v
«Qu’est-ce que les Lumières?», Magazine Littéraire, nº 207, mai 1984, pp. 35-39. (Retirado
do curso de 5 de Janeiro de 1983, no Collège de France).
v
Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris :
Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 679-688. por Wanderson Flor do Nascimento.
Parece-me que este texto faz aparecer um novo tipo de questão no
campo da reflexão filosófica. Claramente, este não é certamente nem o primeiro
texto na história da filosofia, nem mesmo o único texto de Kant que tematiza
uma questão que diz respeito à história. Encontra-se em Kant textos que colocam
à história uma questão de origem: o texto mesmo sobre os inícios da história, o
texto sobre a definição do conceito de raça; outros textos colocam à história a
questão de sua forma de realização: assim, neste mesmo ano de 1784, A idéia
de uma história universal desde o ponto de vista cosmopolita[i][i]. Em outros, por fim, se interroga sobre a finalidade interna
organizando os processos históricos, assim como no texto dedicado ao emprego de
princípios teleológicos. Todas estas questões, aliás estreitamente ligadas,
atravessam, com efeito, as análises de Kant a propósito da história. Parece-me
que o texto de Kant sobre a Aufklärung é um texto bastante diferente.
Ele não coloca diretamente, e em todo caso, nenhuma destas questões, nem a da
origem nem, apesar das aparências, a da realização; ele coloca, de uma maneira
relativamente discreta, quase lateral, a questão da teleologia imanente ao processo
mesmo da história.
A questão que parece surgir pela primeira vez neste texto de
Kant, é a questão do presente, a questão da atualidade: o que é que acontece
hoje? O que acontece agora? E o que é esse “agora” no interior do qual estamos,
uns e outros, e que define o momento onde escrevo? Esta não é a primeira vez
que se encontra, na reflexão filosófica, referências ao presente, pelo menos
como situação histórica determinada e que pode ter valor para a reflexão
filosófica. Apesar de tudo, quando Descartes, no início do Discurso do
Método, conta seu próprio itinerário e o conjunto de decisões filosóficas
tomadas ao mesmo tempo para si e para a filosofia, ele se refere antes a uma
maneira explícita, a algo que poderia ser considerado como uma situação histórica
na ordem do conhecimento e das ciências de sua própria época. Mas neste gênero
de referências, trata-se de encontrar, nesta configuração designada como
presente, um motivo para uma decisão filosófica; em Descartes, não encontramos
uma questão que seria da ordem: “O que é precisamente este presente ao qual
pertenço?”. Ora, me parece que a questão à qual Kant responde, aliás, àquela
que ele é obrigado a responder, posto que lhe foi colocada, esta questão é
outra. Esta não é simplesmente: o que é que, na situação atual, pode determinar
tal ou qual decisão de ordem filosófica? A questão centra-se sobre o que é este
presente, centra-se sobre a determinação de um certo elemento do presente que
se trata de reconhecer, de distinguir, de decifrar no meio de todos os outros.
O que é que, no presente, faz sentido para uma reflexão filosófica.
Na resposta que Kant tenta dar a essa interrogação, ele pretende
mostrar de que forma esse elemento torna-se o portador e o signo de um processo
que concerne ao pensamento, o conhecimento, a filosofia; mas trata-se de
mostrar em que e como aquele que fala enquanto pensador, enquanto cientista,
enquanto filósofo, ele mesmo faz parte desse processo e (mais que isso) como
ele tem um certo papel a desempenhar neste processo, no qual ele então se
encontra, ao mesmo tempo, como elemento e ator.
Em resumo, parece-me que se viu aparecer no texto de Kant a
questão do presente como acontecimento filosófico ao qual pertence o filósofo
que fala. Se se considera a filosofia como uma forma de prática discursiva que
tem sua própria história, parece-me que com esse texto sobre a Aufklärung,
vê-se a filosofia – e penso que não forço as coisas demais ao dizer que é a
primeira vez – problematizar sua própria atualidade discursiva: atualidade que
ela interroga como acontecimento, como um acontecimento do qual ela deve dizer
o sentido, o valor, a singularidade filosófica e no qual ela tem que encontrar
ao mesmo tempo sua própria razão de ser e o fundamento daquilo que ela diz.
Deste modo, vê-se que, para o filósofo, colocar a questão de seu pertencimento
a este presente, não será de forma alguma a questão de sua filiação a uma
doutrina ou a uma tradição; não será mais simplesmente a questão de seu
pertencimento a uma comunidade humana em geral, mas o seu pertencimento ao um
certo “nós”, a um nós que se relacione com um conjunto cultural característico
de sua própria atualidade.
É este nós que está a caminho de tornar-se para o filósofo o
objeto de sua própria reflexão; e por isso mesmo se afirma a impossibilidade de
fazer a economia da interrogação para o filósofo acerca de seu pertencimento
singular a esse nós. Tudo isso, a filosofia como problematização de uma
atualidade e como interrogação para o filósofo dessa atualidade da qual faz
parte e em relação à qual tem que se situar, poderia caracterizar a filosofia
como discurso da modernidade e sobre a modernidade.
Qual é esta minha atualidade? Qual é o sentido desta atualidade?
E o que faço quando falo desta atualidade? É nisso que consiste, me parece,
essa nova interrogação sobre a modernidade.
Isto não é nada mais que uma pista que convém explorar com um
pouco mais de precisão. Seria necessário tentar fazer a genealogia, não tanto
da noção de modernidade, mas da modernidade como questão. E, em todo caso,
mesmo se tomo o texto de Kant como ponto de emergência desta questão, é claro
que faz parte de um processo histórico muito amplo do qual seria preciso
conhecer as medidas. Seria, sem dúvida, um eixo interessante para o estudo do
séc. XVIII em geral e mais particularmente da Aufklärung, que se
interroga sobre o seguinte fato: a Aufklärung chama a si mesma de Aufklärung;
ela é um processo cultural sem dúvida muito singular que sendo consciente de si
mesmo, nomeando-se, situando-se em relação do seu passado e em relação com seu
futuro e designando as operações que devia efetuar no interior de seu próprio
presente.
Apesar de tudo, a Aufklärung não é a primeira época que
se nomeia a si mesma em lugar de simplesmente se caracterizar, segundo um velho
hábito, como período de decadência ou de prosperidade, de esplendor ou miséria,
se nomeia através de certo evento marcado em uma história geral do
pensamento, da razão e do saber, e no
interior da qual ela tem que desempenhar o seu próprio papel?
A Aufklärung é uma época, uma época que formula ela mesma
seu lema, seu preceito e que diz o que se tem de fazer, tanto em relação à
história geral do pensamento, quanto em relação a seu presente e às formas de
conhecimento, de saber, de ignorância e de ilusão nas quais ela sabe reconhecer
sua situação histórica.
Parece-me que nesta questão da Aufklärung vê-se uma das
primeiras manifestações de uma certa maneira de filosofar que teve uma longa
história desde dois séculos. Uma das grandes funções da filosofia dita “moderna”
(esta que se pode situar o início no finalzinho do século XVIII) é de se
interrogar sobre sua própria atualidade.
Poderíamos seguir a trajetória desta modalidade da filosofia
através do século XIX até os dias de hoje. A única coisa que eu gostaria de
frisar neste momento é que esta questão tratada por Kant em 1784 para responder
uma questão que lhe foi colocada desde fora, Kant não a esqueceu. Ele vai
colocá-la novamente e tentar respondê-la em relação a um outro acontecimento
que também não deixou de interrogar-se. Este acontecimento, claramente, é a
Revolução Francesa.
Em 1798, Kant de alguma forma dá uma seqüência ao texto de 1784.
Em 1784, ele tentava responder à questão que se colocava: “O que é esta Aufklärung
da qual fazemos parte?” e em 1798 ele reponde a uma questão que a atualidade
lhe colocava mas que fora formulada desde 1794 por toda a discussão filosófica
na Alemanha. Esta questão era: “O que é a revolução?”
Vocês sabem que O conflito das faculdades[ii][ii] é uma coletânea de três
dissertações sobre as relações entre as diferentes faculdades que constituem a
Universidade. A segunda dissertação diz
respeito ao conflito entre a faculdade de filosofia e a faculdade de direito.
Toda a área das relações entre filosofia e direito se ocupa da questão: “Existe
um progresso constante no gênero humano?” E é para responder a esta questão que
Kant, no parágrafo V dessa dissertação, desenvolve o seguinte raciocínio: Se se
quer responder à questão “Existe um progresso constante no gênero humano?” é necessário
determinar se existe uma causa possível desse progresso, mas, uma vez
estabelecida essa possibilidade, é preciso mostrar que essa causa atua
efetivamente e, para isto, realçar um certo acontecimento que mostre que a
causa atua realmente. Em suma, a citação de uma causa não pode nunca determinar
os efeitos possíveis, ou mais exatamente a possibilidade do efeito, mas a
realidade de um efeito apenas pode ser estabelecida pela existência de um
acontecimento.
Não é suficiente que se siga a trama teleológica que torna
possível o progresso, é preciso isolar, no interior da história, um
acontecimento que tenha valor de signo.
Signo de que? Signo da existência de uma causa, de uma causa
permanente, que ao longo de toda a história guiaram os homens pela via do
progresso. Causa constante da qual se deve então mostrar que agiu outras vezes,
que atua no presente e que atuará posteriormente. O acontecimento, em
conseqüência, que nos permite decidir se há progresso, será um signo “rememorativum,
demostrativum, pronosticum”. É preciso que este seja um signo que mostra
que isso tem sido sempre como é (é o signo rememorativo), um signo que mostre
que as coisas atualmente se passam assim também (é o demonstrativo), que enfim
mostre que as coisas permanecerão assim (signo prognóstico). E é assim que poderemos estar seguros de que
a causa que torna possível o progresso não atua apenas em um momento dado, mas
que ela garante uma tendência geral do gênero humano em sua totalidade em
marchar no sentido do progresso. Eis ai a questão: “Existe em nosso redor um
acontecimento que seja rememorativo, demonstrativo e prognóstico de um
progresso que permita levar o gênero humano em sua totalidade?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário