por thiago rodrigues (Cientista político, poeta, pesquisador no Nu-Sol. Publicou Política e drogas nas Américas (Educ/FAPESP, 2004); Narcotráfico, uma guerra na guerra - Editora Desatino, 2003).
Persegui demais o mal
Busquei demais ter um corpo limpo
Antonin Artaud
Êxtase & medo
Fala-se em legalização, descriminalização, flexibilização das leis antidrogas. Os protestos contra a proibição das substâncias psicoativas se fazem por meio da apresentação de visões alternativas, novos receituários, projetos outros para enfrentar o que não foi possível pelo banimento e pelo expurgo. O presente regime internacional sobre psicoativos é o da política de guerra às drogas, na qual a produção, circulação, venda e consumo de um significativo rol de compostos que agem sobre o sistema nervoso central estão sob forte controle legal.
As regras desse controle estão cristalizadas na Convenção Única sobre Drogas Narcóticas da ONU, celebrada em 1961, e que é o documento-síntese de todos os tratados antipsicoativos acordados desde a primeira década do século XX. A pretensão dos Estados que se reuniram em Nova Iorque para discutir a Convenção Única era o de construir pautas rígidas que classificassem todas as drogas psicoativas segundo um critério elementar: potencial para uso médico. O tratado estabeleceu, assim, listas que instituíam a legalidade ou não de um composto pelo seu pretenso “uso médico”. Os alucinógenos, como o LSD, a mescalina e a maconha, foram completamente vedados. Como também o fôra a heroína. Para a morfina e cocaína, certa liberdade para aplicações médicas. Barbitúricos e anfetaminas, sintetizadas por grandes indústrias farmacêuticas transnacionais, foram brindados com mais tolerância por serem tidos como importantes para o tratamento de certos males.
O argumento do “uso médico”, enfim, aplicado como determinante na proibição ou legalidade de psicoativos, gerara acirradas polêmicas ao longo dos anos de preparo para o encontro, pois não havia consenso entre os especialistas da Organização Mundial da Saúde sobre quais substâncias deveriam ser consideradas benéficas ou maléficas à saúde1. Talvez os técnicos da ONU tenham sido assolados pelo princípio médico da Antigüidade Clássica que atribuía a uma droga propriedades curativas ou venenosas dependendo da quantidade aplicada2. Como justificar a proibição completa do LSD, droga de baixa toxicidade, e amparar a legalidade do álcool? Havia, contudo, um a priori. Algumas substâncias deviam ser banidas e a justificativa científica para tanto necessitava ser construída. Os argumentos médicos, sempre solicitados como produtores de provas para o direito penal, foram convocados uma vez mais para legitimar uma decisão; um veredicto com intencionalidades políticas.
Não se desenhava a proibição às drogas naquele 1961. O proibicionismo vinha sendo erguido em códigos nacionais e em tratados internacionais desde a passagem do século XIX para o XX. A costura das normas antidrogas não tem um princípio demarcável, único. Ela tem origens pequenas, descentralizadas no espaço, distribuídas nos anos. A proibição tem começos ínfimos. As leis restritivas não foram meras obras de burocratas, mas antes, responderam a demandas sociais precisas. Clamores por repressão que foram sendo alçados ao patamar de políticas de governo, tomando a forma de leis que instituíam, por sua vez, meios para sua aplicação. Os Estados Unidos foram o país no qual essas procedências da ilegalidade podem ser mais claramente identificadas por intermédio de um rastreamento interessado nos brados proibicionistas e na história da sua amplificação aos mecanismos de governo.
Quando a Harrison Narcotic Act, primeira lei proibicionista estadunidense, foi editada em 1914, o percurso que conduzira à norma era então um longo trajeto. Para investigá-lo seria preciso retornar, ao menos, às pressões políticas exercidas pelas ligas de temperança, organizações não-governamentais avant la lettre que cresceram pelas redes de igrejas e associações protestantes. Grupos religiosos, como a Antisaloon League ou a Sociedade para a Supressão do Vício, foram constituídos na segunda metade do século XIX e levaram adiante a bandeira da abstinência, tão cara aos puritanos. O alvo primordial das ligas era o extermínio dos hábitos considerados nocivos para o corpo e para a alma. A Antisaloon League, em especial, esforçava-se para que ogoverno do país ordenasse o fechamento dos bares, “antros” que conjugavam jogo, prostituição e álcool. Com opassar dos anos, as ligas passaram a contar com representação política, com deputados, senadores e titulares de cargos executivos comprometidos com essa base eleitoral. No mercado de votos da democracia estadunidense, as organizações puritanas foram bem sucedidas porque representavam os valores e anseios de grande parte dos eleitores. Ao ser lançada na esfera política de discussões, a questão das drogas evidenciou um dos mais poderosos embates entre linhas de pensamento e ética nos EUA. Formado sobre o solo movediço das tradições puritana e liberal, o país viu com o debate sobre a proibição ou não dos psicoativos, mais um episódio do choque entre tais perspectivas. De um lado, o puritanismo abstêmio, de outro, o princípio liberal da autonomia para as decisões de cunho privado.
No entanto, o primado liberal da liberdade confinada ao espaço privado não foi resistente às investidas proibicionistas. Ao contrário, a concepção liberal de que um ato privado que resulte em prejuízo a outrem deve ser coibido foi uma passagem larga para que as petições antidrogas ganhassem relevo. Isso porque, para os proibicionistas, o uso de drogas era, a um só tempo, fonte de degradação pessoal e social. Um indivíduo intoxicado era ameaça considerável a toda ordem social, pela propagação “do crime”, dos “atos desvairados”, dos “maus exemplos”, da “degenerescência dos valores” resultante de seu hábito. A condenação moral à prática de se embriagar tomava contornos mais amplos, cristalizandose em leis. E o código legal estadunidense universalizava mais um conjunto de valores morais parcamente laicizados na forma da Lei.
A construção de normas restritivas ao ciclo produção/venda/uso de substâncias psicoativas se deu por intermédio dos argumentos médico-sanitários que ident i f icavam no consumo de drogas um grave perigo epidemiológico3. Os esforços deveriam ser feitos para impedir que compostos até então pouco regulamentados, como a cocaína e a heroína, se disseminassem pela sociedade. O único modo legítimo para intoxicar-se era aquele com a chancela médica. A relação entre médicos e seus pacientes passou a ser mediada pelo Estado, num movimento que limitou de um lado a liberdade do profissional em receitar psicoativos, mas que, de outro, consolidou o monopólio da classe médica sobre as práticas curativas.
No entanto, a roupagem científica camuflava mal o impulso puritano a fomentar as iniciativas proibicionistas. A mais antiga exigência dos grupos abstêmios — a proibição do álcool — venceu as últimas resistências na Suprema Corte, em 1918, sendo aprovada, em 1919, por meio do Volstead Act. A Lei Seca contemplou a
força social proibicionista ao banir todas as etapas da comercialização de bebidas alcoólicas em território estadunidense. Durante sua vigência, a Lei Seca não erradicou o hábito de beber álcool e, em conseqüência, fomentou um poderoso negócio ilegal que alimentou máfias e motivou o agigantamento burocrático-repressivo do Estado norte-americano. Ao ser abolida, em 1933, a Lei Seca deixa como rastro organizações ilegais bem sedimentadas e escritórios antidrogas, como o Federal Bureau of Narcotics (FBN), dotados de grandes orçamentos. O relaxamento com relação ao álcool não significou uma postura similar com as demais drogas psicoativas; maconha, cocaína e os opiáceos receberam leis específicas ainda mais rígidas que seguiam os passos das iniciativas internacionais dos EUA. Fora de suas fronteiras, a diplomacia estadunidense promovia encontros destinados à elaboração de normas que envolvessem mais Estados no diapasão proibicionista. Num jogo complementar entre as iniciativas domésticas e externas, o campo das demandas sociais puritanas foi sendo absorvido pelas estratégias governamentais sem perder, contudo, seu lastro.
A legislação antidrogas nos Estados Unidos foi instigada por uma cruzada moral que acabou por ser encampada pelo governo devido às potencialidades políticas que o proibicionismo apresentava. O espaço de clandestinidade produzido pelas leis de psicoativos tornouse um profícuo ambiente para a captura de grupos sociais indesejados ou tidos pela ordem como “perigosos”.
Nos EUA, o uso de drogas esteve vinculado a comunidades específicas por meio de estereótipos alimentados pela parcela branca e protestante do país4. Os mexicanos eram considerados consumidores ávidos de maconha; os negros eram vistos como adeptos da cocaína; os chineses, habituados ao ópio e os irlandeses, devotos do álcool. Em todos os casos, e a despeito dos efeitos distintos provocados por estes psicoativos, os usuários eram percebidos como violentos e selvagens. A lassidão sexual e a agressividade criminosa atribuídas às drogas psicoativas eram imediatamente relacionadas ao “comportamento social” dos estratos mais pobres e minoritários dos Estados Unidos5. Com o lançamento do mercado destes compostos na ilegalidade, os braços desta economia passaram a ser largamente convocados entre as classes menos privilegiadas. As leis antidrogas, assim, inauguraram o tráfico de drogas e, por extensão, uma
nova categoria de criminoso: o traficante.
Um inédito campo de combate na perpétua guerra que o Estado sustenta contra os indivíduos e grupos dissonantes e, portanto, perigosos à ordem ampliou-se com a proibição às drogas. O Estado Moderno deve manter estratégias amplas de controle social que, como mostrou Michel Foucault6, preocupam-se a um só tempo em atentar para o indivíduo e para a população, compreendendo a dinâmica de ambos dent ro de uma governamentalidade. A estatística, ciência do Estado por excelência, passa a contabilizar viventes e mortos para uma prática de governo que não se limita a reprimir seus súditos, mas que investe no controle pelo oferecimento de vida. Na Europa Ocidental, a passagem do século XVIII para o XIX será marcada pela confecção de aparatos de Estado interessados na ordenação e no esquadrinhamento das cidades e espaços públicos em nome da salubridade e do bem-estar geral7. Com isso, o controle social não sobrevive apenas em atitudes negativas (perseguição, aprisionamento), mas também, em ações positivas (vacinações, em massa, campanhas de alfabetização, leis assistencialistas). À vigilância policial agregou-se a vigilância sanitária reguladora do corpo e dos espaços. Essa tática de governo, de olhar particular e totalizante, foi chamada por Foucault de biopolítica. Segundo o filósofo, a biopolítica foi “a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII, racionalizar os problemas postos à prática governamental, pelos fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em população: saúde, higiene, natalidade, raças”8.
O Estado e a teoria da soberania que o sustenta não implodem com a biopolítica, mas são instrumentalizadas em seu interior novas técnicas pautadas pela lógica de um poder disciplinar. Não cabia mais punir o agressor à ordem com um suplício público, mas produzir indivíduos docilizados politicamente e ativos economicamente. Trabalhar sem contestar. Para Foucault, o discurso da disciplina não será o “da regra jurídica derivada da soberania, mas o da regra ‘natural’, quer dizer, da ‘norma’”9. A malha tecida pelas ciências humanas conferirá aos homens e situações, novas categorias: normais ou anormais. A aferição da normalidade põe em marcha saberes clínicos operando em consonância com as demais técnicas de gestão dos corpos. A sociedade é medicalizada e o Estado é colonizado por dispositivos de governamentalidade.
Na passagem do século XIX para o XX, o controle de drogas psicoativas — tendo como epicentro os Estados Unidos — passa a fazer parte do espectro mais amplo das técnicas de controle e gestão dos indivíduos e da população. A Proibição emerge como um recurso potent e a c i o n a d o n o q u a d r o ma i o r d a s e s t r a t é g i a s d e governamentalidade. De um lado, milhares de usuários são localizados como anormais, situação que os torna excrescências morais e antígenos à segurança sanitária geral. De outro, os indivíduos responsáveis pelo gerenciamento da economia ilegal das drogas, se transformam em agentes do vício e da degradação pessoal e social. Consumidores e traficantes formam, desse modo, um par indissolúvel, ambos visados pelos aparatos de segurança e pela ojeriza social.
A Proibição interessou ao Estado norte-americano, pois os grupos que ocuparam as posições do lado da oferta de psicoativos eram justamente segmentos considerados perigosos: negros e imigrantes de diversas procedências. A perseguição a tais populações sob a chancela da guerra às drogas configurou um recurso adicional de controle social que não passou desapercebido pelo governo. Pelo prisma dos consumidores, a vedação do uso contentou a moralidade puritana que pôde ver, assim, a incontinência pecaminosa tornada crime. O Estado assumiu, nesse momento, o papel de agente moralizador a purificar a sociedade dos vícios e da degradação, reprimindo negociantes e usuários de substâncias proibidas. Pelo lado governamental, a possibilidade de investir em hábitos privados significou a expansão do raio de vigilância sobre os indivíduos e suas existências.
A construção do proibicionismo não foi, portanto, uma imposição estatal, tampouco se restringiu aos Estados Unidos. A regulamentação ampliada dos psicoativos internacionalizou-se na esteira dos encontros diplomáticos convocados pelos Estados Unidos10. A participação em tais encontros não indicou a mera submissão dos países participantes às determinações estadunidenses. Em diversos deles, um ritmo próprio de repressão ao consumo de drogas psicoativas caminhava em paralelo à cristalização da Proibição nos Estados Unidos.
No Brasil, até que a primeira lei proibicionista fosse promulgada em 1921, muito havia ocorrido nas relações entre usuários de drogas e partidários de uma sociedade “livre de vícios”. Em centros cosmopolitas, como a São Paulo dos anos 1910, o consumo de drogas importadas, como a cocaína e a heroína, foi tolerado pelo Estado e pelas sentinelas morais enquanto se restringiram aos jovens filhos da oligarquia cafeeira. Quando o hábito disseminou-se entre prostitutas, pequenos fora-da-lei, cafetões e cafetinas, os brados antidrogas começaram a ser ouvidos na imprensa paulistana e nos círculos conservadores, como a Loja Cruzeiro do Sul, espécie de maçonaria nacionalista instalada na capital do estado11. Junto à recriminação aos “vícios elegantes” havia a condenação do uso de maconha associado a negros, caboclos e seus cultos sincréticos. Assim, o momento no qual inúmeras substâncias passaram à ilegalidade no país significou uma versão brasileira do impulso moralista sendo colonizado e colonizando o Estado na forma de estratégias de controle social. A partir da proibição às drogas, estratos que já recebiam atenção especial das forças policiais passaram a ser alvos potencializados das técnicas de governo e vigilância.
A questão do controle de drogas nas décadas iniciais do século XX emerge como um grande tema de saúde e segurança públicas. O uso desmedido de psicoativos passou a ser coibido para evitar epidemias ou degenerescências físicas e mentais nos usuários e, também, para reprimir os negociantes de tais “venenos” pelo crime de o s d i s p o n i b i l i z a r à s o c i e d a d e . O c o n s u m i d o r f o i encampado pelos códigos penais como uma figura mista entre o doente e o criminoso, ao passo que o traficante recebia a clara definição de delinqüente. As âncoras dessa ampla penalização repousam, no entanto, nas práticas moralistas que, tanto nos EUA como no Brasil, deram impulso para a Proibição e foram, com a adoção de leis restritivas, incorporadas pelos Estados em seus esforços para governar os vivos. A sociedade sã insurgiuse contra a “degradação moral e cívica” por meio de determinações proibicionistas prenhes de positividades enquanto garras para capturar indesejáveis, dissonantes e “perigosos”.
Os gestos toleráveis
A partir dos anos 1980, a política de guerra frontal à economia ilegal das drogas, disseminada pelo globo em moldes estadunidenses, passou a enfrentar resistências localizadas. Alguns Estados, como a Holanda e a Suíça, flexibilizaram suas leis antidrogas, identificando a implausibilidade de se erradicar o uso, e por extensão, o consumo de psicoativos12. A motivação para tais reformas legais foi proveniente de grupos de usuários organizados (como o Junkiebond holandês) e de especialistas (cientistas sociais, psicólogos, médicos) que passaram a pregar medidas alternativas à penalização dos usuários de substâncias ilícitas. Mesmo nos Estados Unidos, comissões e conselhos de estudiosos iniciaram um processo de reavaliação das diretrizes governamentais sobre combate ao narcotráfico e ao consumo de drogas proibidas. Em 1996, o Council on Foreign Relations (Conselho de Relações Exteriores), centro de pesquisa sediado em Nova Iorque, organiza um encontro com a participação de profissionais e acadêmicos das mais diversas procedências para criticar os rumos tomados pelos governos estadunidenses desde a declaração de “guerra às drogas” proferida pelo governo de Richard Nixon, em 1972. A síntese dos ítens discutidos veio a público no ano seguinte13, trazendo como principal mensagem a necessidade de uma reforma sutil no proibicionismo. O mote que incitou a discussão foi a constatação de que a “guerra às drogas”, como política deliberada de ataque à oferta e à interceptação dos carregamentos de psicoativos, fracassara em seu intento: o tráfico continuava a crescer, assim como o número de usuários no Estados Unidos. Para os especialistas reunidos pelo Council, a tônica das iniciativas governamentais dever i a s e r d i r e c i o n a d a p a r a a demanda p o r d r o g a s psicoativas, por meio de campanhas de orientação a jovens e apoio ao tratamento daqueles que desejassem se “desintoxicar”. Em outras palavras, os milhões de dólares anuais dispensados pelo governo estadunidense para combater organizações narcotraficantes no país e fora dele, seriam mais bem empregados se destinados ao cuidado com os usuários e com os possíveis futuros consumidores.
O proibicionismo não é, de forma alguma, contestado em seus princípios. As drogas ilícitas deveriam assim
permanecer e o consumo desses compostos teria de ser desencorajado ainda com mais determinação. A crítica era destinada à ênfase militarista da “guerra às drogas” e não à Proibição. Na lógica dos participantes do foro, o único caminho consistente para eliminar o uso de psicoativos era impedir a constituição de novos consumidores. A permanência do narcotráfico, segundo essa avaliação, decorria da desatenção governamental ao usuário, já que lhes parecia evidente que sem procura não há oferta. As ações preventivas, no entanto, não eram uma completa novidade nos Estados Unidos; ao menos, desde 1983, programas educativos em escolas públicas foram elaborados para expor os perigos das drogas. Naquele ano, o departamento de política de Los Angeles pôs em prática um projeto de orientação sobre drogas para colégios chamado Drug Abuse Resistence Education – D.A.R.E. (Educação para a Resistência ao
Abuso de Drogas)14. Disseminado posteriormente pelo país, o D.A.R.E. levou às classes de 5a e 6a séries policiais uniformizados que se propuseram a explicar aos alunos os efeitos maléficos dos psicoativos e as táticas para evitar a armadilha das drogas15. A experiência dos educadores fardados foi exportada para outros países, como o Brasil, onde policiais militares vêm, desde o final da década de 1990, participando de projetos similares16. No discreto reformismo proibicionista, as cr í t icas se direcionam ao modo de manutenção do combate às drogas, mas não ao combate em si. As substâncias permanecem banidas pelas avaliações de cunho médico-psicosocial que ocul tam mal os veios moral istas nelas identificáveis.
Formas mais contestadoras ao proibicionismo podem ser encontradas no heterogêneo conjunto de iniciativas conhecido como redução de danos. Aplicadas em alguns países, principalmente europeus, desde os anos 1980, as políticas de redução de danos partem de um princípio oposto ao da proibição no que concerne ao uso de drogas psicoativas. Para seus partidários, a meta proibicionista de banir o uso de drogas das sociedades é um objetivo inalcançável. A demanda sempre existirá, pois “não há na história uma sociedade que não tenha usado substâncias psicoativas”17. Frente à impossível redução do uso, a realizável redução de prejuízos ao usuário.
O primeiro alvo das políticas de minimização dos danos foi os usuários de drogas injetáveis. A expansão dos casos de AIDS, em meados da década de 1980, motivou a defesa por parte de médicos e ativistas holandeses e ingleses, a adoção de programas estatais de troca de agulhas. Os usuários poderiam encontrar ajuda em estabelecimentos ou unidades móveis oficiais que forneceriam novas agulhas e seringas e poderiam prestar apoio psicológico, testes de pureza da heroína adquirida ilegalmente, exames para detectar o HIV, além de eventuais indicações para tratamentos de desintoxicação.Montados nas malhas assistenciais do welfare state, as iniciativas de troca de agulhas justificavam-se a partir do pragmatismo redutor de danos: frente à impossibilidade em impedir que usuários injetem heroína, que ao menos passem a injetar com maior segurança.
As políticas de redução de danos foram concebidas como uma estratégia para atrair o usuário de drogas injetáveis por meio de uma abordagem que não o considerasse um criminoso, mas alguém que inspirava cuidados. Os consumidores usuais destas substâncias passam a ser tidos como indivíduos “com hábitos de mal adaptação que precisam de tratamento”18. Desse modo, é possível notar a migração que houve de uma visão estritamente penalizadora para outra que investe na terapeutização de comportamentos. Pequeno deslocamento, as propostas redutoras de danos não se apresentaram como ruptura ou afronta direta ao regime legal da Proibição.
Encarada como uma alternativa para a política de drogas, as indicações para minimizar prejuízos do uso de psicoativos não são, necessariamente, posturas favoráveis ao consumo destes compostos. Ao contrário, autores como Marlatt19 e Lurie20 fazem questão de frisar que as políticas de redução de danos não formam um corpo de idéias favoráveis ao uso de drogas, tampouco à flexibilização demasiada das leis antipsicoativos. Segundo esses especialistas, a Proibição é nociva porque desconsidera o usuário em sua dimensão pessoal, considerando-o um mero infrator. A atenção que uma perspectiva redutora de danos assume para com o usuário teria a grande vantagem de romper com a estigmatização do consumidor que o lança em circuitos marginais e em padrões “pouco saudáveis” de intoxicação. Nesse sentido, as leis antidrogas devem ser transformadas, principalmente, no que diz respeito à sua aplicação sobre os usuários. Assim, as políticas de redução de danos não têm dificuldades em defender a descriminalização das substâncias psicoativas ilícitas.
A reforma legal que implemente a descriminalização de psicoativos proibidos abranda o modo como os indivíduos flagrados com drogas ilícitas são tratados juridicamente. A legislação estabelece quotas consideradas para “uso pessoal” que identificam o usuário; qualquer indivíduo que leve consigo quantidade acima do permitido pela lei, são considerados traficantes. Flagrado por um policial, o indivíduo classificado como “usuário” pode ser obrigado a prestar serviços comunitários, pagar multas administrativas, comparecer a grupos de educação sobre drogas ou, se avaliado como “adicto” pela Justiça, ser internado para tratamento compulsório de desintoxicação. Países como a Inglaterra e a Holanda têm leis abrandadas no sentido da descriminalização para a maconha, mas mantém o proibicionismo para outras substâncias como a heroína, a cocaína e as drogas sintéticas como o LSD e o ecstasy. Em Portugal vigora, desde 2002, uma nova lei que descriminalizou o uso de todas as drogas ilícitas instituindo sanções alternativas ao encarceramento.
A tendência das leis proibicionistas reformadas vem sendo o relaxamento das leis que penalizam o usuário acompanhado do endurecimento nas leis contra o narcotráfico. A manutenção da produção e da comercialização de psicoativos como crime propicia cenários nos quais o mercado negro permanece intocado e os consumidores não deixam de ser assediados, ainda que de modo distinto21. Para os negociadores de drogas ilegais, continuam cabendo as mesmas medidas de repressão policial que movimentam as engrenagens governamentais e a busca de alvos entre os segmentos “perigosos” da população; para os usuários, não há mais o encaminhamento para o sistema prisional, mas o controle se dá em novos termos, por meio de uma vigilância médico-jurídica que o lança em outros campos de regulamentação.
O deslocamento realizado pela descriminalização de psicoativos é perfeitamente assimilável dentro de um ambiente legal proibicionista; pois institui padrões modificados e novas gradações de controle sobre todos os envolvidos com substâncias ilícitas. Os defensores das políticas de redução de danos podem se satisfazer com a descriminalização porque não há uma defesa explícita do uso de drogas em tal postura. O uso de drogas é notado como uma fatalidade, não como desejável ou, simplesmente, como um dado social. Situação alguma seria mais ideal que a total abstinência: dano algum ocorreria, medida alguma para minimizar sofrimentos seria necessária. No entanto, a abstinência é uma utopia; a utopia das políticas de redução de danos. Inalcançável, a redução do uso deve ser substituída como objetivo pela melhoria nas condições de consumo. O proibicionismo visa um impossível “mundo livre das drogas”, portanto, há que se encarar a inevitabilidade do uso de drogas e trabalhar para minorar prejuízos ao indivíduo e à sociedade. Desse modo, apenas um proibicionista ortodoxo pode encontrar alarme nas propostas de redução de danos.
Análises mais críticas aos efeitos da Proibição chegam a pleitear a urgência da legalização das drogas, reforma legal mais profunda que colocaria os psicoativos, hoje banidos, em uma situação similar aos dos legais álcool e tabaco. Em linhas gerais, os argumentos prólegalização giram em torno da avaliação de que “a proibição e a aplicação da proibição impõem custos sociais que superam o valor das metas que ambiciona a proibição [os custo sociais do uso de drogas]”, além de “criar um mercado negro ameaçador (...) sem diminuir consideravelmente a quantidade de drogas consumidas”22. A percepção preliminar é muito próxima daquela que fazem os proibicionistas do Council on Foreign Relations e os partidários da redução de danos, pois se fia na noção de que a política de tolerância zero contra o uso e o mercado de drogas ilícitas não produziu o resultado esperado da queda do consumo e fim do narcotráfico.
Defensores mais ousados das políticas de redução de danos, como Marks23, chegam a pleitear a legalização das drogas como meio para a consecução das metas de diminuição de prejuízos sociais e individuais. Essa legalização deveria ser, no entanto, conduzida com firmeza pelo Estado, por intermédio de mecanismos de controle eficazes de fiscalização da produção e da comercialização de psicoativos. A modalidade de legalização estatizante, como a defendida pelo autor, prevê um mercado lícito para as substâncias psicoativas hoje ilegais sob total controle do Estado: da produção à venda ao consumidor, o processo seria comandado por agências estatais criadas para esse fim. A garantia do acesso a drogas de boa qualidade aliada aos preços acessíveis e à ausência de punição ao hábito de se intoxicar, levaria os usuários à esfera legal do consumo de drogas, matando o narcotráfico por inanição. A desarticulação do mercado clandestino traria um considerável ganho em termos de segurança social, pois vedaria a principal fonte de lucros de incontáveis organizações ilegais, ao mesmo tempo em que poria fim à violência dos combates entre polícia e narcotraficantes. Além disso, a legalização estatizante faria de todo ponto de venda oficial d e p s i c o a t i v o s u m c e n t r o d e e d u c a ç ã o v i s a n d o “conscientizar” sobre o uso destes compostos.
Em um caminho mais radical, há aqueles que, como os economistas neoliberais da Escola de Chicago, pregam a legalização sem controle estrito do Estado. Dessa perspectiva, as substâncias psicoativas são vistas como uma mercadoria amplamente desejada e que deve ser regulada pelas forças de mercado, sem intromissão estatal. Lastreia essa premissa o princípio liberal que reconhece o indivíduo como unidade racional que tem o direito de eleger as práticas que lhes digam respeito, sem prestar contas disso a outrem ou ao Estado. Qualquer hábito privado, ainda que nocivo ao indivíduo, é válido desde que assim permaneça. Nesse sentido, toda gestão externa à vida privada é intolerável. Cabe ao Estado intervir quando o exercício da liberdade de um sujeito afrontar o espaço de liberdade de outro sujeito. Em uma palavra, os danos que alguém causa a si estão no soberano plano das escolhas individuais, campo vedado à normatização exterior. Os prejuízos àqueles que vivem com o usuário de psicoativos podem existir, mas por si só não justificam uma proibição ampla e universal que avilte a supremacia do indivíduo em eleger os caminhos para si. A legalização liberal responde às preocupações dos entusiastas da redução de danos com uma lógica menos humanitária e aos defensores da legalização estatizante, com argumentos anti-autoritários.
Em todos os casos mencionados — proibicionismo com enfoque na demanda, políticas de redução de danos, descriminalização, legalização estatizante ou liberal — percebe-se um ímpeto que contesta em graus variados o proibicionismo. No entanto, nenhuma das propostas foge à mesma lógica em que repousa a Proibição; todos estão no campo da normatização. As indicações para reforma da repressão total ao narcotráfico e ao consumo de drogas psicoativas transitam ainda no campo da legalidade, sugerindo alterações também universais. O inconteste avanço com relação à Proibição esbarra na vontade de produzir outras estruturas e padrões que não se pode perceber como necessariamente favoráveis ao consumo de drogas. Nas medidas de redução de danos, o fatalismo referente ao uso de drogas norteia as ações; nas reformas de descriminalização, o usuário é enredado por redes mais sutis que as grades do sistema prisional, mas não deixa de sê-lo; na defesa da legalização pela via do monopólio estatal, há a possibilidade de um controle potencializado dos usuários e na legalização liberal, uma redução do uso de psicoativos em termos utilitários e individualistas. O direito, terreno onde se cristalizam as demandas morais, segue sendo o agenciador a mediar a relação entre os indivíduos e as drogas psicoativas; razão pela qual se pode pressupor o porquê da grande difusão destas visões alternativas como legítimos vetores críticos ao proibicionismo.
Éticas & incômodos
O psicanalista estadunidense Thomas Szasz, ao questionar a proibição das drogas psicoativas, enfatizou a necessidade de que se fosse além da mera reformulação em termos legais do controle de drogas. Para Szasz há pouca diferença entre os proibicionistas e os defensores da legalização, pois estes últimos se arvorariam a regulamentar o que já é extremamente restrito, como se algo já “legal pudesse ser legalizado”24. O autor chama a atenção para o fato de que as políticas de legalização criariam uma espécie de “socialismo químico”25, com o Estado monopolizando todo o circuito de produção e venda de psicoativos; situação que instauraria outras modalidades de vigilância sobre os consumidores. Filiado ao que se poderia chamar de liberalismo radical, Szasz nutre profunda ojeriza pela substituição de uma legislação negativa por outra positiva: muitas semelhanças existiriam entre uma situação legal em que o Estado interfere nas condutas individuais e nos grupos sociais tidos como ameaçadores com a justificativa de aplicar a Proibição e um ambiente no qual o consumo fosse permitido sob determinadas circunstâncias ditadas por um Estado agigantado. A planificação química levaria adiante a apropriação que os Estados ocidentais realizaram d a m e d i c i n a c o m o r e c u r s o f u n d a m e n t a l p a r a o esquadrinhamento social, formando o que Szasz chama de “Estados Terapêuticos”26. Em termos foucaultianos, o proibicionismo agrega à marcha da governamentalização do Estado, técnicas de disciplinarização ampliadas que reforçam as positividades de um aparato de governo que se coloca como fornecedor de saúde e bem-estar, ganhando livre passagem nas mais sutis táticas de vigilância e condicionamento dos sujeitos sujeitados27. A egalização, por seu turno, não levantaria as guardas deste Estado provedor de vida, mas, em sentido oposto, tornaria mais sofisticada a normalização dos corpos ao produzir novos lugares, circuitos e identidades.
Uma reforma progressista destinada a descriminalizar um leque de substâncias psicoativas sem abdicar da reprovação médico-jurídica, não produziria mais que uma outra modalidade de encarceramento: o usuário identificado como um doente não deixa de ser enquadrado como um anômalo social; não mais o criminoso, mas o empestado, que deve ser isolado para que não cause mal a si e à sociedade. Confinado não na prisão, mas no hospital psiquiátrico, o paciente da sociedade deve sofrer intervenções saneadoras que o restabeleçam para sua ótima reinserção entre os corpos saudáveis e produtivos. A lógica, como se nota, é a mesma dos reformadores das prisões que pregaram, nos séculos XVIII e XIX, a rgência em transformar as masmorras em humanitárias fábricas de novos cidadãos. Nesse sentido, a construção de novas leis não desmonta, mas, ao contrário, reforça e legitima padrões outros de controle e confinamento.
As novas modalidades de intervenção podem se dar por meio de leis abrandadas se for levado em conta, como afirma Gilles Deleuze, que à sociedade disciplinar descrita por Foucault — aquela em que a produção de subjetividades se dá em mecanismos como a prisão, a escola, a família e o exército — sobrepõe-se uma sociedade de controle que “funciona não mais por confinamento, mas por controle contínuo e comunicação instantânea”28. Numa sociedade de controle os sujeitos não são conformados em definitivo; são submetidos e vigiados por intermédio da formação permanente, num processo que os transforma em uma cifra a transitar por fluxos cibernéticos. Não mais o operário da fábrica, mas o gerente da empresa; não mais o estudante graduado, mas o aluno eterno que necessita reciclar-se; não mais somente um número na cédula de identidade, mas também as senhas sem as quais nada se acessa. Nesse ambiente do controle perpétuo, o regime das prisões — forma mais bem acabada da ortopedia disciplinar — pode ceder espaço para “penas ‘substitutivas’, ao menos para a pequena delinqüência, e [à] utilização de coleiras eletrônicas que obrigam o condenado a ficar em casa em certas horas”29. Não é preciso manter o indivíduo sob os olhos de um outro, na posição de vigia. Os recursos tecnológicos presentificam o big brother de George Orwell ou a versão eletrônica do panóptico de Jeremy Bentham e, desse modo, aquele que deve ser controlado não deixa de sê-lo por não estar atrás dos muros da prisão.
A partir dessa perspectiva, tem-se que as drogas entendidas pelos especialistas do Estado como leves não
levariam a nada mais grave do que crimes brandos. Os mais ousados progressistas defendem, até mesmo, a
flexibilização para as drogas ditas pesadas, como a heroína e a cocaína, desde que haja uma supervisão estrita do aparato médico estatal. Assim, o ajuste penal pode transcorrer sem causar surpresas, uma vez que estão em movimento novos recursos para rastrear e mesmo confinar temporariamente (os tratamentos de desintoxicação compulsórios). As críticas ao proibicionismo impressas nos discursos pela descriminalização e pela legalização (estatizante ou liberal) são assimiláveis porque transitam num repertório que não é estranho ao que sustenta a Proibição. Vibrando no mesmo diapasão, defensores da descriminalização, da redução de danos e das modalidades de legalização jogam com o mesmo recurso do regime contra o qual se opõe, pois exigem o soerguimento de um corpo jurídico de novas formas e cores, mas ainda um código normativo amplo e regulador. As forças sociais progressistas pregam a necessidade imperiosa em regulamentar em outros termos as relações entre usuários e os psicoativos hoje banidos; o que significa novas leis que permitam o acesso às drogas. Tais leis, no entanto, teriam o mesmo perfil das leis proibicionistas, já que seriam universais e impositivas. Os partidários das leis reformadas poderiam contra-argumentar afirmando que a flexibilização das leisé menos autoritária que a Proibição, pois deixariam a cargo do indivíduo a eleição sobre usar ou não substâncias psicoativas. De fato, há poucas atitudes mais impositivas do que o proibicionismo, entretanto, a economia das penas, ponto de apoio do direito, não se abala, mas antes, reafirma-se como foro legítimo para a deliberação das questões sociais e dos desejos individuais. O que se questiona aqui, portanto, é a validade em se construir leis universais no lugar de uma já preexistente.
Ao se perguntar como seria possível legalizar algo já legalizado, Szasz provocava a reflexão exatamente deste ponto. A Proibição foi, em si, um grande movimento que trouxe para o âmbito das regulamentações legais temas que antes do início do século XX passavam ao largo das preocupações jurídicas. Relações não previstas em lei, mas existentes e difundidas socialmente, foram encampadas pelas normas e, por conseguinte, pelo Estado. O campo do uso de psicoativos foi, talvez, um dos últimos a ser colonizado pela medicalização da sociedade, pela intervenção ampliada dos mecanismos de controle governamentais sobre os indivíduos e sobre os grupos sociais. Estratégia prenhe de possibilidades para o reforço da necessidade do Estado em garantir a ordem pública, a disciplina das coisas, a pacificação dos descontentamentos e a manutenção da propriedade. Se, como afirma Foucault, “a classe no poder se serve da ameaça da criminalidade como álibi para endurecer o controle da sociedade”30, a Proibição produziu delinqüentes do lado dos consumidores e dos negociadores de psicoativos, fato que ativa um filão fértil para a repressão e o policiamento das populações. Diante do impasse colocado pelas propostas de reforma legal que não abdicam da vigilância — nem a desarticulam —, Szasz defende o caminho da deslegalização: a legalização é até tolerada pelo estadunidense como uma estratégia, se a meta for a abolição das leis sobre drogas31. Nem proibir, tampouco permitir; simplesmente desregulamentar.
O argumento histórico levantado pelos entusiastas da redução de danos e da legalização, de que não há sociedade humana que não tenha estabelecido relações com alguma droga psicoativa, ressurge com outro potencial. O uso de psicoativos é e foi parte dos repertórios culturais de diversos povos, fato que desencoraja a consecução de qualquer proposta que vise a supressão definitiva da ebriedade química entre os homens. Esse fato, no entanto, não significou o desmembramento das comunidades, a desestruturação da vida social. No entanto, uma mesma mirada histórica que se interesse também pelas relações de poder que perpassam os controles sobre drogas psicoativas, traz à vista incríveis potencialidades para a gestão de vidas individuais e de grupos sociais. Não é hermético ou de difícil assimilação notar a Proibição como técnica de governo dos vivos; entretanto, é preciso rastrear suas procedências e tal ímpeto leva invariavelmente ao campo da moral.
A defesa da legalização ou de transformações legais intermediárias é plausível não só porque se propagam no mesmo espaço e lógica do proibicionismo, mas também porque não afrontam o rechaço moral à intoxicação. Sob as camadas de discursos médicos e jurídicos jaz a reprovação moral aos psicoativos; sob a articulação entre a necessidade em salvaguardar a salubridade e a segurança públicas, encontra-se a vontade de proteger a moralidade pública. A batalha contra as drogas psicoativas é uma luta aparentada àquela contra o sexo, na medida em que o alvo, o grande incômodo é o prazer em vida. As “desintegrações de lares”, as “destruições de vidas” e tragédias similares soam no diapasão da reprovação ao gozo de si. A satisfação que provém do dispor de si parece intolerável a qualquer campo de moralidade, já que a moral exige padrões de comportamento universais. A emergência de condutas criadas na localidade que prescindam de normas globais — e, portanto, normalizações — é insuportável para as moralidades, pois rompe com o padrão, com a previsibilidade de comportamentos.
A liberação das drogas significa a deslegalização, a d e s n o r m a t i z a ç ã o , m a s n ã o a i n e v i t a b i l i d a d e d o desregramento. A desmesura e a continência são ambos comportamentos possíveis no campo das opções particulares. Indivíduos abstinentes, usuários comedidos e aqueles sem controle existem em tempos de Proibição Universal e não desapareceriam num mundo sem regulamentação legal. As escolhas sobre si, apesar das conformações que visam disciplinar o corpo e apaziguar os instintos, seguem vivas e irrepresáveis. A relação de a l g u ém c om uma s u b s t â n c i a p s i c o a t i v a p o d e t e r
incontáveis motivações; pode ser um contato religioso ou ritual, um signo de identidade grupal ou simples hedonismo. Os usos não são passíveis de catalogação, nem são necessariamente libertários ou autoritários.
Entretanto, é possível conceber que as regras a nortear o consumo destes compostos possam se dar na localidade, sendo formuladas pelos interessados diretos. As regras locais, diferente das leis proibicionistas ou progressistas, são flexíveis, maleáveis, forjadas pelos indivíduos que vivenciam concretamente a situação sobre a qual pensam e regulamentam. Não há, portanto, a transcendentalidade da norma, a metafísica do direito.
A noção de bem-comum desvanece na medida em que éticas locais32 estabelecem seus parâmetros, suas linhas de condução. A ausência de receituário quando se pensa em liberação ou abolição das leis anti ou pró-drogas transtorna tanto como ouvir uma língua da qual se compreende pouco. É um transtorno de linguagem, um abalo a noções cristalizadas, um rasgo profundo e quase ininteligível.
Todavia, a escolha sobre o que fazer de si independe de rupturas legais. Aliás, esse trabalho de agir sobre sua própria existência compondo um trajeto que se subleve contra as formatações externas começa com uma decisão. Decidir sobre si é uma atitude, não uma modificação legal, não um novo cânone moral. Não é, desse modo, uma utopia, uma projeção para um mundo vindo após um ato heróico ou redentor. As práticas de si são dadas no particular de cada existência33, são confeccionadas por poucos e para poucos. Dependem das ações e das posturas inventadas por cada um, não de uma criação proveniente de cima e destinada a todos. O que fazer com a desmesura, com a incontinência? É o mesmo que se questionar sobre o que fazer com a morte. Na contramão, poder-se-ia perguntar: o que fazer com a vida? O você faz de si?
A el iminação do sof r imento é uma das utopias humanistas mais fortes e presentes. A dor do outro é insuportável para a sensibilidade ocidental e, como conseqüência, o incontornável compadecimento. Quando Antonin Artaud vociferava contra a proibição do ópio afirmando que “os perdidos estão por natureza perdidos” e que, por isso, “todas as idéias de regeneração moral nada farão por eles”34, afirma que a ânsia de salvação vibra na mesma freqüência da preocupação humanista com as mazelas sociais e que não há proibição que barre os intuitos daqueles que querem destruir-se. Pode-se sustentar, em adição, que a ilegalidade leva a um obscurantismo que pode, ele sim, levar à destruição não voluntária: numa bala que atinge um soldado do tráfico, na overdose que mata um usuário de heroína.
A reprovação moral às drogas é um episódio da ojeriza à gestão de si. Agir para a produção de uma ética de si, em termos foucaultianos, é mais e menos do que defender o uso de psicoativos. Num mundo em que a norma é abolida em cada um de nós, não há espaço para preconizar o uso ou o não uso. O padrão cede lugar às condutas e às relações que são estabelecidas entre aqueles que decidiram não ser o que se espera, mas o que se quer ser. Não num futuro, mas no incômodo que se dá no presente, ao lado, dentro, fora, pelas minhas frestas.
Notas
1 W. McAllister. Drug diplomacy in the XXh century. Londres, Routledge, 2 0 0 0 .
2 A. Escohotado. Historia elemental de las drogas. Barcelona, Anagrama, 1997.
3 T. Szasz. Nuestro derecho a las drogas. Barcelona, Anagrama, 1993.
4 E. Passetti. Das ‘fumeries’ ao narcotráfico. São Paulo, EDUC, 1991; e A. Escohotado. Historia de las drogas, vol. 2., Madrid, Alianza, 1998.
5 T. Szasz. op. cit.
6 M. Fo u c a u l t . Vi g i a r e p u n i r. Pe t r ó p o l i s, Vo z e s, 1 9 9 7 ; e “A governamentalidade” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998.
7 M. Foucault. “ O nascimento da medicina social” in Microfísica do poder. Rio de Janeiro, Graal, 1998.
8 M. Foucault. “Nascimento da biopolítica” in Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1997, p. 89.
9 Idem. “Soberania e disciplina” in op. cit., 1998, p. 189.
10 W. McAllister. op. cit.
11 B. Carneiro. A vertigem dos venenos elegantes. São Paulo, Dissertação de mestrado, PUC-SP, 1993.
12 G. A. Marlatt. “Redução de danos: uma breve história” in G. A. Marlatt et all.. Redução de dano. Porto Alegre, Artmed, 1999.
13 M. Falco. Reflexiones sobre el control internacional de las drogas. México, Fondo de Cultura Económica, 1997.
14 É importante notar que a sigla D.A.R.E. significa, em inglês, “desafio” ou “ousadia” e seus verbos correspondentes.
15 G. A Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. Allan Marlatt et all. op. cit.
16 G. Corrêa. “Escola-droga” in Verve, n 1. São Paulo, Nu-Sol, abril 2002.
17 J. Marks. “Dosagem de manutenção de heroína e cocaína” in M. Ribeiro & D. Seibel (orgs.). Drogas: hegemonia do cinismo. São Paulo, Memorial da América Latina, 1997.
18 K.Wingardt & G. A. Marlatt. “Redução de danos e políticas públicas” in G. A. Marlatt et all. op. cit., p 254.
19 G. A. Marlatt. “Princípios e estratégias de redução de danos” in G. A. Marlatt et all., op. cit.
20 P. Lurie. “Redução de danos: a experiência norte-americana” in M. Ribeiro & D. Seibel (orgs.), op. cit.
21 M. Kleiman & A. Saiger. “Impuesto, regulaciones y prohibiciones: vuelve a formularse el debate por la legalización” in P. Smith (org.). El combate a las drogas en América. México, Fondo de Culura Económica, 1993.
22 M. Kleiman & A. Saiger. op. cit., p. 292.
23 Idem.
24 T. Szasz, op. cit., p. 152.
25 Idem, p. 148.
26 Ibidem.
27 M. Foucault. “O nascimento da medicina social”, op. cit.
28 G. Deleuze. “Controle e devir” in Conversações. São Paulo, Editora 34, p.2 1 6 .
29 Idem. “Post-scriptum: sobre a sociedade de controle” in Conversações, op. cit., p. 225.
30 M. Foucault. “A prisão vista por um filósofo” in Estratégia, Poder-saber, col. Ditos & Escritos IV. Rio de Janeiro, Forense, 2003, p. 157.
31 T. Szasz, op. cit., p. 206.
32 E. Passetti. Éticas dos amigos: invenções libertárias da vida. São Paulo, Imaginário, 2003.
33 M. Foucault. História da sexualidad2: o uso dos prazeres,vol. 2. Rio de Janeiro, Graal, 2001, p. 30.
34 A. Artaud. “Seguridad general: la liquidación del opio” in Textos. Buenos Aires, Aquarius, 1971, p. 79.
RESUMO
Análise da gestação e cristalização do proibicionismo de substâncias psicoativas; os desdobramentos de sua lógica presentes nas políticas de redução de danos, descriminalização e legalização. O incômodo provém da liberação de si. Palavras-chave: drogas, proibicionismo, liberações.
ABSTRACT
Analysis of the construction and establishment of the psicoactives substances’ prohibitionism; the continuity of its logics in harm reduction, discriminalization and legalization policies. The annoyance comes from the liberation of the self. Keywords: drugs, prohibitionism, liberations.
buscado em: http://www.nu-sol.org/verve/pdf/verve6.pdf
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