O que está por trás do DSM-5 e sua tentativa de transformar a experiência do sofrimento em patologia a ser tratada
Vladimir Safatle
Quando confrontados a categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, a maioria dos psiquiatras atuais tenderá a aceitar que tais definições são, basicamente, objetos de um “discurso científico”. Isso significa, grosso modo, que a pretensa objetividade de suas distinções deve estar assegurada por um discurso que privilegia fenômenos mensuráveis, quantificáveis e claramente diferenciáveis através de um conjunto finito e operacional de caraterísticas de base. Esta seria a melhor maneira de impedir que tais metaconceitos fossem tragados por uma interminável discussão ideológica, com suas querelas sem fim de escolas a respeito da natureza do que orienta nossa atividade na clínica do sofrimento psíquico.
Foi com essa crença em vista que a psiquiatria dos últimos quarenta anos desenvolveu um dos mais impressionantes esforços de classificação de doenças e homogeneização de diagnósticos que se tem notícia. Desde o advento do DSM-3, a psiquiatria teria, enfim, encontrado o caminho em direção a sua segurança ontológica, deixando para trás décadas de imprecisão. Uma imprecisão que seria fruto do uso de vocabulários extremamente valorativos, em vez de meramente descritivos, assim como da fascinação por etiologias fantasistas. Pois, ao invés de se preocupar com a definição de causas dificilmente observáveis (como, por exemplo, afirmar que certa fobia de animal é resultado de conflitos inconscientes com a figura paterna), melhor seria privilegiar um pensamento categorial que organiza distinções a partir de uma certa lógica de conjuntos no qual o esforço clínico fundamental consiste em definir sintomas e condições que, se colocados em relação, podem individualizar um comportamento patológico. Desta forma, nasceria o milagre de um saber, para além de disputas teóricas, observável, imune aos juízos subjetivos do médico-observador e, acima de tudo, eficaz.
Esta história da marcha irresistível da psiquiatria em direção à ciência é normalmente contada em tons edificantes. A partir do início dos anos 1970, vários psiquiatras começaram a fazer testes, demonstrando a incrível variação de diagnósticos entre os profissionais. Por outro lado, a própria psiquiatria era bombardeada de todos os lados por aqueles irresponsáveis que tentavam demonstrar que categorias clínicas eram mitos ou, no mais das vezes, mecanismos de exclusão e controle social. Neste ambiente hostil, psiquiatras como Robert Spitzer e John Feighner teriam sido capazes de tirar a psiquiatria da defensiva por meio de uma profunda reforma metodológica que, em um curto espaço de tempo, modificou radicalmente o que entendíamos até então por “clínica”.
Pois tal reforma metodológica teria sido acompanhada pelo desenvolvimento exponencial do saber neurológico, assim como do desenvolvimento de medicamentos capazes de combater com eficácia aquilo que, erroneamente, entendíamos fluidamente por “impasses existenciais” capazes de afetar nossa performance no trabalho, nossos papéis sociais e nossa autonomia do desejo. A clínica aparecerá, então, cada vez mais submetida a uma farmacologia em vias irresistíveis de aprimoramento. Neste sentido, não haveria razão alguma para se inquietar do fato de que por volta de 70% dos experts que trabalharam para o DSM-5 terem, em sua carreira recente, vínculos financeiros com a indústria farmacêutica. A comunidade entre indústria farmacêutica e comunidade psiquiátrica seria exclusivamente fundada nas promessas abertas pelo progresso da ciência.
Também não haveria razão alguma para se perguntar se não haveria uma articulação perversa entre o fechamento dos asilos, a redução dos gastos públicos em saúde mental e um triplo processo de reforço da posição da psiquiatria. Processo triplo marcado pela medicalização, pela institucionalização crescente das discussões através da hegemonia da American Psychiatry Association (APA) e pela tecnicização crescente dos diagnósticos.
Doença e política
Tudo isso poderia interessar apenas à uma comunidade limitada, composta por todos aqueles profissionais designados para tratar de problemas de saúde mental (psicólogos, psiquiatras, psicanalistas, entre outros). Mas talvez seja o caso de colocar algumas questões. Pois, e se categorias como “saúde”, “doença”, “normal” e “patológico”, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política? Por um lado, uma sociedade organiza seus modos de intervenção nas populações, nos corpos e nos afetos por meio da definição do campo das doenças e das patologias. No interior desses modos de intervenção, não é apenas a experiência subjetiva do sofrimento do paciente que orienta a clínica, mas também padrões esperados de conduta social de forte conotação moral (ou mesmo estética e política). Por exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz muito a respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade médica.
Exemplo ainda mais caricato são os oito critérios fornecidos para definir o transtorno de personalidade histriônica: 1) desconforto em situações nas quais não se é o centro das atenções; 2) comportamento inadequado, sexualmente provocante ou sedutor; 3) superficialidade na expressão das emoções; 4) constante utilização da aparência física para chamar a atenção sobre si próprio; 5) discurso excessivamente impressionista; 6) teatralidade e expressão emocional exagerada; 7) ser facilmente sugestionável; 8 ) considerar os relacionamentos mais íntimos do que realmente são. Em um manual que se vangloriava pela clareza de seus “critérios específicos”, impressiona exatamente a falta de especificidade de um quadro clínico tão amplo que poderia englobar praticamente qualquer pessoa com o mínimo de senso de autocrítica. Há de se perguntar se estamos diante de uma falha ou da exposição sintomática de uma lógica que perpassa, em maior ou menor grau, todo o poder psiquiátrico atual com sua tendência muda, como vemos no texto de Gilson Ianinni e Antonio Teixeira, de “psiquiatrização da vida cotidiana”.
Se nos perguntarmos sobre a natureza de tal lógica, valeria a pena lembrar como a experiência da doença, ou seja, a experiência de se compreender como doente, não é apenas o resultado da descrição de variações em marcadores biológicos específicos. Nem é a doença a mera definição de situações de sofrimento. Há várias experiências de sofrimento que não vivenciamos como doença, mas como conflitos relativamente naturais em processos globais de transformação e de desenvolvimento. Na verdade, há uma dimensão na qual estar doente, no que diz respeito à saúde mental, aparece como o sofrimento advindo da limitação na capacidade de ação e da fixidez em certos comportamentos. O que não poderia ser diferente se aceitarmos que estar doente é, a princípio, assumir uma identidade com forte força performativa. Ao compreender-se como “neurótico”, “depressivo” ou portador de “transtorno de personalidade borderline”, o sujeito nomeia a si através de um ato de fala capaz de produzir performativamente efeitos novos, de ampliar impossibilidades e restrições. Uma patologia mental não descreve uma espécie natural (natural kind), como talvez seja o caso de uma doença orgânica, como câncer ou mal de Parkinson. Como nos lembra Ian Hacking, ela cria performativamente uma nova situação na qual os sujeitos se veem inseridos.
Neste sentido, há de se perguntar o que está por trás dessa tendência de psiquiatrização da vida cotidiana levada a cabo pelo DSM-5. Tendência que realiza uma progressão presente na própria base dos DSMs. A partir de agora, o número de patologias mentais se eleva a 450 categorias diagnósticas. Elas eram 265 no DSM-3, lançado em 1980, e 182 no DSM-2, de 1968.
De fato, com modificações, como as que diminuem o luto patológico de dois meses para 15 dias ou que cria categorias bisonhas como o transtorno disruptivo de desregulação de humor, o vício comportamental (behavioral addiction) ou o transtorno generalizado de ansiedade, dificilmente alguém que passa por conflitos psíquicos e períodos de incerteza entrará em um consultório psiquiátrico sem um diagnóstico e uma receita médica.
Por trás desta estratégia clínica, com sua negação de perspectivas etiológicas, há a tentativa equivocada de transformar toda experiência de sofrimento em uma patologia a ser tratada. Mas uma vida na qual todo sofrimento é sintoma a ser extirpado é uma vida dependente de maneira compulsiva da voz segura do especialista, restrita a um padrão de normalidade que não é outra coisa que a internalização desesperada de uma normatividade disciplinar decidida em laboratório. Ou seja, uma vida cada vez mais enfraquecida e incapaz de lidar com conflitos, contradições e reconfigurações necessárias. Há de se perguntar se tal enfraquecimento não será, ao final, o resultado social dessas modificações no campo da saúde mental patrocinadas pelo DSM. Há de se perguntar também a quem tal situação interessa.
Vladimir Safatleé professor livre-docente no Departamento de Filosofia da USP
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