O problema com o uso excessivo da tecnologia obstétrica não depende de pessoas ou profissionais. Nós precisamos nos livrar da idéia de "Doutores = maus" e "Parteiras = Anjos". Isso não é verdadeiro, e todos nós conhecemos grandes médicos humanistas e "não tão maravilhosas e angelicais" parteiras.
O importante não é mudar as pessoas, mas mudar o sistema, transformar o paradigma, resgatar o parto para as mulheres e deixá-las decidir sobre seus corpos e nascimentos. O problema no meu país, o Brasil, é que 90% dos nascimentos são assistidos por médicos, treinado exaustivamente no tratamento de patologias e no uso de cirurgias. Os médicos egressos das escolas médicas do meu país não estão interessados na fisiologia “alargada” do parto, e são, em sua maioria, incapazes de compreender os dilemas psicológicos, emocionais, sociais e espirituais do parto. Precisamos, evidentemente, de profissionais largamente treinadas na fisiologia do parto: as parteiras. Nós, médicos (eu sou um médico , ginecologista, obstetra e homeopata) não entendemos o nascimento como um processo vital. Em vez disso, nós o vemos como uma doença, ou um "evento vital potencialmente ameaçador", frequentemente chamado de “bomba relógio”. Normalmente obstetras são bons para resolver problemas (os mesmos criados através de excesso de intervenções) no parto, e também as pré eclampsias, diabetes, partos obstruídos, etc., e nós possuímos uma ferramenta maravilhosa para tal tarefa: a cesariana. O problema é que uma vez que oferecemos para uma categoria profissional específica a capacidade de "resolver" o nascimento de forma tecnologia, a sedução para usá-la de maneira abusiva é tremenda. Vivemos na "mitologia da transcendencia tecnológica ", e ainda acreditamos que seu uso faz mais bem do que mal. Infelizmente, a pesquisa nos mostra que já fomos longe demais.
Deixe-me contar uma história interessante sobre tecnologia. Em uma "reserva natural" específica na África do Sul, os guardas eram recrutados entre os moradores locais, grupamentos populacionais que viviam próximos da selva por séculos. Um certo dia, um guarda da reserva foi morto por um leão, e o gerente do parque foi acusado de não proteger adequadamente seus funcionários oferecendo-lhes armas para a proteção pessoal. Pressionado pela mídia e pelos outros guardas, ele decidiu comprar um rifle para cada um, como forma de defendê-los de possíveis ataques. "Ok, feito. Agora eles serão protegidos", ele pensou.
Meses após essa decisão, ele notou que grande número de animais haviam sido mortos por guardas, em um ritmo nunca visto antes. Logo ele descobriu que, uma vez que eles tinham armas pessoais, o menor risco (como a proximidade de um rinoceronte, ou um leopardo) era suficiente para assustar os trabalhadores do parque, e eles se tornaram propensos a usar a sua "arma tecnológica". Depois de um ano, o diretor do parque estava convencido de que as habilidades milenares desenvolvidas para lidar com os animais (o silêncio, o contacto visual, os sons, a posição do corpo para encarar os felinos, a "linguagem" utilizada, o respeito pelos seus habitats, etc) foi sendo perdida por causa do "bypass" sedutor de "resolver" as ameaças dos animais com tiros de rifle. Os animais estavam perdendo suas vidas por causa da nossa incapacidade de compreender a forma como vivem, e como conviver com eles.
Após essa constatação a decisão da reserva foi radical: guardas do parque nacional foram treinados novamente para proteger os animais, e as armas não foram mais permitidas na reserva.
Estamos destruindo a capacidade das parteiras de ajudar as mulheres em trabalho de parto e nascimento através do óbvio uso excessivo da arma da cesariana? Para quantas mulheres e bebês ainda vamos recusar o direito de passar pelo processo mágico, transformador e natural do parto por causa de nossa ignorância do processo de parir? Estaremos perdendo completamente as nossas habilidades de ajudar mulheres no nascimento de seus filhos por causa do canto sedutor das sereias tecnológicas?
Eu espero que nós estejamos no meio de uma grande revolução, e eu sonho com o dia em que as mulheres não serão mais prejudicadas pelo sistema cego e abusivo que criamos.
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