Boletim eletrônico mensal
do Nu-Sol - Núcleo de Sociabilidade Libertária
do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP
no. 165, março de 2014.
...1964-2014, aquém e além de ½ século
ditadura, os baixos começos
Uma ditadura é sempre uma ditadura. Sua sustentação não se reduz a um regime político, tampouco a ditadura como acontecimento se origina com a tomada de poder de Estado.
Seus baixos começos são inúmeros. E o golpe de 1964 que demarcou o início da ditadura civil-militar no Brasil configurou o exercício do terrorismo de Estado.
Não seria preciso esperar pelo AI1, AI2, AI3, AI4, AI5... Uma ditadura se situa menos como estado de exceção jurídico-política e mais como a lógica de existência histórico-política do próprio Estado, levada a seu ápice, obviamente, desejada pelos governados.
Ela não prescinde da forja de seu direito próprio alicerçado na abertura da caça a subversivos, delações perpetradas por alcaguetes de toda ordem, por ordeiros cidadãos, sequestro de homens, mulheres, jovens, crianças e bebês, porões conhecidos e recônditos da tortura, incontáveis sumidouros que existem na forma que cada pequeno ditador se governa.
ditadura: o açougue da tortura
Gente some à luz do dia ou na calada da noite.
Corpos são atirados ao mar, ao rio, às valas, aos sumidouros.
Meninos e meninas são levados a cubículos imundos para assistirem seus pais e suas mães serem triturados por carniceiros torturadores.
Crianças são recolhidas em celas e as mais velhas vibram pela simples migalha de não terem sido separadas da irmã mais nova, ainda bebê, e orgulhosas contam que arranjavam um jeito de dormirem junto a ela temerosos de que sumissem com ela.
Um menino apenas lembra baixinho. Um dia levaram meu pai. Nunca mais o vi.
Uma menina é levada até a presença da mãe, após uma sessão de tortura, e não a reconhece. Anos depois ela dirá: “aquela não era a minha mãe, era apenas uma massa de carne ensanguentada com os dentes arrancados”.
Mulheres são alvos dos torturadores que também as seviciam sexualmente. Muitas delas depois de torturadas e encaminhadas a hospitais, por vezes são corpos para perversões sexuais de enfermeiros.
tribunal: o açougue da formalidade
Os anos passaram e urge saber e expor o nome de cada torturador.
Mas que isto não se confunda com o coro de combate à impunidade e recriação do tribunal, seja ele qual for.
Ele apenas dispõe a mesma moral no açougue das formalidades sob a norma do exercício regular do procedimento asséptico, atravessado, também, por torturas declaradas ou recônditas.
Nele, cada um é dissolvido em uma abstração genérica da regra fixa e geral que resguarda a garantia dos seletivos privilégios particulares, no jogo inerente tanto ao direito especial da ditadura quanto ao direito universal do Estado democrático de direito.
O tribunal refaz o itinerário inverso e complementar das abjetas apropriações da vida, conservado sob a lógica do juízo, da qual o regime do castigo não abre mão.
Um tribunal é sempre um tribunal.
a ciência da tortura, baixos começos
Militares de alta patente, co-artífices do golpe, antes do apoio decisivo à deposição do governo em 1964, ocuparam cargos na polícia desde a era Vargas, onde se sofisticaram nas técnicas de tortura; entraram e saíram de delegacias, reorganizaram instituições policiais, articularam-se com polícias estrangeiras para aperfeiçoar material técnico e humano.
Os EUA no pós II Guerra Mundial iniciaram a execução de programas de treinamento de polícias de países menos desenvolvidos voltados a coibir a expansão do comunismo.
Esses programas se espalharam a partir dos anos 1950 e inúmeros militares e policiais do Brasil viajaram aos EUA para frequentar cursos de novas técnicas de interrogatório e treinamento de tortura, assim como para compra de material.
O aperfeiçoamento da tortura no Brasil adveio de sua aplicação em ‘bandidos pés descalços’ no decorrer dos anos 1950, pois a chamada criminalidade comum era vista, também, como fator de perigosa instabilidade social que poderia abrir as portas para o crescimento da esquerda se não fosse combatida com rigor.
No esteio das infindáveis reformas policiais complementares à formação de grupos de polícia especial engendrou-se ainda na década de 1950 o Esquadrão da Morte, em referência direta ao alto índice de cadáveres de miseráveis abandonados em estradas, em geral assassinados depois de sessões de torturas.
Com a ditadura civil-militar se intensificou, também, a prática no padrão dos ‘esquadrões da morte’, não como arbítrio, mas como técnica policial e de governo elaborada para triturar resistências, quaisquer que fossem, viessem de onde viessem, assim como o Brasil tornou-se o grande exportador de técnicas científicas de tortura para as ditaduras na América do Sul.
O “saudável terror” do século XIX ─ na expressão utilizada por um chefe de polícia para conter revoltas de escravos ─ sofisticou-se com a tecnologia de poder e de governo do século XX.
Policiais e agentes da lei espancando até a morte ou sumindo com pessoas estavam ali desde sempre, servindo ao Estado, proprietários, industriais, banqueiros na defesa da vida acovardada dos cordatos e ordeiros governados.
abolir a ciência da tortura
A continuidade das torturas, do litoral ao interior do Brasil, escancara o ranço da ditadura civil-militar que insiste em sobreviver no presente. “Tortura-se respaldado na autoridade (seja de pai, policial, professor) e na ciência. Numa democracia ou numa ditadura, a tortura é parte constitutiva das tecnologias de poder; produz verdades que as sustentam” (http://www.nu-sol.org/verbetes/index.php?id=20).
A tortura não irrompeu com o golpe de 1964, pelo contrário. Este achatamento da vida faz parte da história do território identificado como Brasil, no extermínio dos índios, na escravidão dos negros, na perseguição a anarquistas, na polícia estadonovista contra quem desafinou no coro dos contentes, nos esquadrões da morte... no cotidiano das delegacias e prisões.
Entretanto, foi a partir desse momento, março/abril de 1964, que pouco a pouco a tortura se tornou prática comum e oficial.
Seguiram-se ao SNI (Serviço Nacional de Inteligência) – criado em junho de 1964 – outras siglas macabras como CIE (Centro de Informações do Exército), CISA (Centro de Informações da Aeronáutica), CENIMAR (Centro de Informações da Marinha), dedicadas, em nome da segurança, a prender, torturar e assassinar sistematicamente homens e mulheres identificados como terroristas ou subversivos.
Em 1968, na cidade de São Paulo, surgiu, com o auxílio de financiamento empresarial, a OBAN (Operação Bandeirante), que na década seguinte tornou-se o DOI/CODI-SP, matadouro oficial chefiado pelo delegado Sergio Paranhos Fleury.
Disseminado em várias regiões do país, o modelo de organização do DOI/CODI-SP integrou e tornou mais eficiente a repressão torturadora do terrorismo de Estado.
Diziam que salvariam a democracia dos comunistas. Que os brasileiros patriotas desejavam capitalismo e democracia. Que a ditadura reporia a institucionalidade. Que, em suma, o Estado se defendia do perigo comunista!
E tudo isso nada mais é do que a essência do próprio Estado de direito.
O alto investimento na propaganda do “milagre brasileiro” auxiliou, nos anos 1970, o fortalecimento dos grupos paramilitares que passaram a atuar coadunados com o aparelho repressivo construído após o golpe, assassinando moradores nas periferias do Brasil afora, conformando um “programa de genocídio”, como bem situou o artista Hélio Oiticica ao se referir ao assassinato, nesta década, de quase todos os seus amigos do morro da Mangueira.
Como declarou Cecília Coimbra, “a tortura não quer ‘fazer’ falar, ela pretende calar e é justamente essa a terrível situação: através da dor, da humilhação e da degradação tentam transformar-nos em coisa, em objeto. Resistir a isso é um enorme e gigantesco esforço para não perdermos a lucidez, para não permitir que o torturador penetre em nossa alma, em nosso espírito, em nossa inteligência” (Depoimento de Cecília Coimbra à Comissão da Verdade: http://www.torturanuncamais-rj.org.br/artigo/depoimento-de-cecilia-maria-boucas-coimbra-as-comissoes-nacional-e-estadual-da-verdade/).
Em plena democracia, o silêncio sorridente de parte dos cidadãos diante do “desaparecimento” de Amarildo, da recente execução de Claudia Silva Ferreira, dos urros de dor dos corpos submetidos às violências da prisão, expõe a sobrevivência de práticas que se institucionalizaram antes, durante e depois da ditadura civil-militar.
É preciso, portanto, reverter os embates tradicionais contra a tortura e os escrachos que se restringem a um acerto de contas histórico.
A luta contra a ditadura, a tortura, o governo dos obedientes militantes e conformistas é também uma luta contra o Estado.
pelo fulgor da vida
No romance Os cúmplices, o escritor libertário Roberto Freire explicitou, precisamente, que o consentimento de grande parte da população com o golpe civil-militar foi o que sustentou mais tarde a infindável máquina de violências do Estado.
Preso em 1965, torturado com “telefones” que resultaram no deslocamento da retina de um de seus olhos, Freire conta no livro que no dia 1º de abril de 1964 saiu caminhando pelas ruas de São Paulo. Pediu um táxi. No trajeto, perguntou ao motorista: “E, agora, como será nossa vida com esse golpe militar?”. “Igual”, responde o chofer. Diante da insistência de que os militares iriam acabar com “nossa liberdade”, ouve como resposta, “que liberdade, cara? Preciso é de dinheiro”.
Entre 1964 e 1968, irromperam os jornais O Libertário, Dealbar e O Protesto. Não foram supervisionados por censores como a grande mídia, simplesmente foram fechados. Nada de palavra livre, somente as gerenciadas.
Já em 1964, o anarquista Pietro Ferrua cria, ao lado de uma jovem pesquisadora no Rio de Janeiro, uma "Liga dos Direitos Humanos". Não para celebrar e promover o vazio e a universalidade de valores, mas como um meio para produzir contatos internacionais capazes de evitar que pessoas fossem mutiladas e assassinadas pelo Estado, usando o que hoje serve para promover benfeitores e reformadores como tática para combater o Estado e suas violências.
Combateu-se os guerrilheiros urbanos ou rurais que saíram em contestações radicais alertando contra a ditadura, o capitalismo, a encenação parlamentar, a exploração... Só houve terrorismo civil depois de instalado o terrorismo de Estado.
Na ditadura civil-militar, no governo de Garrastazu Médici, em 1972, integrantes do grupo de teatro anarquista The Living Theatre foram presos no DOPS de Belo Horizonte e, depois, expulsos do país.
Ao chegarem a Nova York, apresentaram pelas ruas da cidade Seven Meditations on political sado-masochism.
Exibiram o sexo torturado do corpo de um jovem revolucionário arruinado pela ditadura, escancarando o apoio dos EUA à ditadura civil-militar do Brasil, a conivência de parte da população brasileira com as violências do Estado e, por fim, o que chamaram de horror produzido pela política.
Depois de intensa repressão, a partir da invenção do jornal O Inimigo do Rei, em 1977, os libertários voltaram a se articular, animados pelas experiências liberadoras contra o Estado, para além de acomodações e negociações políticas de abertura política.
Com O Inimigo do Rei, o combate à ditadura retornou revigorado e exigiu, diante das transações pela anistia, a libertação imediata de todos os presos brasileiros.
Diante da ciência da tortura, do Estado, os anarquistas resistiram à ditadura civil-militar escrevendo cartas para vários cantos do planeta, ensaios, romances, jornais, apresentações, escrevendo a própria existência.
Estas vidas que vibram pouco são comentadas nos eventos solenes oficiais e off-oficiais de memória e combate ao autoritarismo vigente durante a ditadura civil-militar.
Entretanto, elas estão aí em livros, anotações, cadernos, dissertações e teses, na memória que se atualiza, pelas ruas e pelos cantos, na pele de jovens que fazem do presente das batalhas um fulgor.
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