O anarquismo saiu dos chavões que marcavam seu século e quase meio de idade para ter um pensamento talvez não exatamente seu, mas bastante próximo disso
Renato Janine Ribeiro
Michel Foucault foi um pensador de muitas faces. Nós, de filosofia, gostamos de puxá-lo para nosso lado, mas ele teve forte impacto no Direito, na História, na Literatura. Este dossiê tenta dar conta de sua variedade. Começarei enfatizando seu papel político. Foucault veio a representar, para muitos, o melhor do 1968 francês e mundial. Confrontemos esse intelectual público modelar dos anos 60 e 70 com o filósofo que teve igual peso nas décadas anteriores – Sartre.
Jean-Paul Sartre foi o paradigma do pensador político francês entre o fim da 2ª Guerra Mundial e as barricadas do desejo, como Olgaria Matos chamou os movimentos de 1968. O eixo de sua posição consistiu, quisesse ele ou não, numa relação de proximidade crítica com o Partido Comunista. Sartre sempre foi mais democrata que os comunistas. Mas o PC era o partido dos operários, o portador da esperança revolucionária e, numa época em que a França fez de tudo para impedir a liberdade em suas colônias, a única força organizada de peso a contestar o colonialismo. Não dava para ser contra o PC e defender a liberdade. Hoje, quando a direita triunfa e Raymond Aron é visto como um pensador da liberdade (contra o totalitarismo comunista), muitos esquecem que, naquela época, o liberalismo reprimia e massacrava os povos.
Sartre soube disso e por isso mesmo seu pensamento e sua ação políticos tiveram por referência o comunismo. Foi muito crítico em relação ao movimento, como se pode ler em sua peça As mãos sujas (1948), mas não podia deixar de tê-lo por aliado. Vai criticá-lo com toda a severidade em seu “O fantasma de Stalin”, escrito logo depois da repressão soviética à Hungria, em 1956, mas nem por isso renega seu “Os comunistas e a paz”, de 1953, que defendia o Partido contra a repressão burguesa. O intelectual progressista assim se faz um “companheiro de viagem”, como se dizia. O rompimento de Sartre com Merleau-Ponty, aliás, se deve a posições distintas de ambos em face do comunismo e dos soviéticos.
Resumindo, há em Sartre uma preocupação com o social macro. É a sociedade como um todo, o mundo mesmo como um todo, que deve defender-se do capitalismo e de suas chacinas. Contra a ordem do capital, uma organização do trabalho é necessária – o que o Partido Comunista realiza. Mas Foucault verá as coisas de outro modo. Há várias maneiras de explicar essa diferença. O mundo mudou. As esperanças depostas num comunismo revisto, democratizado, foram-se. Em 1968, Brejnev manda na União Soviética. Isso significa a estagnação. Seu arremate é a destruição da Primavera de Praga, naquele ano – e, com isso, o fim (por muitas décadas, e talvez para sempre) da aposta num socialismo com rosto humano. Não há mais como ser companheiro crítico dos comunistas. E 1968 também vê a decisão do PC Francês de não levar o movimento das ruas à revolução: ele contenta-se com aumentos salariais. Mas a ruptura com o modelo sartriano era anterior a essa data.
Naquela década, o rompimento chamou-se estruturalismo. Dizia-se, o que hoje se esqueceu, que Foucault era um dos grandes estruturalistas – isto é, que dava a primazia à estrutura inconsciente sobre a ação consciente, ao macro sobre o micro, aos condicionantes sobre o voluntarismo. Isso vale para As palavras e as coisas, que revolucionou a leitura da filosofia e do pensamento clássicos, mas que, sobretudo, negava a possibilidade de pensar a passagem de uma época à seguinte por suas contradições internas: da Renascença ao tempo clássico/barroco e deste ao moderno, não se poderia explicar a lógica da mudança histórica.
Era essa a derrota da sincronia para a diacronia, com um estudo mais acurado das solidariedades que mantêm determinado sistema, mas, também, uma descrença na possibilidade de ruptura a partir de contradições internas. Era, portanto, um golpe no marxismo, que é dialético justamente porque define o real pela contradição, que é o que efetua a passagem de uma etapa da História a outra.
Sartre, por sua vez, era um moralista, no melhor sentido do termo. Sua grande questão era a ética. Embora nunca tenha escrito seu prometido grande livro filosófico sobre ela, sua intervenção política e suas peças de teatro – que lhe permitiam viver sem precisar submeter-se ao establishment universitário – respiram questões éticas o tempo todo. Por isso lhe causava repulsa a idéia de que nossas ações estivessem subordinadas a um quadro inconsciente, a um condicionante estrutural.
Mas essa oposição Sartre/Foucault não perdura. Hoje ninguém pensa em Foucault como estruturalista; aliás, o termo fez água, sumiu. E os dois se indignaram com a atitude do PCF em 1968 – só que Sartre saiu dali para tentar criar um clone maoísta do PC, enquanto Foucault foi defender ações pulverizadas, em escala micro, que negavam já por princípio o modelo da grande ação que mudasse o mundo.
Ficou algo de patético no Sartre dos últimos anos, que tentava com grupúsculos reconstruir um PCF: a tragédia era que lhes faltava o único mérito do PC, o tamanho, e lhes sobravam os vícios, como a opção pela ditadura. Já a escolha foucaultiana (ou foucaldiana, como querem alguns) implicava desistir da mudança do mundo por uma ação certeira, mirando o foco do inimigo, que era o capital. Não se acreditava mais que esse tipo de ação fosse possível (os poderes eram múltiplos, “mil poderezinhos”) nem desejável (o foco no centro manteria o poder como tal, só mudando o seu detentor).
Mas houve uma alegria nessa política dos enfrentamentos locais. Queria-se, talvez, menos; os críticos de Foucault alegavam que ele não punha em xeque o capital, apenas seus sintomas; os foucaultianos respondiam que não, que o poder assim se percebia mais complexo do que uma leitura simplista (leia-se: marxista) mostrava. Era inegável um débito de Foucault, como de Deleuze e Clastres, seus contemporâneos, com o anarquismo. Foi possivelmente essa a primeira vez que o anarquismo saiu dos chavões que marcavam seu século e quase meio de idade para ter um pensamento talvez não exatamente seu, mas bastante próximo disso.
Onde estava essa alegria de pensar, que aliás aproximou todos esses autores de Nietzsche? Estava na disposição a agir na esfera local, na prontidão a ler sinais do novo, na idéia de que o poder estava em toda a parte – e, por isso, numa presteza a agir. Vejamos Vigiar e punir, livro de 1975, publicado quase às pressas (dizia-se que ia sair um livro pirateando as idéias de Foucault e que ele se antecipou a isso). Pouco a ver com o impacto d’As palavras e as coisas, que foi de 1967. As palavras falavam em quadros que condicionavam nosso pensamento e tornavam difícil o advento do novo. Vigiar tratava da ação, mais que do pensamento, e – se mostrava o peso do mundo disciplinar, se lia a modernidade a partir dos jesuítas e de sua imposição de uma ordem, barrando um agir livre – inspirava a cada página uma revolta, que se daria no plano da ação, mesmo que essa não fosse muito raciocinada, mesmo que (ou porque) ela prescindisse da macroteoria, da dialética, do marxismo.
Um balanço? Foucault foi muito criticado porque, na passagem de 1978 para 79, se entusiasmou por Khomeini. Não viu a teocracia que despontava em seu discurso; acreditou que a mobilização de massas a partir de uma fala não-ocidental constituía um fato novo e auspicioso. O erro foi grande, mas de quase nenhum efeito prático. Lembro um pensador de base marxista, condenando Foucault por lhe faltar uma base filosófica forte (leia-se: o marxismo) que o impedisse de erro tão banal. Mas lembro também que, ao contrário do comunismo, que teve seus gulags, o erro de Foucault não levou ninguém para o matadouro. Seu papel na Revolução Islâmica foi quase nulo, o de um mero simpatizante escrevendo para o Nouvel Observateur artigos que deram errado.
Em que pese esse erro, resta algo forte da política de Foucault. Penso que a prova dos nove, na filosofia política, reside na capacidade de inspirar o agir. O marxismo hoje inspira pouco o novo. Mas Foucault chama a agir, ainda que pontualmente. É curioso: a frase que motivou o Sartre derradeiro, “Sempre temos razão em nos revoltarmos”, poderia valer para ele, desde que reduzíssemos o peso da palavra razão, que fôssemos um pouco céticos diante dela…
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