MICHEL
FOUCAULT (Entrevista – 06/04/1980)
Le Philosophe masqué (entrevista de C.
Delacampagne), em ‘Le Monde" n. 10945, de 06 de abril de 1980: "Le
Monde-Dimanche", pp. I e XVII. Em janeiro de 1980, Christian Delacampagne decidiu pedir
a Foucault uma longa entrevista para o suplemento dominical de "Le
Monde", dedicado principalmente aos debates culturais. Foucault aceitou
imediatamente, mas apresentou uma condição de princípio: a entrevista deveria
ficar anônima, o seu nome não deveria aparecer e importava eliminar todos os
indícios que teriam permitido identificar a sua pessoa. Foucault justificou
esta posição da seguinte maneira: a cena intelectual tornou-se presa da mídia,
as "estrelas" prevalecem sobre as idéias, e o pensamento como tal
acaba não sendo reconhecido; conseqüência disso é que aquilo que se diz conta
menos do que a personalidade de quem fala. E também este tipo de crítica com
relação à "midiatização" corre o risco de ser menosprezada, caso for
pronunciada por alguém que, sem querê-lo, já ocupa um lugar no sistema da
mídia, como era o caso de Foucault. A fim de romper com semelhantes efeitos
perversos e para tentar que fosse dita uma palavra que não pudesse ser
aniquilada pelo fama do autor, convinha decidir-se a entrar no anonimato. A
idéia agradou a Delacampgne. Acordaram que a entrevista fosse feita a um
"filósofo mascarado", isento de uma precisa identidade. Faltava
convencer "Le Monde", que queria uma entrevista com Foucault, a
aceitar um texto de "ninguém". Foi difícil, mas Foucault mostrou-se
inflexível.
O segredo foi
conservado até a morte de Foucault. Parece que bem poucos conseguiram
descobri-lo. Em seguida, "Le Monde" e a editora La Découverte
concordaram em juntar em volume esta entrevista com outros textos do mesmo
autor. Conforme acontece nestes casos, "Le Monde" decidiu
unilateralmente revelar o verdadeiro nome do "filósofo mascarado". O
texto da entrevista cabe integralmente a Foucault, que elaborou inclusive as
perguntas, junto com Delacampagne, e reescreveu com muito cuidado cada
resposta.
Permita-me, em primeiro lugar, perguntar-lhe porque escolhe o anonimato.
Imagino que você
conheça a história daqueles psicólogos que apresentaram breve filme numa
localidade no coração da África profunda. Pedem aos espectadores que narrem a
história da forma como a entenderam. Pois bem, de um drama com três
personagens, só uma coisa os havia interessado: a passagem das sombras e das
luzes através das árvores.
Entre nós, os
personagens ditam lei à percepção. Os olhos voltam-se preferivelmente para as
figuras que vão e vêm, aparecem e desaparecem.
Por que lhe sugeri
de usar o anonimato? Por saudades do tempo em que eu era absolutamente
desconhecido e, portanto, aquilo que dizia tinha alguma possibilidade de ser
entendido. O contato imediato com o eventual leitor não sofria interferências.
Os efeitos do livro refletiam-se em lugares imprevistos e desenhavam formas a
que nunca havia pensado. O nome constitui uma facilitação.
Gostaria de propor
um jogo: o do "ano sem nome". Por um ano publicar-se-iam apenas
livros sem o nome do autor. Os críticos deveriam haver-se com uma produção
completamente anônima. Mas penso que, talvez, não teriam nada a dizer: todos os
autores esperariam o ano sucessivo para publicarem os seus livros...
Você acredita
que, hoje, os intelectuais falam demais? Que nos atrapalham com os seus
discursos diante de qualquer mínimo pretexto e, muitas vezes, até mesmo sem
pretexto algum?
A morte dos
intelectuais parece-me um estranho conceito. Intelectuais, nunca os encontrei.
Encontrei pessoas que escrevem romances e pessoas que curam os doentes. Pessoas
que estudam economia e pessoas que compõem música eletrônica. Encontrei pessoas
que ensinam, pessoas que pintam e pessoas de quem não entendi se faziam alguma
coisa. Mas nunca encontrei intelectuais.
Pelo contrário,
encontrei muitas pessoas que falam do intelectual. E, por escutá-los tanto,
construí para mim uma idéia de que tipo de animal se trata. Não é difícil, é o
culpado. Culpado um pouco de tudo: de falar, de silenciar, de não fazer nada,
de meter-se em tudo... Em suma, o intelectual é a matéria-prima a julgar, a
condenar, a excluir...
Não penso que os
intelectuais falem demais, porque para mim não existem. Mas penso que o
discurso sobre os intelectuais esteja passando do limite e seja pouco
encorajante.
Tenho uma feia
mania. Quando as pessoas falam tanto por falar, quando fazem discursos que
ficam no ar, procuro imaginar onde levariam as suas palavras se fossem
transcritas na realidade. Quando "criticam" alguém, quando
"denunciam" as suas idéias, quando "condenam" o que
escreve, imagino-os numa situação ideal em que têm pleno poder sobre ele.
Reproduzo as suas palavras no primeiro significado: "demolir",
"abater", "reduzir ao silêncio", "sepultar". E
vejo abrir-se a radiante cidade em que o intelectual certamente seria
prisioneiro e enforcado, com maior razão se fosse um teórico. É verdade, não
vivemos em uma região em que os intelectuais são mandados ao diabo; mas, na
realidade, diga-me, por acaso ouviu falar de um certo Toni Negri? Por acaso não
está na prisão exatamente enquanto intelectual?
Mas, então, o
que o levou a entrincheirar-se atrás do anonimato? Um certo uso publicitário
que, hoje, certos filósofos fazem ou permitem fazer do seu nome?
Isto não me
perturba minimamente. Nos corredores do meu liceu vi grandes homens de gesso. E
agora, nas primeiras páginas dos jornais, em baixo, vejo a foto do pensador.
Não sei se a estética melhorou. A racionalidade econômica seguramente, sim...
No fundo,
impressiona-me profundamente uma carta escrita por Kant, quando já era muito
velho: contra a idade, a visão que se reduz e as idéias que se confundiam,
apressava-se, assim narra, em terminar um livro para a feira do livro de
Lípsia. Conto este episódio para demonstrar que não tem nenhuma importância.
Publicidade ou não, feira ou não, o livro é coisa totalmente diferente. Nunca
conseguirão levar-me a crer que um livro seja ruim porque se viu o seu autor à
televisão. Mas nem sequer que seja bom só por este motivo.
Se escolhi o
anonimato, não é para criticar isso ou aquilo, o que nunca faço. É um jeito de
dirigir-me mais diretamente ao eventual leitor, o único personagem que me
interessa: "já que não sabes quem sou, não sentirás a tentação de buscar
os motivos pelos quais digo o que lês; deixa-te andar, diz simplesmente: é
verdadeiro, é falso, gosto, não gosto. Isto basta".
Mas o público
não espera que a crítica forneça juízos precisos sobre o valor de uma obra?
Não sei se o
público espera que o crítico julgue as obras ou os autores. Mas creio que os
juízes já estavam aí antes que o público pudesse dizer o que queria.
Parece que Courbet
tinha um amigo que se acordava à noite urlando: "julgar, quero
julgar". É incrível quanto as pessoas gostam de julgar. Julga-se em todo
lugar, continuamente. Provavelmente, para a humanidade, é uma das coisas mais
simples a fazer. Mas você sabe que o último homem, quando a última radiação
houver reduzido o último adversário a cinzas, tomará uma mesa mal ajeitada, se
sentará e começará o processo contra o responsável.
Não posso deixar de
pensar em uma crítica que não procure criticar, mas fazer existir uma obra, uma
frase, uma idéia; acenderia fogos, olharia a grama crescer, escutaria o vento e
imediatamente tomaria a espuma do mar para a dispersar. Reproduziria, ao invés
de juízos, sinais de vida; invocá-los-ia, arrancá-los-ia do seu sono. Quem sabe
os inventaria? Tanto melhor, tanto melhor. A crítica sentenciosa faz-me
adormentar; gostaria de uma crítica feita com centelhas de imaginação. Não
seria soberana, nem vestida de vermelho. Traria consigo os raios de possíveis
tempestades.
Há, porém,
tantas coisas a conhecer, tantos trabalhos interessantes, que a mídia deveria
falar todo o tempo de filosofia?
Certamente, entre
a "crítica" e aqueles que escrevem livros existe um mal-estar de
longa data. Uns não se sentem entendidos e outros acreditam que se queira fazer
pressão sobre eles. Mas o jogo é este.
Parece-me que hoje
a situação seja bastante particular. Temos instituições pobres, enquanto nos
encontramos em situação de super-abundância.
Todos deram-se
conta da exaltação que freqüentemente acompanha a publicação ( ou a reedição)
de obras, que, aliás, às vezes são interessantes. Trata-se, sempre, de nada
menos que a "subversão de todos os códigos", do "antagonista da
cultura contemporânea", da "discussão radical de todo o nosso modo de
pensar". O seu autor deve ser um marginal incompreendido.
Em compensação, não
há dúvida de que os outros devam ser remetidos à obscuridade da qual nunca
deveriam ter saído; não eram senão a espuma de "uma moda
irrelevante", um simples produto institucional, etc.
Diz-se que se trata
de um fenômeno parisiense e superficial. Contudo, eu percebo aí os efeitos de
uma inquietação profunda. O sentimento do "nenhum lugar vazio",
"ou ele ou eu", "um por vez". Está-se em fila indiana, por
causa da extrema exigüidade de lugares em que se pode escutar e fazer-se ouvir.
Resulta daí uma
espécie de angústia que irrompe em mil sintomas, mais ou menos curiosos. A
partir disso, naqueles que escrevem, o sentimento da sua impotência diante da
mídia, que é acusada de dominar o mundo dos livros e de dar existência ou de
fazer desaparecer aqueles que agradam ou desagradam. A partir disso, nos
críticos, o sentimento de conseguir fazer-se ouvir, a não ser que se levante o
tom e se tire da cartola um coelho por semana. A partir disso, a
pseudo-politização que mascara, sob a alegação da necessidade de mover uma
"batalha ideológica" ou de acabar com os "pensamentos perigosos",
a ânsia profunda de não ser lidos nem ouvidos. A partir disso, também a fobia
fantástica do poder: cada pessoa que escreve exerce um poder inquietante a que
se precisa pôr, se não um fim, pelo menos limites. A partir disso também a
afirmação um pouco encantadora segundo a qual, atualmente, tudo é vazio,
desolado, sem interesse e importância: afirmação que, evidentemente, provém
daqueles que, não fazendo nada, pensam que os outros são supérfluos.
Mas não acredita
que a nossa época é realmente sem espíritos à altura dos seus problemas e de
grandes escritores?
Não, não acredito
no refrão da decadência, da ausência de escritores, da esterilidade do
pensamento, do horizonte negro e tétrico.
Creio, pelo
contrário, que há uma abundância excessiva. E que não sofremos por causa do
vazio, mas porque os meios para pensar em tudo o que acontece sejam demasiado
poucos. Há muitíssimas coisas a conhecer: fundamentais, terríveis, maravilhosas
ou estranhas, ao mesmo tempo minúsculas e capitais. Além disso, há uma curiosidade
imensa, uma necessidade, um desejo de conhecer. Sempre lamentamos que a mídia
embote a cabeça das pessoas. Nesta idéia há alguma misantropia. Acredito, pelo
contrário, que as pessoas reagem: quanto mais se procura convencê-las, mais se
interrogam. O espírito não é uma cera mole. É uma substância reativa. E o
desejo de saber mais, melhor e diversamente, cresce à medida que se procura
encher as cabeças.
Se isso for verdade
e se acrescentarmos a isso que, na universidade e em outros lugares, se estão formando
grandes quantidades de pessoas que podem servir de intermediários entre a massa
de coisas e a avidez de saber, pode-se bem rapidamente deduzir que a
desocupação dos estudantes é a coisa mais absurda que há. O problema consiste
em multiplicar os canais, as passarelas, os meios de informação, as redes
televisivas e as radiofônicas, os jornais.
A curiosidade foi
um vício estigmatizado sucessivamente pelo Cristianismo, pela filosofia e até
por uma certa concepção da ciência. Curiosidade, futilidade. Mesmo assim, a
palavra me agrada. Sugere-me algo bem diferente: evoca a "cuidado", a
atenção que se presta ao que existe ou poderia existir; um sentido agudo do
real, que, porém, nunca se imobiliza diante disso; uma prontidão em julgar
estranho e singular aquilo que nos circunda; uma certa obstinação em
desfazer-se do que é familiar e em olhar as mesmas coisas de forma diferente;
um ardor em colher o que acontece e aquilo que passa; uma desenvoltura com
relação às hierarquias tradicionais entre o que é importante e o que é
essencial.
Sonho com uma nova
idade da curiosidade. Os meios técnicos existem; o desejo existe; as coisas a
conhecer são infinitas; as pessoas que podem empenhar-se nesta tarefa existem.
De que então sofremos? De escassez: canais estreitos, exígüos, quase
monopolistas, insuficientes. Não se trata de adotar atitude protecionista para
impedir que uma "má" informação invada e sufoque a "boa".
Importa, pelo contrário, multiplicar os trajetos e as possibilidades de ir e
vir. Nenhum colbertismo neste campo. O que não significa, como frequentemente
se teme, uniformização e nivelamento por baixo. Significa, sim, diferenciação e
simultaneidade de redes diferentes.
Imagino que,
neste plano, a mídia e as universidades poderiam ter funções complementares, ao
invés de continuarem a opor-se.
Você lembra a
admirável frase de Sylvain Lévy: o ensino comporta um ouvinte; basta haver dois
que se torna vulgarização. Também os livros, a universidade, as revistas cultas
são mídia. Dever-se-ia evitar de chamar mídia os canais de informação aos quais
não se pode ou não se quer ter acesso. Importa entender como fazer que as
diferenças ajam; saber se devemos instaurar uma zona reservada, um "parque
cultural" para as frágeis espécies dos cultos, ameaçados pelas grandes
aves de rapina da informação, enquanto todo o resto do espaço seria um vasto
mercado de bugigangas. Não me parece que semelhante repartição corresponda à
realidade. Pior: não me parece de fato desejável. Para fazer que as diferenças
úteis ajam não deve haver repartição alguma.
Procuremos fazer
uma proposta concreta. Se tudo vai mal, onde se pode começar?
Não, não vai tudo
mal. Em todo caso, creio que não se deve confundir a crítica construtiva contra
as coisas com as jeremiadas repetitivas contra as pessoas. Com relação a
propostas concretas, elas aparecem como "gadgets", se antes não forem
precisados alguns princípios gerais. Este, em primeiro lugar: o direito ao
saber não deve ser reservado nem a uma idade da vida, nem a certas categorias
de indivíduos; se deve poder exercitá-lo ininterruptamente e de formas
múltiplas.
Mas esta vontade
de saber não é ambígua? Afinal, o que as pessoas farão com todo este saber que
está adquirindo? A que pode servir?
Uma das funções
principais do ensino consistia nisto: a formação do indivíduo caminhava no
mesmo passo da determinação do seu lugar na sociedade. Hoje precisaríamos
conceber o ensino de modo tal que permitisse ao indivíduo de se modificar a seu
prazer; e isso é possível apenas sob a condição de que o ensino seja uma
possibilidade oferecida "permanentemente".
Em suma, você é
a favor de uma sociedade culta?
Digo que a
vinculação com a cultura deve ser contínua e a mais polimorfa possível. Não
deveria haver, por um lado, uma formação que se sofre e, por outro, uma
informação a que se é submetido.
O que
acontecerá, em uma sociedade culta, com a filosofia eterna?... Ainda temos
necessidade dela, das suas interrogações sem resposta e dos seus silêncios
diante do incognoscível?
O que é a filosofia
senão um modo de refletir, não tanto sobre aquilo que é verdadeiro e aquilo que
é falso, mas sobre a nossa relação com a verdade? Às vezes a gente se lamenta
por não existir na França uma filosofia dominante. Muito melhor. Não há nenhuma
filosofia soberana, é verdade, mas há uma filosofia ou, melhor, há filosofia em
atividade. A filosofia é o movimento pelo qual nos libertamos – com esforços,
hesitações, sonhos e ilusões – daquilo que passa por verdadeiro, a fim de
buscar outras regras do jogo. A filosofia é o deslocamento e a transformação
das molduras de pensamento, a modificação dos valores estabelecidos, e todo o
trabalho que se faz para pensar diferentemente, para fazer diversamente, para
tornar-se outro do que se é. Sob este ponto de vista, os últimos trinta anos foram
período de intensa atividade filosófica. A interferência entre a análise, a
pesquisa, a crítica "culta" ou "teórica" e as mudanças no
comportamento, a conduta real das pessoas, a sua maneira de ser, a sua relação
consigo mesmas e com os outros, foi constante e considerável.
Há pouco dizia que
a filosofia é um modo de refletir sobre a nossa relação com a verdade. É
preciso acrescentar: é um modo de perguntar-se: se esta é a relação que temos
com a verdade, como devemos comportar-nos? Creio que tenha sido feito e que se
esteja continuando a fazer um trabalho considerável e múltiplo, que modifica,
contemporaneamente, o nosso vínculo com a verdade e a nossa maneira de nos
comportarmos. E isso em ligação complexa entre uma série de pesquisas e um
conjunto de movimentos sociais. É a própria vida da filosofia.
É compreensível que
alguns lastimem o vazio atual e busquem, na ordem das idéias, um pouco de
monarquia. Mas aqueles que, pelo menos uma vez na própria vida, provaram um tom
novo, uma nova maneira de olhar, um outro modo de fazer, aqueles, creio, nunca
sentirão a necessidade de se lamentar porque o mundo é um erro, a história está
farta de inexistências; é tempo para que os outros fiquem calados, permitindo
assim que não se ouça mais o som da reprovação por parte deles...
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FOUCAULT, Michel. Archivio Foucault. Vol. 3. Estetica
dell’esistenza, etica, politica. A cura di Alessandro Pandolfi. Milano, Feltrinelli, 1994, pp.
137-144. Tradução portuguesa de Selvino José Assmann. Fpolis, setembro de 2000.
Este texto foi
gentilmente cedido por Marco Antonio Frangiotti, e aparece
originalmente no site de "textos de interesses filosóficos"
buscado em: cooperação.sem.mando
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