sábado, 6 de setembro de 2014

hypomnemata 169


Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 169, agosto de 2014.

Prisões, execuções e abolicionismo penal libertário

Controle e monitoramentos
Nos anos 1970, momento no qual se dizia aos quatro cantos que as prisões estavam superlotadas, o sistema de justiça sobrecarregado e se construía o discurso crítico-humanista contra as condições dos prisioneiros, um filósofo libertário inverteu o problema: há prisão povoada ou superpovoada; justiça encarregada, carregada, ou sobrecarregada sem as polícias que aprisionam?
A prisão passou a ser alvo de uma contestação radical, que abria espaço para o seu desaparecimento. Apareceram os movimentos reivindicatórios a respeito das condições de vida e defesa dos direitos humanos no seu interior.
Ao longo de três décadas a predominância de um discurso relativo às condições de vida e em defesa de direitos lançou tanta luz sobre a prisão, que as análises que afirmavam a urgência de sua abolição foram ofuscadas.
O resultado imediato dessas lutas foi a transformação da insuportável e terrificante prisão em algo tolerável, ao ponto de seus próprios habitantes trabalharem ativamente para tornar suportável a vida em seu interior.
Os anos 1990 foram preenchidos pelo crescimento exponencial de encarceramentos, aliado ao endurecimento penalista, ao controle policial exacerbado e aos monitoramentos pelas organizações de direitos humanos, nacionais e internacionais.
Abriu-se uma era de prisões de segurança máxima combinada com penas alternativas e controles a céu aberto de apenados, geridos por meio de parcerias público-privadas, no compartilhamento da gestão prisional entre governos, organizações internacionais, ligadas à ONU, privatizações e operacionalizados em parceria com a chamada sociedade civil organizada.
Produziu-se, assim, uma nova naturalização da prisão, desta vez por questões de segurança, com a colaboração das organizações de direitos humanos, sempre prontas a denunciar os “excessos”, “maus-tratos” e “injustiças” cometidos em seu interior e a favor da segurança.
Dessa nova naturalização decorreram duas inovações:
A criação de organizações de prisioneiros que, em pouco tempo, trabalhariam em parceria com a administração prisional na gestão compartilhada dos cárceres e a superexposição na mídia das questões prisionais, como “injustiças” contra os prisioneiros ou rebeliões comandadas por suas organizações, geralmente voltadas para a melhoria de condições dos apenados.
A prisão, gradualmente, foi se metamorfoseando de instituição austera de disciplina e vigilância, como imagem do medo, para laboratório de tecnologias políticas de controle e monitoramento.
Segue hoje como objeto de terror, menos pela imagem de seus muros e mais pelo que se passou a conhecer de seu interior.

Prisões e execuções seletivas e noticiadas
A exposição monitorada e as sequências de denúncias em relação aos cárceres também produziu reversos.
Cenas de decapitação, tomadas de presídios, “salves gerais”, massacres sistemáticos produzidos pela polícia, detenções suspeitas e superlotações de unidades produziram variadas reações em relação à prisão.
Conhece-se seu funcionamento, mesmo sem nunca ter sido preso ou detido. E seria um truísmo insistir em sua escandalosa seletividade, praticada em todo itinerário, da abordagem policial à condenação em juízo.
A seletividade penal vai além, uma vez que pretende um efeito intimatório exemplar, preventivo e de instalação do medo e da paranoia.
Na medida em que se sabe de pessoas detidas e condenadas por razões, no mínimo, pouco lógicas ou racionais, o receio de ser detido e condenado se aloja nos corações e mentes de qualquer cidadão potencialmente suspeito.
Não se trata apenas de insistir contra os argumentos e constatações reprisadas à exaustão de que as pessoas presas e condenadas são negras, pobres, moradoras de rua e reincidentes, mas de alertar para a falácia do sistema penal e sua explícita parcialidade.
As detenções de manifestantes no Brasil nos últimos meses também mostram isso, e a mais escandalosa foi a condenação do morador de rua, negro, chamado Rafael Braga Vieira, detido no dia 20 de junho de 2013, em meio a manifestação que levou mais de 300 mil pessoas às ruas do Rio de Janeiro, sob acusação de portar duas garrafas de coquetel molotov.
Segundo o laudo da própria polícia civil do estado do Rio de Janeiro, as garrafas eram vasilhames de plástico contendo desinfetante e água sanitária, o que levou sua defesa a entrar com apelação pedindo a anulação do processo, negada pela justiça carioca.
Some a esta as notícias que vieram à tona desde junho de 2013 como o sumiço do pedreiro Amarildo, a execução de Claudia  que teve o corpo arrastado por uma viatura da polícia─, a execução de dois meninos pelos soldados da UPP carioca, o assassinato de Douglas, na Vila Medeiros, em São Paulo e uma série de outros casos que qualquer um pode e deve lembrar.
Seria apenas exercício de retórica hipócrita confundir a recorrência desses casos com a necessidade de reformas legais, institucionais ou regulamentares.
Esses acontecimentos, sucintamente listados, expõem como o sistema penal reitera preconceitos, assimetrias e desigualdades.
Não há como ignorar esta constatação.
Sobretudo após eventos como as execuções de maio de 2006 em São Paulo, quando a Polícia paulista executou mais de 500 pessoas sob o pretexto de combater o Primeiro Comando da Capital e seu “salve geral”; os assassinatos de jovens negros em St. Louis e Nova York, em agosto de 2014, ou mesmo as recentes cenas terrificantes de decapitação nos presídios de Pedrinhas, no Maranhão, e Cascavel, no Paraná.
Em Cascavel, quem realiza as execuções é a organização de prisioneiros que, ironicamente, as faz para protestar contra os maus-tratos e as condições de vida no presídio, ainda que neste caso não houvesse lotação máxima. A questão vai além e está aquém das “boas condições dos presídios”.
Essas organizações totalitárias, longe de serem contra as prisões, são empresas bem constituídas e frutos diretos do próprio sistema penal.
Atuam segundo a mesma lógica, produzindo reforços constrangedores entre penalizadores e apenados.
Elas não rompem as relações baseadas na autoridade e no castigo. Reforçam-nas.
Acrescentem-se ainda as imagens de decapitação promovidas pelo grupo ISIS (Islamic State in Iraq and Syria), ou atualmente na mídia apenas EI – Exército Islâmico – que, como poder de Estado, mostrou a medida brutal das práticas penalizadoras, gerando compressão em uma mídia que, recentemente, havia aclamado com eloquência o enforcamento de Saddam Hussein e a execução de Osama bin Laden.

Revolta antipenal
Há décadas, diversos estudiosos nas áreas do Direito e das Ciências Sociais, no Brasil e no planeta, produzem pesquisas ─ sob as mais diversas perspectivas teóricas e políticas relacionadas ao abolicionismo penal.
Os abolicionistas penais propõem encarar corajosamente e de maneira inventiva questões como:
a cultura dos castigos;
a sociabilidade autoritária;
a seletividade penal;
os efeitos de segregação das políticas de segurança;
os limites e usos das políticas de direitos humanos;
a herança autoritária de ditaduras civis-militares;
o absurdo da continuidade da prisão para jovens,
enfim, a constatação revoltante da continuidade de uma lógica de solução de situações problemáticas pela punição e a recompensa, que incluem decapitações, torturas, humilhações, constrangimentos e estigmatizações.
Alertam, inclusive, para o fato de que muitos de nós solucionamos uma série de situações que poderiam ser classificadas como crime, sem recorrer ao sistema penal.
Logo, a sociedade sem penas já EXISTE!!!!!
Os casos de detenções, prisões, condenações e execuções devem ser urgentemente encarados a partir da perspectiva afirmada pelos abolicionistas penais.
Caso contrário, o absurdo se aninhará nas notícias que provocam reações e emoções como terror, alívio e comoção, indignação e satisfação, omissão e conformismo, sem avançar propositalmente em nada.
Servirão para encher páginas de jornais, ocupar organizações de direitos humanos, animar manifestações pontuais e consolidar um terror que se diz conjurar com mais segurança, mas que logo se voltarão a um novo caso ou a uma nova causa.
Afirmar a atitude abolicionista penal se coloca em um momento propício, quando os candidatos na atual disputa eleitoral, reconhecidamente descolados da possibilidade de mudanças efetivas, só conseguem discutir questões problemáticas e urgentes aludindo à boa segurança, a partir de uma mentalidade punitiva e de endurecimento legal.
Expõem, para além do pluralismo partidário, um conjunto de propostas coroado pela sempre enaltecida redução da maioridade penal e suas variantes derivadas na forma de aumento do tempo de internação e unidades especiais psiquiátricas; incrementos de responsabilização e gestões compartilhadas na aplicação e acompanhamento de medidas socioeducativas em meio aberto e fechado, clivadas pelo intocável encarceramento de jovens.
Este muro, erguido pela lógica das penas, deve ser derrubado.

Limites da defesa
O pensamento moderno, humanista, tão iluminado, precisa começar a encarar que “policiais corruptos”, ISIS e PCC (Partido do Primeiro Comando da Capital), terroristas e demais agentes de violência apontados como o outro, são complementos e extensões da mesma matéria que o violento Estado moderno e filhos pródigos e bastardos da mesma cultura do castigo.
A revolta antipenal, inventada pelos abolicionistas penais, esbarra muitas vezes na forma como os movimentos sociais e as organizações de direitos humanos reagem nesses casos.
Colocar os problemas da justiça criminal nos termos de justiça ou injustiça, e sob a diferenciação entre o que seria uma prisão política e uma prisão comum, mostra-se, no mínimo, equivocado.
Com ou sem as querelas colocadas por questões técnico-jurídicas que, muitas vezes, aninam os debates em torno desses casos, é possível identificar, no interior da lógica do sistema criminal, a produção e a reprodução de tecnologias de governos que sustentam uma sociedade de práticas autoritárias sob a égide de um regime liberal-democrático.
As detenções perpetradas no decorrer da onda de manifestações de rua deixam claras as limitações do pensamento fundado em termos de injustiças ou de prisões políticas.
É inócuo argumentar, como é comum entre os movimentos, que vivemos sob um novo paradigma de governo caracterizado pelo estado de exceção.
Paradoxalmente, ao colocar essas prisões como injustas, ilegais ou políticas, reconhece-se todas as demais detenções e/ou prisões como legítimas e/ou legais.
Assim como combater o que seria um governo de exceção, leva à busca de um bom governo que não produziria exceções mortais.
O que está em jogo não é a legitimidade das prisões ou detenções, mas a forma de funcionamento do sistema penal e o assujeitamento contínuo na aceitação naturalizada de sua própria existência.
Vivemos no Brasil um Estado Democrático de Direito, que é o mesmo que dizer que as coisas poderiam ser muito piores, mas é também reconhecer que todo preso é um preso político, segundo a configuração de qualquer regime e prática política na qual estamos irremediavelmente implicados.
O reconhecimento do monopólio legítimo da violência do Estado, se o autoriza a cometer os chamados excessos, cada vez mais regulares, não o restringe a tratar situações-problema como casos penais.
A oposição entre justiça civil e justiça penal é um consenso torpe.
Há sim possibilidades, mesmo sob estas condições, de equacionar as infrações segundo os procedimentos do direito civil.
Este é outro muro a ser derrubado.

Democracia, liberdade e extermínio
Nossa prática democrática, entendida como forma de expressão da liberdade política, encontra-se vacilante, pois quanto mais se deseja segurança, mais próximos estamos do fascismo.
Não porque vivemos uma alegada crise de representação, ou porque os partidos perderam a conexão com as ruas e os governos não são mais capazes de traduzir os anseios da população.
Não há “outro mundo possível” ou “nova política” que equacione esse impasse.
A ponta mais evidente desse autoritarismo assassino está na polícia, militar ou civil, que deve proteger cidadãos de bem; nos exércitos de fanáticos e mercenários que intuem profecias; nas organizações que governam os presos como empreendimento lucrativo...
O imenso iceberg é composto por milhares de expressões de ódio manifestos em redes sociais ou espaços de comentários de portais eletrônicos, que saboreiam ou vomitam linchamentos públicos e decapitações televisionadas.
A produção de rafaéis, amarildos, claudias, hidekis e demais anônimos atingidos cotidianamente pelo sistema penal não cessará, até chegar ao ponto de não mais provocar sustos porque expressam o desejo de exterminar o outro.
E se isso é feito pelas mãos dos mesmos outros, para eles esta é a sua condição de sossego derrisório alcançado.
As cabeças de cascavéis, pedrinhas e dos ISIS continuarão rolando, junto aos infinitos negócios econômicos, sociais e políticos, que envolvem empresas do tráfico, Estado, polícia, sicários, grupos terroristas e mercenários produzidos em meio às variadas relações que compõem os programas de segurança planetária e o regime dos ilegalismos reconfigurado na sociedade de controle.
É preciso encarar o sistema penal como um produtor político.
A revolta não é reforma nem revolução, é afirmação da vida livre e disposição ao risco, o oposto da segurança governamentalizada.
A política produzida pelo sistema penal não se restringe ao seu circuito institucional normativo; é composta pela obsessão inatingível de paz nas pessoas, pela busca interminável por segurança nos governos e pelas infindáveis assimetrias consolidadas e naturalizadas nesta sociedade.
O circuito de violências até hoje só produziu mais violência, linchamentos públicos, condenações e mortes; atinge, preferencialmente, os indesejáveis, os negros, os pobres, os moradores de rua, os subversivos, os revoltados.
Sua ardilosa contabilidade sob o governo de monitoramentos e controles objetiva fazer de qualquer pessoa um virtual prisioneiro.
E cada cidadão que não se revolta contra essa política de extermínio perpetrada pelo sistema penal se dispõe no planeta como um potencial carrasco, um agente do terror estatal e niilista.

Nenhum comentário:

Postar um comentário