terça-feira, 9 de outubro de 2012

INDIVIDUAÇÃO IMPESSOAL, SINGULARIDADE QUALQUER E COMUNIDADE QUE VEM


por Carlos Augusto Peixoto Junior

Em entrevista à revista Les lettres françaises, publicada em março de 1968, indagado sobre como definiria os problemas da filosofia contemporânea, Gilles Deleuze afirmava que havia uma tendência no pensamento da época a abandonar as referencias até então freqüentes ao Eu e ao Ego. Com isso, ele considerava que estavam sendo também postas em questão certas alternativas formuladas pelo pensamento tradicional, pautadas em opções tais como: Deus ou o homem, a substância infinita ou o sujeito finito. Isto porque o pensamento ocidental já não podia mais se ater à oposição entre um universal puro e particularidades encerradas em pessoas, indivíduos ou egos. Já naquele momento, portanto, a morte de Deus e a possibilidade de sua substituição pelo homem, com todas as permutações entre estas duas figuras, pareciam não ser mais uma questão relevante. Como Foucault já havia percebido, Deus e o homem teriam morrido um com o outro. Diante disto Deleuze concluía: "o que estamos descobrindo atualmente, ao que me parece, é um mundo abundante em individuações impessoais, ou mesmo em singularidades pré-individuais (é isso que significa o 'nem Deus, nem homem', do qual fala Nietzsche, essa é a anarquia coroada)" (Deleuze, 1968/2002, p.190, grifado no original).

Como Foucault já havia percebido, Deus e o homem teriam morrido um com o outro
Na sua opinião estas questões estariam diretamente articuladas com as discussões sobre o poder. As forças de repressão sempre tiveram necessidade de Egos estabelecidos ou de indivíduos determinados para se exercer. Quando nos tornamos mais fluidos e escapamos às determinações do Ego, quando não há mais homem sobre o qual Deus possa exercer seu mandato ou pelo qual possa ser substituído, o poder e sua policia se perdem completamente.

Nota-se, portanto, o viés político destas categorias de individuação impessoal e singularidade pré-individual, das quais Deleuze nunca abriu mão no decorrer de sua vida. Na mesma época da entrevista acima citada, elas são desenvolvidas no contexto de dois trabalhos que afirmam o pensamento da diferença: a Lógica do sentido e Diferença e repetição. Ali ele novamente se contrapõe a uma outra alternativa filosófica clássica — singularidade individual/pessoal ou abismo indiferenciado — defendendo a tese de um mundo pululante, composto por singularidades anônimas e nômades, impessoais e pré-individuais, que comporiam um campo transcendental que não se confunde com nenhuma profundidade indiferenciada. Tal perspectiva, além de recusar a forma da pessoa e o ponto de vista da individuação, também procura dispensar qualquer referência à consciência — característica de uma avaliação fenomenológica — já que esta não poderia prescindir de uma síntese de unificação, representada pelas figuras do Eu ou do Ego.
"O que não é nem individual nem pessoal; ao contrário, são as emissões de singularidades enquanto se fazem sobre uma superfície inconsciente e gozam de um princípio móvel imanente de auto-unificação por distribuição nômade, que se distingue radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das sínteses de consciência." (Deleuze, 1969/1982, p. 105). Neste sentido, as singularidades seriam verdadeiros acontecimentos transcendentais, algo como
uma quarta pessoa do singular que, longe de serem individuais ou pessoais, presidiriam a gênese dos indivíduos e das pessoas. Na verdade, elas se apresentam como um potencial que não comporta por si nem Ego individual nem Eu pessoal, mas que os produz atualizando-se, efetuando-se. Segundo Deleuze, só uma teoria dos pontos singulares estaria apta a ultrapassar a síntese da pessoa e a análise do individuo, tais como elas se fazem na consciência.

Eis aí uma teoria radical do inconsciente enquanto pensamento puro, que faz dele um elemento subversivo, absolutamente desvinculado de qualquer formação consciente, e que possibilita pensar em formas de subjetivação também radicalmente estranhas à normalidade. De acordo com Deleuze, se o pensamento tradicional e a psicologia da consciência procuram nos impor como alternativa ou um Ser soberanamente individuado (forma altamente pessoalizada) ou um fundo indiferenciado — abismo sem diferenças, sem fundo, não-Ser informe — é porque não conseguem conceber singularidades determináveis que não estejam absolutamente aprisionadas em um Ego individual supremo ou um Eu pessoal superior. De um lado, teríamos o pensamento metafísico determinando de forma natural o Ego supremo como aquele que caracteriza um Ser infinito e completamente determinado por seu conceito, necessariamente individuado, rejeitando o não-ser — relegado a irrealidade —e delegando às individualidades finitas realidades radicalmente limitadas. Do outro, encontraríamos um pensamento transcendental que prefere a forma finita da pessoa, determinando este Eu superior como elemento que opera a permutação Homem-Deus, com a qual o pensamento ocidental se contentou durante tanto tempo. Ambos os casos nos deparam apenas com singularidades aprisionadas no campo da representação, humana ou divina.

Segundo Deleuze, só uma teoria dos pontos singulares
estaria apta a ultrapassar a
síntese da pessoa e a análise do individuo, tais
como elas
se fazem na consciência

A representação liga a individuação à forma do Eu e à sua matéria. Nestes termos, o Eu assume a forma da individuação superior e torna-se princípio de identificação e recognição para qualquer juízo de individualidade que incida sobre as coisas. "Para a representação, é preciso que toda individualidade seja pessoal (Eu) e que toda singularidade seja individual (Eu). Logo, onde se pára de dizer Eu, pára também a individuação; e onde pára a individuação, pára também toda singularidade possível." (Deleuze, 1969/1988, ps. 435-436, grifado no original). Um Eu passivo, como este, é apenas um acontecimento localizado em campos prévios de individuação, e que se constitui no ponto de ressonância de suas séries individuantes. Até mesmo o Eu divido, postulado por certas visões estruturais de inspiração hegeliana, ainda deixaria passar todas as idéias definidas por suas singularidades, elas mesmas prévias aos campos de individuação.

É contra tudo isso que Deleuze vai buscar em Nietzsche o mundo das singularidades impessoais e pré-individuais. Singularidades nômades, livres da individualidade fixa do Ser infinito e dos limites sedentários do sujeito finito.

Neste mundo dionisíaco da vontade de potência e da energia livre, deparamo-nos com algo que mesmo não sendo individual nem pessoal, é capaz de ser singular e ao mesmo tempo plural; mundo no qual é possível saltar de uma singularidade para outra. Este é também o mundo do "se" e do "eles", irredutível à banalidade cotidiana, onde se elaboram os encontros e as ressonâncias que transbordam o universo representacional. "Máquina dionisíaca de produzir o sentido e em que o não-senso e o sentido não estão mais numa oposição simples, mas co-presentes um ao outro em um novo discurso. Este novo discurso não é mais o da forma, mas nem muito menos o do informe: ele é antes o informal puro" (Deleuze, 1969/1982, p. 110). Nele não há mais sujeito, homem ou Deus, e muito menos homem no lugar de Deus. Trata-se apenas daquela singularidade livre, anônima e nômade, que percorre o mundo independentemente das matérias de sua individuação e das formas de sua personalidade. Eis aí o significado do além do homem nietzscheano, o tipo que se encontra para além de tudo aquilo que é.

Decorridos pouco mais de vinte e cinco anos após estas reflexões, Deleuze retoma o tema das singularidades em seu ultimo texto escrito — seu "testamento", de acordo com alguns comentadores —, publicado logo após a sua morte. Fato que talvez por si só sirva para atestar toda a importância atribuída pelo autor aos conceitos de individuação impessoal e singularidade pré-individual.
O breve artigo deleuziano tem um título intrigante, dadas as circunstâncias e o momento em que foi escrito: A imanência: uma vida... Nele encontramos uma tentativa de pensar o que poderia ser um campo transcendental, e já de saída nota-se a recusa das categorias de eu e sujeito para pensá-lo. Este campo pré-reflexivo, impessoal e a-subjetivo, "se define por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida" (Deleuze, 1995/2001, p.28).

Diante da necessidade de descrever o que seria uma vida, Deleuze recorre a dois exemplos, um no campo da literatura, e outro especificamente atrelado à gênese das subjetividades. O primeiro é retirado do romance de Charles Dickens, Our mutual Friend, no qual um canalha desprezado por todos é reconduzido agonizante aos que conviviam com ele, e ocorre que eles passam a manifestar um certo respeito e amor pelo que restava do moribundo, tentando salvá-lo. Mas à medida que ele volta a viver, seus salvadores retomam a frieza habitual e ele reencontra toda a sua baixeza e vilania. Aqui, precisamente, teríamos apenas uma vida jogando contra a morte. Neste sentido, observa Deleuze, "a vida do indivíduo é substituída por uma vida impessoal, embora singular, que produz um puro acontecimento livre dos acidentes da vida interior e exterior, ou seja, da subjetividade e da objetividade do que acontece. 'Homo tantum' por quem todo mundo se compadece e que atinge uma certa beatitude. É uma hecceidade, que não é mais de individuação, mas sim de singularização: uma vida de pura imanência, neutra, além do bem e do mal, já que só o sujeito que a encarnava no meio das coisas a tornava boa ou má. A vida de tal individualidade se apaga em benefício da vida singular imanente a um homem que não tem mais nome, embora não se confunda com nenhum outro. Essência singular, uma vida..." (Deleuze, 1995/2001, ps. 28-29).

O outro exemplo empregado é o das crianças ainda bem pequenas que se assemelham umas às outras e não têm nenhuma individualidade, mas nas quais certamente encontramos singularidades: um sorriso, um gesto, um trejeito, particularidades que não são características subjetivas. Crianças como essas são atravessadas de uma vida imanente, que é pura potência ou beatitude no que diz respeito a seus sofrimentos e fraquezas. Com isto, Deleuze procura mostrar que uma vida não se reduz ao simples momento em que a vida individual afronta a morte universal, como no caso do romance de Dickens. "Uma vida está em todos os lugares, em todos os momentos que atravessa esse ou aquele sujeito vivo e que são medidos por determinados objetos vividos: uma vida imanente levando consigo os acontecimentos ou singularidades que apenas se atualizam em sujeitos e objetos" (Deleuze, 1995/2001, p.29). Consideradas por este prisma, as singularidades ou acontecimentos constitutivos de uma vida coexistem com os acontecimentos da vida correspondente a elas mas não se agrupam da mesma forma. Comunicam-se entre si de outra maneira que os indivíduos, na medida em que a vida impessoal não seria feita propriamente de tempos mas de entretempos. É assim que uma vida singular estaria apta a dispersar toda individualidade ou tudo que a individualiza.

Deleuze procura mostrar que uma vida não se reduz ao simples momento em que a vida individual afronta a morte universal
De acordo com Giorgio Agamben, esta imanência absoluta que se apresenta como vida não poderia mesmo ser atribuída a um sujeito. O lugar desta vida separável não está nem neste mundo nem em outro, mas entre os dois, numa espécie de intermundo feliz que ela parece só abandonar a contragosto. O que torna tão interessante a centelha de vida do personagem de Dickens é justamente o seu estado de suspensão no que diz respeito às normas e direitos. "Por isso Deleuze pode falar em uma vida impessoal, situada num limiar para além do bem e do mal" (Agamben, 2000, p. 180).

Ao que nos parece, foi esta singularidade de uma vida, formulada no testamento deleuziano, que inspirou Agamben a articular o conceito de singularidade qualquer ao domínio político da comunidade que vem. Para ele, a singularidade qualquer enquanto figura da singularidade pura, sem identidade, também não é simplesmente indeterminada. Na verdade ela se determinaria unicamente através de sua relação com a idéia da totalidade de suas possibilidades. Totalidade, esta sim, indeterminada e vazia, a partir da qual se poderia pensar na constituição de algum pertencimento; ponto de contato com um espaço exterior que permaneceria vazio. O que o qualquer acrescentaria à singularidade seria um limite vazio que faz dela uma singularidade finita e no entanto indeterminável segundo um conceito. "Uma singularidade acrescida de um espaço vazio não pode ser outra coisa senão uma exterioridade pura, uma pura exposição. Qualquer é, neste sentido, o acontecimento de um fora" (Agamben, 1990, p. 69, grifado no original). Nestes termos o fora não seria exatamente um outro espaço situado para além de um espaço determinado, mas justamente a exterioridade que lhe dá acesso, uma passagem. Esta experiência do limite, enquanto ser em um fora, seria o dom que a singularidade receberia da humanidade esvaziada de qualquer pessoalidade.

Ainda de acordo com Agamben, deslocando a imanência para a esfera da vida, Deleuze estava ciente de que penetrava num campo perigoso. Ele teria se apercebido perfeitamente "de que o pensamento que toma como objeto a vida compartilha deste objeto com o poder e deve confrontar-se com suas estratégias." (Agamben, 2000, p. 183). É a partir daí que o autor pretende retomar nos dias atuais a conotação política das singularidades pré-individuais às quais Deleuze fazia menção. A política da singularidade qualquer, de um ser cuja comunidade não é mediada nem por uma condição de pertencimento, nem pela ausência da mesma, mas pelo pertencimento enquanto tal, implicaria a relativa ausência de conteúdos reivindicativos precisos. Segundo ele, "a novidade da política que vem, é que ela não será mais uma luta pela conquista ou controle do Estado, mas uma luta entre o Estado e o não-Estado (a humanidade), disjunção irremediável das singularidades quaisquer e da organização estatal" (Agamben, 1990, p. 88, grifado no original). Este tipo de política nada tem a ver com a simples reivindicação do social contra o Estado que se expressa atualmente em certos movimentos de contestação. As singularidades quaisquer não poderiam compor uma sociedade na medida em que não dispõem de nenhuma identidade que possam fazer valer, nem de nenhum laço de pertencimento que poderiam fazer reconhecer.

Em última instância, como mostrava Deleuze, todo Estado pode reconhecer diversos tipos de reivindicação de identidade, e até mesmo a de uma identidade estatal no interior dele próprio
Em última instância, como mostrava Deleuze, todo Estado pode reconhecer diversos tipos de reivindicação de identidade, e até mesmo a de uma identidade estatal no interior dele próprio (o que é confirmado pelas relações entre terrorismo e Estado nos dias atuais). "Mas que singularidades constituam uma comunidade sem reivindicar uma identidade, que os homens co-pertençam sem uma condição de pertencimento representável (mesmo sob a forma de um simples pressuposto) constitui o que o Estado não pode tolerar em nenhum caso" (Agamben, 1990, p. 89). E isto porque o Estado não está verdadeiramente fundado num laço social, do qual ele seria apenas a expressão, mas sobre a ausência de laço que ele interdita. 
Para o Estado, portanto, como Deleuze também já havia indicado, o que importa não é jamais a singularidade enquanto tal, mas somente sua inclusão em algum tipo de identidade. Por estas razões, um ser privado de qualquer identidade representável seria absolutamente insignificante para o Estado. Neste sentido, a comunidade que vem — pautada na individuação impessoal e na singularidade qualquer, que rejeita peremptoriamente qualquer condição de pertencimento — será a principal forma de resistência ao modelo societário dominante na atualidade.

Referências bibliográficas:
Agamben, G. (1990) La communauté qui vient: théorie de la singularité quelconque, Paris, Seuil.
__________ (2000) "A imanência absoluta" in Alliez, E. Gilles Deleuze: uma vida filosófica, RJ, Editora 34.
Deleuze, G. (1968/2002) "Sur Nietzsche et l'image de la pensée" in L'île déserte et autres textes, Paris, Éditions de Minuit.
__________ (1969/1982) A lógica do sentido, SP, Editora Perspectiva.
__________ (1969/1988) Diferença e repetição, RJ, Editora Graal.
__________ (1995/2001) "Imanence: a life..." in Pure imanence, N. York, Zone Books.
buscado: cooperação.sem.mando

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