por Pierre Lévy
O pensamento
deve lançar-se acima dos “fatos” para interrogar-se, não apenas sobre suas
causas mecânicas, mas também sobre o que os faz serem o que são, sobre os
agenciamentos de enunciação de que eles são os enunciados, sobre os mundos de
vida e de significação do magma dos quais eles surgem. Remontar até às fontes,
tal é o sentido do problema do transcendental.
Através de que há um mundo? A história da filosofia e, parcialmente, a da ciência, podem ser consideradas como o conjunto de proposições que foram articuladas para responder esta questão. Evidentemente não é possível retomar aqui toda a história da filosofia e nem mesmo resumí-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens inspiradas por alguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as máquinas de Guattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam hoje a re-colocar este problema.
No lugar sem lugar da origem sempre presente, será preciso eleger, depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou então, como os cognitivistas contemporâneos, uma arquitetura do sistema cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instância, pois o fundamento biológico do sujeito cognitivo está no cérebro, como pensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora, mesmo correndo o risco de situar a última fonte no estrato biológico, não seria preferível considerar o organismo inteiro, suas operações recursivas e sua autopoiése, como o sujeito cognitivo último, aquele que calcula seu mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda cibernética, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela. Teríamos então atingido o termo? Não, pois o organismo tal como ele é, remete duas vezes às contingências da História: o “fora” intervém uma primeira vez através da construção ontogenética e da experiência de vida; ele se aloja uma segunda vez no coração do organismo específico ao acaso da filogênese. A evolução biológica, por sua vez, não pode se separar da história infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e até mesmo além, ela se conecta rizomaticamente com a terra, com suas redobras e seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as complexidades da physis e de seu devir.
Através de que há um mundo? A história da filosofia e, parcialmente, a da ciência, podem ser consideradas como o conjunto de proposições que foram articuladas para responder esta questão. Evidentemente não é possível retomar aqui toda a história da filosofia e nem mesmo resumí-la. Contentar-nos-emos com algumas sondagens inspiradas por alguns trabalhos recentes, depois mostraremos como as máquinas de Guattari (que podem ser tudo, exceto mecânicas) nos ajudam hoje a re-colocar este problema.
No lugar sem lugar da origem sempre presente, será preciso eleger, depois de Kant, um sujeito transcendental do conhecimento? Ou então, como os cognitivistas contemporâneos, uma arquitetura do sistema cognitivo humano? Isto nos remete imediatamente a uma nova instância, pois o fundamento biológico do sujeito cognitivo está no cérebro, como pensam hoje os conexionistas e os adeptos do homem neuronal. Ora, mesmo correndo o risco de situar a última fonte no estrato biológico, não seria preferível considerar o organismo inteiro, suas operações recursivas e sua autopoiése, como o sujeito cognitivo último, aquele que calcula seu mundo? Nisto seguiríamos toda a corrente da segunda cibernética, especialmente ilustrada por von Foerster, Maturana e Varela. Teríamos então atingido o termo? Não, pois o organismo tal como ele é, remete duas vezes às contingências da História: o “fora” intervém uma primeira vez através da construção ontogenética e da experiência de vida; ele se aloja uma segunda vez no coração do organismo específico ao acaso da filogênese. A evolução biológica, por sua vez, não pode se separar da história infinitamente bifurcante e diferenciada da biosfera, e até mesmo além, ela se conecta rizomaticamente com a terra, com suas redobras e seus climas, com os fluxos cósmicos, com todas as complexidades da physis e de seu devir.
Ao invés de
conduzir, gradativamente, do cognitivo ao biológico e do biológico ao físico, a
meditação do sujeito transcendental do conhecimento pode remeter a seu outro: o
inconsciente dos afetos, das pulsões e dos fantasmas. Mas, ainda aqui, é
impossível deter-se no inconsciente freudiano como um termo último. Guattari e
Deleuze mostraram que o dito inconsciente não se limita a um reservatório de
desejos incestuosos ou agressivos recalcados, mas que está aberto sobre a
História, a sociedade e o cosmo. O inconsciente total, que não é mais concebido
como uma entidade intrapsíquica, são os agenciamentos coletivos de enunciação,
os rizomas heterogêneos ao longo dos quais circulam nossos desejos e pelos
quais se lançam e se relançam nossas existências. Ora, não se pode estabelecer
uma lista a priori de tudo o que entra na composição dos agenciamentos de
enunciações e das máquinas desejantes: lugares, momentos, imagens, linguagens,
instituições, técnicas, fluxos diversos, etc. E finalmente, de novo, descobrimos
que o termo último, ou melhor, o horizonte sem fim do transcendental, aqui
nomeado “inconsciente”, bem poderia ser o próprio mundo.
Voltemos à
encruzilhada de onde partimos, o sujeito do conhecimento, para seguir uma
terceira via, aquela da empiria. A experiência não é originária? E antes mesmo
da experiência, os sentidos que a tornam possível? Em Os cinco sentidos, Michel
Serres conseguiu a proeza de construir, a partir de cada uma das modalidades
sensoriais, uma metafísica, uma física, uma gnosiologia, uma estética, uma
política e uma ética. A sensação seria, por conseguinte, fundadora. Mas o
próprio do tato, da audição, do olfato, do paladar e da vista não seria o de se
remeter ao mundo? Se a percepção faz existir para nós o fora, por outro lado, é
também sobre o devir e o terrível esplendor do mundo que repousa a vida dos
sentidos. Ser, é ser percebido, dizia Berkeley. A percepção e o mundo sensível
são duas faces, as duas bordas da mesma dobra. Por uma reversão talvez
previsível, o livro seguinte de Michel Serres, Statues, punha a coisa, a massa,
a exterioridade a mais densa no fundamento dos coletivos humanos, das
subjetividades e do conhecimento. O empirismo situa o mundo no coração do
conhecimento. É o que Kant, que havia pretendido colocar o sujeito no centro,
demonstrou muito bem em sua metáfora da “revolução copernicana” em filosofia. Mas por
mais que se queira expulsar o mundo pela grande porta do transcendental, ele
volta pelas janelas do corpo, sob o aspecto de imagens impalpáveis que habitam
e fazem viver o sujeito, e pela força do tempo, que tudo
transforma.
Explorando
outras vias, podemos remontar o sujeito individual às significações sociais que
o habitam, ao imaginário instituinte que o atravessa (Castoriadis), à remissão
historial que o destina (Heidegger), aos épistémai que estruturam seu discurso
(Foucault) etc. Recordemos que a principal aporia, quando se considera um
transcendental histórico existe, mas sob o efeito de que causas, de que devires
inominados, ele se metamorfoseia permanentemente? Se concebêssemos causas e
efeitos na região transcendental, o que então a diferenciaria do campo
empírico? Todo o fatual e o contigente da História (geografia, quedas de
impérios, propagações de religiões, invenções técnicas, epidemias etc.) não
retroage sobre a região historial? Não resultam as idas e vindas do
transcendental histórico, de efeitos ecológicos, de processos cosmopolitas?
Mais uma vez, para compreender aquilo através de que há um mundo, nós
somos conduzidos à complexidade e aos redemoinhos do próprio mundo.
Primeira
abordagem da dobra
Com efeito, é
sempre o mundo, sua multiplicidade indefinida, sua realidade, sua
materialidade, sua topologia singular, as contingências de seu devir,
Cosmópolis povoada de coletivos heterogêneos ao infinito e em todas as escalas
de descrição é, finalmente, o próprio mundo que se descobre, cada vez, acima do
complexo vital de significações que o faz ser tal mundo para nós.
Pelas metáforas
e imagens recebidas, pelas significações culturais a nós transmitidas
(implicando em suas dobras fragmentos holográficos de natureza), pelo
inconsciente maquínico conectado ao fora, pelas técnicas materiais, as
escrituras e as línguas sob a dependência das quais pensamos e produzimos
nossas mensagens, tudo aquilo através do que experimentamos e vivemos o mundo é
precisamente o próprio mundo, a começar por nosso corpo de sapiência.
Mais do que
grosseiramente adaptado ao seu nicho-universo, o organismo vivo é certamente
seu produtor; nisso é preciso seguir Varela. Mas devemos reconhecer igualmente
que o mundo exterior, ou se quisermos, “o meio”, já está também sempre incluído
no organismo cognoscente que produz. No vivo, o mundo se redobrou localmente em
máquina autopoiética e exopoiética, produtora de si e de seu fora. Acima do
mundo empírico experimentado por nós, o mundo transcendental que evocamos aqui
não é certamente redutível a algum estrato físico, ou biológico, ou social, ou
cognitivo, ou qualquer outro. Tampouco é a soma ordenada ou bem articulada dos
estratos. Trata-se do mundo como reserva infinita, trans-mundo, sem hierarquia
de complexidade, sempre e por toda parte diferente e complicado:
Cosmópolis.
Corpos,
culturas, artifícios, linguagens, significações, narrações... o empírico torna-se
transcendental e o transcendental faz advir um mundo empírico. “Isso” se dobra
e se redobra em transcendental e empírico. A dobra é o acontecimento, a
bifurcação que faz ser. Cada dobra, ação-dobra ou paixão-dobra, é o surgimento
de uma singularidade, o começo de um mundo. A proliferação ontológica é
irredutível a uma ou outra camada particular dos estratos; igualmente
irredutível a qualquer dobra-mestra como aquela do ser e dos entes, da
infraestrutura e da superestrutura, do determinante x e do determinado y. O
mundo total e intotalizável, o trans-mundo cosmopolita, diferenciado,
diferenciante e múltiplo é, ao contrário, infinitamente redobrado, ele fervilha
de singularidades nas singularidades, de dobras nas dobras. As oposições
binárias maciças ou molares como a alma e o corpo, o sujeito e o objeto, o
indivíduo e a sociedade, a natureza e a cultura, o homem e a técnica, o inerte
e o vivo, o sagrado e o profano, e até a oposição de que partimos entre
transcendental e empírico, todas essas divisões são maneiras de dobrar,
resultam de dobras-acontecimentos singulares do mesmo “plano de consistência”
(Deleuze e Guattari). “Isso” poderia ter se dobrado de outra maneira. E como a
dobra emerge num infinitamente diversificado mas único, sempre se pode remontar
ao acontecimento da dobra, seguir seu movimento e sua curvatura, desenhar seu
drapê, passar continuamente de um lado para o outro.
A alma e o
corpo para Gilbert Simondon
De sorte que,
como o demonstrou Gilbert Simondon, não há substâncias, mas processos de
individuação, não há sujeitos, mas processos de subjetivação. A subjetivação
como ação ou processo continuado constitui um “dentro”, que não é outro senão
“a dobra do fora” (Deleuze). Os dualismos achatam e unificam violentamente o
que eles distinguem, impedindo, assim, de localizar as dobras e as curvaturas
pelas quais passam as regiões do ser, uma na outra. “Descartes não apenas
separou a alma do corpo; ele criou também, no próprio interior da alma, uma
homogeneidade e uma unidade que proíbe a concepção de um gradiente contínuo
(sublinho, P. L.) de distanciamento em relação ao eu atual, reunindo as zonas
as mais excentradas, no limite da memória e da imaginação, a realidade
somática.” (Gilbert Simondon, L’individuation psychique et
collective, p. 167)
A
alma e o corpo, apreendidas como multiplicidades diferenciadas, comunicam-se
por suas zonas de sombra. A consciência livre, racional e voluntária, de um
lado, o mecanismo físico-químico dos órgãos, de outro, se juntam pelas
sensação, pelo afeto, toda a obscuridade psicossomática do desejo, da
sexualidade e do sono. O maquinal, o reflexo, o herdado do psiquismo, toda a
divisão e a exterioridade do espírito a si mesmo o redobram para o somático,
fazem-no tornar-se corpo.
A união
psicossomática só se torna um problema se tentarmos conectar as extremidades da
dobra, que são apenas dois casos limites: de um lado, a consciência clara e
racional; do outro, o corpo-matéria ou o cadáver auto-móvel. Mas a alma e o
corpo sempre já se comunicam pela dobra que os refere um ao outro, pelas
multiplicidades negras da curvatura, que formam a maior parte do sujeito.
O esforço para
seguir a dobra, esboçado aqui sobre o caso da alma e do corpo, deveria ser
levado a todas as oposições molares. A cada vez, no lugar de entidades
homogêneas e bem recortadas, descobriríamos um plissê fractal (Mandelbrot), uma
infinita diferenciação do ser segundo dobras, passando continuamente umas nas
outras.
A ciência e a
sociedade em Bruno Latour
O que Gilbert
Simondon assinalou sobre as relações da alma e do corpo, Bruno Latour mostrou
no caso da ciência e da sociedade. O autor de La science en Action mergulhou a
ciência e a técnica no grande coletivo heterogêneo dos homens e das coisas. Mas
seria um erro acreditar que ele negou toda especificidade à tecnociência, uma
vez que ele mostra as forças díspares que a compõem.
A ciência e a
técnica emergem de uma mega-rede heterogênea, elas contribuem, em
contrapartida, para atá-la, curvá-la de outra maneira. Ciências e técnicas resultam
de uma dobra do coletivo cosmopolita, que se redobra em ciência das coisas, de
um lado, e em sociedade dos homens, de outro.
Há certamente
uma identidade (múltipla e variável) da ciência, um estilo de dobra, um regime
de enunciação que a singulariza. Mas um pensador rigoroso não pode se atribuir
a particularidade produzida por um acontecimento (por mais continuo que seja)
sem ter percorrido previamente a dobra que a efetua. Ele não pode atribuir a
essência antes do processo. Antes de qualquer especificidade do conhecimento
científico e da eficácia técnica há, primeiramente, uma maneira de dobrar entre
a verdade das coisas em si e o conflito hermenêutico das subjetividades. Esse
tipo de divisão se redobra sempre novamente, no próprio seio da atividade
científica, e poderia sempre se dobrar de outro modo ou em outro lugar. Uma tal
proposta científica teria se situado na face social ou demasiado humano da
divisão se a dobra tivesse passado mais longe. Como para a alma e o corpo, o
trabalho que consiste em reencontrar e desenhar a dobra não pode se realizar
sem dissolver a unidade e a homogeneidade das regiões que ele distingue. Apesar
de todas as analogias possíveis, a dobra que singulariza a ciência não é
idêntica, por exemplo, àquelas que fazem sobreviver a justiça, a beleza ou a
santidade.
As leis do
inerte e o milagre do vivo em Prigogine e Stengers
De todos os
contemporâneos exploradores de dobra, Ilya Prigogine e Isabelle Stengers estão
indubitavelmente entre os mais notáveis. Em suas duas dobras, Entre le temps et
l’éternité e La nouvelle alliance, eles tentaram por abaixo a cortina de ferro
ontológica que uma certa tradição filosófica havia construído entre os seres (o
em si) e as coisas (o para si). Apoiando-se sobre os últimos desenvolvimentos
da ciência contemporânea, a filósofa e o prêmio Nobel renovaram profundamente a
filosofia da natureza. Lendo-os, redescobrimos na physis a irreversibilidade do
devir e o carácter instituinte do acontecimento, que acreditávamos reservados
aos universos do homem (desde que se pensa a História) e da vida (desde a
descoberta da evolução biológica). Os processos distantes do equilíbrio e os
sistemas dinâmicos caóticos conectam, por uma dobra que permaneceu invisível
por muito tempo, a necessidade estática do mecanismo e o acaso miraculoso da
auto-organização viva. A partir do momento em que o determinismo da “matéria” e
a inventividade finalizada do vivo não são mais do que casos limites de um
continuum infinitamente complexo, redobrado e semeado de singularidades, a vida
e o universo físico, o sinal e a significação deixam de se opor. Não somente
eles se relacionam um com o outro em sua diferença, mas passam também um no
outro.
O conceito de
sistema dinâmico caótico é um dos que permitem pensar a voluta gigante unindo a
vida organizada às necessidades da physis. Para ilustrar e modelizar este
conceito, Prigogine e Stengers escolheram especialmente a “transformação do
padeiro”, isto é, o estiramento e a redobra indefinidamente reiterada de uma
superfície representando “o espaço das fases de um sistema”. A operação
matemática da transformação do padeiro é uma espécie de análogo formal do
trabalho que um verdadeiro padeiro aplica a uma massa de pão (ver La nouvelle
alliance, p. 329-43 e 401-407, assim como Entre le temps et l’éternité,
p.96-107). E talvez seja a própria imagem do tempo antes que ele escoe, antes
que ele seja apreendido num sistema de coordenadas: esse movimento sem fim de
estiramento, de dobra e de redobra de uma superfície abstrata.
A mecanosfera
Dobras não
cessam de involuir e de se recurvar uma nas outras, ao passo que outras se
desdobram. Acolhido na dobra individuante, o sinal, ou a ondulação das coisas,
torna-se significação. Os seres se individuam em torno das dobras das coisas,
da ondulação das paisagens, das curvas dos corpos, dos arabescos desenhados por
alguma linha melódica, da curvatura dos acontecimentos... Entidades se
individuam ou se desindividuam para que “isso” se preste a outras dobras, para
que “isso” se reindividue de outra maneira. Quer se trate de um objeto cósmico,
de uma espécie, de um biotopos(1), de uma cultura, de um regime político, de um
momento, de uma atmosfera ou de um sujeito, sob qualquer processo de
individuação uma máquina trabalha. (ver “L’hétérogénèse machinique”, Félix
Guattari, Chimères nº. 11, 1991, retomado em Chaosmose, Galilée, 1992).
A análise
redutora acredita ter encontrado um fundamento da explicação, um último solo
causal, que se confunde freqüentemente com este ou aquele estrato (o “biológico”,
o “psíquico”, o “social”, o “técnico”, etc.). Ora, a análise preocupada com a
singularidade dos seres, em vez de perder tudo (exceto a certeza), numa
regressão a um fundamento, qualquer que seja ele (ver o pensiere debole
enaltecido por Gianni Vattimo), deve ao contrário tentar fazer aparecer a
consistência própria, a dimensão de autopoiése (Varela), a qualidade ontológica
particular da entidade, do fenômeno ou do acontecimento considerado. É para
escapar à redução que precisamos do conceito de máquina.
Uma máquina
organiza a topologia de fluxos diversos, desenha os meandros de circuitos
rizomáticos. Ela é uma espécie de atrator que recurva o mundo em volta dela.
Enquanto dobra dobrando ativamente outras dobras, a máquina está no cerne do
retorno do empírico sobre o transcendental. Uma máquina pode ser considerada
numa primeira aproximação como pertencendo a tal estrato físico, biológico,
social, técnico, semiótico, psíquico, etc., mas ela é mais geralmente
trans-estrática, heterogênea e cosmopolita. As máquinas são “aquilo através de
que” há estratos.
Não somente uma
máquina produz algo num mundo, mas ela contribui para produzir, para reproduzir
e para transformar o mundo no qual ela funciona. Uma máquina é um agenciamento
agenciante, ela tende a se voltar, a retornar sobre suas próprias condições de
existência para re-produzi-las. A composição das máquinas não é nem
conjuntista, nem mecânica, nem sistêmica. Isso é impossível pois, na
perspectiva neovitalista que é a nossa aqui, cada máquina é animada por uma
subjetividade ou por uma proto-subjetividade elementar. Não nos
representaremos, portanto, máquinas (biológicas, sociais, técnicas, etc)
“objetivas” ou “reais”, e vários “pontos de vistas subjetivos” sobre esta
realidade. Na verdade, uma máquina puramente “objetiva” que não fosse movida
por nenhum desejo, nenhum projeto, que não fosse infiltrada, animada,
alimentada de subjetividade, não se sustentaria nem um segundo, essa carcaça
vazia e seca se pulverizaria imediatamente. A subjetividade não pode, portanto,
ser restringida ao “ponto de vista” ou à “representação”, ela é instituinte e
realizante. Por outro lado, a subjetividade não toma forma e só se sustenta com
agenciamentos maquínicos diversos, entre os quais, na escala humana, os agenciamentos
biológicos, simbólicos, mediáticos, sócio-técnicos ocupam um lugar
capital.
As concepções
habituais da composição só respondem na verdade aos problemas da objetividade
pura, cujos modelos sistêmicos, informáticos e cibernéticos são apenas uma
variante elaborada. Mas as máquinas não são nem puramente objetivas nem
puramente subjetivas. A noção de elemento ou de indivíduo também não lhes
convém mais, nem a de coletivo, uma vez que a coleção supõe a elementaridade e
faz sistema com ela. Como pensar então a composição das máquinas?
Cada máquina
possui uma qualidade de efecto diferente, uma consistência e um horizonte
fabulatório particular, projeta um universo singular. E no entanto ela entra em
composição, ela se associa com outras máquinas. Mas de que modo? Querer
integrar, unificar violentamente as máquinas plurais sob um só projeto, um só
princípio de consistência, resultaria talvez em matá-las e certamente diminuir
sua riqueza ontológica. Uma unificação “real” seria destruidora, uma unificação
conceitual empobreceria a compreensão e a inteligência do fenômeno considerado.
Portanto, é necessário respeitar a pluralidade maquínica, uma pluralidade sem
elementos (por baixo) nem síntese ou totalização (por cima). Mas a pluralidade,
justamente porque ela não é composição de elementos, não pode ser sinônimo de
separação. Há certamente uma composição ou uma correspondência das máquinas.
Esta articulação paradoxal deverá ser analisada com infinita delicadeza e
precaução em cada caso particular. Levantamos a hipótese de que não existe
nenhum princípio geral de composição, mas que, pelo contrário, cada
agenciamento maquínico inventa localmente seu próprio modo de comunicação, de
correspondência, de compossibilidade ou de entrelaçamento da autopoiése (pólo
identitário) e da heteropoiése mútua (pólo associativo).
Distingamos
cinco dimensões da máquina:
1) Uma máquina
é diretamente (como no caso do organismo) ou indiretamente (na maior parte dos
casos) autopoiética (Varela), ou auto-realizadora, (como se diz de uma profecia
auto-realizadora), isto é, ela contribui para fazer durar o acontecimento da
dobra que a faz ser.
2) Uma máquina
é exopoiética, ela contribui para produzir um mundo, universos de
significações.
3) Uma máquina
é heteropoiética, ou fabricada e mantida por forças do fora, pois ela se
constitui de uma dobra. O exterior já está aí presente sempre, ao mesmo tempo
geneticamente e atualmente.
4) Uma máquina
é não somente constituída pelo exterior (é a redobra da dobra). A máquina se
alimenta, recebe mensagens, está atravessada por fluxos diversos. Em suma, a
máquina é desejante. A este respeito todos os agenciamentos, todas as conexões
são possíveis de uma máquina à outra.
5) Uma máquina
é interfaciante e interfaciada. Ela traduz, trái, desdobra e redobra para uma
máquina jusante os fluxos produzidos por uma máquina montante. Ela é ao mesmo
tempo composta por máquinas tradutoras que a dividem, multiplicam e
heterogenizam. A interface é a dimensão de “política estrangeira” da máquina, o
que pode fazé-la entrar em novas redes, fazê-las traduzir novos fluxos.
Toda máquina
possui as cinco dimensões, mas em graus e proporções variáveis. Repitâmo-lo, as
máquinas nunca são puramente físicas, biológicas, sociais, técnicas, psíquicas,
semióticas, etc. Cosmópolis atravessa sempre as dobras transitórias que escavam
estas distinções. Certas máquinas estratificantes ou territorializantes - elas
próprias perfeitamente heterogêneas - trabalham precisamente para endurecer as
dobras estráticas. São redes de máquinas cosmopolitas que produzem os seres, os
modos de ser, o próprio Ser de acordo com uma modulação infinita de graus e
qualidades.
A produtividade
ontológica se auto-entretém, pois máquinas interfaces, parasitas, vêm gerar os
hiatos, os abismos ou as dobras demasiado profundas que separam as
subjetividades-mundos, suas temporalidades, seus espaços e seus signos. Uma
máquina mantém presente (traindo-o ao mesmo tempo) o acontecimento da dobra do
qual ela resulta. Ela inscreve o clinâmen inicial na mecanosfera, faz com que
ele dure, retorne e, ao fazê-lo, ela se instaura como fonte de outras
dobras.
Pensando como
mecanosfera, todo o mundo empírico retorna sobre o transcendental, torna-se
fonte multiforme e plurívoca de universo de existência e de significação.
Os três andares
do transcendental
Partimos de uma
concepção clássica do transcendental: a interioridade do sujeito, ou o objeto,
ou a experiência, etc. Pouco a pouco, é a dobra do ser e do ente (ver
Heidegger, Essais et conférences, Gallimard, p. 279-310) ou do transcendental e
do empírico que se impôs à nossa meditação. Devemos agora remontar à própria
possibilidade das dobras (e não somente da dobra heideggeriana ser/ente).
Distingamos para este fim três níveis de transcendental.
O
transcendental de nível zero: Há inicialmente o “isso”, o inconsciente total
intotalizável, o plano de consistência. As entidades que povoam esse
arqui-lugar ou esse proto-tempo estão em composição e decomposição perpétuas e
simultâneas. Elas se deslocam a uma velocidade absoluta e estão ao mesmo tempo
infinitamente próximas e infinitamente distanciadas umas das outras.
Evidentemente será preciso ter cuidado para distinguir o caos transcendental da
desordem no sentido habitual ou termodinâmico do termo... antes de meditar a
dobra que relaciona uns com outros estes sentidos. (Ver, para uma exposição
mais detalhada sobre o caos, as Cartographies schizoanalytiques de Félix
Guattari). O caos transcendental é a condição de possibilidade da dobra como
acontecimento.
O
transcendental de nível um: O acontecimento da dobra é aquilo pelo qual algo se
diferencia. A dobra é trabalho antes de qualquer objeto ou qualquer fluxo
trabalhado, processo antes de qualquer estado, incoativo absoluto. A dobra é
uma espécie de inflexão do plano de consistência, um clinâmen.
O
transcendental de nível dois: São os complexos maquínicos dobrados/dobrantes
que produzem os mundos empíricos. Sob o ser e o nada, o ser e os entes, os
universos biológicos, sociais; seus modos de enunciação e suas significações
trabalham agenciamentos trans-estráticos, máquinas cosmopolitas heterogêneas
que se entre-traduzem, se entre-produzem e se entre-destroem perpetuamente. O
transcendental de nível dois é o coletivo em metamorfose permanente do todos os
“aquilo através de que”. A organização “hipertextual” (ver Pierre Lévy, Les
technologies de l’inteligence, Points-Seuil, 1993 (2)) da rede maquínica proíbe
qualquer redução a uma infraestrutura, qualquer rebatimento do trans-mundo
sobre uma ordem particular de discurso. Eis aqui a mecanosfera, a mega-máquina
mundo-mundo, o anel de Moebius cósmico onde empírico e transcendental trocam
perpetuamente seus lugares ao longo de uma dobra única e infinitamente
complicada.
Direções de
pesquisas: ética e semiótica
A ontologia do
plissê fractal poderia prolongar-se em duas direções. Primeiramente para uma
filosofia da significação. Pois todo signo é dobra, a forma mais simples da
dobra significante sendo o desdobramento significado/significante, que se pode complicar,
segundo Hjelmslev, em expressão e conteúdo, cada um destes dois termos se
subdividindo ainda em forma e matéria. Mas o signo pode se dobrar de mil modos
(apenas Peirce recenseou mais de sessenta tipos de signos). É o mesmo que
dizer, com Félix Guattari, que existem tantas semióticas (estilos de dobras
significantes) quantos agenciamentos de enunciação. Músicas, cidades, rituais,
tatuagens, signos plásticos ou cinematográficos, imagens infinitamente
difratadas da rede mediática, máquinas de escrita em abismo dos softwares,
imaginários pluri-semióticos em ato, universos existenciais... a dobra simples
do significante e do significado só aparece, então, como um caso-limite
bastante pobre.
Só evocamos
aqui, por enquanto, a estática do signo, sua estrutura. Qual é o trabalho da
significação como ato? Como pensar o redobramento/desdobramento de afectos, de
imagens e de representações produzido pelo acontecimento do signo no grande
drapê fractal da memória e, mais além, ao longo das alternâncias de dentro e de
fora interfaciadas da mecanosfera? Quais são as máquinas heterogêneas que
trabalham para manter o estrato semiótico como tal e através de que o signo se
relaciona sempre já com o a-significante, se confunde com os processos
cosmopolitas?
Enfim, a
ontologia da dobra desemboca numa ética, ou numa política. Se o empírico volta
ao transcendental, os cabalistas tinham razão: é no mundo de baixo que se
decide em último lugar a sorte do mundo de cima. Não somos somente destinados
pelo desvelamento historial, como o pretendia Heidegger, somos também
responsáveis (no sentido mais forte do termo) por ele. Agindo efetiva ou
empiricamente, fazemos emergir um horizonte de sentido historial, um imaginário
instituinte, um universo existencial ou incorporal. Temos certamente que
responder pelas conseqüências materiais de nossos atos, mas também pelas
matrizes de significações que ajudamos a transmitir, consolidar, edificar e
destruir. Não entendamos esta relação essencial da ética com a significação num
sentido estreito. Não se trata unicamente de lembrar o papel primordial dos
escritores, dos artistas, dos homens de “comunicação” e, em geral, de todos os
que trabalham explicitamente no campo semiótico. Os atos “puramente práticos”,
técnicos, administrativos, econômicos e outros contribuem tanto quanto os atos
de discurso para a construção dos agenciamentos coletivos de enunciação, para a
produção das qualidades de ser. A ética e a política não concernem apenas às
relações dos humanos entre eles, à relação com o “próximo”, mas igualmente à
relação com o mundo. Que mundo ajudamos a inventar e a fazer existir?
Esta
interrogação fundamental pode desdobrar-se em três questões ético-políticas
particulares.
Em primeiro
lugar, enquanto cidadãos do mundo total, que é feito de nossa responsabilidade
para com a Terra, seus oceanos, suas florestas, suas massas humanas e seus
climas? Em que planeta queremos viver?
Em segundo
lugar, enquanto fontes de mundos particulares, de que modo agimos para com os
outros mundos, produtos de formas de vida, de cultura, de significações e de
subjetividade diferentes? Que tipos de relações estabelecemos com modos de ser
que não são os nossos (mas com os quais estamos, no entanto, sempre em relação
pelas redobras de nossa participação com a mecanosfera)?
Em terceiro
lugar, que atitude fundamental adotamos para com o trans-mundo? Mantemos livre
a possibilidade de emergência de novos agenciamentos de enunciação? Favorecemos
ou, ao contrário, restringimos a produtividade ontológica? Mantemos as dobras
em sua essência de acontecimento, ou trabalhamos para endurecê-las em
oposições, estratos, substâncias? Escolhemos as individuações sempre capazes de
receber novas dobras ou as individualizações rígidas e fechadas?
A ética se
relaciona com o mundo sob estas três faces: a Terra, os outros mundos (o
próximo é apenas um caso particular de outro mundo), e o trans-mundo das
dobras, dos agenciamentos de enunciação e dos processos cosmopolitas. Três
figuras do anel imanência-transcendência que não cessa de destruir, de
metamorfosear e de produzir o ser em sua infinita diversidade.
Tradução de Soraya
Oliveira
Revisão de Rogério da Costa e Arthur Hyppólito de Moura
1) “biotope” no
original: “Meio biológico determinado que oferece a uma população animal e
vegetal bem determinada condições de habitat relativamente estáveis”. Dic Petit
Robert
2) As Tecnologias da
Inteligência. Rio de Janeiro, 34 Letras, 1993
buscado em: cooperação.sem.mando
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