por Edmilson Menezes & Everaldo de Oliveira (Org.)
SÃO CRISTÓVÃO: EDITORA UFS, 2011, 348P.
Por Izaias Ribeiro de Castro Neto
O livro Modernidade Filosófica: um projeto, múltiplos caminhos, organizado por Edmilson Menezes e Everaldo de Oliveira, membros fundadores do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofia da História e Modernidade – NEPHEM, da Universidade Federal de Sergipe – UFS, sela o conjunto de homenagens que marcaram as comemorações dos dez anos de intensa e profícua atividade do Núcleo. Dividido em quatro eixos temáticos, o volume é composto de treze ensaios que abordam, de maneira clara e concisa, os mais variados temas que permeiam o debate filosófico na Modernidade: filosofia, ciência, religião, tolerância, educação, razão, imaginação, subjetividade, experiência, existência, crítica, enfim. Assim, os autores buscam matizar as tensões que animam a Filosofia Moderna, bem como suas conexões com o pensamento contemporâneo.
O Esclarecimento, núcleo das discussões aí encetadas, tem em vista um “projeto de emancipação”, o qual possui um traço pedagógico e se pauta no uso livre e público da razão. No texto de Filino Carvalho Neto e Sônia Barreto, que trata de aspectos da filosofia prática kantiana, lemos que “A educação deve trazer consigo a meta de tornar o indivíduo autônomo, de tornar efetiva a sua liberdade e de fazê-lo pensar por si próprio; em outras palavras, de pensar criticamente” (p. 217). Sébastien Charles destaca a importância da educação no Século das Luzes e expõe algumas das razões pelas quais ela é recorrentemente tematizada: “É porque a educação é o fundamento mesmo das Luzes, posto que ela é esta frágil tocha, sempre ameaçada pelo vento da ignorância e pelo sopro da superstição, que tenta sobreviver e, se possível, espalhar-se” (p. 80). Educação que visa aoesclarecimento, que toma a razão como guia de seu próprio caminho. Mas a conquista da autonomia, isto é, esse processo de emancipação do indivíduo passa pelo crivo da publicidade. A esse respeito, Sebástien Charles indaga: “(...) como fazer nascer debates frutuosos, se um espaço público livre não estiver constituído?”, e acrescenta: “Este é todo o desafio das Luzes” (p. 83). Essa questão é ressaltada no brilhante ensaio do professor Vinicius de Figueiredo “Opinião Pública e Desinteresse em Kant”. Escreve ele: “A passagem para a maioridade é ‘quase inevitável’ onde houver livre circulação de ideias, visto que o uso livre da razão supõe submeter pretensões de verdade ao escrutínio público e qualificar a própria convicção, que, reportando-se ao que pensam os outros, deixa para trás o que inicialmente era expressão da particularidade” (p. 241). Ao discutir o estatuto da filosofia e do filosofar nas Luzes Francesas, Antônio Carlos dos Santos assevera que, a partir do Século XVIII, a filosofia será mais do que reflexão, ela será, sobretudo, ação, atitude; e o filósofo, doravante, será um homem engajado, preocupado com os rumos da humanidade, posto que participante de um projeto coletivo; nesse contexto, as ideias filosóficas ganharão uma nova tonalidade e serão enriquecidas em seu “conteúdo”, porque aclimatadas em novos espaços, uma vez que o filósofo deixará seu mundo particular “para encontrar espaço na praça, nos cafés, nos salões, nos espaços urbanos, sempre provocando o leitor comum, o poder estabelecido, as instituições religiosas. Tudo passará sob o crivo da razão e da crítica em espaços públicos” (p. 161).
Essa liberdade de pensamento e expressão, a livre circulação de ideias, o engajamento teórico-político constituem a tônica no cenário filosófico das Luzes. E um dos filósofos que mais expressou o espírito desse tempo foi Voltaire. No texto “Interpretação Racional e Profana da História: Voltaire Cartesiano?”, Edmilson Menezes enfatiza que Voltaire teria estabelecido uma distinção radical entre a abordagem teológica e o prisma eminentemente filosófico, racional, concernente à reflexão sobre a História. O método adequado de análise e interpretação dos eventos históricos remontaria ao método cartesiano de análise e interpretação da natureza. Assim, o horizonte interpretativo da História não mais adotaria uma perspectiva teológica centrada na história cristã – da esperança e da redenção; a história humana passaria a ser pensada e interpretada considerando apenas os próprios elementos históricos - materiais e espirituais - que condicionam a vida humana. Mas se Voltaire privilegia a razão em detrimento da religião e da crença na busca do sentido da Historia, isso não significa que o filósofo tenha desprezado o tema da divindade. Pelo contrário. Deus, na filosofia voltairiana, aparece duplicado: o texto de Vladimir de Oliva Mota discute esse aspecto da duplicidade discursiva acerca do problema da divindade, tal como ele se apresenta no pensamento voltairiano: 1. Deus como princípio ordenador do universo, responsável pelo estabelecimento das leis naturais; e 2. Deus pensado como ideia reguladora da conduta humana – uma espécie de “vingador” ou “remunerador” (cf. p. 34). A religião, e sua conflituosa relação com a política, também ganha relevo no texto de Saulo Henrique, que explora alguns elementos da teoria lockeana da tolerância. Em um outro registro, Daniel Peres aborda a filosofia kantiana da história e discute o papel que a imaginação desempenha não só na reflexão sobre a história, mas aponta para sua importância em relação à articulação que aquela faculdade opera na construção da unidade do sistema crítico. Já o ensaio de Sílvio Mota Pinto trata das críticas que Hume e Kant endereçaram ao “sujeito” cartesiano. No texto da professora Marisa Donatelli, a autora discorre acerca do modo como o pensamento de Descartes e os escritos de Louis de La Forge apresentam uma explicação das funções fisiológicas por meio de leis puramente mecânicas.
Na última seção do livro, podemos vislumbrar os “ecos da modernidade na filosofia contemporânea”. A leitura dos três ensaios conclusivos nos leva a perceber a forte influência que o projeto moderno exerceu sobre o pensamento contemporâneo. O texto da professora Nelci Gonçalves aborda o sentido da “visão” na Filosofia, tomando como base a Fenomenologia Hermenêutica, cuja expressão máxima se encontra na obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger. É também a partir do estudo de Ser e Tempo, especialmente do conceito heideggeriano de espacialidade, que a professora Sônia Barreto explicita “a passagem do categorial kantiano ao ontológico heideggeriano”, isto é, a passagem da Estética Transcendental à Analítica Existencial. No texto que fecha o volume, Everaldo de Oliveira elucida alguns elementos do pensamento de Walter Benjamin, ao demonstrar que os conceitos de experiênciae crítica, mobilizados pelo filósofo da Escola de Frankfurt, são retomados de uma tradição que remonta a Kant. Tais conceitos revelam-se fundamentais na elaboração do núcleo teórico que se estabelece na filosofia benjaminiana desde o Sobre o programa da filosofia vindoura, de 1918, até o trabalho sobre o Drama Barroco Alemão, o Goethe-Arbeit, de 1925.
Um livro instigante. Indispensável, hoje, pensar por que o plano de construção da racionalidade, da liberdade, da autonomia, da humanidade do homem, não se constituiu – nem se constitui – em um processo regularmente contínuo; por que o desenvolvimento da razão não segue um progresso linear, mas sempre apresenta descontinuidades. Ora, se alguns momentos marcantes desse processo de realização da arquitetura racional são passíveis de louvor, “há momentos, todavia, em que os edifícios são abalados, situações em que a cidade aparece em escuro” (p. 8). Por conseguinte, é preciso considerar que o negativo da razão, a face sombria do Iluminismo sempre se encontra à espreita. Se ainda perseguimos esse ideal de humanidade, mas trilhado doravante por outros caminhos, essa reflexão se impõe, pois, de um modo ou de outro, somos responsáveis pela presente etapa de construções teóricas, as quais delinearão os contornos de etapas futuras.
buscado em: http://www.anpof.org.br/spip.php?article168
O Esclarecimento, núcleo das discussões aí encetadas, tem em vista um “projeto de emancipação”, o qual possui um traço pedagógico e se pauta no uso livre e público da razão. No texto de Filino Carvalho Neto e Sônia Barreto, que trata de aspectos da filosofia prática kantiana, lemos que “A educação deve trazer consigo a meta de tornar o indivíduo autônomo, de tornar efetiva a sua liberdade e de fazê-lo pensar por si próprio; em outras palavras, de pensar criticamente” (p. 217). Sébastien Charles destaca a importância da educação no Século das Luzes e expõe algumas das razões pelas quais ela é recorrentemente tematizada: “É porque a educação é o fundamento mesmo das Luzes, posto que ela é esta frágil tocha, sempre ameaçada pelo vento da ignorância e pelo sopro da superstição, que tenta sobreviver e, se possível, espalhar-se” (p. 80). Educação que visa aoesclarecimento, que toma a razão como guia de seu próprio caminho. Mas a conquista da autonomia, isto é, esse processo de emancipação do indivíduo passa pelo crivo da publicidade. A esse respeito, Sebástien Charles indaga: “(...) como fazer nascer debates frutuosos, se um espaço público livre não estiver constituído?”, e acrescenta: “Este é todo o desafio das Luzes” (p. 83). Essa questão é ressaltada no brilhante ensaio do professor Vinicius de Figueiredo “Opinião Pública e Desinteresse em Kant”. Escreve ele: “A passagem para a maioridade é ‘quase inevitável’ onde houver livre circulação de ideias, visto que o uso livre da razão supõe submeter pretensões de verdade ao escrutínio público e qualificar a própria convicção, que, reportando-se ao que pensam os outros, deixa para trás o que inicialmente era expressão da particularidade” (p. 241). Ao discutir o estatuto da filosofia e do filosofar nas Luzes Francesas, Antônio Carlos dos Santos assevera que, a partir do Século XVIII, a filosofia será mais do que reflexão, ela será, sobretudo, ação, atitude; e o filósofo, doravante, será um homem engajado, preocupado com os rumos da humanidade, posto que participante de um projeto coletivo; nesse contexto, as ideias filosóficas ganharão uma nova tonalidade e serão enriquecidas em seu “conteúdo”, porque aclimatadas em novos espaços, uma vez que o filósofo deixará seu mundo particular “para encontrar espaço na praça, nos cafés, nos salões, nos espaços urbanos, sempre provocando o leitor comum, o poder estabelecido, as instituições religiosas. Tudo passará sob o crivo da razão e da crítica em espaços públicos” (p. 161).
Essa liberdade de pensamento e expressão, a livre circulação de ideias, o engajamento teórico-político constituem a tônica no cenário filosófico das Luzes. E um dos filósofos que mais expressou o espírito desse tempo foi Voltaire. No texto “Interpretação Racional e Profana da História: Voltaire Cartesiano?”, Edmilson Menezes enfatiza que Voltaire teria estabelecido uma distinção radical entre a abordagem teológica e o prisma eminentemente filosófico, racional, concernente à reflexão sobre a História. O método adequado de análise e interpretação dos eventos históricos remontaria ao método cartesiano de análise e interpretação da natureza. Assim, o horizonte interpretativo da História não mais adotaria uma perspectiva teológica centrada na história cristã – da esperança e da redenção; a história humana passaria a ser pensada e interpretada considerando apenas os próprios elementos históricos - materiais e espirituais - que condicionam a vida humana. Mas se Voltaire privilegia a razão em detrimento da religião e da crença na busca do sentido da Historia, isso não significa que o filósofo tenha desprezado o tema da divindade. Pelo contrário. Deus, na filosofia voltairiana, aparece duplicado: o texto de Vladimir de Oliva Mota discute esse aspecto da duplicidade discursiva acerca do problema da divindade, tal como ele se apresenta no pensamento voltairiano: 1. Deus como princípio ordenador do universo, responsável pelo estabelecimento das leis naturais; e 2. Deus pensado como ideia reguladora da conduta humana – uma espécie de “vingador” ou “remunerador” (cf. p. 34). A religião, e sua conflituosa relação com a política, também ganha relevo no texto de Saulo Henrique, que explora alguns elementos da teoria lockeana da tolerância. Em um outro registro, Daniel Peres aborda a filosofia kantiana da história e discute o papel que a imaginação desempenha não só na reflexão sobre a história, mas aponta para sua importância em relação à articulação que aquela faculdade opera na construção da unidade do sistema crítico. Já o ensaio de Sílvio Mota Pinto trata das críticas que Hume e Kant endereçaram ao “sujeito” cartesiano. No texto da professora Marisa Donatelli, a autora discorre acerca do modo como o pensamento de Descartes e os escritos de Louis de La Forge apresentam uma explicação das funções fisiológicas por meio de leis puramente mecânicas.
Na última seção do livro, podemos vislumbrar os “ecos da modernidade na filosofia contemporânea”. A leitura dos três ensaios conclusivos nos leva a perceber a forte influência que o projeto moderno exerceu sobre o pensamento contemporâneo. O texto da professora Nelci Gonçalves aborda o sentido da “visão” na Filosofia, tomando como base a Fenomenologia Hermenêutica, cuja expressão máxima se encontra na obra Ser e Tempo, de Martin Heidegger. É também a partir do estudo de Ser e Tempo, especialmente do conceito heideggeriano de espacialidade, que a professora Sônia Barreto explicita “a passagem do categorial kantiano ao ontológico heideggeriano”, isto é, a passagem da Estética Transcendental à Analítica Existencial. No texto que fecha o volume, Everaldo de Oliveira elucida alguns elementos do pensamento de Walter Benjamin, ao demonstrar que os conceitos de experiênciae crítica, mobilizados pelo filósofo da Escola de Frankfurt, são retomados de uma tradição que remonta a Kant. Tais conceitos revelam-se fundamentais na elaboração do núcleo teórico que se estabelece na filosofia benjaminiana desde o Sobre o programa da filosofia vindoura, de 1918, até o trabalho sobre o Drama Barroco Alemão, o Goethe-Arbeit, de 1925.
Um livro instigante. Indispensável, hoje, pensar por que o plano de construção da racionalidade, da liberdade, da autonomia, da humanidade do homem, não se constituiu – nem se constitui – em um processo regularmente contínuo; por que o desenvolvimento da razão não segue um progresso linear, mas sempre apresenta descontinuidades. Ora, se alguns momentos marcantes desse processo de realização da arquitetura racional são passíveis de louvor, “há momentos, todavia, em que os edifícios são abalados, situações em que a cidade aparece em escuro” (p. 8). Por conseguinte, é preciso considerar que o negativo da razão, a face sombria do Iluminismo sempre se encontra à espreita. Se ainda perseguimos esse ideal de humanidade, mas trilhado doravante por outros caminhos, essa reflexão se impõe, pois, de um modo ou de outro, somos responsáveis pela presente etapa de construções teóricas, as quais delinearão os contornos de etapas futuras.
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