Entrevista com Cecília Coimbra, Professora da Universidade Federal Fluminense e membro da diretoria do Grupo Tortura Nunca Mais Rio de Janeiro. No Seminário "Entre garantia de direito e práticas libertárias", realizado pelo CRPRS, no final de 2012, Cecília falou sobre Psicologia e Direitos Humanos.
CRPRS – Em sua opinião, questionar a falácia do estado democrático e do próprio campo dos direitos humanos significa abandonar este território de luta?
Cecília Coimbra – Não. Temos que pensar historicamente a emergência dos direitos humanos. Os conceitos de direito e humano têm uma determinada emergência histórica localizada, estão relacionados às famosas declarações dos direitos humanos que vêm do bojo de movimentos revolucionários burgueses. Precisamos pensar a que dispositivos esses conceitos têm sido utilizados. Vivemos numa sociedade capitalista, em que a vida se transformou em capital e o direito não é para qualquer um, humano não é para qualquer um. O conceito de humanidade é colocado em questão principalmente para aqueles que se opõem, de um modo geral, ao status quo. Precisamos pensar como estamos militando na área dos direitos humanos, embora a gente ache que o estado democrático de direito é o estado democrático de direito do capital. Não é falácia, nem mito. É a democracia que o capital tem.
CRPRS – Há algum exemplo que retrate essa realidade?
Cecília Coimbra – No Rio de Janeiro algo muito sério está acontecendo. As Unidades de Polícia Pacificadora funcionam como se a polícia pudesse ser pacificadora. Está se produzindo a lógica do consentimento. A polícia reprime quando necessário, mas é comunitária, ajuda a levar para o médico, a evitar as brigas entre os perigosos. Estamos vendo hoje uma produção muito competente, não só na repressão. É a produção de um consentimento no outro. Nós próprios pedimos punição, mais leis, queremos criminalizar tudo, queremos a tutela do estado sobre cada um de nós, isso nos dá segurança, isso é produzido na cabeça de cada um, nas mentes e nos corações. É um processo perverso extremamente competente, extremamente eficaz, que nos transforma em soldados cidadãos.
CRPRS – Que espaços de militância ou combate são mais efetivos hoje?
Cecília Coimbra – Eu, cada vez mais, desacredito na política de representação. Sempre me considerei uma mulher de partido. Fui do Partido Comunista Brasileiro (PCB), do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR8) e fundadora do PT no Rio de Janeiro. Hoje, eu não estou e nem quero estar vinculada a nenhum partido. Nunca pensei que isso fosse acontecer. Aposto na micropolítica, nestas pequeninas coisas que são desqualificadas. A minha geração sonhou em fazer a revolução, na transcendência de chegar até lá. A derrota que sofremos foi produtiva, apesar das mortes e desaparecimentos, nos ensinou, mostrou a nossa arrogância. Ao mesmo tempo em que queríamos uma sociedade socialista, fraterna, éramos muito machistas, extremamente autoritários no cotidiano, com nossos filhos, nossos companheiros, nossos amigos, dentro da própria militância. A luta de direitos humanos hoje, mesmo sendo utilizada para garantir direitos para alguns, para garantir cidadania, participação social, é um grande engodo. O capitalismo liberal mostra todo o conceito burguês do que chamamos de direitos humanos. Acredito que a luta continua de outra forma, nos pequenos espaços em que são produzidos acontecimentos.
CRPRS – Em sua opinião, qual a importância do trabalho da Comissão da Verdade?
Cecília Coimbra –A conquista da Comissão Nacional da Verdade, em minha opinião, é o pior engodo. Há pouco tempo, acompanhamos a entrega de documentos à família de Rubens Paiva. Mas será que entregaram todos os documentos ou só aquilo que interessava entregar? O exército esteve na casa do coronel antes e nada foi feito, os documentos foram tratados como arquivo pessoal. Arquivo pessoal coisíssima nenhuma, são documentos roubados da nação que pertencem à sociedade! As pessoas aceitam a ideia da Comissão da Verdade com a sensação de que agora poderão conhecer o que de fato aconteceu. Versões são dadas. Eu não acredito na verdade, não existe a verdade histórica, são muitas as verdades. Agora, o que é inadmissível é que a gente só conheça uma parte dela. Até onde essa história vai ser contada?
CRPRS – Quais são as formas e resquícios em que se manifestam as heranças da ditadura militar no atual contexto social?
Cecília Coimbra – Vivemos um exemplo disso, com a Casa da Morte, centro clandestino ligado ao Exército de tortura e assassinatos, criado durante a ditadura militar. O Grupo Tortura Nunca Mais esteve na Casa em 1985 e já tínhamos feito denúncia em 1981. Simplesmente fomos ignorados, é a produção do esquecimento que o Grupo fez. A Casa, agora, será transformada em Museu da Memória. Apoiamos todas as construções de Museus desse tipo, mas não quando feitos pelo Estado, como aconteceu em São Paulo no Memorial da Resistência. Lá as frases que estavam escritas nas celas foram raspadas, pintadas e outras frases foram escritas por cima. E não é por acaso que essas coisas acontecem. Queremos museus da memória, onde possamos participar, que não seja algo imposto de cima para baixo. Além disso, o medo ainda é muito forte entre as pessoas, os efeitos psicológicos da repressão são interessantes, tem pessoas que realmente não conseguem falar. Têm dispositivos sociais que foram ‘sofisticados’ pela ditadura como, por exemplo, a figura do desaparecido político. Essa figura foi exportada pelo Brasil para as demais ditaduras latino-americanas. Outra expressão muito utilizada ainda hoje, inventada no tempo da ditadura, são os ‘altos de resistência’. A pessoa é exterminada e sua morte é registrada por resistir à prisão. O mais sério é que as pessoas aplaudem o extermínio e a tortura de alguns seguimentos sociais. A tortura acaba sendo banalizada por algumas pessoas, que brincam com a violência. Existe um grupo nos Estados Unidos que trabalha para tornar a tortura mais humanizada. Assistimos à aceitação do extermínio em nome da nova segurança. As pessoas são convencidas pelos meios de comunicação, pelo terror que é produzido por eles, que para sua segurança, o cara da esquina merece ser exterminado, porque é a minha segurança ou a dele. São situações que vão sendo criadas que, para a minha segurança, o outro pode ser torturado e até ser morto. Isso não é apenas herança da ditadura, são heranças históricas do Brasil.
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