Félix Guattari/ Suely Rolnik
Ed. Vozes, Petrópolis, 1986
II Subjetividade e História
1.
Subjetividade:
superestrutura-ideologia-representação X produção (p.25)
Ao invés de ideologia, prefiro falar sempre em subjetivação, em produção de subjetividade.
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O sujeito, segundo toda uma tradição da filosofia e das ciência
humanas, é algo que encontramos como um “être-là”,
algo do domínio de uma suposta natureza humana. Proponho, ao contrário, a idéia
de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente
fabricada, modelada, recebida, consumida.
As máquinas de produção da subjetividade
variam. Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é fabricada por
máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação
profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é
industrial e se dá em escala internacional.
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Esquematicamente
falando, eu diria que, assim como se fabrica leite em forma de leite
condensado, com todas as moléculas que lhe são acrescentadas, injeta-se
representações nas mães, nas crianças – como parte do processo de produção
subjetiva. São requeridos muitos pais, mães, Édipos e triangulações para
recompor uma estrutura de família restrita. (p.26)Há uma espécie de reciclagem,
ou de formação permanente para voltar a ser mulher, ou mãe, para voltar a ser
criança – ou melhor, para passar a ser criança – pois os adultos é que são
infantis. As crianças conseguem não sê-lo por algum tempo, enquanto não
sucumbem a essa produção de subjetividade. Depois elas também se infantilizam.
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Todas essas questões da economia coletiva do desejo deixam de parecer
utópicas a partir do momento em que não mais consideramos a produção de
subjetividade como sendo apenas um caso de superestrutura, dependente das
estruturas pesadas de produção das relações sociais. A partir do momento em que
consideramos a produção de subjetividade como sendo a matéria–prima da evolução
das forças produtivas em suas formas mais desenvolvidas (os setores “de ponta”
da indústria). Matéria-prima do próprio desenvolvimento que anima a crise
mundial atual, essa espécie de vontade de potência produtiva que revoluciona a
própria produção através das revoluções científicas, biológicas, através da
incorporação massiva da telemática, da informática, da ciência dos robôs, através
do peso cada vez maior dos equipamentos coletivos e da mídia.
Se os marxistas e progressistas de todo o tipo não compreenderam a
questão da subjetividade, porque se entupiram de dogmatismo teórico, isso em
compensação não aconteceu com as forças sociais que administram o capitalismo
hoje. Elas entenderam que a produção de subjetividade talvez seja mais
importante do que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até do que o
petróleo e as energias. No Japão, por exemplo, não se tem petróleo mas se tem –
e como! – uma produção de subjetividade. É essa produção que permite à economia
japonesa se afirmar no mercado mundial, a ponto de receber a visita de centenas
de delegações patronais que pretendem “japonizar” as classes operárias de seus
países de origem.
Tais mutações da subjetividade não funcionam apenas no registro das
ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o
mundo, de se articular como tecido urbano, com os processos maquínicos do
trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas. E se isso é
verdade, não é utópico considerar que uma revolução, uma mudança social a nível
macropolítico, macrossocial, diz respeito também à questão da produção da
subjetividade, o que deverá ser levado em conta pelos movimentos de
emancipação.
Essas questões, que pareciam ser marginais (do domínio da psicologia,
da filosofia ou dos hospitais psiquiátricos), com o nascimento de imensas
minorias que, juntas, constituem a maioria da população do planeta, tornam-se
questões fundamentais. Não considero que haja uma teoria ou uma cartografia
geral da forma como são semitonadas essas problemáticas. Esse ponto é para mim
fundamental, pois a representação teórica e ideológica (p.27) é inseparável de
uma práxis social, inseparável das condições dessa práxis: é algo que se busca
no próprio movimento, incluindo-se nesse movimento os recuos, as reapreciações
e as reorganizações das referências que forem necessárias. É a condição, a meu
ver, para que elementos de apreciação como Exu e Ogum, elementos do candomblé,
sejam levados em consideração no modo de cartografia, de semiotização, de
apreensão das problemáticas, aqui no Brasil.
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Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que
nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam –
não é apenas uma questão de idéia, não é apenas uma transmissão de
significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos
de identidade ou a identificações com pólos maternos, paternos, etc. Trata-se
de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes
máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de
perceber o mundo. As sociedades “arcaicas”, que ainda não incorporaram o
processo capitalístico, as crianças ainda não integradas ao sistema, ou as
pessoas que estão nos hospitais psiquiátricos e que não conseguem (ou não
querem) entrar no sistema de significação dominante têm uma percepção do mundo
inteiramente diferente da dos esquemas dominantes – o que não quer dizer que a
natureza de sua percepção dos valores e das relações sociais seja caótica. São
outros modos de representação do mundo, sem dúvida muito importantes para asas
pessoas que deles se servem para poder viver, mas não só para elas: sua
importância poderá se estender a outros setores da vida social, numa sociedade
de outro tipo.
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Não contraponho as relações de
produção econômica às relações de produção subjetiva. A meu ver, ao menos nos
ramos mais modernos, mais avançados da indústria, desenvolve-se na produção um
tipo de trabalho ao mesmo tempo material e semiótico. Mas essa produção de
competência no domínio semiótico depende de sua confecção pelo campo social
como um todo: é evidente que para fabricar um operário especializado não há apenas
intervenção das escolas profissionais. Há tudo o que se passou antes, na escola
primária, na vida doméstica – enfim, há toda uma espécie de aprendizado que
consiste em ele se deslocar na cidade desde a infância, ver televisão, enfim,
estar em todo um ambiente maquínico.
Na verdade, a produção de um bem manufaturado não se restringe a uma
esfera, à esfera da fábrica. A divisão social do trabalho implica uma
quantidade enorme de trabalho assalariado fora da entidade produtiva (nos
equipamentos coletivos, por exemplo) , e de trabalho não assalariado, sobretudo
das mulheres. Aquilo que chamei de produção de subjetividade do CMI não
consiste unicamente numa produção de poder para controlar (p.28) as relações
sociais e as relações de produção. A produção
de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção.
A noção de ideologia não nos permite
compreender essa função literalmente produtiva da subjetividade. A ideologia
permanece na esfera da representação, quando a produção essencial do CMI não é
apenas da representação, mas a de uma modelização que diz respeito aos
comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais,
às relações sexuais, aos fantasmas imaginários, etc.
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A produção da subjetividade encontra-se com um
peso cada vez maior, no seio daquilo que Marx chama de infra-estrutura
produtiva. Isso é muito fácil de verificar. Quando uma potência como os EUA
quer implantar suas possibilidades de expansão econômica num país de Terceiro
Mundo, ela começa, antes de mais nada, a trabalhar os processos de subjetivação.
Sem um trabalho de formação prévia das forças produtivas e das forças de consumo,
sem um trabalho de todos os meios de semiotização econômica, comercial,
industrial, as realidades sociais locais não poderão ser controladas.
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A problemática micropolítica não se situa no nível da representação,
mas no nível da produção de subjetividade. Ela se refere aos modos de expressão
que passam não só pela linguagem, mas também por níveis semióticos heterogêneos.
Então, não se trata de elaborar uma espécie de referente geral interestrutural,
uma estrutura geral de significantes do inconsciente à qual se reduziriam todos
os níveis estruturais específicos. Trata-se, sim, de fazer exatamente a operação
inversa, que, apesar dos sistemas de equivalência e de tradutibilidade
estruturais, vai incidir nos pontos de singularidade, em processo de
singularização que são as próprias raízes produtoras da subjetividade em sua
pluralidade.
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Todos os fenômenos importantes da atualidade envolvem dimensões do
desejo e da subjetividade. Não se consegue explicar o que está acontecendo no
Irã ou na Polônia, por exemplo, se não se entender até que ponto está havendo
uma produção de subjetividade coletiva que, com muita dificuldade, se expressa
como recusa de um certo tipo de ordem social. As referências universitárias e
políticas tradicionais, o marxismo clássico ou um remendo freudo-marxista não dão
conta desses problemas do desejo em escala coletiva
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Vários fenômenos religiosos que estão acontecendo atualmente – por exemplo,
aquilo que liga o povo do Afeganistão em sua luta contra o (p.29) opressor soviético,
ou o que está acontecendo no Irã – não podem ser explicados unicamente em
termos de ideologia. A meu ver, trata-se de certos processos da constituição da
subjetividade coletiva, que não são resultado da somatória de subjetividades
individuais, mas sim do confronto com as maneiras com que, hoje, se fabrica a
subjetividade em escala planetária.
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Aquilo que se convencionou chamar de “trabalhador social” -
jornalistas, psicólogos de todo o tipo, assistentes sociais, educadores,
animadores, gente que desenvolve qualquer tipo de trabalho pedagógico ou
cultural em comunidades de periferia, em conjuntos habitacionais, etc. – atua de
alguma maneira na produção de subjetividade. Mas, também, quem não trabalha na
produção social da subjetividade? Não vejo inconvenientes nisso, mesmo porque é
inevitável nesta altura dos acontecimentos. Não penso ser possível, ou mesmo
desejável, voltar para uma produção de subjetividade que constituísse, por
exemplo, em regulamentar a passagem de uma faixa etária para outra, através de
sistemas de iniciação (esses são, é verdade, sistemas de festa, de representações
maravilhosas, mas são também extremamente cruéis).
Embarcamos nesse processo de divisão social geral de produção de
subjetividade e não há mais volta. Mas, por isso mesmo, devemos interpelar
todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas,
ou no campo de trabalho social – todos aqueles, enfim, cuja profissão consiste
em se interessar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada
política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de
modelos que não nos permite criar saídas para os processos de singularização,
ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos
na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para
funcionar. Isso quer dizer que não há objetividade científica alguma nesse
campo, nem uma suposta neutralidade na relação (por exemplo, analítica).
Na verdade, essas teorias servem para justificar e legitimar a existência
dessas profissões especializadas, desses equipamentos segregativos e, portanto,
da própria marginalização de alguns setores da população. As pessoas que, nos
sistemas terapêuticos ou na universidade, se consideram simples depositárias ou
canais de transmissão de um saber científico, só por isso já fizeram uma opção
reacionária. Seja qual for sua inocência ou boa vontade, elas ocupam
efetivamente uma posição de reforço dos sistemas de produção da subjetividade
dominante. E não se trata de um destino de sua profissão. Na França, em 68,
debatia-se essa questão e travava-se sistematicamente os “psi” (psicólogos,
psiquiatras, psicanalistas) e os trabalhadores sociais em geral de “tiras”.
Ora, não há profissão alguma que seja essencialmente policianesca, a não
ser a própria profissão de polícia, e até isso é discutível. Do ponto (p.30) de
vista micropolítico qualquer práxis pode ser ou não policialesca; nenhum corpo
científico, nenhum corpo de referência tecnológica garante uma justa orientação.
A garantia de uma micropolítica processual, aquela que constrói novos modos de
subjetividade, que singulariza, não se encontra nesse tipo de ensino. A
garantia de uma micropolítica processual só pode – e deve – ser encontrada a
cada passo, a partir dos agenciamentos que a constituem, na invenção de modos
de referência, de modos de praxes. Invenção que permita, ao mesmo tempo,
elucidar um campo de subjetivação e intervir efetivamente nesse campo, tanto em
seu interior como em suas relações com o exterior. Para o profissional do
social, tudo dependerá de sua capacidade de se articular com os agenciamentos
de enunciação que assumam sua responsabilidade no plano micropolítico.
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Debate promovido por um diretório do PT do Rio de Janeiro, 11 de setembro
de 1982:
Maurício Lissovsky – Uma das
grandes questões atuais da prática política é a de como investir “decentemente”
os processos de produção capitalista da subjetividade. Tradicionalmente,
ligava-se essa questão à noção de ideologia. O projeto de Brecht, por exemplo,
envolve uma crítica que parte de uma consciência político-ator para atingir a
conscientização das massas. Mas, se pretendemos subverter a subjetividade,
temos de agir criticamente e abandonar propostas como as de Brecht. Temos de
abandonar a noção de ideologia e, junto com ela, a problemática da consciência.
Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade de modo
a permitir um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o próprio
coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés
de denunciá-la. Isso quer dizer que, ao invés de pretendermos liberdade (noção indissoluvelmente ligada à
consciência), temos de retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando
subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a
façam desmoronar.
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Qualquer revolução ao nível micropolítico diz também respeito à produção
de subjetividade.
2.
Subjetividade:
sujeito (individual ou social) X “agenciamentos coletivos de enunciação”
Ao invés de sujeito, de
sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud, prefiro falar em agenciamento coletivo de enunciação.
(p.31) O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade
individuada, nem a uma entidade social predeterminada.
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A subjetividade é produzida por
agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, se semiotização – ou
seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – não são centrados
em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas,
microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente
descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser
tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos,
sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim,
sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza
infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de
sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, de
modos de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de
automatismo, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.).
Toda a questão está em elucidar como os agenciamentos de enunciação
reais podem colocar em conexão essas diferentes instâncias. É claro que não
estou inventando nada: essa posição pode ainda não estar verdadeiramente
teorizada, mas, com certeza, está plenamente
em ação em todo o desenvolvimento da sociedade.
3. Produção de subjetividade e individualidade
Seria conveniente
dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e de subjetividade. Para mim,
os indivíduos são o resultado de uma produção de massa. O indivíduo é
serializado, registrado, modelado. Freud foi o primeiro a mostrar até que ponto
é precária essa noção da totalidade de um ego. A subjetividade não é passível
de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do
corpo. Outra é a multiplicidade doa agenciamentos da subjetivação: a
subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social.
Descartes quis colar a idéia de subjetividade à existência do indivíduo) – e estamos
nos envenenando com essa equação ao longo de toda a história da filosofia
moderna. Nem por isso deixa de ser verdade que os processos de subjetivação são
fundamentalmente descentrados em relação à individuação.
Daria para citar vários outros exemplos. No modo de subjetivação do
sonho, é fácil constatar uma explosão da individuação da subjetividade. No ato
de dirigir um carro, não é a pessoa enquanto indivíduo, enquanto totalidade egóica
que está dirigindo; a individuação desaparece no processo de articulação
servo-mecânica[1]
com o carro. Quando a direção flui,
(p.32)
ela é praticamente automática, a consciência do ego, a consciência do cogito cartesiano não intervém. E, de
repente, há sinais que requisitam novamente a intervenção da pessoa inteira (é
o caso de sinais de perigo). É claro que sempre se reencontra o corpo do indivíduo
nesses diferentes componentes de subjetivação; sempre se reencontra o nome próprio
do indivíduo; sempre há a pretensão do ego de se afirmar numa continuidade e
num poder. Mas a produção da fala, das imagens, da sensibilidade, a produção do
desejo não se cola absolutamente a essa representação do indivíduo. Essa produção
é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma multiplicidade
de processos de produção maquínica, a mutações de universos de valor e de
universos históricos.
Portanto, fundar, em outras ases, uma micropolítica
de transformação molecular passa por um questionamento radical dessas noções de
indivíduo, como referente geral dos processos de subjetivação. Parece oportuno
partir de uma definição ampla de subjetividade, como a que estou propondo,
para, em seguida, considerar como casos particulares os modos de individuação
da subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu, ou super-eu, momentos
em que a subjetividade se reconhece num corpo ou numa parte do corpo, ou num
sistema de pertinência corporal coletiva. Mas aí também estaremos diante de um
pluralismo de abordagens do ego e, portanto, a noção de indivíduo vai continuar
a explodir.
▼
O lucro capitalista é, fundamentalmente, produção
de poder subjetivo. Isso não implica uma visão idealista da realidade social: a
subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os
processos de produção social e material. O que se poderia dizer, usando a
linguagem da informática, é que, evidentemente, um indivíduo sempre existe, mas
apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de
consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representação, de
sensibilidade, etc. – sistemas que não têm nada a ver com categorias naturais
universais.
Vou dar um exemplo que pode parecer óbvio. Os
jovens que passeiam pelas ruas equipados com um walkman estabelecem com a música
uma relação que não é natural. A indústria altamente sofisticada, ao produzir
esse tipo de instrumento (tanto como meio quanto como conteúdo de comunicação),
não está fabricando algo que simplesmente transmita “a” música ou organize sons
naturais. O que essa indústria faz é, literalmente, inventar um universo musical,
uma outra relação com os objetos musicais: a música que vem de dentro e não de
um ponto exterior. Em outras palavras, o que ela faz é inventar uma nova percepção.
Outro exemplo é o das crianças. De fato, elas
percebem o mundo através das personagens do território doméstico, no entanto
isso é apenas em parte verdadeiro. Seu tempo é passado principalmente diante da
televisão, absorvendo relações de imagem, de palavras, de significação. Tais
(p.33) crianças terão toda a sua subjetividade modelizada por esse tipo de
aparelho.
Outro exemplo, ainda, são as experiências
feitas por antropólogos em sociedades ditas primitivas. Eles apresentam vídeos
para algumas tribos, e constatam que o vídeo era olhado como um objeto até
divertido, mas como outro qualquer. Essa reação nos mostra que o tipo de
comportamento que consiste em ficar inteiramente focalizado no aparelho, numa
relação de comunicação direta, só existe em nossa sociedade. É ela que o
produz.
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Parto da idéia de uma economia coletiva, de
agenciamentos coletivos de subjetividade, que, em algumas circunstâncias, em
alguns contextos sociais, podem se individuar. Para ilustrar isso, tomemos o
exemplo particular e óbvio da linguagem. Ferdinand de Saussure foi um dos
primeiros lingüistas que estabeleceu o caráter fundamentalmente social da
linguagem, seu caráter de fato social que se encarna em falas e agentes
individuados. É claro que não são dois indivíduos, um emissor e um receptor,
que inventam a linguagem no momento em que estão falando. Existe a linguagem
como fato social e existe o indivíduo falante. A mesma coisa acontece com todos
os fatos da subjetividade. A subjetividade
está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida
por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos
vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e
opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou
uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos
componentes de subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de
singularização. Se aceitamos essa hipótese, vemos que a circunscrição dos
antagonismos sociais aos campos econômicos e políticos – a circunscrição do
alvo de luta à reapropriação dos meios de produção ou dos meios de expressão
política – encontra-se superada. É preciso adentrar o campo da economia
subjetiva e não mais restringir-se ao da economia política.
Em face desse sistema de mediação intrínseca
dos processos de desejo pela linguagem, penso ser necessário elaborar uma outra
concepção do que seja efetivamente a produção de subjetividade, a produção de
enunciados em relação a essa subjetividade. Uma concepção que não tenha nada a
ver com postular instâncias intrapsíquicas ou de individuação (como nas teorias
do ego), nem instâncias de modelização de semióticas icônicas (como encontramos
em todas as teorias relativas às funções da imagem no psiquismo) . Um exemplo
dessas últimas é a teoria freudiana: Freud quis construir uma economia social
da subjetividade a partir dos sistemas de identificação e de toda a problemática
dos ideais do ego.
[1] Cf. F.
Guattari, Revolução Molecular – Pulsações Políticas do Desejo, org. S. Rolnik.
Brasiliense, São Paulo 1981; N. do T. (1), p.208.
buscado em: cooperação.sem.mando
Obrigada! :-)
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