por sergio adorno
O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa
São bastante conhecidas as objeções de Foucault ao tratamento que a teoria política moderna atribuiu às relações entre direito e poder. Foucault recusa-se a aceitar a hegemonia que o modelo jurídico-político, herdeiro das tradições “jusnaturalistas” e contratualistas, centrado na idéia de soberania e no primado da lei, conquistou no interior do pensamento político, quer clássico, quer contemporâneo. À ficção jurídica do contrato, cuja substância se encarna na figura do príncipe pacificador, Foucault opôs uma mecânica de poder que opera sob a forma de infradireito (Foucault [1975] 1977a; [1976] 1977b; 1994, v. II-IV; [1976] 1999). Em Vigiar e punir (1977), Foucault reconhece que o século 19 elegeu a delinqüência como uma das engrenagens do poder e identificou a prisão como seu observatório político. Esse momento corresponde à emergência de uma nova mecânica de poder, que não diz mais respeito exclusivamente à lei e à repressão, mas que dispõe de uma riqueza estratégica porque investe sobre o corpo humano, não para supliciá-lo, contudo para adestrá-lo; não para expulsá-lo do convívio social, senão para explorar-lhe o máximo de suas potencialidades, tornando-o politicamente produtivo e economicamente dócil. Disso resulta que a disciplina não é uma estratégia de sujeição política exclusivamente repressiva, todavia positiva: o poder é produtor da individualidade, o indivíduo é uma produção do poder. Trata-se de uma forma de poder que se opõe ao modelo da soberania.
Essas conhecidas formulações de Foucault não conduzem, entretanto, a uma teoria geral do direito sob a égide do poder disciplinar. François Ewald (1993) sustenta que o direito, em Foucault, é antes de tudo um princípio de racionalidade que cabe percorrer em sua plenitude. Enquanto tal, impõe-se reconstruir sua história (afinal, o direito tem uma história?), o que significa, primeiramente, suspender a idéia mesma de direito, isto é, de um conjunto de regras universais e abstratas que circunscrevem o poder e o Estado.
No mais rigoroso nominalismo, Foucault decreta: o direito não existe; o que existe são práticas jurídicas referidas a um princípio de racionalidade – o do juízo, em lugar da coerção. É esse princípio que ordena as práticas legislativas, as doutrinas, a jurisprudência, a aplicação e distribuição da justiça.
Trata-se de um princípio atravessado pela história. Na história ocidental moderna, o juízo revestiu-se de legalidade. O direito enuncia-se sob a forma da lei inscrita nos códigos. Sob essa perspectiva, uma crítica arqueológica e genealógica do direito requer liberá-lo desse revestimento. É justamente o que faz Foucault em Vigiar e punir, em especial nas páginas consagradas ao exame da reforma iluminista da legislação penal verificada na França no período pós-revolucionário.
Em estudo recente, Fonseca (2002) aprofunda o lugar do direito no pensamento de Foucault. O direito define-se por seus usos. Fonseca reconhece ao menos três. O primeiro faz justamente referência ao direito como lei, imerso na arquitetura jurídico-política da soberania. O segundo compreende a extraordinária démarche em torno do poder disciplinar, magistralmente descrita na terceira parte de Vigiar e punir, seguida de seus ensaios, cursos e do 1o volume de História da sexualidade. Por fim, o terceiro uso introduz uma inovação: o apelo a um novo direito que percorre as entrelinhas de sua reflexão sobre a crise contemporânea das disciplinas (Foucault, 1994, v. III), a emergência de novos ilegalismos ([1975], 1977), em especial em seus cursos no Collège de France de 1975-76, “Em defesa da sociedade” (1999), e de 1978-79, “O nascimento da biopolítica” (1989), em parte dedicado à análise do liberalismo e do neo-liberalismo alemão e americano.
Esse terceiro uso é anunciado nos seguintes termos: “E creio que nos encontramos aqui numa espécie de ponto de estrangulamento: não é recorrendo à soberania contra a disciplina que poderemos limitar os próprios efeitos do poder disciplinar. De fato, soberania e disciplina, legislação, direito da soberania e mecânicas disciplinares são duas peças absolutamente constitutivas dos mecanismos gerais de poder em nossa sociedade. Não é na direção do antigo direito de soberania que se deveria ir; seria antes na direção de um direito novo, que seria antidisciplinar, mas que estaria ao mesmo tempo liberto do princípio da soberania” (1999, p. 47).
Um direito finalmente liberto do princípio da legalidade? Estamos diante da emergência de um novo princípio de juízo? O curso “Em defesa da sociedade” é devotado ao estudo das relações entre guerra e poder. Ao contrário do que sustenta certa tradição do pensamento ocidental, a emergência do mundo moderno não é por excelência o reino da paz sobre a guerra, nem a política é, como sonhava Clau-sewitz, a guerra pacificada sob outros meios. Examinando detidamente textos de historiadores contemporâneos dos processos revolucionários na Inglaterra e na França, Foucault reconhece que “a ordem civil é funda-mentalmente uma ordem de batalha”. A política é a continuação da guerra por outros meios. De que guerra se trata? A guerra das raças.
Na tradição clássica que adentra a Idade Média, o discurso histórico tinha por função justificar e fortalecer o poder. Seus fundamentos repousavam sobre três eixos: antiguidade dos reinos e conseqüente ancianidade do direito; glorificação dos reis e príncipes e de seus antecedentes; memorização dos feitos heróicos. A glória é feita lei.
A nova história, inaugurada com a emergência do mundo moderno, produz acentuada ruptura: em lugar do discurso histórico das virtudes da soberania, emerge o discurso das raças por meio das guerras entre nações, o que fez diluir a tradicional identidade entre povo e monarca. Daí em diante, a soberania terá precípua função: não mais o que une, porém o que subjuga. A história de uns não é mais a história de todos. A lei vai aparecer como dupla face: “Triunfo de uns, submissão de outros”.
Assim, “o papel da história será o de mostrar que as leis enganam, que os reis se mascaram, que o poder ilude e que os historiadores mentem” (1999, p. 84). A nova história será, nessa medida, uma anti-história tendo em vista que desenterra o que parecia escondido nas saliências da memória: os reis, os poderosos, as leis nasceram justamente do acaso e da injustiça das batalhas. Trata-se, portanto, de uma história que reivindica direitos ignorados, a decifração de uma verdade selada pela dissimetria das raças e de seu contínuo enfrentamento bélico.
O desfecho desse processo, em fins do século 18 e meados do 19, encorajado pelos saberes médicos e biológicos, converterá a guerra das raças em racismo, de que se nutrirão todos os profetismos revolucionários que se seguem. Esse é justamente o momento do nascimento da biopolítica, a partir do que a questão da vida é problematizada no campo do pensamento político. Seus fundamentos repousam em dois eixos: nos séculos 17 e 18, emergem e se consolidam as técnicas de poder disciplinar em torno do corpo individualizado; na segunda metade do século 18, uma nova tecnologia ganha materialidade. Ela não exclui as técnicas disciplinares, antes as recobre. Dirige-se à multiplicidade dos homens, não enquanto portadores de corpos individualizados, todavia como massa global, afetada por processos coletivos como o nascimento, a morte, a produção, a doença. Suas técnicas residem na medição estatística de fenômenos demográficos. Seu alvo é a população como problema político e de gerenciamento estatal. Seu escopo não é o nascimento em si, porém a natalidade; não a morte, contudo a morbidade e a mortalidade.
Uma inovação dessa ordem inverte o clássico direito de soberania, o de mandar matar ou deixar viver, que se expressava na grande ritualização pública da morte. Com a invenção da biopolítica, um novo direito emerge: o de fazer viver e – em seu limite extremo – deixar morrer. Sob essa perspectiva, o direito é uma possibilidade, um mecanismo de regulamentação. Seu paradoxo é que, na era contemporânea, tenha-se tornando excessivo, numa espécie de superpoder ou supradireito. A estatização cada vez maior do direito à vida introduz uma possibilidade perturbadora: não só a da incessante fabricação da vida e dos viventes como também a fabricação de algo monstruoso, a possibilidade de sua eliminação sem controle por meio da disseminação de vírus, das armas químicas, da guerra sem interditos morais contra “as outras raças”.
O excesso de biopoder força a passagem do racismo para o racismo de Estado. Introduz uma nova economia de poder na qual a morte dos outros é o fortalecimento da própria pessoa na medida em que se é membro de uma população ou de uma raça. “Portanto, o racismo é ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação das raças para exercer seu poder soberano” (1999, p. 309). Nesse cenário, no qual repúblicas parlamentares se inclinam muito rapidamente a Estados totalitários, se assiste paradoxalmente ao retorno do velho direito soberano de matar para se deixar viver.
Sergio Adornoprofessor do Departamento de Sociologia (FFLCH-USP) e coordenador do Núcleo de Estudos da Violência – NEV–CEPID/USP
Referências bibliográficas
Ewald, F. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja. 1993.
Fonseca, M. A. Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad. 2002.
Foucault, M. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes. (1975) 1977.
Foucault, M. “A vontade de saber”. História da Sexualidade I. Rio de Janeiro: Graal. (1976) 1977.
Foucault, M. Resume des cours, 1970-1982. Paris: Julliard. 1989.
Foucault, M. Dits et ecrits. v. II-IV. Paris: Gallimard. 1994.
Foucault, M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. (1975-76) 1999.
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