sexta-feira, 22 de junho de 2012

fragmentos de MICROPOLÍTICA: CARTOGRAFIA DO DESEJO


Félix Guattari/ Suely Rolnik

Ed. Vozes, Petrópolis, 1986

II Subjetividade e História

1.      Subjetividade: superestrutura-ideologia-representação X produção (p.25)

Ao invés de ideologia, prefiro falar sempre em subjetivação, em produção de subjetividade.


O sujeito, segundo toda uma tradição da filosofia e das ciência humanas, é algo que encontramos como um “être-là”, algo do domínio de uma suposta natureza humana. Proponho, ao contrário, a idéia de uma subjetividade de natureza industrial, maquínica, ou seja, essencialmente fabricada, modelada, recebida, consumida.
As máquinas de produção da subjetividade variam. Em sistemas tradicionais, por exemplo, a subjetividade é fabricada por máquinas mais territorializadas, na escala de uma etnia, de uma corporação profissional, de uma casta. Já no sistema capitalístico, a produção é industrial e se dá em escala internacional.



Esquematicamente falando, eu diria que, assim como se fabrica leite em forma de leite condensado, com todas as moléculas que lhe são acrescentadas, injeta-se representações nas mães, nas crianças – como parte do processo de produção subjetiva. São requeridos muitos pais, mães, Édipos e triangulações para recompor uma estrutura de família restrita. (p.26)Há uma espécie de reciclagem, ou de formação permanente para voltar a ser mulher, ou mãe, para voltar a ser criança – ou melhor, para passar a ser criança – pois os adultos é que são infantis. As crianças conseguem não sê-lo por algum tempo, enquanto não sucumbem a essa produção de subjetividade. Depois elas também se infantilizam.

Todas essas questões da economia coletiva do desejo deixam de parecer utópicas a partir do momento em que não mais consideramos a produção de subjetividade como sendo apenas um caso de superestrutura, dependente das estruturas pesadas de produção das relações sociais. A partir do momento em que consideramos a produção de subjetividade como sendo a matéria–prima da evolução das forças produtivas em suas formas mais desenvolvidas (os setores “de ponta” da indústria). Matéria-prima do próprio desenvolvimento que anima a crise mundial atual, essa espécie de vontade de potência produtiva que revoluciona a própria produção através das revoluções científicas, biológicas, através da incorporação massiva da telemática, da informática, da ciência dos robôs, através do peso cada vez maior dos equipamentos coletivos e da mídia.
Se os marxistas e progressistas de todo o tipo não compreenderam a questão da subjetividade, porque se entupiram de dogmatismo teórico, isso em compensação não aconteceu com as forças sociais que administram o capitalismo hoje. Elas entenderam que a produção de subjetividade talvez seja mais importante do que qualquer outro tipo de produção, mais essencial até do que o petróleo e as energias. No Japão, por exemplo, não se tem petróleo mas se tem – e como! – uma produção de subjetividade. É essa produção que permite à economia japonesa se afirmar no mercado mundial, a ponto de receber a visita de centenas de delegações patronais que pretendem “japonizar” as classes operárias de seus países de origem.
Tais mutações da subjetividade não funcionam apenas no registro das ideologias, mas no próprio coração dos indivíduos, em sua maneira de perceber o mundo, de se articular como tecido urbano, com os processos maquínicos do trabalho, com a ordem social suporte dessas forças produtivas. E se isso é verdade, não é utópico considerar que uma revolução, uma mudança social a nível macropolítico, macrossocial, diz respeito também à questão da produção da subjetividade, o que deverá ser levado em conta pelos movimentos de emancipação.
Essas questões, que pareciam ser marginais (do domínio da psicologia, da filosofia ou dos hospitais psiquiátricos), com o nascimento de imensas minorias que, juntas, constituem a maioria da população do planeta, tornam-se questões fundamentais. Não considero que haja uma teoria ou uma cartografia geral da forma como são semitonadas essas problemáticas. Esse ponto é para mim fundamental, pois a representação teórica e ideológica (p.27) é inseparável de uma práxis social, inseparável das condições dessa práxis: é algo que se busca no próprio movimento, incluindo-se nesse movimento os recuos, as reapreciações e as reorganizações das referências que forem necessárias. É a condição, a meu ver, para que elementos de apreciação como Exu e Ogum, elementos do candomblé, sejam levados em consideração no modo de cartografia, de semiotização, de apreensão das problemáticas, aqui no Brasil.


Tudo o que é produzido pela subjetivação capitalística – tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipamentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de idéia, não é apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados significantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade ou a identificações com pólos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo. As sociedades “arcaicas”, que ainda não incorporaram o processo capitalístico, as crianças ainda não integradas ao sistema, ou as pessoas que estão nos hospitais psiquiátricos e que não conseguem (ou não querem) entrar no sistema de significação dominante têm uma percepção do mundo inteiramente diferente da dos esquemas dominantes – o que não quer dizer que a natureza de sua percepção dos valores e das relações sociais seja caótica. São outros modos de representação do mundo, sem dúvida muito importantes para asas pessoas que deles se servem para poder viver, mas não só para elas: sua importância poderá se estender a outros setores da vida social, numa sociedade de outro tipo.

 Não contraponho as relações de produção econômica às relações de produção subjetiva. A meu ver, ao menos nos ramos mais modernos, mais avançados da indústria, desenvolve-se na produção um tipo de trabalho ao mesmo tempo material e semiótico. Mas essa produção de competência no domínio semiótico depende de sua confecção pelo campo social como um todo: é evidente que para fabricar um operário especializado não há apenas intervenção das escolas profissionais. Há tudo o que se passou antes, na escola primária, na vida doméstica – enfim, há toda uma espécie de aprendizado que consiste em ele se deslocar na cidade desde a infância, ver televisão, enfim, estar em todo um ambiente maquínico.
Na verdade, a produção de um bem manufaturado não se restringe a uma esfera, à esfera da fábrica. A divisão social do trabalho implica uma quantidade enorme de trabalho assalariado fora da entidade produtiva (nos equipamentos coletivos, por exemplo) , e de trabalho não assalariado, sobretudo das mulheres. Aquilo que chamei de produção de subjetividade do CMI não consiste unicamente numa produção de poder para controlar (p.28) as relações sociais e as relações de produção. A produção de subjetividade constitui matéria-prima de toda e qualquer produção.
A noção de ideologia não nos permite compreender essa função literalmente produtiva da subjetividade. A ideologia permanece na esfera da representação, quando a produção essencial do CMI não é apenas da representação, mas a de uma modelização que diz respeito aos comportamentos, à sensibilidade, à percepção, à memória, às relações sociais, às relações sexuais, aos fantasmas imaginários, etc.


A produção da subjetividade encontra-se com um peso cada vez maior, no seio daquilo que Marx chama de infra-estrutura produtiva. Isso é muito fácil de verificar. Quando uma potência como os EUA quer implantar suas possibilidades de expansão econômica num país de Terceiro Mundo, ela começa, antes de mais nada, a trabalhar os processos de subjetivação. Sem um trabalho de formação prévia das forças produtivas e das forças de consumo, sem um trabalho de todos os meios de semiotização econômica, comercial, industrial, as realidades sociais locais não poderão ser controladas.


A problemática micropolítica não se situa no nível da representação, mas no nível da produção de subjetividade. Ela se refere aos modos de expressão que passam não só pela linguagem, mas também por níveis semióticos heterogêneos. Então, não se trata de elaborar uma espécie de referente geral interestrutural, uma estrutura geral de significantes do inconsciente à qual se reduziriam todos os níveis estruturais específicos. Trata-se, sim, de fazer exatamente a operação inversa, que, apesar dos sistemas de equivalência e de tradutibilidade estruturais, vai incidir nos pontos de singularidade, em processo de singularização que são as próprias raízes produtoras da subjetividade em sua pluralidade.


Todos os fenômenos importantes da atualidade envolvem dimensões do desejo e da subjetividade. Não se consegue explicar o que está acontecendo no Irã ou na Polônia, por exemplo, se não se entender até que ponto está havendo uma produção de subjetividade coletiva que, com muita dificuldade, se expressa como recusa de um certo tipo de ordem social. As referências universitárias e políticas tradicionais, o marxismo clássico ou um remendo freudo-marxista não dão conta desses problemas do desejo em escala coletiva


Vários fenômenos religiosos que estão acontecendo atualmente – por exemplo, aquilo que liga o povo do Afeganistão em sua luta contra o (p.29) opressor soviético, ou o que está acontecendo no Irã – não podem ser explicados unicamente em termos de ideologia. A meu ver, trata-se de certos processos da constituição da subjetividade coletiva, que não são resultado da somatória de subjetividades individuais, mas sim do confronto com as maneiras com que, hoje, se fabrica a subjetividade em escala planetária.


Aquilo que se convencionou chamar de “trabalhador social” - jornalistas, psicólogos de todo o tipo, assistentes sociais, educadores, animadores, gente que desenvolve qualquer tipo de trabalho pedagógico ou cultural em comunidades de periferia, em conjuntos habitacionais, etc. – atua de alguma maneira na produção de subjetividade. Mas, também, quem não trabalha na produção social da subjetividade? Não vejo inconvenientes nisso, mesmo porque é inevitável nesta altura dos acontecimentos. Não penso ser possível, ou mesmo desejável, voltar para uma produção de subjetividade que constituísse, por exemplo, em regulamentar a passagem de uma faixa etária para outra, através de sistemas de iniciação (esses são, é verdade, sistemas de festa, de representações maravilhosas, mas são também extremamente cruéis).
Embarcamos nesse processo de divisão social geral de produção de subjetividade e não há mais volta. Mas, por isso mesmo, devemos interpelar todos aqueles que ocupam uma posição de ensino nas ciências sociais e psicológicas, ou no campo de trabalho social – todos aqueles, enfim, cuja profissão consiste em se interessar pelo discurso do outro. Eles se encontram numa encruzilhada política e micropolítica fundamental. Ou vão fazer o jogo dessa reprodução de modelos que não nos permite criar saídas para os processos de singularização, ou, ao contrário, vão estar trabalhando para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades e dos agenciamentos que consigam pôr para funcionar. Isso quer dizer que não há objetividade científica alguma nesse campo, nem uma suposta neutralidade na relação (por exemplo, analítica).
Na verdade, essas teorias servem para justificar e legitimar a existência dessas profissões especializadas, desses equipamentos segregativos e, portanto, da própria marginalização de alguns setores da população. As pessoas que, nos sistemas terapêuticos ou na universidade, se consideram simples depositárias ou canais de transmissão de um saber científico, só por isso já fizeram uma opção reacionária. Seja qual for sua inocência ou boa vontade, elas ocupam efetivamente uma posição de reforço dos sistemas de produção da subjetividade dominante. E não se trata de um destino de sua profissão. Na França, em 68, debatia-se essa questão e travava-se sistematicamente os “psi” (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas) e os trabalhadores sociais em geral de “tiras”.
Ora, não há profissão alguma que seja essencialmente policianesca, a não ser a própria profissão de polícia, e até isso é discutível. Do ponto (p.30) de vista micropolítico qualquer práxis pode ser ou não policialesca; nenhum corpo científico, nenhum corpo de referência tecnológica garante uma justa orientação. A garantia de uma micropolítica processual, aquela que constrói novos modos de subjetividade, que singulariza, não se encontra nesse tipo de ensino. A garantia de uma micropolítica processual só pode – e deve – ser encontrada a cada passo, a partir dos agenciamentos que a constituem, na invenção de modos de referência, de modos de praxes. Invenção que permita, ao mesmo tempo, elucidar um campo de subjetivação e intervir efetivamente nesse campo, tanto em seu interior como em suas relações com o exterior. Para o profissional do social, tudo dependerá de sua capacidade de se articular com os agenciamentos de enunciação que assumam sua responsabilidade no plano micropolítico.


Debate promovido por um diretório do PT do Rio de Janeiro, 11 de setembro de 1982:
Maurício Lissovsky – Uma das grandes questões atuais da prática política é a de como investir “decentemente” os processos de produção capitalista da subjetividade. Tradicionalmente, ligava-se essa questão à noção de ideologia. O projeto de Brecht, por exemplo, envolve uma crítica que parte de uma consciência político-ator para atingir a conscientização das massas. Mas, se pretendemos subverter a subjetividade, temos de agir criticamente e abandonar propostas como as de Brecht. Temos de abandonar a noção de ideologia e, junto com ela, a problemática da consciência.
Uma prática política que persiga a subversão da subjetividade de modo a permitir um agenciamento de singularidades desejantes deve investir o próprio coração da subjetividade dominante, produzindo um jogo que a revela, ao invés de denunciá-la. Isso quer dizer que, ao invés de pretendermos  liberdade (noção indissoluvelmente ligada à consciência), temos de retomar o espaço da farsa, produzindo, inventando subjetividades delirantes que, num embate com a subjetividade capitalística, a façam desmoronar.


Qualquer revolução ao nível micropolítico diz também respeito à produção de subjetividade.



2.      Subjetividade: sujeito (individual ou social) X “agenciamentos coletivos de enunciação”

Ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud, prefiro falar em agenciamento coletivo de enunciação.
(p.31) O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social predeterminada.


 A subjetividade é produzida por agenciamentos de enunciação. Os processos de subjetivação, se semiotização – ou seja, toda a produção de sentido, de eficiência semiótica – não são centrados em agentes individuais (no funcionamento de instâncias intrapsíquicas, egóicas, microssociais), nem em agentes grupais. Esses processos são duplamente descentrados. Implicam o funcionamento de máquinas de expressão que podem ser tanto de natureza extrapessoal, extra-individual (sistemas maquínicos, econômicos, sociais, tecnológicos, icônicos, ecológicos, etológicos, de mídia, enfim, sistemas que não são mais imediatamente antropológicos), quanto de natureza infra-humana, infrapsíquica, infrapessoal (sistemas de percepção, de sensibilidade, de afeto, de desejo, de representação, de imagens, de valor, de modos de memorização e de produção idéica, sistemas de inibição e de automatismo, sistemas corporais, orgânicos, biológicos, fisiológicos, etc.).
Toda a questão está em elucidar como os agenciamentos de enunciação reais podem colocar em conexão essas diferentes instâncias. É claro que não estou inventando nada: essa posição pode ainda não estar verdadeiramente teorizada, mas, com certeza, está  plenamente em ação em todo o desenvolvimento da sociedade.


3. Produção de subjetividade e individualidade

  Seria conveniente dissociar radicalmente os conceitos de indivíduo e de subjetividade. Para mim, os indivíduos são o resultado de uma produção de massa. O indivíduo é serializado, registrado, modelado. Freud foi o primeiro a mostrar até que ponto é precária essa noção da totalidade de um ego. A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade doa agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do social. Descartes quis colar a idéia de subjetividade à existência do indivíduo) – e estamos nos envenenando com essa equação ao longo de toda a história da filosofia moderna. Nem por isso deixa de ser verdade que os processos de subjetivação são fundamentalmente descentrados em relação à individuação.
Daria para citar vários outros exemplos. No modo de subjetivação do sonho, é fácil constatar uma explosão da individuação da subjetividade. No ato de dirigir um carro, não é a pessoa enquanto indivíduo, enquanto totalidade egóica que está dirigindo; a individuação desaparece no processo de articulação servo-mecânica[1] com o carro. Quando a direção flui,
(p.32) ela é praticamente automática, a consciência do ego, a consciência do cogito cartesiano não intervém. E, de repente, há sinais que requisitam novamente a intervenção da pessoa inteira (é o caso de sinais de perigo). É claro que sempre se reencontra o corpo do indivíduo nesses diferentes componentes de subjetivação; sempre se reencontra o nome próprio do indivíduo; sempre há a pretensão do ego de se afirmar numa continuidade e num poder. Mas a produção da fala, das imagens, da sensibilidade, a produção do desejo não se cola absolutamente a essa representação do indivíduo. Essa produção é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma multiplicidade de processos de produção maquínica, a mutações de universos de valor e de universos históricos.
Portanto, fundar, em outras ases, uma micropolítica de transformação molecular passa por um questionamento radical dessas noções de indivíduo, como referente geral dos processos de subjetivação. Parece oportuno partir de uma definição ampla de subjetividade, como a que estou propondo, para, em seguida, considerar como casos particulares os modos de individuação da subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu, ou super-eu, momentos em que a subjetividade se reconhece num corpo ou numa parte do corpo, ou num sistema de pertinência corporal coletiva. Mas aí também estaremos diante de um pluralismo de abordagens do ego e, portanto, a noção de indivíduo vai continuar a explodir.


O lucro capitalista é, fundamentalmente, produção de poder subjetivo. Isso não implica uma visão idealista da realidade social: a subjetividade não se situa no campo individual, seu campo é o de todos os processos de produção social e material. O que se poderia dizer, usando a linguagem da informática, é que, evidentemente, um indivíduo sempre existe, mas apenas enquanto terminal; esse terminal individual se encontra na posição de consumidor de subjetividade. Ele consome sistemas de representação, de sensibilidade, etc. – sistemas que não têm nada a ver com categorias naturais universais.
Vou dar um exemplo que pode parecer óbvio. Os jovens que passeiam pelas ruas equipados com um walkman estabelecem com a música uma relação que não é natural. A indústria altamente sofisticada, ao produzir esse tipo de instrumento (tanto como meio quanto como conteúdo de comunicação), não está fabricando algo que simplesmente transmita “a” música ou organize sons naturais. O que essa indústria faz é, literalmente, inventar um universo musical, uma outra relação com os objetos musicais: a música que vem de dentro e não de um ponto exterior. Em outras palavras, o que ela faz é inventar uma nova percepção.
Outro exemplo é o das crianças. De fato, elas percebem o mundo através das personagens do território doméstico, no entanto isso é apenas em parte verdadeiro. Seu tempo é passado principalmente diante da televisão, absorvendo relações de imagem, de palavras, de significação. Tais (p.33) crianças terão toda a sua subjetividade modelizada por esse tipo de aparelho.
Outro exemplo, ainda, são as experiências feitas por antropólogos em sociedades ditas primitivas. Eles apresentam vídeos para algumas tribos, e constatam que o vídeo era olhado como um objeto até divertido, mas como outro qualquer. Essa reação nos mostra que o tipo de comportamento que consiste em ficar inteiramente focalizado no aparelho, numa relação de comunicação direta, só existe em nossa sociedade. É ela que o produz.


Parto da idéia de uma economia coletiva, de agenciamentos coletivos de subjetividade, que, em algumas circunstâncias, em alguns contextos sociais, podem se individuar. Para ilustrar isso, tomemos o exemplo particular e óbvio da linguagem. Ferdinand de Saussure foi um dos primeiros lingüistas que estabeleceu o caráter fundamentalmente social da linguagem, seu caráter de fato social que se encarna em falas e agentes individuados. É claro que não são dois indivíduos, um emissor e um receptor, que inventam a linguagem no momento em que estão falando. Existe a linguagem como fato social e existe o indivíduo falante. A mesma coisa acontece com todos os fatos da subjetividade. A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes de subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. Se aceitamos essa hipótese, vemos que a circunscrição dos antagonismos sociais aos campos econômicos e políticos – a circunscrição do alvo de luta à reapropriação dos meios de produção ou dos meios de expressão política – encontra-se superada. É preciso adentrar o campo da economia subjetiva e não mais restringir-se ao da economia política.
Em face desse sistema de mediação intrínseca dos processos de desejo pela linguagem, penso ser necessário elaborar uma outra concepção do que seja efetivamente a produção de subjetividade, a produção de enunciados em relação a essa subjetividade. Uma concepção que não tenha nada a ver com postular instâncias intrapsíquicas ou de individuação (como nas teorias do ego), nem instâncias de modelização de semióticas icônicas (como encontramos em todas as teorias relativas às funções da imagem no psiquismo) . Um exemplo dessas últimas é a teoria freudiana: Freud quis construir uma economia social da subjetividade a partir dos sistemas de identificação e de toda a problemática dos ideais do ego.



[1] Cf. F. Guattari, Revolução Molecular – Pulsações Políticas do Desejo, org. S. Rolnik. Brasiliense, São Paulo 1981; N. do T. (1), p.208.
buscado em: cooperação.sem.mando

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