terça-feira, 9 de outubro de 2012

PLISSÊ FRACTAL OU COMO AS MÁQUINAS DE GUATTARI PODEM NOS AJUDAR A PENSAR O TRANSCENDENTAL HOJE


por Pierre Lévy
 
 O pensamento deve lançar-se acima dos “fatos” para interrogar-se, não apenas sobre suas causas mecânicas, mas também sobre o que os faz serem o que são, sobre os agenciamentos de enunciação de que eles são os enunciados, sobre os mundos de vida e de significação do magma dos quais eles surgem. Remontar até às fontes, tal é o sentido do problema do transcendental. 
  
 Através de que há um mundo? A história da filosofia e, parcialmente, a da ciência, podem ser consideradas como o conjunto de proposições que foram articuladas para responder esta questão. Evidentemente não é possível retomar aqui toda a história da filosofia e nem mesmo resumí-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens inspiradas por alguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as máquinas de Guattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam hoje a re-colocar este problema. 
  
 No lugar sem lugar da origem sempre presente, será preciso eleger, depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou então, como os cognitivistas contemporâneos, uma arquitetura do sistema cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instância, pois o fundamento biológico do sujeito cognitivo está no cérebro, como pensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora, mesmo correndo o risco de situar a última fonte no estrato biológico, não seria preferível considerar o organismo inteiro, suas operações recursivas e sua autopoiése, como o sujeito cognitivo último, aquele que calcula seu mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda cibernética, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela. Teríamos então atingido o termo? Não, pois o organismo tal como ele é, remete duas vezes às contingências da História: o “fora” intervém uma primeira vez através da construção ontogenética e da experiência de vida; ele se aloja uma segunda vez no coração do organismo específico ao acaso da filogênese. A evolução biológica, por sua vez, não pode se separar da história infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e até mesmo além, ela se conecta rizomaticamente com a terra, com suas redobras e seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as complexidades da physis e de seu devir.  
 Ao invés de conduzir, gradativamente, do cognitivo ao biológico e do biológico ao físico, a meditação do sujeito transcendental do conhecimento pode remeter a seu outro: o inconsciente dos afetos, das pulsões e dos fantasmas. Mas, ainda aqui, é impossível deter-se no inconsciente freudiano como um termo último. Guattari e Deleuze mostraram que o dito inconsciente não se limita a um reservatório de desejos incestuosos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre a História, a sociedade e o cosmo. O inconsciente total, que não é mais concebido como uma entidade intrapsíquica, são os agenciamentos coletivos de enunciação, os rizomas heterogêneos ao longo dos quais circulam nossos desejos e pelos quais se lançam e se relançam nossas existências. Ora, não se pode estabelecer uma lista a priori de tudo o que entra na composição dos agenciamentos de enunciações e das máquinas desejantes: lugares, momentos, imagens, linguagens, instituições, técnicas, fluxos diversos, etc. E finalmente, de novo, descobrimos que o termo último, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui nomeado “inconsciente”, bem poderia ser o próprio mundo. 
 Voltemos à encruzilhada de onde partimos, o sujeito do conhecimento, para seguir uma terceira via, aquela da empiria. A experiência não é originária? E antes mesmo da experiência, os sentidos que a tornam possível? Em Os cinco sentidos, Michel Serres conseguiu a proeza de construir, a partir de cada uma das modalidades sensoriais, uma metafísica, uma física, uma gnosiologia, uma estética, uma política e uma ética. A sensação seria, por conseguinte, fundadora. Mas o próprio do tato, da audição, do olfato, do paladar e da vista não seria o de se remeter ao mundo? Se a percepção faz existir para nós o fora, por outro lado, é também sobre o devir e o terrível esplendor do mundo que repousa a vida dos sentidos. Ser, é ser percebido, dizia Berkeley. A percepção e o mundo sensível são duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por uma reversão talvez previsível, o livro seguinte de Michel Serres, Statues, punha a coisa, a massa, a exterioridade a mais densa no fundamento dos coletivos humanos, das subjetividades e do conhecimento. O empirismo situa o mundo no coração do conhecimento. É o que Kant, que havia pretendido colocar o sujeito no centro, demonstrou muito bem em sua metáfora da “revolução copernicana” em filosofia. Mas por mais que se queira expulsar o mundo pela grande porta do transcendental, ele volta pelas janelas do corpo, sob o aspecto de imagens impalpáveis que habitam e fazem viver o sujeito, e pela força do tempo, que tudo transforma.  
 Explorando outras vias, podemos remontar o sujeito individual às significações sociais que o habitam, ao imaginário instituinte que o atravessa (Castoriadis), à remissão historial que o destina (Heidegger), aos épistémai que estruturam seu discurso (Foucault) etc. Recordemos que a principal aporia, quando se considera um transcendental histórico existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires inominados, ele se metamorfoseia permanentemente? Se concebêssemos causas e efeitos na região transcendental, o que então a diferenciaria do campo empírico? Todo o fatual e o contigente da História (geografia, quedas de impérios, propagações de religiões, invenções técnicas, epidemias etc.) não retroage sobre a região historial? Não resultam as idas e vindas do transcendental histórico, de efeitos ecológicos, de processos cosmopolitas? Mais uma vez, para compreender aquilo através de  que há um mundo, nós somos conduzidos à complexidade e aos redemoinhos do próprio mundo. 
 Primeira abordagem da dobra 
 Com efeito, é sempre o mundo, sua multiplicidade indefinida, sua realidade, sua materialidade, sua topologia singular, as contingências de seu devir, Cosmópolis povoada de coletivos heterogêneos ao infinito e em todas as escalas de descrição é, finalmente, o próprio mundo que se descobre, cada vez, acima do complexo vital de significações que o faz ser tal mundo para nós. 
 Pelas metáforas e imagens recebidas, pelas significações culturais a nós transmitidas (implicando em suas dobras fragmentos holográficos de natureza), pelo inconsciente maquínico conectado ao fora, pelas técnicas materiais, as escrituras e as línguas sob a dependência das quais pensamos e produzimos nossas mensagens, tudo aquilo através do que experimentamos e vivemos o mundo é precisamente o próprio mundo, a começar por nosso corpo de sapiência. 
 Mais do que grosseiramente adaptado ao seu nicho-universo, o organismo vivo é certamente seu produtor; nisso é preciso seguir Varela. Mas devemos reconhecer igualmente que o mundo exterior, ou se quisermos, “o meio”, já está também sempre incluído no organismo cognoscente que produz. No vivo, o mundo se redobrou localmente em máquina autopoiética e exopoiética, produtora de si e de seu fora. Acima do mundo empírico experimentado por nós, o mundo transcendental que evocamos aqui não é certamente redutível a algum estrato físico, ou biológico, ou social, ou cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco é a soma ordenada ou bem articulada dos estratos. Trata-se do mundo como reserva infinita, trans-mundo, sem hierarquia de complexidade, sempre e por toda parte diferente e complicado: Cosmópolis. 
 Corpos, culturas, artifícios, linguagens, significações, narrações... o empírico torna-se transcendental e o transcendental faz advir um mundo empírico. “Isso” se dobra e se redobra em transcendental e empírico. A dobra é o acontecimento, a bifurcação que faz ser. Cada dobra, ação-dobra ou paixão-dobra, é o surgimento de uma singularidade, o começo de um mundo. A proliferação ontológica é irredutível a uma ou outra camada particular dos estratos; igualmente irredutível a qualquer dobra-mestra como aquela do ser e dos entes, da infraestrutura e da superestrutura, do determinante x e do determinado y. O mundo total e intotalizável, o trans-mundo cosmopolita, diferenciado, diferenciante e múltiplo é, ao contrário, infinitamente redobrado, ele fervilha de singularidades nas singularidades, de dobras nas dobras. As oposições binárias maciças ou molares como a alma e o corpo, o sujeito e o objeto, o indivíduo e a sociedade, a natureza e a cultura, o homem e a técnica, o inerte e o vivo, o sagrado e o profano, e até a oposição de que partimos entre transcendental e empírico, todas essas divisões são maneiras de dobrar, resultam de dobras-acontecimentos singulares do mesmo “plano de consistência” (Deleuze e Guattari). “Isso” poderia ter se dobrado de outra maneira. E como a dobra emerge num infinitamente diversificado mas único, sempre se pode remontar ao acontecimento da dobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar seu drapê, passar continuamente de um lado para o outro. 
 A alma e o corpo para Gilbert Simondon 
 De sorte que, como o demonstrou Gilbert Simondon, não há substâncias, mas processos de individuação, não há sujeitos, mas processos de subjetivação. A subjetivação como ação ou processo continuado constitui um “dentro”, que não é outro senão “a dobra do fora” (Deleuze). Os dualismos achatam e unificam violentamente o que eles distinguem, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas pelas quais passam as regiões do ser, uma na outra. “Descartes não apenas separou a alma do corpo; ele criou também, no próprio interior da alma, uma homogeneidade e uma unidade que proíbe a concepção de um gradiente contínuo (sublinho, P. L.) de distanciamento em relação ao eu atual, reunindo as zonas as mais excentradas, no limite da memória e da imaginação, a realidade somática.” (Gilbert Simondon, L’individuation psychique et collective, p. 167) 
 A alma e o corpo, apreendidas como multiplicidades diferenciadas, comunicam-se por suas zonas de sombra. A consciência livre, racional e voluntária, de um lado, o mecanismo físico-químico dos órgãos, de outro, se juntam pelas sensação, pelo afeto, toda a obscuridade psicossomática do desejo, da sexualidade e do sono. O maquinal, o reflexo, o herdado do psiquismo, toda a divisão e a exterioridade do espírito a si mesmo o redobram para o somático, fazem-no tornar-se corpo. 
 A união psicossomática só se torna um problema se tentarmos conectar as extremidades da dobra, que são apenas dois casos limites: de um lado, a consciência clara e racional; do outro, o corpo-matéria ou o cadáver auto-móvel. Mas a alma e o corpo sempre já se comunicam pela dobra que os refere um ao outro, pelas multiplicidades negras da curvatura, que formam a maior parte do sujeito. 
 O esforço para seguir a dobra, esboçado aqui sobre o caso da alma e do corpo, deveria ser levado a todas as oposições molares. A cada vez, no lugar de entidades homogêneas e bem recortadas, descobriríamos um plissê fractal (Mandelbrot), uma infinita diferenciação do ser segundo dobras, passando continuamente umas nas outras. 
 A ciência e a sociedade em Bruno Latour 
 O que Gilbert Simondon assinalou sobre as relações da alma e do corpo, Bruno Latour mostrou no caso da ciência e da sociedade. O autor de La science en Action mergulhou a ciência e a técnica no grande coletivo heterogêneo dos homens e das coisas. Mas seria um erro acreditar que ele negou toda especificidade à tecnociência, uma vez que ele mostra as forças díspares que a compõem. 
 A ciência e a técnica emergem de uma mega-rede heterogênea, elas contribuem, em contrapartida, para atá-la, curvá-la de outra maneira. Ciências e técnicas resultam de uma dobra do coletivo cosmopolita, que se redobra em ciência das coisas, de um lado, e em sociedade dos homens, de outro. 
 Há certamente uma identidade (múltipla e variável) da ciência, um estilo de dobra, um regime de enunciação que a singulariza. Mas um pensador rigoroso não pode se atribuir a particularidade produzida por um acontecimento (por mais continuo que seja) sem ter percorrido previamente a dobra que a efetua. Ele não pode atribuir a essência antes do processo. Antes de qualquer especificidade do conhecimento científico e da eficácia técnica há, primeiramente, uma maneira de dobrar entre a verdade das coisas em si e o conflito hermenêutico das subjetividades. Esse tipo de divisão se redobra sempre novamente, no próprio seio da atividade científica, e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outro lugar. Uma tal proposta científica teria se situado na face social ou demasiado humano da divisão se a dobra tivesse passado mais longe. Como para a alma e o corpo, o trabalho que consiste em reencontrar e desenhar a dobra não pode se realizar sem dissolver a unidade e a homogeneidade das regiões que ele distingue. Apesar de todas as analogias possíveis, a dobra que singulariza a ciência não é idêntica, por exemplo, àquelas que fazem sobreviver a justiça, a beleza ou a santidade. 
 As leis do inerte e o milagre do vivo em Prigogine e Stengers 
 De todos os contemporâneos exploradores de dobra, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers estão indubitavelmente entre os mais notáveis. Em suas duas dobras, Entre le temps et l’éternité e La nouvelle alliance, eles tentaram por abaixo a cortina de ferro ontológica que uma certa tradição filosófica havia construído entre os seres (o em si) e as coisas (o para si). Apoiando-se sobre os últimos desenvolvimentos da ciência contemporânea, a filósofa e o prêmio Nobel renovaram profundamente a filosofia da natureza. Lendo-os, redescobrimos na physis a irreversibilidade do devir e o carácter instituinte do acontecimento, que acreditávamos reservados aos universos do homem (desde que se pensa a História) e da vida (desde a descoberta da evolução biológica). Os processos distantes do equilíbrio e os sistemas dinâmicos caóticos conectam, por uma dobra que permaneceu invisível por muito tempo, a necessidade estática do mecanismo e o acaso miraculoso da auto-organização viva. A partir do momento em que o determinismo da “matéria” e a inventividade finalizada do vivo não são mais do que casos limites de um continuum infinitamente complexo, redobrado e semeado de singularidades, a vida e o universo físico, o sinal e a significação deixam de se opor. Não somente eles se relacionam um com o outro em sua diferença, mas passam também um no outro. 
 O conceito de sistema dinâmico caótico é um dos que permitem pensar a voluta gigante unindo a vida organizada às necessidades da physis. Para ilustrar e modelizar este conceito, Prigogine e Stengers escolheram especialmente a “transformação do padeiro”, isto é, o estiramento e a redobra indefinidamente reiterada de uma superfície representando “o espaço das fases de um sistema”. A operação matemática da transformação do padeiro é uma espécie de análogo formal do trabalho que um verdadeiro padeiro aplica a uma massa de pão (ver La nouvelle alliance, p. 329-43 e 401-407, assim como Entre le temps et l’éternité, p.96-107). E talvez seja a própria imagem do tempo antes que ele escoe, antes que ele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse movimento sem fim de estiramento, de dobra e de redobra de uma superfície abstrata. 
 A mecanosfera 
 Dobras não cessam de involuir e de se recurvar uma nas outras, ao passo que outras se desdobram. Acolhido na dobra individuante, o sinal, ou a ondulação das coisas, torna-se significação. Os seres se individuam em torno das dobras das coisas, da ondulação das paisagens, das curvas dos corpos, dos arabescos desenhados por alguma linha melódica, da curvatura dos acontecimentos... Entidades se individuam ou se desindividuam para que “isso” se preste a outras dobras, para que “isso” se reindividue de outra maneira. Quer se trate de um objeto cósmico, de uma espécie, de um biotopos(1), de uma cultura, de um regime político, de um momento, de uma atmosfera ou de um sujeito, sob qualquer processo de individuação uma máquina trabalha. (ver “L’hétérogénèse machinique”, Félix Guattari, Chimères nº. 11, 1991, retomado em Chaosmose, Galilée, 1992). 
 A análise redutora acredita ter encontrado um fundamento da explicação, um último solo causal, que se confunde freqüentemente com este ou aquele estrato (o “biológico”, o “psíquico”, o “social”, o “técnico”, etc.). Ora, a análise preocupada com a singularidade dos seres, em vez de perder tudo (exceto a certeza), numa regressão a um fundamento, qualquer que seja ele (ver o pensiere debole enaltecido por Gianni Vattimo), deve ao contrário tentar fazer aparecer a consistência própria, a dimensão de autopoiése (Varela), a qualidade ontológica particular da entidade, do fenômeno ou do acontecimento considerado. É para escapar à redução que precisamos do conceito de máquina. 
 Uma máquina organiza a topologia de fluxos diversos, desenha os meandros de circuitos rizomáticos. Ela é uma espécie de atrator que recurva o mundo em volta dela. Enquanto dobra dobrando ativamente outras dobras, a máquina está no cerne do retorno do empírico sobre o transcendental. Uma máquina pode ser considerada numa primeira aproximação como pertencendo a tal estrato físico, biológico, social, técnico, semiótico, psíquico, etc., mas ela é mais geralmente trans-estrática, heterogênea e cosmopolita. As máquinas são “aquilo através de que” há estratos. 
 Não somente uma máquina produz algo num mundo, mas ela contribui para produzir, para reproduzir e para transformar o mundo no qual ela funciona. Uma máquina é um agenciamento agenciante, ela tende a se voltar, a retornar sobre suas próprias condições de existência para re-produzi-las. A composição das máquinas não é nem conjuntista, nem mecânica, nem sistêmica. Isso é impossível pois, na perspectiva neovitalista que é a nossa aqui, cada máquina é animada por uma subjetividade ou por uma proto-subjetividade elementar. Não nos representaremos, portanto, máquinas (biológicas, sociais, técnicas, etc) “objetivas” ou “reais”, e vários “pontos de vistas subjetivos” sobre esta realidade. Na verdade, uma máquina puramente “objetiva” que não fosse movida por nenhum desejo, nenhum projeto, que não fosse infiltrada, animada, alimentada de subjetividade, não se sustentaria nem um segundo, essa carcaça vazia e seca se pulverizaria imediatamente. A subjetividade não pode, portanto, ser restringida ao “ponto de vista” ou à “representação”, ela é instituinte e realizante. Por outro lado, a subjetividade não toma forma e só se sustenta com agenciamentos maquínicos diversos, entre os quais, na escala humana, os agenciamentos biológicos, simbólicos, mediáticos, sócio-técnicos ocupam um lugar capital. 
 As concepções habituais da composição só respondem na verdade aos problemas da objetividade pura, cujos modelos sistêmicos, informáticos e cibernéticos são apenas uma variante elaborada. Mas as máquinas não são nem puramente objetivas nem puramente subjetivas. A noção de elemento ou de indivíduo também não lhes convém mais, nem a de coletivo, uma vez que a coleção supõe a elementaridade e faz sistema com ela. Como pensar então a composição das máquinas? 
 Cada máquina possui uma qualidade de efecto diferente, uma consistência e um horizonte fabulatório particular, projeta um universo singular. E no entanto ela entra em composição, ela se associa com outras máquinas. Mas de que modo? Querer integrar, unificar violentamente as máquinas plurais sob um só projeto, um só princípio de consistência, resultaria talvez em matá-las e certamente diminuir sua riqueza ontológica. Uma unificação “real” seria destruidora, uma unificação conceitual empobreceria a compreensão e a inteligência do fenômeno considerado. Portanto, é necessário respeitar a pluralidade maquínica, uma pluralidade sem elementos (por baixo) nem síntese ou totalização (por cima). Mas a pluralidade, justamente porque ela não é composição de elementos, não pode ser sinônimo de separação. Há certamente uma composição ou uma correspondência das máquinas. Esta articulação paradoxal deverá ser analisada com infinita delicadeza e precaução em cada caso particular. Levantamos a hipótese de que não existe nenhum princípio geral de composição, mas que, pelo contrário, cada agenciamento maquínico inventa localmente seu próprio modo de comunicação, de correspondência, de compossibilidade ou de entrelaçamento da autopoiése (pólo identitário) e da heteropoiése mútua (pólo associativo). 
 Distingamos cinco dimensões da máquina: 
 1) Uma máquina é diretamente (como no caso do organismo) ou indiretamente (na maior parte dos casos) autopoiética (Varela), ou auto-realizadora, (como se diz de uma profecia auto-realizadora), isto é, ela contribui para fazer durar o acontecimento da dobra que a faz ser. 
 2) Uma máquina é exopoiética, ela contribui para produzir um mundo, universos de significações. 
 3) Uma máquina é heteropoiética, ou fabricada e mantida por forças do fora, pois ela se constitui de uma dobra. O exterior já está aí presente sempre, ao mesmo tempo geneticamente e atualmente. 
 4) Uma máquina é não somente constituída pelo exterior (é a redobra da dobra). A máquina se alimenta, recebe mensagens, está atravessada por fluxos diversos. Em suma, a máquina é desejante. A este respeito todos os agenciamentos, todas as conexões são possíveis de uma máquina à outra. 
 5) Uma máquina é interfaciante e interfaciada. Ela traduz, trái, desdobra e redobra para uma máquina jusante os fluxos produzidos por uma máquina montante. Ela é ao mesmo tempo composta por máquinas tradutoras que a dividem, multiplicam e heterogenizam. A interface é a dimensão de “política estrangeira” da máquina, o que pode fazé-la entrar em novas redes, fazê-las traduzir novos fluxos. 
 Toda máquina possui as cinco dimensões, mas em graus e proporções variáveis. Repitâmo-lo, as máquinas nunca são puramente físicas, biológicas, sociais, técnicas, psíquicas, semióticas, etc. Cosmópolis atravessa sempre as dobras transitórias que escavam estas distinções. Certas máquinas estratificantes ou territorializantes - elas próprias perfeitamente heterogêneas - trabalham precisamente para endurecer as dobras estráticas. São redes de máquinas cosmopolitas que produzem os seres, os modos de ser, o próprio Ser de acordo com uma modulação infinita de graus e qualidades. 
 A produtividade ontológica se auto-entretém, pois máquinas interfaces, parasitas, vêm gerar os hiatos, os abismos ou as dobras demasiado profundas que separam as subjetividades-mundos, suas temporalidades, seus espaços e seus signos. Uma máquina mantém presente (traindo-o ao mesmo tempo) o acontecimento da dobra do qual ela resulta. Ela inscreve o clinâmen inicial na mecanosfera, faz com que ele dure, retorne e, ao fazê-lo, ela se instaura como fonte de outras dobras.  
 Pensando como mecanosfera, todo o mundo empírico retorna sobre o transcendental, torna-se fonte multiforme e plurívoca de universo de existência e de significação. 
 Os três andares do transcendental 
 Partimos de uma concepção clássica do transcendental: a interioridade do sujeito, ou o objeto, ou a experiência, etc. Pouco a pouco, é a dobra do ser e do ente (ver Heidegger, Essais et conférences, Gallimard, p. 279-310) ou do transcendental e do empírico que se impôs à nossa meditação. Devemos agora remontar à própria possibilidade das dobras (e não somente da dobra heideggeriana ser/ente). Distingamos para este fim três níveis de transcendental. 
 O transcendental de nível zero: Há inicialmente o “isso”, o inconsciente total intotalizável, o plano de consistência. As entidades que povoam esse arqui-lugar ou esse proto-tempo estão em composição e decomposição perpétuas e simultâneas. Elas se deslocam a uma velocidade absoluta e estão ao mesmo tempo infinitamente próximas e infinitamente distanciadas umas das outras. Evidentemente será preciso ter cuidado para distinguir o caos transcendental da desordem no sentido habitual ou termodinâmico do termo... antes de meditar a dobra que relaciona uns com outros estes sentidos. (Ver, para uma exposição mais detalhada sobre o caos, as Cartographies schizoanalytiques de Félix Guattari). O caos transcendental é a condição de possibilidade da dobra como acontecimento. 
 O transcendental de nível um: O acontecimento da dobra é aquilo pelo qual algo se diferencia. A dobra é trabalho antes de qualquer objeto ou qualquer fluxo trabalhado, processo antes de qualquer estado, incoativo absoluto. A dobra é uma espécie de inflexão do plano de consistência, um clinâmen. 
 O transcendental de nível dois: São os complexos maquínicos dobrados/dobrantes que produzem os mundos empíricos. Sob o ser e o nada, o ser e os entes, os universos biológicos, sociais; seus modos de enunciação e suas significações trabalham agenciamentos trans-estráticos, máquinas cosmopolitas heterogêneas que se entre-traduzem, se entre-produzem e se entre-destroem perpetuamente. O transcendental de nível dois é o coletivo em metamorfose permanente do todos os “aquilo através de que”. A organização “hipertextual” (ver Pierre Lévy, Les technologies de l’inteligence, Points-Seuil, 1993 (2)) da rede maquínica proíbe qualquer redução a uma infraestrutura, qualquer rebatimento do trans-mundo sobre uma ordem particular de discurso. Eis aqui a mecanosfera, a mega-máquina mundo-mundo, o anel de Moebius cósmico onde empírico e transcendental trocam perpetuamente seus lugares ao longo de uma dobra única e infinitamente complicada. 
 Direções de pesquisas: ética e semiótica 
 A ontologia do plissê fractal poderia prolongar-se em duas direções. Primeiramente para uma filosofia da significação. Pois todo signo é dobra, a forma mais simples da dobra significante sendo o desdobramento significado/significante, que se pode complicar, segundo Hjelmslev, em expressão e conteúdo, cada um destes dois termos se subdividindo ainda em forma e matéria. Mas o signo pode se dobrar de mil modos (apenas Peirce recenseou mais de sessenta tipos de signos). É o mesmo que dizer, com Félix Guattari, que existem tantas semióticas (estilos de dobras significantes) quantos agenciamentos de enunciação. Músicas, cidades, rituais, tatuagens, signos plásticos ou cinematográficos, imagens infinitamente difratadas da rede mediática, máquinas de escrita em abismo dos softwares, imaginários pluri-semióticos em ato, universos existenciais... a dobra simples do significante e do significado só aparece, então, como um caso-limite bastante pobre. 
 Só evocamos aqui, por enquanto, a estática do signo, sua estrutura. Qual é o trabalho da significação como ato? Como pensar o redobramento/desdobramento de afectos, de imagens e de representações produzido pelo acontecimento do signo no grande drapê fractal da memória e, mais além, ao longo das alternâncias de dentro e de fora interfaciadas da mecanosfera? Quais são as máquinas heterogêneas que trabalham para manter o estrato semiótico como tal e através de que o signo se relaciona sempre já com o a-significante, se confunde com os processos cosmopolitas? 
 Enfim, a ontologia da dobra desemboca numa ética, ou numa política. Se o empírico volta ao transcendental, os cabalistas tinham razão: é no mundo de baixo que se decide em último lugar a sorte do mundo de cima. Não somos somente destinados pelo desvelamento historial, como o pretendia Heidegger, somos também responsáveis (no sentido mais forte do termo) por ele. Agindo efetiva ou empiricamente, fazemos emergir um horizonte de sentido historial, um imaginário instituinte, um universo existencial ou incorporal. Temos certamente que responder pelas conseqüências materiais de nossos atos, mas também pelas matrizes de significações que ajudamos a transmitir, consolidar, edificar e destruir. Não entendamos esta relação essencial da ética com a significação num sentido estreito. Não se trata unicamente de lembrar o papel primordial dos escritores, dos artistas, dos homens de “comunicação” e, em geral, de todos os que trabalham explicitamente no campo semiótico. Os atos “puramente práticos”, técnicos, administrativos, econômicos e outros contribuem tanto quanto os atos de discurso para a construção dos agenciamentos coletivos de enunciação, para a produção das qualidades de ser. A ética e a política não concernem apenas às relações dos humanos entre eles, à relação com o “próximo”, mas igualmente à relação com o mundo. Que mundo ajudamos a inventar e a fazer existir? 
 Esta interrogação fundamental pode desdobrar-se em três questões ético-políticas particulares. 
 Em primeiro lugar, enquanto cidadãos do mundo total, que é feito de nossa responsabilidade para com a Terra, seus oceanos, suas florestas, suas massas humanas e seus climas? Em que planeta queremos viver? 
 Em segundo lugar, enquanto fontes de mundos particulares, de que modo agimos para com os outros mundos, produtos de formas de vida, de cultura, de significações e de subjetividade diferentes? Que tipos de relações estabelecemos com modos de ser que não são os nossos (mas com os quais estamos, no entanto, sempre em relação pelas redobras de nossa participação com a mecanosfera)? 
 Em terceiro lugar, que atitude fundamental adotamos para com o trans-mundo? Mantemos livre a possibilidade de emergência de novos agenciamentos de enunciação? Favorecemos ou, ao contrário, restringimos a produtividade ontológica? Mantemos as dobras em sua essência de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las em oposições, estratos, substâncias? Escolhemos as individuações sempre capazes de receber novas dobras ou as individualizações rígidas e fechadas?  
 A ética se relaciona com o mundo sob estas três faces: a Terra, os outros mundos (o próximo é apenas um caso particular de outro mundo), e o trans-mundo das dobras, dos agenciamentos de enunciação e dos processos cosmopolitas. Três figuras do anel imanência-transcendência que não cessa de destruir, de metamorfosear e de produzir o ser em sua infinita diversidade.

Tradução de Soraya Oliveira
 
 Revisão de Rogério da Costa e Arthur Hyppólito de Moura 
1) “biotope” no original: “Meio biológico determinado que oferece a uma população animal e vegetal bem determinada condições de habitat relativamente estáveis”. Dic Petit Robert 
2) As Tecnologias da Inteligência. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1993
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