Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 154, março de 2013.
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 154, março de 2013.
Futebol, política e punições na rua
Futebol é terra de paixões.
Campo de desmedidas emoções e explosões: gritos, socos no ar, empolgantes abraços, lágrimas de tristeza e de alegria, cantos, vibração.
O futebol já foi descrito como inteligência em movimento.
Não é um mero jogo, pois movimenta uma série de forças no corpo e no planeta.
Pode ser tomado, também, como meio para compreensão de coisas da vida, sem fazer dela uma disputa competitiva em direção à vitória.
Há quem o chame de esporte mais democrático e popular do mundo, por exigir muito pouco para ser praticado e compreendido.
O equívoco dessa afirmação é centrar-se apenas nas exigências de sua prática, pois se esquece que ele é, também, campo do incompreensível ou, como dizia um antigo cronista, terreno fértil para "o sobrenatural de Almeida".
O futebol não é democrático: é uma prática que pode se realizar como experimentação de regras móveis.
As 17 regras estabelecidas oficialmente não são seguidas pelos meninos que jogam na rua ou num campinho qualquer.
Nestas paragens pululam regras não escritas e acordos transitórios estabelecidos pelos envolvidos naquela partida.
O número de integrantes, o objeto a ser utilizado como bola, o tempo de partida, as dimensões do gol, o número de gols que estabeleça o fim do jogo, tudo isso é definido rapidamente entre os que se dispuseram a jogar aquela partida.
Há muito a aprender e experimentar jogando e assistindo futebol.
Entre crianças e jovens é uma prática que permite coexistência sem suprimir as paixões.
É praticado com explosões, discussões, brigas, abraços e beijos.
Coloca os corpos em movimento e em contato: cada um sabe de si em relação com os outros, seja de seu time, seja de seus adversários.
Não é uma pacificação lúdica de disputa guerreira: é uma guerra livre de pacificações e de desejos de extermínios, praticada entre iguais que possuem diferentes intimidades entre si, com a bola e com diferentes constituições físicas.
Qualquer pessoa que tenha jogado futebol quando criança compreende imediatamente tudo isso e o que só aconteceu com quem jogou aquela partida.
Qualquer pessoa pode jogar futebol.
no mercado
Futebol é política.
Futebol é política.
Mercado de negócios financeiros e de negociações de comando.
Nas ditaduras civis-militares da América Latina, o futebol embalou o milagre de obedientes cidadãos no pra frente Brasil, na copa de 1970; serviu como escudo aos assassinos da ESMA, na copa de 1978, na Argentina.
Jogadores e técnicos que mijavam fora do penico eram perseguidos, cortados de comissões técnicas e presos; os que se mostravam simpáticos e fiéis ao regime e às empresas que financiavam a tortura eram agraciados com prêmios e favores.
Ainda hoje isso segue, basta registrar que o presidente da CBF foi governador biônico do estado de São Paulo e deputado responsável pela perseguição dos funcionários da TV Cultura que redundou no assassinato do jornalista Vladimir Herzog.
Acrescente-se a isso que o atual técnico da seleção brasileira é um fã declarado da "liderança" do general chileno Augusto Pinochet.
Adicione as cordiais relações de presidentes de clubes com políticos e suas trocas de favores no perdão de impostos, construção de estádios, empréstimos fartamente vantajosos, os novos empresários do futebol e os velhos cartolas...
Negócio dos espetáculos.
O futebol-empresa se sustenta com marcas de cerveja, montadoras de carros, marcas de artigos esportivos, produtos de higiene pessoal, grandes conglomerados multinacionais de telecomunicação, tudo promovido pela figura exemplar do garoto resiliente, isto é, aquele que venceu na vida, superou dificuldades, suportou exigentes peneiras para se tornar um jogador profissional.
Negócios dos empreendedores de si.
O jogador-empresa, que circula resiliente entre diversos clubes, veste variadas camisas e beija todas elas jurando amor incondicional e profissionalismo.
Garoto propaganda que vende desde xampu anticaspa até talco contra chulé e frieira.
Tudo isso sustentado pela legião de perdedores que não conseguiram ser escolhidos, e alimentam a ilusão e a esperança de meninos que sonham em ser a bola da vez.
A primeira experiência completa de jogador-empresa: o fenômeno.
Constantemente descrito como um exemplo de superação, dentro e fora de campo, vencendo as dificuldades de menino pobre, as contusões, as desilusões amorosas, deslizes na noite etc. e etc.
Hoje, aposentado dos campos, é empresário, garoto propaganda, comentarista de TV, membro de comitê futebolístico, DJ de balada e provedor bem sucedido da família.
Além de exemplo, age como guia do novo empreendimento-pessoa da CBF a ser testado na próxima Copa, a ser realizada no Brasil.
Nesse mundinho, as garotas são vistas como complementos dos machos bem sucedidos.
Meninas que jogam, e bem, no Brasil têm que amargar salários ridículos, times femininos que não seguem adiante e a negligência da mídia.
Nos EUA, o futebol feminino segue padrão semelhante ao do Brasil, com a diferença que as garotas não vão atrás do time, mas é o time que vai atrás delas.
Algumas jogadoras viram sexy symbols, como a goleira da seleção estadunidense que, antes da última olimpíada, posou nua para a ESPN Body.
No Japão, há muito incentivo para as mulheres jogarem futebol, e a seleção feminina de lá é melhor do que a masculina. A melhor jogadora do mundo FIFA, em 2011, era japonesa e recebeu o prêmio vestida de gueixa! Assim, nada a estranhar que o melhor jogador de futebol do mundo FIFA, pelo 4º ano seguido, considera que lugar de mulher é em casa!
A Suécia é o país em que o futebol feminino é mais desenvolvido. É o futebol-empresa para onde a melhor jogadora brasileira de futebol, e por 4 vezes seguidas premiada pela FIFA, foi jogar aos 17 anos.
Enfim, de vez em quando, uma ou outra se destaca e ganha o título de a melhor do ano ao lado do melhor jogador... mas quase ninguém dela se lembrará.
E não há, entre estas garotas, aquela que não tenha sido exposta em algum momento às piadas chulas e insinuações preconceituosas e machistas.
O mercado-mundinho do futebol é terra de machos, patroas e modelos.
Política, mercado e moderadas bem-sucedidas condutas.
Essas são as regras do atual futebol-empresa profissional.
Um rebelde?
Se couber na modulação de bad boy, deve vir embalado com carros caros ornamentados de luxuosas modelos, noivas de carreira e esposas promissoras; ser protagonista de acidente ou briga em baladas; ter exercitado sua força de macho sobre o corpo de uma mulher; enfim, deve preencher as páginas dos jornais e embalar as moralistas polêmicas de programas esportivos.
na arquibancada
Houve um tempo em que a arquibancada era de livre ocupação.
Os torcedores dos dois times rivais assistiam à partida lado a lado.
Era comum os torcedores de outros clubes irem a jogos de clubes rivais para admirar a habilidade de um jogador extraordinário.
Ocorriam brigas, discussões, palavrões e até confrontos.
Tudo resolvido ali, no calor da hora.
Hoje, as torcidas organizadas elegeram as torcidas adversárias como inimigas a serem exterminadas.
São facções confinadas obedientemente no chiqueirinho a elas destinado e que se preparam para matar no entorno dos estádios.
Sazonalmente, um evento trágico traz à tona o fascismo exterminador das torcidas e faz falar o moralismo reacionário de cronistas e comentaristas.
O último foi o assassinato de um menino de 14 anos por integrantes da Gaviões da Fiel, no estádio do San José, na Bolívia.
Foi a realização desse desejo de morte latente em qualquer torcida organizada; e logo se tornou material a ser manuseado pelos policiais e juízes de plantão da crônica esportiva.
Na mídia não se leu, viu ou ouviu uma palavra contrária à ridícula proibição dos fogos de artifício ou à deprimente realização de jogo sem torcida.
Ao contrário, estrondosos clamores por punições, novas proibições, monitoramentos e perseguições seguiram compondo a única resposta possível ao trágico ocorrido: mais uma tolerância zero.
A estreiteza chega ao ponto de esquecer que toda vez que ocorre uma briga, uma invasão de campo ou uma morte são acionadas inúmeras punições, proibições e regulamentos incapazes de impedir uma nova tragédia previamente anunciada.
A proibição de bandeiras nos estádios de São Paulo não impediu novas mortes.
Fala-se muito do exemplo da Inglaterra e da contenção dos Hooligans (gangues de torcedores declaradamente de extrema direita) mas, como a própria mídia inglesa noticia, o que houve não foi o fim da violência, mas o seu monitoramento contínuo e a administração dos confrontos violentos que perduram fora dos estádios e nas portas de pubs.
Os discursos punitivos em torno desses trágicos acontecimentos servem apenas para dar vazão aos que desejam punições e pretendem pacificar o futebol, ou como eles dizem: "moralizar" o futebol.
São arautos da arrogância da lei, os sustentáculos da moral, os espiritualistas diáfanos do amor ao esporte...
Desejam a paz pelo extermínio, em prisões, penalizações, emudecimentos, comportamentos exemplares, condutas irrepreensíveis, como boçais espelhos de empreendedores burgueses ou miseráveis empreendedores de si, na arquibancada, na numerada, com a camisa de time no gramado, como árbitro, juiz, bandeirinha, cantando hino nacional, levantando dedinhos para o céu, fazendo orações e feitiços, gabando-se de ser polícia e bandido de vez em quando.
Como no fatídico caso da Bolívia, sobre o qual foram ouvidos dois comentários loquazes que se sobrepuseram: o de que as punições deveriam atingir mesmo os inimputáveis, já que a própria torcida uniformizada apresentou um jovem de 17 anos como autor do disparo do sinalizador que atravessou o olho do torcedor adversário e alojou-se em seu cérebro até matá-lo; e o do regozijo da multidão de palermas pelos 12 torcedores presos há quase três meses em Oruro, na Bolívia.
Nos dois casos apresenta-se o sistema penal boliviano como exemplo a ser seguido: por fixar os 16 anos como maioridade penal e por garantir a sustentação legal da prisão preventiva de suspeitos, com suas respectivas proteções intermináveis à falácia da prevenção geral.
Deixam claro seu desejo autoritário de paz e que o futebol, para esses seres, é paixão complementar diante do amor devoto pela punição.
Segue o jogo!
na vida
Futebol é paixão de toda uma vida.
Paixão forjada em liberdade de crianças que correm atrás da bola, que aguçam o olhar na jogada que impressiona, que brincam e brigam entre elas, com efêmeros vencedores e regras móveis que se fazem e desfazem a cada partida-brincadeira.
Coisa de moleque, apartada da objetividade, dos negócios, das leis e devoções dos adultos.
Irredutível às regras do mercado ou do direito, a paixão de meninos e meninas segue livre na iminência do grito de gol, na rua, na tela ou na arquibancada.
Afinal, futebol é bola na rede!
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