L'homme est-il mort? (entrevista com C. Bonnefoy), Arts et Loisirs, no 38, 15-21, junho de 1966, pp. 8-9. Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, vol. I., p. 540-544, por Marcio Luiz Miotto. Revisão de wanderson flor do nascimento.
[... primeiro pedimos a Michel Foucault que definisse o lugar
exato e a significação do humanismo em nossa cultura. ]
- Cremos que o humanismo é uma noção muito antiga que
remonta a Montaigne e bem mais além. Ora, a palavra "humanismo" não
existe nos Ensaios. Na verdade, com essa tentação da ilusão retrospectiva à
qual sucumbimos muito freqüentemente, imaginamos de boa vontade que o humanismo
sempre foi a grande constante da cultura ocidental. Assim, o que distinguiria
esta cultura das outras, das culturas orientais ou islâmicas, por exemplo,
seria o humanismo. Comovemo-nos quando reconhecemos vestígios deste humanismo
noutro lugar, num autor chinês ou árabe, e temos então a impressão de nos
comunicar com a universalidade do tipo humano.
Ora, não somente o humanismo não existe nas outras culturas,
mas está provavelmente na nossa cultura na ordem da miragem.
No ensino secundário, aprendemos que o século XVI foi a era
do humanismo, que o classicismo desenvolveu os grandes temas da natureza
humana, que o século XVIII criou as ciências positivas e que chegamos enfim a
conhecer o homem de maneira positiva, científica e racional com a biologia, a
psicologia e a sociologia. Imaginamos que, ao mesmo tempo, o humanismo tem sido
a grande força que animou o nosso desenvolvimento histórico e que é finalmente
a recompensa desse desenvolvimento, resumidamente, que é o princípio e o fim. O
que nos admira na nossa cultura atual, é que ela possa ter a preocupação com o
humano. E se falamos de barbárie contemporânea, é na medida em que as máquinas,
ou certas instituições, nos aparecem como não humanas.
Tudo isso é da ordem da ilusão. Primeiramente, o movimento
humanista data do fim século XIX. Em segundo lugar, quando se olha ligeiramente
as culturas dos séculos XVI, XVII e XVIII, percebe-se que o homem não tem
literalmente nenhum lugar. A cultura é então ocupada por Deus, pelo mundo, pela
semelhança das coisas, pelas leis do espaço, e certamente também pelo corpo,
pelas paixões, pela imaginação. Mas o homem mesmo é completamente ausente.
Em As Palavras e as Coisas, quis mostrar de quais
peças e quais pedaços o homem foi composto no fim século XVIII e início do XIX.
Tentei caracterizar a modernidade dessa figura, e o que me pareceu importante
era mostrar isso: não é tanto porque se teve um cuidado moral com o ser humano
que se teve a idéia de conhecê-lo cientificamente, mas é pelo contrário porque
construiu-se o ser humano como objeto de um saber possível que em seguida
desenvolveram-se todos os temas morais do humanismo contemporâneo, temas que
são encontrados nos marxismos frouxos, em Saint-Exupéry e Camus, em Teilhard
Chardin, resumidamente, em todas essas figuras pálidas da nossa cultura.
- Você falou aqui de humanismos frouxos. Mas como
você situa algumas formas mais sérias de humanismo, o humanismo de Sartre, por
exemplo ?
- Se afastamos as formas fáceis de humanismo que representam
Teilhard e Camus, o problema de Sartre aparece como completamente diferente.
Aproximadamente, pode-se dizer isso: o humanismo, a antropologia e o pensamento
dialético estão ligados. O que ignora o homem, é a razão analítica
contemporânea que se viu nascer com Russell, e que aparece em Lévi-Strauss e
nos lingüistas. Esta razão analítica é incompatível com o humanismo, enquanto
que a própria dialética se nomeia acessoriamente de humanismo.
Ela se nomeia por várias razões: porque é uma filosofia da
história, porque é uma filosofia da prática humana, porque é uma filosofia da
alienação e da reconciliação. Por todas essas razões e porque continua, no
fundo, uma filosofia do retorno a si mesmo, a dialética promete em certa medida
ao ser humano que ele se tornará um homem autêntico e verdadeiro. Ela promete o
homem ao homem e, nessa medida, não é dissociável de uma moral humanista. Neste
sentido, os grandes responsáveis do humanismo contemporâneo, são evidentemente
Hegel e Marx.
Ora, parece-me que escrevendo a Crítica da razão dialética,
Sartre pôs em certa medida um ponto final, ele fechou novamente o parêntese
sobre todo este episódio da nossa cultura que começa com Hegel. Ele fez tudo o
que pôde para integrar a cultura contemporânea, isto é, as aquisições da
psicanálise, da economia política, da história, da sociologia, à dialética. Mas
é característico que ele não poderia deixar cair tudo o que é da competência da
razão analítica e que faz profundamente parte da cultura contemporânea: lógica,
teoria da informação, lingüística, formalismo. A Crítica da razão dialética é o
magnífico e patético esforço de um homem século XIX para pensar o século XX.
Neste sentido, Sartre é o último hegeliano, e eu diria mesmo o último marxista.
- Ao humanismo sucederá então uma cultura não
dialética. Como você a concebe e o que se pode dizer dela agora?
- Esta cultura não dialética que está a caminho de se formar
é ainda muito balbuciante por diversas razões. Primeiro, porque tem aparecido
espontaneamente em regiões extremamente diferentes. Ela não tem lugar
privilegiado. Também não se apresentou, de entrada, como uma inversão total.
Ela começou com Nietzsche quando ele mostrou que a morte de Deus não era o
aparecimento, mas o desaparecimento do homem, que o homem e Deus tinham
estranhos parentescos, que eram ao mesmo tempo irmãos gêmeos e pais e filhos um
do outro, que Deus estando morto, o homem não poderia não desaparecer, ao mesmo
tempo, deixando atrás de si uma monstruosidade.
Ela apareceu igualmente em Heidegger, quando tentou retomar
a abordagem fundamental do ser em um retorno à origem grega. Apareceu
igualmente em Russell, quando fez a crítica lógica da filosofia, em
Wittgenstein, quando colocou o problema das relações entre lógica e linguagem,
nos lingüistas, e nos sociólogos como Lévi-Strauss.
Resumidamente, para nós mesmos atualmente, as manifestações
da razão analítica ainda são dispersas. É aqui que se apresenta a nós uma
tentação perigosa, o retorno puro e simples ao século XVIII, tentação que
ilustra bem o interesse atual pelo século XVIII. Mas não se pode ter um tal retorno.
Não refaremos mais a Enciclopédia ou o Tratado das sensações de Condillac[1].
- Como evitar essa tentação ?
- É necessário tentar descobrir a forma própria e
absolutamente contemporânea desse pensamento não dialético. A razão analítica
século XVII era caracterizada essencialmente por sua referência à natureza; a
razão dialética do século XIX desenvolveu-se sobretudo em referência à
existência, ou seja, ao problema das relações do indivíduo à sociedade, da
consciência à história, da práxis à vida, do sentido ao sem sentido, do vivo ao
inerte.
Parece-me que o pensamento não dialético que se constitui
agora não põe em jogo a natureza ou a existência, mas isso que é o saber. Seu
objeto próprio será o saber, de tal modo que esse pensamento esteja em posição
segunda em relação ao conjunto, à rede geral dos nossos conhecimentos. Ele terá
que se interrogar sobre a relação que pode haver, por um lado, entre os
diferentes domínios do saber e, por outro lado, entre saber e não-saber.
Não se trata de uma empresa enciclopédica. Primeiramente, a
Enciclopédia acumulava os conhecimentos e fazia sua justaposição. O pensamento
atual deve definir isomorfismos entre os conhecimentos. Em segundo lugar, a
Enciclopédia tinha por tarefa de expulsar o não-saber em benefício do saber,
das luzes. A nós, temos a compreender positivamente a relação constante que
existe entre o não-saber e o saber, porque um não suprime o outro; eles estão
em relação constante, apoiam-se um no outro e podem ser compreendidos apenas um
através do outro. É por isso que a filosofia passa atualmente por uma espécie
de crise de austeridade.
É menos sedutor falar do saber e dos seus isomorfismos que
da existência e o seu destino, menos consolador falar das relações entre saber
e não-saber que falar da reconciliação do homem consigo mesmo numa iluminação
total. Mas, depois de tudo, o papel da filosofia não é forçosamente o de
adocicar a existência dos homens e prometer-lhes algo como uma felicidade.
- Você fala de literatura. Em As Palavras e as
Coisas, na margem da arqueologia das ciências humanas, mas no mesmo
movimento de pensamento, você esboça, a propósito de Dom Quixote e Sade
sobretudo, isso que poderia ser uma abordagem nova da história literária. Qual
deveria ser esta abordagem?
- A literatura pertence à mesma trama que todas as outras
formas culturais, a todas as outras manifestações do pensamento de uma época.
Disso nós sabemos, mas o traduzimos comumente em termos de influências, de
mentalidade coletiva, etc. Ora, creio que a maneira mesma de utilizar a
linguagem numa cultura dada em um momento dado está ligada intimamente a todas
as outras formas de pensamento.
Pode-se perfeitamente compreender em um só movimento a
literatura clássica e a filosofia de Leibniz, a história natural de Lineu, e a
gramática de Port-Royal. Parece-me da mesma maneira que a literatura atual faz
parte desse mesmo pensamento não dialético que caracteriza a filosofia.
-Como assim?
- À partir de Igitur[2], a experiência de Mallarmé (que era contemporânea de
Nietzsche) mostra bem como o jogo próprio e autônomo da linguagem vem se alojar
precisamente onde o homem acaba de desaparecer. Depois, pode-se dizer que a
literatura é o lugar onde o homem não cessa de desaparecer em proveito da
linguagem. Onde "isso fala", o homem não existe mais.
Desse desaparecimento do homem em benefício da linguagem,
obras tão diferentes como as de Robbe-Grillet e de Malcolm Lowry, de Borges e
Blanchot o testemunham. Toda a literatura está em uma relação com a linguagem
que é no fundo a que o pensamento mantém com o saber. A linguagem diz o saber
não sabido da literatura.
- As Palavras e as Coisas é aberto com uma descrição de
As Meninas de Vélasquez, que se apresenta como o exemplo perfeito da idéia de
representação no pensamento clássico. Se você fosse escolher um quadro
contemporâneo para ilustrar da mesma maneira o pensamento não dialético de
hoje, qual você escolheria?
- Parece-me que é a pintura de Klee que representa melhor,
em relação ao nosso século, o que pôde ser Vélasquez em relação ao seu. Na
medida em que Klee faz aparecer em forma visível todos os gestos, atos,
grafismos, vestígios, lineamentos, superfícies que podem constituir a pintura,
ele faz o ato mesmo de pintar o saber manifesto e cintilante da própria
pintura.
Sua pintura não é de arte bruta, mas uma pintura
re-significada pelo saber aos seus elementos mais fundamentais. E estes
elementos, aparentemente os mais simples e os mais espontâneos, os mesmos que
não apareciam e que pareciam não dever jamais aparecer, são os que Klee espalha
sobre a superfície do quadro. As Meninas representava todos os elementos da
representação, o pintor, os modelos, o pincel, a tela, a imagem no espelho,
elas decompunham a pintura mesma nos elementos que faziam uma representação.
Já a pintura de Klee compõe e decompõe a pintura nos seus
elementos que, por serem simples, não são menos suportados, assombrados,
habitados pelo saber da pintura.
[1][1] Condillac, E. de. Traité des sensations - 1754.
[2] Mallarmé, S., Igitur.
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