplo, quando Nietzsche pergunta quem, ou de qual ponto de vista, em vez de “o quê”, ele não pretende completar a questão que é?, mas denunciar a forma dessa questão e de todas as respostas possíveis a essa questão. Quando pergunto que é?, suponho haver uma essência atrás das aparências, ou, pelo menos, algo último atrás das máscaras. O outro tipo de questão, ao contrário, descobre sempre outras máscaras atrás de uma máscara, deslocamentos atrás de todo local, outros “casos” encaixados num caso.
            Com profundidade, o senhor assinala a presença de uma operação temporal no το τι εν ειναι. Todavia, parece-me que essa operação, em Aristóteles, não depende da questão que é?, mas, ao contrário, da questão quem?, da qual Aristóteles se serve para exprimir todo seu antiplatonismo. το τι α, é “quem é” (ou, sobretudo, “quem, o ente?”) NT.
            O senhor quer me perguntar qual é o alcance da dramatização. É ela unicamente psicológica ou antropológica? Creio que o homem não nem nisso privilégio algum. De qualquer maneira, o que dramatiza é o inconsciente. Entre dinamismos físicos, biológicos e psíquicos intervêm toda sorte de retomadas e de ressonâncias. Talvez a diferença entre esses dinamismos venha, primeiramente, da ordem [160] da Idéia que se atualiza. Seria preciso uma determinação dessas ordens de Idéias.
            Aléxis Philonenko Dlo. – Gostaria de solicitar ao senhor Deleuze uma precisão.
            O senhor afirmou que, no movimento da atualização, os elementos diferençais não tinham figura sensível alguma, função alguma, significação conceitual alguma (o que me parece, aliás, estritamente anti-leibniziano, se posso exprimir-me assim, pois Leibniz atribui uma significação conceitual à diferencial, precisamente porque ela não possui “figura” alguma; mas, enfim, isso não é o problema que me interessa). Ora, para apoiar sua tese, o senhor aludiu aos pós-kantianos, no plural. Isso não implicava, portanto, uma referência apenas a Hegel, mas também a Maïmon, Fichte, Schelling e mesmo Schopenhauer. Talvez mesmo a Nietzsche, se quisermos... Gostaria, primeiramente, que o senhor tornasse preciso em qual dos pós-kantianos pensa mais particularmente.
            G. Deleuze. – Pergunta-me em quem eu pensava: evidentemente em Maïmon e em certos aspectos de Novalis.
A.     Philonenko. – E na diferencial de consciência?
G. Deleuze. – É isso...
A. Philonenko. – Com efeito, uma parte da sua conferência pareceu-me inspirada na obra de Maïmon. Então, esse esclarecimento é importante, pois, em Maïmon, a noção de diferencial de consciência é fundamental e, sob muitos aspectos, os dinamismos espaço-temporais, tais como o senhor os descreveu, evocam extraordinariamente a diferencial de consciência segundo Maïmon. Em outras palavras, no nível da representação, temos, de algum modo, integrações; mas há um nível sub-representativo, como o senhor procurou  mostrar, que é precisamente aquele no qual a diferencial possui uma significação genética, pelo menos aos olhos de Maïmon. Eu queria essa primeira precisão para que o debate esteja bem orientado. Ora, em Maïmon, e isso é muito interessante para mim, a noção de diferencial, que se liga à operação genética da imaginação transcendental, é um princípio cético, um princípio que nos leva a julgar ilusório o real. [161] Com efeito, na medida em que a raiz dos dinamismos espaço-temporais é sub-representativa, não temos critério algum, diz Maïmon. E isso quer dizer duas coisas: em primeiro lugar, não podemos discernir o que é produzido por nós e o que é produzido pelo objeto; em segundo lugar, não podemos discernir o que é produzido logicamente e o que não o é. Restam, simplesmente, os resultados da gênese sub-representativa da imaginação transcendental. É preciso, pois, segundo Maïmon, desenvolver uma dialética da imaginação transcendental ou, se se prefere, uma dialética da síntese. Isto se ligaria um pouco – digo apenas um pouco – a Leibniz. Eis, portanto, a precisão que espero do senhor: qual é a parte da ilusão (ou do ilusório) no movimento dos elementos diferençais?
G. Deleuze. – Para mim, nenhuma.
A. Philonenko. – E o quê, pois, o permite dizer nenhuma?
G. Deleuze. – O senhor me disse: para Maïmon, há uma ilusão. Eu o compreendo bem, mas meu objetivo não era expor Maïmon. Se quiser perguntar-me: qual é a parte da ilusão no esquema que propõe? Respondo: nenhuma. Digo isto, porque me parece que temos o meio de penetrar no sub-representativo, de chegar até a raiz dos dinamismos espaço-temporais, até as Idéias que se atualizam neles: os elementos e acontecimentos ideais, as relações e singularidades são perfeitamente determináveis. A ilusão só aparece em seguida, do lado dos extensos constituídos e das qualidades que preenchem esses extensos.
A.     Philonenko. – Portanto, a ilusão só aparece no constituído?
G. Deleuze. – É isso aí. Para resumir tudo, não temos, do inconsciente, a mesma concepção que a de Leibniz ou de Maïmon. Freud passou por aí. Há, pois, um deslocamento da ilusão...
A. Philonenko. – Mas – quero permanecer no plano da lógica e mesmo da lógica transcendental, sem empenhar-me na psicologia – se o senhor repele toda ilusão para o lado do constituído, sem admitir uma ilusão na gênese, na constituição, não estará retornando, no fundo, (o que, então, [162] o senhor queria evitar) a Platão, para o qual, justamente, a constituição, compreendida a partir da Idéia, na medida em que pode ser compreendida, é sempre veraz, verídica?
G. Deleuze. – Sim, talvez.
A. Philonenko. – De tal como que, do lado da especificação e da multiplicidade, provaríamos, em definitivo, a mesma verdade que em Platão, e teríamos a mesma idéia do verdadeiro, quero dizer: a simplicidade do verdadeiro sempre igual a si mesmo na totalidade da sua produção?
G. Deleuze. – Já não seria esse Platão aí. Se se pensa no Platão da última dialética, onde as Idéias são um pouco como multiplicidades que devem ser percorridas pelas questões como? quanto? em qual caso?, então sim, tudo que digo me parece platônico, com efeito. Se se trata, ao contrário, de um Platão partidário de uma simplicidade da essência ou de uma ipseidade da Idéia, então não.
J. Wahl. – Se ninguém mais pede a palavra, creio que só me resta agradecer muito ao senhor Deleuze e a todos aqueles que se dispuseram a participar da discussão.
. . .
Tradução de
Luiz B. L. Orlandi

[163]
15
CONCLUÕES SOBRE
A VONTADE DE POTÊNCIA E O ETERNO RETORNODL
[1967]

            O que primeiramente aprendemos neste colóquio Dla foi ver o quanto havia de coisas ocultas, mascaradas em Nietzsche. Por várias razões.
            Razões de edição, em primeiro lugar. Não tanto por haver falsificações: a irmão foi certamente o parente abusivo que figura no cortejo dos pensadores malditos, mas seus danos principais não consistem em falsificação de textos. As edições existentes sofrem de más leituras ou de deslocamentos, e, sobretudo, de cortes arbitrários operados na massa de notas póstumas. A vontade de potência é o exemplo célebre disso. Pode-se dizer ainda que nenhuma edição existente, mesmo a mais recente, satisfaz às exigências críticas e científicas normais. Eis porque o projeto dos senhores Colli e Montinari nos parece tão importante: editar, finalmente, as notas póstumas completas, de acordo com a cronologia a mais rigorosa possível em conformidade com os períodos correspondentes aos livros publicados por Nietzsche. Acabará, portanto, essa coisa de um pensamento de 1872 suceder a um outro de 1884. Os senhores Colli e Montinari prontificaram-se a nos informar sobre o estado atual do seu trabalho, a proximidade do seu término, e nós nos regozijamos de que sua edição também apareça em francês.
            Mas há ainda outras razões para as coisas ocultas. Por razões patológicas, a obra não está acabada, está [164] bruscamente interrompida pela loucura. Não devemos esquecer que os dois conceitos fundamentais, o de Eterno retorno e o de Vontade de potência, são apenas introduzidos por Nietzsche e não foram objeto nem das exposições e nem dos desenvolvimentos que Nietzsche projetava. Lembremo-nos, notadamente, que o eterno retorno não pode ser considerado como dito ou formulado por Zaratustra; ele é antes ocultado nos quatro livros de Zaratustra. O pouco que é dito não é formulado pelo próprio Zaratustra, mas ora pelo “anão”, ora pela águia e a serpente 1. Trata-se, pois, de uma simples introdução, que pode mesmo comportar disfarces voluntários. E as notas de Nietzsche, a esse respeito, não nos permitem prever de que maneira ele teria organizado suas exposições futuras. Temos o direito de considerar que a obra de Nietzsche é brutalmente interrompida pela doença antes que ele tenha podido escrever o que lhe parecia essencial. – Em que sentido a loucura faz parte da obra é uma questão complexa. Não vemos a menor loucura em Ecce Homo, a não ser sob a condição de também ver aí a maior mestria. Sentimos que as cartas loucas de 1888 e 1889 ainda fazem parte da obra, ao mesmo tempo em que elas a interrompem, cessam-na (a grande carta a Burckhardt permanece inesquecível).
O senhor Klossowski dizia que a morte de Deus, o Deus morto, tira ao Eu sua única garantia de identidade, sua base substancial unitária: Deus morto, o eu se dissolve ou se volatiliza, mas, de certa maneira, abre-se a todos os outros eu, papéis e personagens cuja série deve ser percorrida como outros tantos acontecimentos fortuitos. “Sou Chambige, sou Badinguet, sou Prado, todos os nomes da história, no fundo, sou eu”. Mas o senhor Wahl já havia traçado o quadro dessa dissipação genial antes da doença, dessa mobilidade, dessa diversidade, dessa potência de metamorfose que formam o pluralismo de Nietzsche. Pois toda a psicologia de Nietzsche, não somente a sua, mas aquela que ele faz, é uma psicologia da máscara, uma tipologia das máscaras; e, atrás de cada máscara, ainda uma outra.
Mas é metodológica a razão mais geral pela qual há tantas coisas ocultas em Nietzsche e sua obra. [165] Nunca uma coisa tem um só sentido. Cada coisa tem vários sentidos que exprimem as forças e o devir das forças que agem nela. E mais: não há “coisa”, mas somente interpretações, e a pluralidade de sentidos. Interpretações que se ocultam em outras, como máscaras encaixadas, linguagens incluídas umas nas outras. O senhor Foucault nos mostrou isso: Nietzsche inventa uma nova concepção e novos métodos de interpretar. Primeiramente, mudando o espaço em que os signos se repartem, descobrindo uma nova “profundidade” em relação à qual a antiga se mostra, e já não conta. Em seguida, e sobretudo, substituindo a relação simples do signo e do sentido por um complexo de sentidos, de tal modo que toda interpretação já é a de uma interpretação, ao infinito. Mas isso não quer dizer que todas as interpretações tenham o mesmo valor e estejam sobre um mesmo plano. Ao contrário, elas se mostram ou se encaixam na nova profundidade. Mas elas deixam de ter o verdadeiro e o falso como critério. O nobre e o vil, o alto e o baixo devêm os princípios imanentes das interpretações e das avaliações. A lógica é substituída por uma topologia e uma tipologia: há interpretações que supõem uma maneira baixa ou vil de pensar, de sentir e mesmo de existir; há outras que dão testemunho de uma nobreza, de uma generosidade, de uma criatividade..., de modo que as interpretações julgam, antes de tudo, o “tipo” daquele que interpreta, e renunciam à questão “que é?” para promover a questão “Quem?”.

Eis que a questão de valor permite, de algum modo, “jugular” a verdade, descobrir atrás do verdadeiro e do falso uma instância mais profunda. Essa noção de valor marcaria ainda uma pertença de Nietzsche a um fundo metafísico platônico-cartesiano, ou abre uma nova filosofia, até mesmo uma nova ontologia? É o problema que o senhor Beaufret levantava. E era esse o segundo tema do nosso colóquio. Com efeito, podemos perguntar: se tudo é máscara, se tudo é interpretação e avaliação, que há em última instância em não havendo coisas a serem interpretadas, nem avaliadas, nem coisas a serem mascaradas? Em última instância, nada há, salvo a vontade de potência, que é potência de metamorfose, potência de modelar as máscaras, potência de interpretar [166] e de avaliar. 
          










[178]
16
A GARGALHADA DE NIETZSCHEDL
[1967]


[Como foi estabelecida a edição das Œuvres philosophiques complètes de Nietzsche]?DLa
            Gilles Deleuze. – O problema era reordenar as notas póstumas – o Nachlass – segundo as datas em que foram redigidas por Nietzsche e colocá-las na seqüência das obras de que eram contemporâneas. Parte delas havia sido utilizada abusivamente, após a morte de Nietzsche, para compor A Vontade de potência. Tratava-se, pois, de restabelecer a cronologia exata. É assim que o primeiro volume, Le Gai Savoir, é constituído em mais de sua metade por fragmentos inéditos que datam de 1881-1882. Nossa concepção do pensamento de Nietzsche e também de seus procedimentos de criação pode com isso ser profundamente modificada. Esta edição será publicada simultaneamente na Itália, na Alemanha e na França. Mas é a dois italianos, os Srs. Colli e Montinari, que devemos tais textos.
            Como o senhor explica que sejam italianos, em vez de alemães, que tenham efetuado esse trabalho?
            G.D. – Os alemães talvez não fossem os mais indicados. Eles já dispunham de edições abundantes às quais se apegavam, apesar da arbitrária disposição das notas. Por outro lado, os manuscritos de Nietzsche estavam em Weimar, isto é, na Alemanha Oriental – onde os italianos foram mais bem recebidos do que os alemães ocidentais o seriam. Por último, sem dúvida, [179] os alemães estavam constrangidos, na medida em que haviam aceitado a edição de A Vontade de Potência realizada pela irmã de Nietzsche. Elisabeth Förster-Nietzsche fez um trabalho muito nocivo ao favorecer todas as interpretações nazistas. Ela não falsificou os textos, porém sabemos que há outros meios de deformar um pensamento, nem que seja operando uma triagem arbitrária nos papéis de um autor. Conceitos nietzscheanos como os de “força” ou de “senhor” são bastante complexos para serem traídos por semelhantes recortes.
            – As traduções são novas?
            G.D. – Inteiramente novas. Isto é importante sobretudo para os escritos do período final (houve más leituras, das quais Elisabeth Nietzsche e Peter Gast são responsáveis). Os dois primeiros volumes a serem publicados, Le Gai savoir e Humain trop humain, têm como tradutores Pierre Klossowski e Robert Rovini. Isso não significa de modo algum que as traduções anteriores, de Henri Albert, de Geneviève Bianquis, eram ruins, ao contrário; mas, finalmente dispostos a publicar os apontamentos de Nietzsche juntamente com suas obras, era preciso retomar tudo e unificar a terminologia. A esse respeito, é interessante saber como Nietzsche foi introduzido na França: não pela “direita”, mas por Charles Andler e Henri Albert, que representavam toda uma tradição socialista, com aspectos anarquizantes.
            – O senhor considera que há hoje na França um “retorno a Nietzsche”, e, em caso afirmativo, por quê?
            G.D. – É complicado. Talvez tenha se operado uma mudança, ou ela esteja em vias de ocorrer, nos modos de pensar que nos eram familiares desde a Liberação. Pensava-se sobretudo dialeticamente, historicamente. Parece que há atualmente um refluxo do pensamento dialético em favor do estruturalismo, por exemplo, e também de outros sistemas de pensamento.
            Foucault insiste na importância das técnicas de interpretação. É possível que na idéia atual de interpretação haja algo que ultrapasse a oposição dialética entre “conhecer” e “transformar” o mundo. O intérprete por excelência é Freud, mas é também Nietzsche, de uma outra maneira. A idéia de Nietzsche é que as coisas e as ações [180] já são interpretações. Então, interpretar é interpretar interpretações, e com isso já  é modificar as coisas, “mudar a vida”. Para Nietzsche é evidente que a sociedade não pode ser uma última instância. A última instância é a criação, a arte: ou, antes, a arte representa a ausência e a impossibilidade de uma última instância. Desde o início de sua obra, Nietzsche estabelece que há fins “um pouco mais elevados” que os do Estado, ou da sociedade. Toda sua obra está instalada numa dimensão que não é a do histórico, mesmo compreendido dialeticamente, nem a do eterno. Esta nova dimensão, que simultaneamente está no tempo e age contra o tempo, ele a designa o intempestivo. É aí que a vida como interpretação toma sua fonte. A razão do “retorno a Nietzsche” talvez seja a redescoberta desse intempestivo, dessa dimensão a um só tempo distinta da filosofia clássica em seu empreendimento “eternitário”, e da filosofia dialética em sua compreensão da história: um elemento singular de perturbação. 
            – Poderíamos falar, portanto, de um retorno ao individualismo?
            G.D. – Um individualismo estranho, onde sem dúvida a consciência moderna se reconhece um pouquinho. Estranho, pois esse individualismo em Nietzsche é acompanhado por uma viva crítica das noções de “eu” e de “eu”NRT . Há para Nietzsche uma espécie de dissolução do eu. A reação contra as estruturas opressivas já não se faz, para ele, em nome de um “eu” ou de um “eu”, mas, ao contrário, como se o “eu” ou o “eu” fossem cúmplices delas.
            Será preciso dizer que o retorno a Nietzsche implica um certo estetismo, uma certa renúncia à política, um “individualismo” tão despolitizado quanto despersonalizado? Talvez não. A política também é questão de interpretação. O intempestivo, do qual falamos há pouco, jamais se reduz ao elemento político-histórico. Porém ocorre às vezes, em momentos grandiosos, que eles coincidam. Quando pessoas morrem de fome na Índia, esse desastre é histórico-político. Mas quando um povo luta por sua libertação, há sempre coincidência entre atos poéticos e acontecimentos históricos ou ações políticas, a encarnação gloriosa de algo sublime ou intempestivo. As grandes coincidências são, por exemplo, a gargalhada de Nasser nacionalizando o canal de Suez, ou [181] sobretudo os gestos inspirados de Castro, e essa outra gargalhada, a de Giap entrevistado pela televisão. Ali, há algo que lembra as injunções de Rimbaud e de Nietzsche e que vem duplicar Marx – uma alegria artista que coincide com a luta histórica. Há criadores em política, movimentos criadores, que por um momento se interpõem na história. Hitler, ao contrário, carecia singularmente do elemento nietzscheano. Hitler não é Zaratustra; e Trujillo tampouco. Eles representam antes o que Nietzsche chama de “o macaco de Zaratustra”. Não basta tomar o poder para ser, como diz Nietzsche, um “senhor”. Com freqüência são justamente os “escravos” que tomam o poder, e que o mantêm, e que permanecem escravos ao preserva-lo.
            Segundo Nietzsche, os senhores são os Intempestivos, aqueles que criam, e que destroem para criar, não para conservar. Nietzsche diz que sob os grandes acontecimentos ruidosos, há pequenos acontecimentos silenciosos, que são como a formação de novos mundos: também aí é a presença do poético sob o histórico. Na França mesmo quase não temos acontecimentos ruidosos. Eles estão longe, e terríveis no Vietnã. Porém, restam-nos pequenos acontecimentos imperceptíveis, que talvez anunciem uma saída para fora do deserto atual. Pode ser que o retorno de Nietzsche seja um desses “pequenos acontecimentos” e já uma reinterpretação do mundo.


Tradução de
Peter Pál Pelbart



que entrevejo todo dia, mas é tão difícil viver quanto é difícil morrer. Bom, vou me deitar e continuar a ler meu livro de Laing, pois, decididamente, não tenho ânimo nenhum hoje » (véspera do suicídio). Há chances de que diretor e guardas digam : chantagem, más leituras e simulação.

H.M. era homossexual. Há pessoas que pensam que um homossexual tem uma situação menos difícil na prisão, já que todos se tornarão um. É o contrário. A prisão é realmente o último lugar onde se possa ser « naturalmente » homossexual, sem ser pego num sistema de provas vexatórias e de prostituição no qual a administração entra voluntariamente no jogo de dividir entre si os detidos. No entanto,  H.M. havia conseguido tornar-se estimado e querido pelos outros presos, sem esconder nada de sua homossexualidade. E foi precisamente graças ao relatório de um vigia, depois de uma altercação, que H.M. foi mandado à solitária por « flagrante delito». Perguntamos com que direito a prisão se permite julgar e  punir a homossexualidade.
O prisioneiro pensa que nunca o deixaram tranqüilo; e na verdade isso se lhe acrescenta de novo, com uma obstinação constante. Mesmo a prisão tem ainda uma prisão mais secreta, mais grotesca e mais dura, a solitária, que a « reforma » Pleven se cuida para não tocar DLc. Na ocasião de sua condenação anterior por tentativa de assalto, e tendo já cumprido sua pena, quarenta e cinco dias de multa lhe são acrescentados (não-pagamento das despesas da justiça) e, logo, no momento de sair, ele é pego novamente devido à queixa de um guarda que, depois de tê-lo derrubado a golpes, afirma ter sido [343] atacado por ele. Ou então, tendo tomado drogas, tendo começado uma psicoterapia, estando no hospital ainda por uma outra razão (hepatite viral), é perseguido no próprio hospital por um provocador que lhe telefona, implora-lhe para que consiga algumas placas de ópio, não pára de insistir e o denuncia à polícia. Como se faz de um usuário de droga, novo ou antigo, um « perigoso traficante » - de acordo com as estatísticas da polícia e os comentários dos jornais reacionários do tipo do Aurore. Preso em seguida, nova prisão preventiva, nova provocação, um « flagrante delito » de homossexualidade o leva à solitária onde ele se mata. O que está em causa não é apenas o sistema social em geral com suas exclusões e suas condenações, mas o conjunto de provocações deliberadas e personificadas através das quais esse sistema funciona, garante a sua ordem, através das quais fabrica seus excluídos e seus condenados, de acordo a uma política que é aquela do Poder, da polícia e da administração. Algumas pessoas são diretamente e pessoalmente responsáveis pela morte desse detento.
. . .
Tradução de
Francisca Maria Cabrera


[344]
33
O FRIO E O QUENTEDL
[1973]
                                                                                                                     
O modelo do pintor é a mercadoria. Todos os tipos de mercadorias: têxteis, balneárias, nupciais, eróticas, alimentares. O pintor está sempre presente, silhueta preta: ele parece estar olhando. O pintor e o amor, o pintor e a morte, o pintor e a comida, o pintor e o carro: mas de um modelo para o outro, a medida de tudo é o único modelo Mercadoria que circula com o pintor. Os quadros, na construção de cada qual há uma cor dominante, formam uma série. Podemos fazer como se a série se abrisse com o quadro Rouge de cadmium, e se fechasse com o Vert Veronèse, representando o mesmo quadro, mas desta vez exposto na galeria do marchand, de modo que o pintor e seu quadro devêm eles próprios mercadorias. Ou podemos imaginar outros inícios e outros fins. De um quadro para o outro, de qualquer maneira, um passeio que não é apenas o do pintor através das lojas, mas uma circulação que é a do valor de troca, uma viagem que é a das cores, e em cada quadro uma viagem, uma circulação de tons.
Nada é neutro, nem passivo. No entanto, o pintor não quer dizer nada, nem aprovação, nem ira. As cores não querem dizer nada: o verde não é esperança; nem o amarelo, tristeza; nem o vermelho, alegria. Nada senão algo quente ou algo frio, algo quente e algo frio. Do material na arte: Fromanger pinta, isto é, põem um quadro em funcionamento. Quadro-máquina de um artista mecânico. O artista mecânico de uma civilização: como ele faz o quadro funcionar? [345]
O pintor, acompanhado por um fotógrafo da imprensa, identificou primeiro os lugares: a rua, uma loja, pessoas. Não se trata de apreender uma atmosfera. Seria mais uma iminência sempre suspensa, a uniforme possibilidade que surja em qualquer lugar algo como um novo assassinato Kennedy, dentro de um sistema de indiferenças onde circula o valor de troca. O fotógrafo tira várias fotografias incolores, o pintor escolherá aquela que lhe convém. Ele terá escolhido a foto em correspondência com uma outra escolha, a de uma cor dominante única tal como ela sai de uma bisnaga (as duas escolhas se confortam). O pintor projeta a foto sobre a tela, e pinta a foto projetada. Analogia com certas técnicas de tapeçaria. O pintor pinta às escuras, durante horas. Sua atividade noturna revela uma verdade eterna da pintura: que jamais o pintor pintou sobre a superfície branca da tela, para reproduzir um objeto funcionando como modelo, mas que sempre pintou sobre uma imagem, um simulacro, uma sombra do objeto, para produzir uma tela cujo próprio funcionamento inverte a relação do modelo com a cópia, e que faz, precisamente, que não haja mais nem cópia, nem modelo. Levar a cópia, e a cópia de cópia, até o ponto em que ela se reverte e produz o modelo: Pop’Art ou pintura para um “mais de realidade”.
Portanto, o pintor pinta com a cor escolhida que sai da bisnaga, e que ele mistura apenas com branco de zinco. Esta cor, em relação com a foto, pode ser quente como o Rouge Chine vermillonné ou o Violet de Bayeux, fria como o Vert Aubusson ou o Violt d’Egypte. Ele começará pelas zonas mais claras (as mais misturadas com branco), construindo seu quadro numa subida que proíbe ao mesmo tempo as voltas atrás, as manchas e as fusões. Série ascendente irreversível feita de superfícies de cor uniforme, e que sobe em direção da cor pura jorrada da bisnaga, ou a reencontra, como se o quadro devesse no final entrar na própria bisnaga.
Mas não é ainda assim que o quadro funciona. Pois o frio ou o quente de uma cor definem apenas um potencial, que só será efetuado no conjunto das relações com outras cores. Por exemplo, uma segunda cor vem afetar um elemento preciso da foto, um personagem que passa: não somente é mais clara ou mais [346] escura do que a dominante, mas, quente ou fria por sua vez, ela pode aquecer ou resfriar a dominante. Um circuito de troca e de comunicação começa a se estabelecer dentro do quadro, de um quadro para o outro. Seguimos o Violet de Bayeux, com uma gama ascendente quente: um homenzinho, atrás, é constituído verde e frio, para, por oposição, aquecer mais o roxo potencialmente quente. Não é suficiente para que a vida passe. Um homem amarelo e quente, na frente, vai induzir ou re-induzir o roxo, fazê-lo passar ao ato por intermédio do verde, e por cima do verde. Mas assim o verde frio está agora sozinho, posto fora do circuito, como se tivesse esgotado sua função de um só golpe. É preciso sustentá-lo, recolocá-lo no quadro, reanimá-lo, reativá-lo no conjunto do quadro, com um terceiro personagem azul frio atrás do amarelo. Acontece, em outros casos, que essas cores secundárias e circulatórias sejam agrupadas sobre um só personagem, que elas dividem em fatias ou em arcos. Acontece também, às vezes, que a foto manifeste um ponto de resistência a sua transformação em quadro vivo. Ela deixa um resíduo, como em Violet de Bayeux, onde um último personagem no grupo da frente permanece indeterminado. É ele que será tratado em preto, como um duplo potencial atualizando-se tanto num sentido e no outro, ou que pode “fugir” em direção ao azul frio como para o quente roxo. O resíduo encontra-se reinjetado no quadro, se bem que o quadro funciona a partir do desperdício da foto não menos que a foto a partir das cores constitutivas do quadro.
Devemos levar em conta um outro elemento, presente desde o início em todos os quadros, pulando de um quadro para o outro: o pintor preto, no primeiro plano. O pintor que pinta no escuro é ele mesmo preto: silhueta maciça, arcada saliente, queixo duro e pesado, cabelo-corda, ele observa as mercadorias. Espera. Mas o preto não existe, o pintor preto não existe. O preto não é nem um potencial, à maneira de uma cor quente ou fria. Ele é um potencial em segundo grau, porque é um e outro, frio puxado para o azul, quente puxado para o vermelho. Este preto que está aí com tanta força não tem existência, mas uma função primordial no quadro: quente ou frio, ele será o inverso da cor dominante, ou o mesmo que esta cor, para aquecer, por exemplo, [347] o que estava frio. Seja o quadro Vert Aubusson: o pintor preto olha e ama o modelo sentado, mulher verde morta e fria. Ela é bonita em sua morte. Então, para tornar esta morte quente, é preciso extrair algo do amarelo incluído neste verde, e para isso insistir no azul como complementar do amarelo, portanto resfriar esse pintor preto para aquecer a morte verde. (Ver também como, em Rouge de cadmium clair, as manequins recém casadas são muito discretamente providas de caveiras, e, em Violet de Mars, as mortas porta-maiô são elegantes vampiros envolvidos numa relação variável com a silhueta preta). Em suma, o pintor preto tem no quadro duas funções, seguindo dois circuitos: silhueta pesada imóvel paranóica que fixa a mercadoria tanto quanto é fixado por ela; mas também sombra esquizo móvel, em deslocamento perpétuo com relação a si mesmo, percorrendo toda a escala do frio e do quente, para aquecer o frio e resfriar o quente, viagem incessante sem sair do lugar.
O quadro e a série dos quadros não querem dizer nada, mas funcionam. Funcionam com pelo menos esses quatro elementos (e há muitos outros): a gama ascendente irreversível da cor dominante que traça no quadro todo um sistema de conexões, marcado por pontos brancos; a rede das cores secundárias, que forma, ao contrário, as disjunções do frio e do quente, todo um jogo reversível de transformações, de reações, de inversões, de induções, aquecimentos e resfriamentos; a grande conjunção do pintor preto, que inclui em si o disjunto e distribui as conexões; e, se for preciso, o resíduo de foto que reinjeta no quadro o que ia escapar dele. Uma estranha vida circula, força vital.
É que há dois circuitos coexistentes, imbricados um no outro. O circuito da foto, ou das fotos, que atua aqui como suporte de mercadoria, circulação do valor de troca, e cuja importância está em mobilizar alguns indiferentes. Indiferença dos três planos do quadro: indiferença da mercadoria no último plano, equivalência do amor, da morte ou do alimento, do nu e do vestido, da natureza morta e da máquina; indiferença dos transeuntes, imóveis ou fugitivos, como o homem azul e a mulher verde do Violet de Mars, ou o homem que passa comendo diante das noivas; [348] indiferença do pintor preto no primeiro plano, sua equivalência indiferente a qualquer mercadoria e a qualquer transeunte. Mas talvez este circuito de indiferenças respectivas, refletidas uma dentro da outra, trocadas uma pela outra, introduz algo como uma verificação: o sentimento que algo não está certo, não pára de romper o equilíbrio aparente, cada um conduzindo seu próprio negócio na profundidade dividida do quadro, a mercadoria com a mercadoria, os homens com os homens, o pintor com o pintor. Circuito de morte onde cada um vai para seu próprio túmulo, ou já está lá. Mas é neste ponto de ruptura, presente por toda parte, que o outro circuito se conecta, recuperando o quadro inteiro, reorganizando-o, misturando os planos distintos em anéis de uma espiral que traz o fundo para frente, que faz reagir os elementos uns sobre os outros, num sistema de induções simultâneas: circuito vital, desta vez, com seu sol negro, sua cor ascendente, seus frios e quentes radiantes. E sempre o circuito da vida se alimenta do circuito de morte, leva-o consigo para triunfar sobre ele.
É difícil perguntar para um pintor: porque você pinta? A pergunta não tem sentido. Mas como você pinta, como o quadro funciona, e, na mesma ocasião, o que você quer ao pintar? Supomos que Fromanger responde: eu pinto no escuro, e o que eu quero é o frio e o quente, e eu o quero dentro das cores, através das cores. Um cozinheiro pode também querer o frio e o quente, um drogado pode também querer o frio e o quente. Pode ser que, para Fromanger, seus quadros sejam a cozinha dele, ou a droga dele. Hot e cool, quente e frio, eis o que se pode arrancar da cor como de outra coisa (da escrita, da dança e música, da mídia). Inversamente, pode-se arrancar outra coisa da cor, e nunca é fácil arrancar qualquer coisa que seja. Arrancar, extrair, isso quer dizer que a operação não se faz por si só. Como o mostra Mc LuhanDLa, quando o meio está quente, nada circula e comunica a não ser pelo frio que comanda qualquer participação ativa, aquela do pintor a seu modelo, aquela do espectador a seu pintor, aquela do modelo a sua cópia. O que conta são as inversões perpétuas do hot e do cool, segundo as quais acontece que o quente refresca [349] o frio, o frio esquenta o quente: aquecer um forno amontoando bolas de neve.
O que há de revolucionário nesta pintura? Talvez seja a ausência radical de amargura, e de trágico, e de angústia, de toda essa merda dos falsos grandes pintores ditos testemunhos de sua época. Todos esses fantasmas fascistas ou sádicos que fazem passar um pintor por crítico agudo do mundo moderno, enquanto ele goza apenas de seus próprios ressentimentos, de suas próprias complacências e daquelas de seus compradores. Às vezes é abstrato, e não é menos sujo e triste, repugnante. Como dizia o guarda de coutada ao pintor: “Todos esses tubos e vibrações de chapa ondulada são mais bobos que tudo, e bastante sentimentais; eles mostram muita piedade consigo mesmo e muita vaidade nervosa”. Fromanger faz o contrário, algo vital e potente. É talvez nesse sentido que ele não é amado pelo mercado, nem pelos estetas. Seus quadros são cheios de vitrines, ele coloca sua silhueta por toda parte: não há aí, entretanto, nenhum espelho para ninguém. Contra o fantasma que mortifica a vida, que a direciona à morte, ao passado, mesmo quando ele opera com modern style: opor ao fantasma um processo de vida sempre conquistado contra a morte, sempre arrancado ao passado. Fromanger sabe da nocividade do seu modelo, da astúcia da mercadoria, da eventual tolice de um transeunte, do ódio que pode cercar um pintor assim que ele tem atividades políticas, do ódio que ele mesmo pode sentir. Mas, dessa nocividade, dessa astúcia, dessa feiúra, desse ódio, ele não faz um espelho narcisístico para uma hipócrita reconciliação generalizada, imensa piedade sobre si mesmo e sobre o mundo. Do que é feio, repugnante, odiento e odioso, ele sabe extrair os frios e os quentes que formam uma vida para amanhã. Imaginemos a fria revolução como devendo aquecer o mundo superaquecido de hoje. Hiper-realismo, por que não, se se trata de arrancar do real triste e opressivo um “mais de realidade” para uma alegria, para uma detonação, para uma revolução. Fromanger gosta da mulher mercadoria, verde-morta, que ele faz viver ao azular o preto do pintor. Talvez até a dama roxa que espera, triste, não se sabe qual cliente. Ele gosta de tudo que pintou. O que não supõe abstração alguma, consentimento algum, mas muita extração, [350] muita força extrativa. É curioso: a que ponto um revolucionário só age em função do que ele ama no próprio mundo que ele quer destruir. Só há revolucionário alegre, e só há pintura estética e politicamente revolucionária alegre. Fromanger sente e faz o que Lawrence diz: “Para mim, há alegria num quadro, ou não é um quadro. Os quadros mais sombrios de Piero della Francesca, de Sodoma ou de Goya, exprimem essa alegria indescritível que acompanha a verdadeira pintura. Os críticos modernos falam muito em feiúra, mas eu nunca vi um verdadeiro quadro que me parecesse feio. O tema pode ser feio, pode ter uma qualidade aterrorizante, desesperadora, quase repugnante, como em El Greco. Mas tudo isso é estranhamente varrido pela alegria do quadro. Nenhum artista, nem o mais desesperado, pintou um quadro sem sentir essa estranha alegria que acarreta a criação da imagemDLb” – isto é, a transformação da imagem sobre o quadro, a mudança que o quadro produz na imagem.
. . .
Tradução de
Christian Pierre Kasper



 [381]
36
CINCO PROPOSIÇÕES SOBRE A PSICANÁLISE DL
[1973]

Gostaria de apresentar cinco proposições concernentes à psicanálise. A primeira é a seguinte: a psicanálise, hoje em dia, apresenta um certo risco político que lhe é próprio e que se distingue dos perigos implicados pelo velho hospital psiquiátrico. Este constitui um lugar de enclausuramento localizado; a psicanálise, ao contrário, funciona ao ar livre. A psicanálise tem, de certa maneira, a posição do mercador na sociedade feudal segundo Marx: funcionando nos poros livres da sociedade, não somente no consultório privado, mas nas escolas, nas instituições, no que diz respeito à setorização etc. Este funcionamento coloca-nos numa situação singular em relação à empresa psicanalítica. O fato é que a psicanálise fala-nos muito do inconsciente; mas, de uma certa maneira, é sempre para reduzi-lo, destruí-lo, conjurá-lo, concebê-lo como uma espécie de parasita da consciência. Para a psicanálise, pode-se dizer que há sempre desejos demais. Para nós, ao contrário, não há nunca desejos o bastante. Não se trata, por um método ou outro, de reduzir o inconsciente; trata-se, para nós, de produzir inconsciente: não há um inconsciente que estaria já por aí, o inconsciente deve ser produzido e deve ser produzido politicamente, economicamente, historicamente. A questão é: [382] em que lugar, em quais circunstâncias, com o auxílio de que acontecimentos, pode haver produção de inconsciente? Por produção de inconsciente entendemos exatamente a mesma coisa que a produção de desejo num campo social histórico ou a aparição de enunciados e enunciações de um gênero novo.
Minha segunda proposição é que a psicanálise é uma máquina já pronta, constituída com antecedência para impedir as pessoas de falarem, portanto, de produzirem enunciados que lhes correspondam e que correspondam aos grupos com os quais eles encontram afinidades. Ao se fazer analisar, tem-se a impressão de falar. Porém, mesmo que se fale à vontade, toda a máquina analítica é feita para suprimir as condições de uma verdadeira enunciação. O que quer que se diga é preso numa espécie de torniquete, de máquina interpretativa, de modo que o paciente nunca poderá ter acesso ao que ele tem realmente a dizer. O desejo ou o delírio (que são profundamente a mesma coisa), o desejo-delírio é por natureza investimento libidinal de todo um campo histórico, de todo um campo social. O que se delira são as classes, os povos, as raças, as massas, as matilhas. Ora, produz-se uma espécie de esmagamento graças à psicanálise, que dispõe de um código pré-existente. Este código é constituído por Édipo, pela castração, pelo romance familiar; o conteúdo mais secreto do delírio, ou seja, essa deriva do campo histórico e social, será esmagado de tal sorte que nenhum enunciado delirante, correspondente ao povoamento do inconsciente, poderá passar através da máquina analítica. Cito apenas dois exemplos: o exemplo célebre do presidente Schreber, cujo delírio diz respeito inteiramente às raças, à história, às guerras. Freud não leva isso em conta e reduz exclusivamente seu delírio às relações com seu pai. Outro exemplo, o do homem dos lobos: quando o Homem dos lobos sonha com seis ou sete lobos, o que é por definição uma matilha, a saber, um certo tipo de grupo, Freud só pensa em reduzir esta multiplicidade, em [383] reconduzir tudo a um só lobo, que será forçosamente o pai. Toda enunciação coletiva libidinal, que estava presa ao delírio do Homem dos lobos, é esmagada: o Homem dos lobos não poderá sustentar, nem mesmo formular, qualquer dos enunciados que são os mais profundos para ele.
Minha terceira proposição é que, se a psicanálise procede assim, é porque ela dispõe de uma máquina automática de interpretação. A máquina de interpretação pode ser resumida da seguinte maneira: o que quer que se diga, o que se diz quer dizer outra coisa. Não é possível denunciar suficientemente os danos produzidos por essas máquinas. Quando me explicam que o que eu digo quer dizer coisa distinta do que digo, produz-se graças a isso uma clivagem do eu como sujeito. Esta clivagem é bem conhecida: o que digo remete a mim como sujeito de enunciado, o que quero dizer remete a mim (em minhas relações com o analista) como sujeito de enunciação. Esta clivagem é concebida pela própria psicanálise como base da castração, e impede toda produção de enunciados. Por exemplo, em certas escolas para crianças com dificuldades, relativas ao caráter ou mesmo ou mesmo psicopatas, a criança, em suas atividades de trabalho ou de brincadeira, é colocada em relação com seu educador, e é tomada aí como sujeito de enunciado; em sua psicoterapia, ela é posta em relação com o analista ou o terapeuta, sendo aí tomada enquanto sujeito de enunciação. O que quer que ela faça no grupo, na esfera do seu trabalho e de suas brincadeiras, será referido a uma instância superior, a do psicoterapeuta que será encarregado de interpretar sozinho, de sorte que a própria criança é clivada, não pode fazer passar qualquer enunciado do que lhe concerne realmente em suas relações ou com seu grupo. Ela terá a impressão de falar, mas não poderá dizer uma só palavra do que lhe toca essencialmente. De fato, o que produz enunciados em cada um de nós, não se deve a nós enquanto sujeitos, mas a outra coisa, às multiplicidades, às massas, e às matilhas, aos povos e às tribos, aos agenciamentos coletivos que nos atravessam, que nos são interiores e que nós não conhecemos porque fazem parte do nosso próprio inconsciente. A tarefa de uma verdadeira análise, de uma análise antipsicanalítica, é descobrir esses agenciamentos coletivos de enunciação, esses encadeamentos coletivos, esses povos que estão em nós e que nos fazem falar, e a partir dos quais nós [384] produzimos enunciados. É nesse sentido que opomos todo um campo de experimentação, de experimentação pessoal ou de grupo, às atividades de interpretação psicanalítica.
Minha quarta proposição, para ir rápido, é que a psicanálise implica uma relação de forças bastante particular. O livro recente de Castel, Le PsychanalismeDLa, mostra-o muito bem. Essa relação de forças passa pelo contrato, forma burguesa liberal particularmente duvidosa. Ele conduz à "transferência", e culmina no silêncio do analista. Pois o silêncio do analista é a maior e a pior das interpretações. A psicanálise passa por um pequeno número de enunciados coletivos, que são os do próprio capitalismo, concernentes à castração, à falta, à família, e ela tenta fazer passar esse pequeno número de enunciados coletivos próprios do capitalismo por enunciados individuais dos próprios pacientes. Dizemos que é preciso fazer exatamente o inverso, quer dizer, partir dos verdadeiros enunciados individuais, dar às pessoas condições, inclusive condições materiais, de produção de seus enunciados individuais para descobrir os verdadeiros agenciamentos coletivos que os produzem.
Minha última proposição é que não desejamos, no que nos diz respeito, participar de tentativa alguma que se inscreva numa perspectiva freude-marxista. E isto por duas razões. A primeira é que, finalmente, uma tentativa freude-marxista procede em geral por um retorno às origens, ou seja, aos textos sagrados, textos sagrados de Freud, textos sagrados de Marx. Nosso ponto de partida deve ser totalmente diferente: não se dirigir a textos sagrados que se deveria mais ou menos interpretar, mas se dirigir à situação tal como ela é, situação do aparelho burocrático no marxismo, do aparelho burocrático na psicanálise, tentativa de subverter esses aparelhos. O marxismo e a psicanálise, de dois modos diferentes, falam em nome de uma espécie de memória, de uma cultura da memória, e falam também de duas maneiras diferentes em nome das exigências de um desenvolvimento. Acreditamos, ao contrário, que é preciso falar em nome de uma força positiva do esquecimento, em nome do que é para cada um [385] seu próprio subdesenvolvimento, o que David Cooper chama tão bem de o terceiro mundo íntimo de cada umDLb. A segunda razão que nos distingue de toda tentativa freude-marxista é que tais tentativas se propõem sempre a reconciliar duas economias: economia política e economia libidinal ou desejante. Mantêm-se também em Reich essa dualidade e essa tentativa de conciliação.
Nosso ponto de vista é, ao contrário, que há apenas uma economia e que o problema de uma verdadeira análise antipsicanalítica é mostrar como o desejo inconsciente investe as formas dessa economia. A própria economia é que é economia política e economia desejante.

Discussão
Um participante levanta uma questão sobre a memória no freude-marxismo e a força positiva do esquecimento.
Malgrado meu apelo para não voltar aos textos, eu penso em dois belos textos de Nietzsche, que fazem uma distinção entre o esquecimento como força de inércia e o esquecimento como força ativaDLc. O esquecimento como força ativa é a potência de acabar por sua própria conta com alguma coisa. Neste caso, o esquecimento se opõe à ruminação do passado que nos liga, do que nos liga a esse passado, mesmo que essa ligação vise desenvolvê-lo, levá-lo mais longe. Portanto, como distinguimos duas formas de esquecimento, das quais uma é uma espécie de força de inércia reativa, e a outra, uma força de esquecimento positiva, é evidente que o esquecimento revolucionário, o esquecimento de que eu falava, é o segundo esquecimento: é ele que constitui uma atividade real ou que pode fazer parte de atividades políticas reais. É da mesma maneira que o revolucionário rompe graças ao esquecimento e que ele permanece impermeável à objeção que se faz a ele constantemente: "Isso existiu, portanto, existirá sempre".
O esquecimento revolucionário pode ser aproximado de um outro tema freqüente, o de uma fuga ativa que se opõe a uma fuga passiva de uma outra espécie. Quando [386], por exemplo, Jackson, em sua prisão, diz: "Sim, pode ser que eu fuja, mas ao longo de minha fuga, procuro uma arma!"DLd; isso é a fuga ativa revolucionária oposta a outras fugas, que são fugas capitalistas ou fugas pessoais etc.
Um participante pede um esclarecimento sobre a noção de esquecimento a propósito da relação entre marxismo e freudismo.
No marxismo apareceu desde o começo uma certa cultura da memória; mesmo a atividade revolucionária devia proceder a esta capitalização da memória das formações sociais. É, se se quiser, o lado hegeliano conservado por Marx, inclusive n'O Capital. Na psicanálise, a cultura da memória é ainda mais evidente. De outro lado, o marxismo, como a psicanálise, é invadido por uma certa ideologia do desenvolvimento: desenvolvimento psíquico do ponto de vista da psicanálise, desenvolvimento social ou mesmo desenvolvimento da produção do ponto de vista do marxismo. Antes, por exemplo, em certas formas de luta operária no século XIX, que foram esmagadas pelo marxismo no seu começo (não penso apenas nos Utopistas), o apelo à luta se fazia, ao contrário, pela necessidade de esquecer, a partir de uma força ativa de esquecimento: nenhuma cultura da rememoração, nenhuma cultura do passado, mas um apelo ao esquecimento como condição de experimentação. Certos grupos americanos, hoje, de modo algum se ocupam de um retorno a Freud nem a Marx; ali também há uma espécie de cultura do esquecimento como condição de toda experimentação nova. A utilização do esquecimento como força ativa, para partir do zero, para sair do pesadume universitário que marcou tão profundamente o freude-marxismo, é algo praticamente muito importante. Enquanto a cultura universitária sempre falou do interior de seu desenvolvimento que ela nos chama a perseguir e a prolongar, a contra-cultura reencontra hoje a idéia de que, se temos algo a dizer, não é em função de nosso desenvolvimento, qualquer que ele seja, mas em função e a partir de nosso subdesenvolvimento. A revolução não consiste no fato de se inscrever no movimento de desenvolvimento [387] e na capitalização da memória, mas na manutenção da força de esquecimento e da força de subdesenvolvimento como forças propriamente revolucionárias.
Um participante (G. Jervis) destaca uma diferença de conteúdo em relação a O Anti-Édipo, por exemplo o desaparecimento da noção de "esquizo-análise" em favor da de "análise anti-psicanalítica" e nota uma evolução sensível: não se tata de criticar o Édipo, mas a psicanálise. Qual a razão desta evolução?
Resposta - Jervis tem razão. Nem Guattari nem eu não somos muito apegados à continuação nem mesmo à coerência do que escrevemos. Nós desejaríamos o contrário, desejaríamos que a seqüência de O Anti-Édipo estivesse em ruptura com o que precede, com o primeiro tomo, e depois, se há coisas que não estão bem no primeiro tomo, não tem importância. Quero dizer que não fazemos parte dos autores que concebem o que escrevem como uma obra que deve ser coerente; se mudamos, é muito bom, então não é preciso que falemos do passado. Mas Jervis diz duas coisas que são importantes: atualmente, nós não responsabilizamos tanto o Édipo, mas a instituição, a máquina psicanalítica no seu conjunto. É evidente que a máquina psicanalítica compreende dimensões além do Édipo, há para nós, portanto, razões para que isso não seja o problema essencial. Jervis acrescenta que a direção de nosso trabalho atual é mais político e que nós renunciamos esta manhã a utilizar o termo esquizo-análise. Gostaria de dizer várias coisas a esse respeito, do modo mais modesto possível. Quando um termo é lançado, e que ele tem um mínimo de sucesso, como aconteceu com "máquina desejante" ou com "esquizo-análise", ou ele é retomado e aí é bem desagradável, é já a recuperação, ou então se renuncia a ele, e é preciso encontrar outros, para deslocar tudo. Há palavras que Félix e eu sentimos que é urgente não mais utilizá-las: esquizo-análise, máquina desejante, é horrível, se nós as utilizamos, estamos presos na armadilha. Não sabemos muito bem, não acreditamos nas palavras; quando utilizamos uma palavra, temos vontade de dizer: se esta palavra não serve a vocês, encontrem outra, a gente sempre se arranja. As palavras são substitutos possíveis ao infinito. Quanto ao conteúdo [388] do que fazemos, é verdade que o primeiro tomo de  O Anti-Édipo consistiu no fato de estabelecer espécies de dualidades. Havia, por exemplo, uma dualidade entre a paranóia e a esquizofrenia, e pensamos descobrir uma dualidade de regimes entre um regime paranóico e um regime esquizofrênico. Ou então, essa dualidade que tentamos estabelecer entre o molar e o molecular. Era preciso passar por aí. Não digo que nós ultrapassamos isso, mas isso não nos interessa mais. Presentemente, o que nós gostaríamos de tentar mostrar é como um está ancorado ao outro, que um está ligado ao outro. Quer dizer, como, finalmente, é no seio dos grandes conjuntos paranóicos que se organizam pequenas fugas de esquizofrenia. Há por vezes exemplos surpreendentes em política. Tomo o exemplo recente do que acontece na América: há a guerra do Vietnam; ela é gigantesca, é o acionamento de uma gigantesca máquina paranóica, o famoso complexo militar-industrial, todo um regime de signos políticos, econômicos. Todo o mundo diz "bravo", exceto um pequeno número, todos os países dizem "muito bem", isso não escandaliza ninguém. Não escandaliza ninguém, salvo um pequeno número de pessoas denunciadas como esquerdistas. Depois, eis que acontece um pequeno caso, nada muito importante, uma história de espionagem, de roubo, de polícia e de psiquiatria, entre um partido americano e o outro. Há fugas. E toda a brava gente que aceita muito bem a guerra no Vietnam, que aceita muito bem essa grande máquina paranóica, começa a dizer: o presidente dos EUA não respeita mais as regras do jogo. Uma pequena fuga esquizofrênica se implantou no grande sistema paranóico, os jornais perdem a cabeça ou fingem perdê-la.. Por que não as ações cotadas na Bolsa? O que nos interessa atualmente são as linhas de fuga nos sistemas, as condições nas quais essas linhas formam ou suscitam forças revolucionárias, ou permanecem anedóticas. As probabilidades revolucionárias não consistem em contradições do sistema capitalista, mas em movimentos de fuga que o minam, sempre inesperados, sempre renovados. Reprovaram-nos, na medida em que utilizamos a palavra esquizo-análise, por confundir o esquizofrênico e o revolucionário. Contudo, nós tomamos muitas precauções em diferenciá-los.
Um sistema como o capitalismo foge por todos os lados, ele foge, e depois o capitalismo colmata, faz nós, faz liames para impedir que as fugas sejam muito numerosas. Um escândalo aqui, uma fuga de capitais ali etc. E há também fugas de um outro tipo: há as comunidades, há os marginais, os delinqüentes, há os drogados, as fugas de drogados, há fugas de todo tipo, há fugas esquizofrênicas, há pessoas que fogem de maneira muito diferente. Nosso problema (nós não somos completamente estúpidos, não dizemos que isso será suficiente para fazer a revolução) é: dado um sistema que foge realmente por todos os lados e que, ao mesmo tempo, não pára de impedir, de reprimir ou de colmatar as fugas por todos os meios, como fazer para que essas fugas não sejam simplesmente tentativas individuais ou pequenas comunidades, mas que elas formem verdadeiramente máquinas revolucionárias? E por que razão, até o presente, as revoluções foram tão mal? Não há revolução sem uma máquina de guerra central, centralizadora. Não se luta, não se duela a socos, é preciso uma máquina de guerra que organize e unifique. Mas, até o presente, não existiu no campo revolucionário uma máquina que não reproduzisse, a seu modo, uma outra coisa, ou seja, um aparelho de Estado, o organismo mesmo da opressão. Eis o problema da revolução: como uma máquina de guerra poderia dar conta de todas as fugas que se fazem no sistema sem esmagá-las, liquidá-las, e sem reproduzir um aparelho de Estado? Então, quando Jervis diz que nosso discurso se torna cada vez mais político, creio que ele tem razão, porque, tanto quanto insistimos, na primeira parte do nosso trabalho, sobre grandes dualidades, procuramos no presente o novo modo de unificação no qual, por exemplo, o discurso esquizofrênico, o discurso drogado, o discurso perverso, o discurso homossexual, todos os discursos marginais possam subsistir, que todas essas fugas e esses discursos se implantem numa máquina de guerra que não reproduza um aparelho de Estado nem de Partido. É por isso mesmo que nós não temos mais tanta vontade de falar em esquizo-análise, porque isso resultaria em proteger um tipo de fuga particular, a fuga esquizofrênica. O que nos interessa, é uma espécie [390] de elo que nos leve ao problema político direto, e o problema político direto é quase esse para nós: até aqui, os partidos revolucionários se constituíram como sínteses de interesses em lugar de funcionar como analisadores de desejos das massas e dos indivíduos. Ou então, o que dá no mesmo: os partidos revolucionários se constituíram como embriões de aparelhos de Estado, em lugar de formar máquinas de guerra irredutíveis a tais aparelhos.
. . .
Tradução de
Cíntia Vieira da Silva





[391]
37
FACES E SUPERFÍCIESDL

[1973]

Stefan Czerkinsky. – O pintor sou eu. Eu não sou pintor. Então, não vamos fazer um prefácio. Vamos fazer superfícies, não uma apresentação. Vamos deslizar. É você que vai fazer os desenhos. Eu escrevo os pedaços de escrever. Não mudamos de função, não trocamos nada, não trocamos, não é nada disso...
Gilles Deleuze. – Ufa! Tenho os desenhos, aí estãoDLa. Quanto pior, melhor funciona. Justamente são monstros de superfície. Como o roxo-marrom. Todas as cores em superfície. Como isto funciona, o roxo?
Stefan Czerkinsky. – Como isto funciona, a terroria? Como isto funciona, um monstro em superfície?
Gilles Deleuze. – A terroria é roxa. A terroria é pinturadesejoescrita com outra coisa ainda, nas beiradas, nos cantos, nos meios e alhures. É o movimento oscilatório Flux Flux Klan conhecido sob a denominação “a grande extorsão do pensamento” e seus membros-órgãos, “os squatters do conceito”. Ela se propõe:
1o A constituição sem apoio da terroterapia, ligada à destruição ativa das doenças de nosso tempo: psicopompas, hipocondríocos, esquizófagos, blenofrenias, neurotoses, neurotipias, mortemas, sexoses, fantasmólogos, escatotonias. E a pior do nosso tempo: a deprê  glorificadora. [392]
2o A produção de palavras de ordem e slogans tais como:
- “Cada vez mais inconsciente, mais ainda, produzam inconsciente”.
- “Nada para interpretar”.
- “Tudo se arranja, porém bem”.
- “Obrigação de uma carteira de residência e de uma carteira de trabalho para todos os Franceses, seguida de controles policiais regulares”.
- “De dois movimentos, o mais desterritorializado ganha do menos”.
- “De cinqüenta movimentos, o mais desterritorializado ganha dos outros”.
O movimento mais desterritorializado chama-se vetor louco. É o roxo. O inconsciente é roxo, ou o será.
Stefan Czerkinsky. – Quais são as precauções a serem tomadas para produzir um conceito?
Gilles Deleuze. – Você liga a seta, verifica no seu retrovisor se um outro conceito não está ultrapassando; uma vez essas precauções tomadas, você produz o conceito[1]. Quais são as precauções para passar de um campo teórico para um outro?
Stefan Czerkinsky. – Nada mais fácil. Muna-se, portanto, de um porta-conceito feito de material sintético. Pegue uma tela da qual você retira o preparo, ou, mais simplesmente, uma tela não preparada. Coloque-a em sanduíche entre as duas parte de um chassi de madeira, previamente cerrado na perpendicular de seu eixo. O chassi transborda então da tela dos dois lados, formando duas pequenas bacias. Pinta primeiro em um lado, seguindo direções escolhidas (vetores), partindo, por exemplo, dos cantos, como pontos cardeais. Exemplo: você pinta, Norte-Leste, Norte-Sul, Sul-Leste, Sul-Oeste, Norte-Oeste etc. Com vermelho e azul, seja vermelho ou azul, seja misturados fora da tela, seja misturando-se na tela, e para produzir, em todos os casos, seja um roxo, seja um marrom, variáveis. Em seguida, vira para ver o que aconteceu do outro lado, porque a tela despreparada (não oclusa) difundiu a cor. Se for preciso, você supervisiona a difusão com a ajuda [393] de um espelho colocado atrás da tela. Então, você pinta este outro lado seguindo outras direções e outros cantos, com um pincel diferente. Você pode também virar a tela cardealmente, mudá-la de lugar, pendurá-la, trabalhá-la na parede, no chão etc.
Difusão de um lado para o outro, sem cessar. Cada lado vai modificar o outro: vermelho, azul, azul-vermelho / vermelho-azul etc. que dão roxos variáveis (e negativo marrom). Cada lado penetra o outro: o roxo é o país do PENETRAR. Aí você se tornou o passa-cor, o passa-lados, o passatempo: o pintor ou a pintura, o nômade.
É dessa maneira que você obtém movimentos de desterritorialização da cor, e de muitas outras coisas, e que você produz intensidades. Você fez com que desse voltas aquilo que não tem espessura.
Não o havíamos dito, mas você tomou a providência de comprar uma tela muito maior do que o chassi, formando uma beirada, uma margem que transborda de cinqüenta centímetros pelo menos. Ela tem vários papéis:
1o zona de superprodução; 2o instância de antiprodução; 3o distância do corpo-tela; 4o maculações recíprocas, quem é pintor e quem é pintado? (com efeito, a borda terá sido diversamente maculada: segundo o trabalho efetuado, as cores utilizadas, as posições da tela e os vetores escolhidos. O corpo também terá sido maculado, pode-se dizer que ele também é uma borda); 5o passeios e pisoteamentos; soleiragem tanto para o pintor, a tela, o visitante.
Acontece, às vezes, que uma parte ínfima da tela permanece não pintada, esquecida. Acontece, às vezes, que se esqueça de esquecer. Este buraco: pensamos na Vetuda da Renascença italiana, mas estamos enganados. Pensamos nas mulheres navajos que nunca terminam uma tapeçaria. Elas deixam um buraco, pois, dizem, fazendo esse trabalho com todo seu coração, temem que ele fique preso em malhas demasiadamente perfeitas. Mas estamos ainda enganados. Podemos dizer também que o buraco que circula sobre a tela é um real que se abre sobre um outro real, mas isso é a metafísica e os outros-mundos.
Gilles Deleuze. – Trata-se de uma borda interior que ecoa as bordas exteriores. Ambas constituem a diferença de intensidade pela qual tudo se passa e comunica, negligência [394] da margem e esquecimento do buraco, ambas se respondem. Esquecimento de pintar, negligência em pintar, a tela entre dentro-fora, a tela-tímpano, entendida como signo da pintura, signo a-significante. O buraco-borda é realidade física. É a Realidade. Ah, como os físicos falam coisas bonitas hoje, sobre os fenômenos de borda e os númenos de buracos. Precisaria ser cientista. Viva Pauli, Viva Fermi. Mas não podemos compreender. Então, é melhor ainda, fazemos igual. Os buracos-partículas, as bordas-partículas: eles mexem[2].
Stefan Czerkinsky. – Não acabou. Depois de ter pintado as telas, fabrica-se uma moeda muito simples: a partir de objetos, de verbos, de gestos, de materiais etc. Fixa-se arbitrariamente relações arbitrariamente equivalentes entre as telas e o que se tornará moeda.
Por exemplo, vou fabricar pequenos objetos, utensílios, madeira em algodão como pequenos bebês, laqueações metálicas como algemas para tecido, plástico azul metalizado rachado bisel, cabelos colocados nas rachaduras e mantidos com argila: uns são bem grandes, os outros realmente bem pequenos. Coloco-os numa mala, uma marmita de ferro; eu fiz isso para crianças num jardim público, isso as divertia muito, é a diferença de tamanho e a acumulação que as faziam rir. Aí, eu os coloco, todos esses pequenos objetos-casuloacolchoados, em relação com as telas roxas. São fetiches ou chaveiros, para as telas-portas, as telas-tendas, as telas-ícones. Isso deve formar um circuito mais amplo. Circuito restrito: chassi-tela-borda-buraco; circuito amplo: equivalência com um outro sistema de signos, os pequenos objetos-utensílios. O ideal seria pagar as telas com os pequenos objetos, e fazer os pequenos objetos com as telas. Precisaria roubar uns ou os outros, ou os dois ao mesmo tempo. Pode-se colocar a questão: meus utensílios e minhas telas não eram desde o início dinheiro? É isto o terrível: a virtualidade do dinheiro.
. . .
Tradução de
Christian Pierre Kasper






[395]
38
PREFÁCIO AO LIVRO
L’APRÈS-MAI DES FAUNES DL
[1974]

                        Prefácio. Ninguém pode escapar dele, nem o autor do livro, nem o editor, nem o prefaciador, a verdadeira vítima, embora não haja necessidade alguma de prefácio. É um livro alegre. Ele poderia se chamar: Como nasceram dúvidas sobre a existência da homossexualidade; ou ainda, Ninguém pode dizer “Eu sou homossexual”. Assinado Hocquenghem. Como ele chegou até aí? Evolução pessoal, marcada na sucessão e na diversidade de tons dos textos deste livro? Revolução coletiva ligada a um trabalho de grupo, a um devir do FHAR? Evidentemente, não é mudando, tornando-se heterossexual, por exemplo, que Hocquenghem tem dúvidas sobre a validade das noções e declarações. Permanecendo homossexual for ever, continuando assim, sendo homossexual cada vez mais ou cada vez melhor, é que se pode dizer: “mas, afinal de contas, ninguém o é”. Isto vale mil vezes mais que a chata e insípida sentença segundo a qual todo mundo o é, todo mundo o seria, bicha inconsciente latente. Hocquenghem não fala nem de evolução nem de revolução, mas de volições NRT . Imaginemos uma espiral muito móvel: Hocquenghem nela está ao mesmo tempo em vários níveis, simultaneamente em várias curvas, ora com uma moto, ora chapado, ora sodomizado ou sodomizador, ora travesti. Em um nível, ele pode dizer sim, eu sou homossexual sim, em outro não é isto, em um outro nível é ainda outra coisa. Esse livro não repete o livro precedente, O Desejo homossexual Dla; [396] ele o distribui, mobiliza-o de modo totalmente distinto, transforma-o.

            Primeira volição. Contra a psicanálise, contra as interpretações e reduções psicanalíticas – a homossexualidade vista como relação com o pai, com a mãe, com Édipo. Hocquenghem não é contra nada, tendo mesmo escrito uma carta a sua mãe. Mas, isso não funciona. A psicanálise nunca suportou o desejo. É sempre necessário que ela o reduza e que lhe faça dizer outra coisa. Entre as páginas mais ridículas de Freud, há aquelas sobre a “fellatio“, a felação: um desejo tão bizarro e tão “chocante” não pode valer por si próprio, é necessário que ele remeta às tetas da vaca, e por aí ao seio da mãe. Ter-se-ia mais prazer em sugar um mamilo de vaca. Interpretar, regressar, fazer regressar. Isso leva Hocquenghem a rir. E talvez exista uma homossexualidade edipiana, uma homossexualidade-mamãe, culpabilidade, paranóia, tudo o que se queira. Mas, justamente, ela cai como chumbo, lastrada por aquilo que oculta e que quer leva-la a esconder o conselho de família e de psicanálise reunidos: ela não se interessa pela espiral, não suporta a prova da leveza e da mobilidade. Hocquenghem se contenta em sinalizar a especificidade e irredutibilidade de um desejo homossexual, fluxo sem objetivo nem origem, caso de experimentação e não de interpretação. Não se é nunca homossexual em função de seu passado, mas de seu presente, uma vez sabido que a criança já era presença que não remetia a um passado. Pois o desejo nunca representa nada, e não remete a alguma coisa recôndita, a uma cena de teatro familiar ou privado. O desejo agencia, maquina, estabelece conexões. O belo texto de Hocquenghem sobre a moto: a moto é um sexo. Em vez de ser aquele que permanece no mesmo sexo, não seria, o homossexual, aquele que descobre inúmeros sexos sobre os quais não temos idéia? Mas, inicialmente, Hocquenghem esforça-se por definir esse desejo homossexual específico, irredutível – não por uma interioridade regressiva, mas pelos caracteres presentes de um Fora, de uma relação com o Fora: o movimento [397] particular da paquera, o modo de encontro, a estrutura “anular”NRT , o intercâmbio e a mobilidade dos papeis, uma certa traição (complô contra sua própria classe, como diz Klossowski? : “foi-nos dito que éramos homens, somos tratados como mulheres; sim, para nossos adversários, somos traidores, fingidos, de má fé: sim, em toda situação social, a todo momento, podemos afrouxar os homens, somos afrouxeladores e nos orgulhamos disso”).

            Segunda volição: a homossexualidade não é produção de desejo sem ser, ao mesmo tempo, formação de enunciados. Pois é a mesma coisa, produzir desejo e formar novos enunciados. É evidente que Hocquenghem não fala como Gide, nem como Proust, muito menos como PeyrefitteNT: mas o estilo é política – e as diferenças de geração também, e as maneiras de dizer “eu” (cf. o abismo de diferenças entre Burroughs pai e filho, quando dizem “eu” e falam da droga). Outro estilo, outra política: a importância de Tony Duvert hoje, um novo tom. É do fundo de um novo estilo que a homossexualidade produz hoje enunciados que não versam, e não devem versar sobre a própria homossexualidade. Caso se tratasse de dizer “todos os homens são bichas”, isso não é de interesse algum, é proposição nula que só diverte os débeis. Todavia, a posição marginal do homossexual torna possível e necessário que exista algo a ser dito sobre o que não é a homossexualidade: “com os movimentos homossexuais, o conjunto dos problemas sexuais dos homens apareceram”. Para Hocquenghem, os enunciados da homossexualidade são de duas espécies complementares. Primeiro, sobre a sexualidade em geral: longe de ser falocrática, o homossexual denuncia, na servidão da mulher e no recalcamento da homossexualidade, um único e mesmo fenômeno que constitui o falocentrismo. Este, com efeito, procede indiretamente e, formando o modelo heterossexual de nossas sociedades, rebate a sexualidade do rapaz sobre a moça à qual, no jogo das armadilhas, atribui o papel de primeira caçadora e, ao mesmo tempo, de primeira caçada. Então, que haja uma cumplicidade misteriosa entre moças que preferem moças, entre rapazes que preferem rapazes, entre rapazes que, em vez de moças, preferem uma moto ou uma bicicleta, entre moças que preferem [398] etc., o importante é não introduzir relação simbólica ou pseudo-significante nesses complôs e cumplicidades (“um movimento como o FHAR aparece intimamente ligado aos movimentos ecológicos... embora isso seja inexprimível na lógica política.) Donde, igualmente, a segunda espécie de enunciados voltados ao campo social em geral e à presença da sexualidade nesse campo inteiro: escapando do modelo heterossexual, da localização desse modelo em um tipo de relações, assim como da sua difusão em todos os lugares da sociedade, a homossexualidade é capaz de levar a cabo uma micro-política do desejo e servir, no conjunto, como revelador ou detector das relações de força às quais a sociedade submete a sexualidade (inclusive no caso da homossexualidade mais ou menos latente que impregna os grupos viris militares ou fascistas). Precisamente, a homossexualidade se libera, não quebrando toda relação de força, mas quando, marginal, não é de utilidade social alguma: “as relações de força não são aí inscritas no começo pela sociedade, os papéis homem-mulher, comedor-comido, mestre-escravo são instáveis e intercambiáveis a qualquer momento”.

            Terceira volição. Acreditava-se que Hocquenghem estivesse se fixando, cavando seu lugar à margem. Mas o que é essa margem? O que é essa especificidade do desejo homossexual, e estes contra-enunciados de homossexualidade? Um outro Hocquenghem, em um outro nível da espiral, denuncia a homossexualidade como uma palavra. Nominalismo da homossexualidade. E, verdadeiramente, não há poder das palavras, mas somente palavras a serviço do poder: a linguagem não é informação ou comunicação, mas prescrição, ordenança e comando. Tu ficarás à margem. É o central que faz o marginal. “Este recorte abstrato do desejo que permite reger mesmo aqueles que escapam, esta submissão à lei do que está fora da Lei. A categoria em questão e a própria palavra são uma invenção relativamente recente. O imperialismo crescente de uma sociedade que quer atribuir um estatuto social a todo inclassificável criou esta particularização do desequilíbrio... Recortando para melhor reinar, o pensamento pseudocientífico da psiquiatria transformou a intolerância bárbara em intolerância civilizada”. Eis, contudo, o que acontece de bizarro: quanto menos a homossexualidade [399] é um estado de coisa, mais a homossexualidade é uma palavra, mais é necessário tomá-la ao pé da letra, assumir sua posição como específica, seus enunciados como irredutíveis, e fazer de conta que... Como desafio. Quase por dever. Como momento dialeticamente necessário. Por passagem e por progresso. Nós seremos as bichas loucas, se é isto que vocês querem. Transbordaremos suas armadilhas. Nós os tomaremos ao pé da letra: “É tornando a vergonha mais vergonhosa que se progride. Reivindicamos nossa feminilidade, essa mesma que as mulheres rejeitam, ao mesmo tempo em que declaramos que estes papéis não têm sentido algum... A forma concreta dessa luta, ninguém pode escapar dela, é a passagem pela homossexualidade”. Ainda uma máscara, ainda uma traição, Hocquenghem reencontra-se hegeliano – o momento necessário pelo qual é preciso passar – Hocquenghem reencontra-se marxista: a bicha como proletária de Eros (“precisamente porque vive aceitando a situação a mais particular, é que tem valor universal aquilo que ele pensa”). O leitor se surpreende. Homenagem à dialética, à Escola normal superior? Homo-hegelianismo-marxista? Mas Hocquenghem já se encontra alhures, em um outro lugar de sua espiral, e diz o que tinha na cabeça ou no coração, e que não se separa de uma espécie de evolução. Quem entre nós não tem que deixar morrer Hegel e Marx em si mesmo, e a infame dialética?
           
            Quarta volição, última figura de dança por agora, última traição. É preciso acompanhar os textos de Hocquenghem, sua posição em relação ao FHAR e no FHAR, como grupo específico, as relações com o MLF. E mesmo a idéia que o desmembramento dos grupos nunca é trágica. Longe de se fechar sobre “o mesmo”, a homossexualidade vai se abrir a todas as espécies de relações novas possíveis, micrológicas ou micropsíquicas, essencialmente reversíveis, transversais, com tantos sexos quanto há agenciamentos, não excluindo sequer as novas relações entre homens e mulheres: a mobilidade de certas relações SM NT, as potências do travesti, as trinta e seis mil formas de amor à Fourier, ou os n-sexos (nem um nem dois sexos). Não se trata mais de ser homem ou mulher, mas de inventar sexos, a tal ponto que um homossexual homem pode encontrar numa mulher os prazeres que um homem lhe daria, e inversamente (Proust já opunha à homossexualidade [400] exclusiva do Mesmo essa homossexualidade de preferência múltipla e mais “localizada” que inclui todas as espécies de comunicações transexuais, aí compreendidas as flores e as bicicletas). Em uma belíssima página sobre o travesti, Hocquenghem fala de uma transmutação de uma ordem a outra, como de um continuum intensivo de substâncias: “Nada de intermediário entre o homem e a mulher, ou o mediador universal, é uma parte de um mundo transferido a um outro como se passa de um universo a um outro universo, paralelo ao primeiro, ou perpendicular, ou de viés; ou antes, é um milhão de gestos deslocados, de traços transferidos, de acontecimentos...”. Longe de se fechar na identidade de um sexo, essa homossexualidade se abre à uma perda de identidade, ao “sistema em ato de ramificações não exclusivas do desejo multívoco”. Nesse ponto preciso da espiral, compreende-se como o tom mudou: não se trata mais absolutamente para o homossexual de se fazer reconhecer e de se colocar como sujeito provido de direitos (deixai-nos viver, finalmente, todo mundo o é um pouco... homossexualidade-demanda, homossexualidade-recognição, homossexualidade do mesmo, forma edipiana, estilo Arcadie DLb). Trata-se, para o novo homossexual, de exigir ser assim, para enfim dizer: ninguém o é, isto não existe. Vocês nos chamam de homossexuais, de acordo, mas nós já estamos alhures. Não há mais sujeito homossexual, mas produções homossexuais de desejo e de agenciamentos homossexuais produtores de enunciados que enxameiam por toda parte, SM e travestis, nas relações de amor tanto quanto nas lutas políticas. Não há mais sujeito-Gide arrebatado dividido, nem mesmo sujeito-Proust ainda culpado, muito menos o lamentável Eu-Peyrefitte. Compreende-se melhor como Hocquenghem pode estar em todas as partes na sua espiral e, ao mesmo tempo, dizer: o desejo homossexual é específico, há enunciados homossexuais, mas a homossexualidade é nada, é tão-somente uma palavra, e, no entanto, levemos a palavra à sério, passemos necessariamente por ela para que restitua tudo o que  ela contém de alteridade – e que não é o inconsciente da psicanálise, mas a progressão de um devir sexual por vir.
. . .
Tradução de
Daniel Lins


[401]
39
UMA ARTE DE PLANTADORDL
[1974]

Longa abertura do filme com música de Couperin. Vê-se a câmera mexer, parar em tal cenário ou tal lugar, frente a tal arquitetura.
Vê-se o diretor rir, falar, mostrar alguma coisa; a equipe, agenciar tal ou qual conjunto. Teme-se que seja, mais uma vez, um jeito de, no filme, introduzir o filme que está se fazendo. Felizmente é outra coisa. A abertura não é nem um pouco longa. Há nesse filme uma mobilidade da câmera que parece muito nova. É uma maneira de plantar. Não cravar a câmera sobre seus pés, mas plantá-la rapidamente, em pouca profundidade de um solo ou de um terreno, e transportá-la alhures para replantá-la. Uma arte do arroz: a câmera bicaNT o solo, de um salto volta a bica-lo mais além. Nenhum enraizamento, mas bicadas. No próprio filme, a câmera, a equipe e o diretor surgirão de repente bem ao lado de um casal fazendo amor: não é um efeito “literário”, nem uma reflexão da filmagem no filme, mas a câmera se vê porque está plantada aí, bicando aí, para logo em seguida ir alhures.
O filme, tudo o que ele mostra, segue esse procedimento sem artifício. O filme e a abertura são a mesma história móvel ocorrendo em dois modos. Um filho se mata, e o pai, feito louco, vai passar por uma série de metamorfoses: em pequeno vadio sádico, em grande mago inquietante, em passeante nômade, em rapaz amoroso. O ator que faz o papel do pai, Patrice Dally, [402] tem uma sobriedade forte, um jeito quase humilde, que multiplica a violência das metamorfoses. O pretexto é uma espécie de inquérito sobre a morte do filho. A realidade é a cadeia quebrada das metamorfoses, que não operam por transformações, mas imponderadamente. Cena muito bonita em que Roger Planchon, o mago, saltita em volta de uma moça, para persuadi-la de algo, na praça Saint-Sulpice: Planchon se planta cada vez frente à moça, com movimentos surpreendentes. Cena muito bonita em que o sádico nervoso, Pierre Julien, leva o jogador em todas as direções, altura, profundidade, comprimento, recortando o espaço todo como se fosse com uma faca.
Dir-se-ia uma história plantada em Paris, nem um pouco pesada ou estática, mas com bicadas correspondendo a cada posição de câmera. Essa história vem de outro lugar: vem da América do Sul, vem do conjunto Santiago-Borges-Bioy Casares, carrega uma potência de metamorfose que se encontra também nos romances de Astúrias, ela sai de outras paisagens, da savana, dos pampas, das companhias fruteiras, campo de milho ou arrozal. O ponto mais preciso em que a câmera se insere ou se injeta em Paris é uma pequena livraria, “Das duas Américas”, o negócio do pai. Mas não há aplicação alguma disso na história, nenhum simbolismo, nenhum jogo literário como se contasse uma história de Índio em Paris. É antes uma história estritamente comum aos dois mundos, um fragmento de cidade e um fragmento dos pampas, ambos muito móveis; um bicando o outro e levando-o consigo. O que parece contínuo em um seria descontínuo no outro, e vice-versa. É admirável a maneira como Santiago filmou o interior do Observatório de Meudon: é toda uma verdadeira cidade metálica e deserta, plantada numa floresta. Tambores saltam na música de Couperin, há gritos agudos de papagaios dentro do hotel Odéon, o livreiro parisiense é verdadeiramente um índio.

O cinema sempre esteve mais próximo da arquitetura do que do teatro. Tudo aqui se define numa certa relação da arquitetura e da câmera. As metamorfoses nada têm a ver com fantasmas: a câmera salta de um ponto para um outro, em volta de um conjunto de arquitetura, como Planchon salta [403] em volta do grande chafariz de pedra. Os personagens do livreiro saltem de um para o outro em volta de Valérie, a heroína que sabe tomar posições próprias à arquitetura. Ora reta, ora curvada, inclinada ou endireitada, observadora em Meudon, ela observa as metamorfoses, ela é ao mesmo tempo a vítima e o líder do jogo, ela forma o centro para os saltos do livreiro. A atuação e a beleza da atriz, Noëlle Châtelet, a estranha “gravidade” da cena de amor detalhada. E a maneira pela qual, ela também, mas de modo completamente diferente do livreiro, mantém sua relação com o outro mundo. Um diz com arquitetura, com olhar e com posição, o que o outro diz com movimentos, com música e com câmera. É curioso ter havido críticos que não gostaram desse filme, nem mesmo enquanto ensaio de um cinema dotado de uma nova mobilidade. O filme precedente de Santiago, Invasion, já ia nesse sentido. (Pergunta subsidiária, porque o livreiro chama-se Espinosa? Talvez porque as duas Américas, os dois mundos, a cidade e os pampas, sejam como dois atributos para uma substância absolutamente comum. E isto nada tem a ver com filosofia, é a própria substância do filme).
. . .
Tradução de
Christian Pierre Kasper












DLc Ver a nota c do texto n°25.
DL In Fromanger, le peintre et le modèle, Paris, Baudard Alvarez 1973 (catalogue d’exposition). Gérard Fromanger, nascido em 1939, chamou a atenção sobre si em maio de 68 ao expor grandes esferas de plástico nas ruas de Paris. Mas o texto de Deleuze é consagrado às composições monocromáticas para as quais Fromanger se volta no inicio dos anos 1970.
DLa M. Mc Luhan. Pour comprendre les médias, Paris, Mame-Seuil, 1968, p. 39-50.
DLb D.H Lawrence, Eros et les chiens, Paris, Christian Bourgois éd., 1969, p. 195.
DL Traduzido do italiano. "Relazione di Gilles Deleuze" e discussões in Armando Verdiglione, ed., Psicanalisi e Politica: Atti del Convegno di studi tenuto a Milano l'8-9 maggio 1973, Milão, Feltrinelli, 1973, p. 7-11, 17-21, 37-40, 44-45, 169-172. Por cuidado com a clareza, reformulamos e abreviamos as questões propostas durante a discussão. O texto dessa conferência é retomado de forma bastante diferente em Deleuze-Guattari, Politique et psychanalyse, Alençon, Des mots perdus, 1977. Pode-se comparar in DRF com "Quatre propositons sur la psychanalyse". [NRT: Texto 8, pp. 72-79].
DLa R. Castel, Le psichanalisme, Paris, F. Maspero, 1973.
DLb D. Cooper. Mort de la famille. Paris, Seuil, col. "Combats", 1972, p. 25.
DLc Genealogia da moral, II, § 1; Considerações extemporâneas, II, § 1.
DLd Sobre G. Jackson, ver a nota b do texto nº 32.
DL Com Stefan Czerkinsky e J. J. Passera, in Faces et surfaces, Paris, Editions Galerie Karl Flinker, 1973. Trata-se do catálogo de exposição consagrado a um jovem artista de origem polonesa cuja obra – composições monocromáticas – permanece desconhecida (o artista suicidou-se pouco tempo após a exposição).
DLa Seis desenhos de Deleuze – reproduzidos em Chimères, no 21 – figuravam na exposição.
[1] Os conceitos não estão na cabeça: são coisas, povos, zonas, regiões, limiares, gradientes, calores, velocidades.
[2] O buraco-borda e a borda-margem são as duas unidades da pintura, mas de outra coisa também. Um pode ser tomado como a territorialização do outro, o outro sendo então a desterritorialização do primeiro. Mas tudo isso se inverte assim que se dá a volta.
DL “Prefácio” in Guy Hocquenghen, L’Après-Mai des faunes, Paris, Grasset, 1974, pp. 7-17. Guy Hocquenghem (1946-1988), escritor, membro do FHAR (Frente homossexual de ação revolucionária, criada em 1970) encontrou Deleuze na Universidade de Vincennes, onde este era “chargé de cours” [professor delegado do ensino superior].
NRT [A tradução de “volution”  por “volição”  -- implicando a raiz “vol” do verbo latino “volere” = “querer” – entra em ressonância com a noção escolástica de “volitione” e, em alguma psicologia, com a idéia de atos de vontade. O desenrolar do texto, porém, desliga as volições da vontade de um sujeito e também de um inconsciente psicanalítico, destacando, isto sim, lances da “progressão de um devir sexual”].
DLa Le Désir homosexuel, Paris, Editions Universitaires, coleção “Psychotèque”, 1972.

NRT [Há, em francês, o vocábulo “annulaire”, com dois enes, significando algo relativo a anel, mas o termo de Hocquenghen, que Deleuze transcreve entre aspas, é “anulaire”, com apenas um ene, de modo a sugerir, certamente com algum humor, uma ressonância entre estruturas anais e anulares, da qual não se ausenta a própria idéia de anelo, de desejo intenso, portanto].  
NT [Roger Peyrefitte, autor do romance Les amitiés particulières: Marseille: Jean Vigneau, 1944].


NT [Sado-masoquistas].
DLb O Clube Arcadie (1954-1982) era um grupo constituído em torno de André Baudry, o qual estimava que os homossexuais deveriam se reunir na discrição, na “coragem” e na “dignidade. Vinculado à direita, o grupo de Baudry  era contra as “escandalosas” manifestações públicas do FHAR.
DL In Deleuze, Faye, Roubaud, Touraine parlent de “Les Autres”, - un filme de Hugo Santiago, écrit en collaboration avec Adolfo Bioy Casares e Jorge Luis Borges, Paris, Christian Bourgois, 1974. Trata-se de uma brochura, distribuída na entrada de uma sala de cinema do Quartier Latin, para defender e apoiar o filme de Hugo Santiago que tinha provocado um escândalo no festival de Cannes em 1974.
NT [Deleuze usa aqui o verbo piquer, que, além do sentido de picar, denota, em francês, o modo de plantação – pouco profundo – próprio à cultura do arroz. Que o leitor brasileiro mantenha essa denotação, embora ela falte ao uso dos termos picar ou bicar].

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