terça-feira, 9 de outubro de 2012

Para acabar com o privilégio do produto


por Henrique Antoun
O pensamento de Gilbert Simondon é muito pouco conhecido. No Brasil podemos dizer que é completamente desconhecido. Apesar da notoriedade que atualmente ele vem conhecendo, a partir das questões surgidas com a "nova ciência" relevando o caos e a complexidade -- figuras tradicionais do pensamento simondoniano --, a ponto de merecer um Colóquio, em março de 1992, organizado pela Cidade das Ciências e da indústria e pelo Colégio Internacional de filosofia e inaugurado pelo Ministro da Pesquisa e da Tecnologia francês, não podemos dizer que os conceitos desenvolvidos em sua obra tenham se tornado moeda corrente no campo da reflexão sobre as relações entre a vida e a técnica. E, no entanto, Simondon não fez outra coisa senão afirmar, em todos seus escritos, que os problemas da vida eram questões técnicas e que a técnica era um fenômeno vital.
Mesmo hoje, após o desenvolvimento da Etologia e da Cibernética, uma afirmação categórica desta natureza produz, naquele que a escuta, uma reação natural de asco e repúdio, semelhante a que Henri Van de Velde tinha quando ouvia, na Deutscher Werkbund, as proposições de Hermann Muthesius exigindo que a máquina "domesticasse" a "ferocidade" do artista. Imediatamente elevam-se vozes que protestam através de discursos onde a presença de palavras como liberdade, criatividade, robotização mecanização são obrigatórias. Frases que comparam, pejorativamente, as produções da técnica face às "criações" da natureza espocam por toda parte, como garrafas de champagne em festa de reveillon. Embora
nem Simondon, ou tampouco eu, queiramos produzir este frenesi de embriaguês humanista quando somos levados a tecer considerações deste teor, elas surgem tão naturais como flanelinhas em sinal de trânsito, transformando-nos em cientistas malignos a conspirar contra a liberdade humana.
Abrogo, portanto, um habeas corpus à paciência do leitor prometendo-lhe de antemão que nenhum pedacinho do que for uma liberdade e criatividade humanas serão danificados nesta breve introdução aos conceitos básicos do pensamento de Simondon. Pois o que vigora e dificulta o entendimento de sua afirmação da técnica como fenômeno vivo é um preconceito contra a própria técnica, herdado do exagerado enaltecimento do símbolo e dos fenômenos simbólicos criado pelo pensamento das luzes onde é postulada uma identidade entre o homem e a razão, sendo o símbolo seu produto mais nobre. Se a razão exprime pela técnica uma coisificação do mundo, reduzindo todos os fenômenos a coisas que podem ser dominadas e operadas, com o símbolo ela exprimiria um desejo de comunicação e um reconhecimento da presença de outros sujeitos no mundo. Na técnica a inteligência seria reduzida à astúcia no jogo de forças e poder visando a dominação. No símbolo ela se reencontraria com outras inteligências e reconheceria a presença do pensamento como algo que pode fazer parte da ordem do mundo. Enquanto nas sociedades bárbaras e despóticas haveria um desenvolvimento acentuado da técnica e da engenharia fazendo prevalecer a guerra e a dominação, nas sociedades civilizadas e democráticas o símbolo prevaleceria desenvolvendo a cultura e as artes tornando a comunicação e o entendimento os principais elementos da relação do homem com o mundo. Como num filme de faroeste temos desde já o mocinho e o vilão da história humana.
Muito já se discutiu no campo do design sobre os problemas projetuais envolvendo as relações entre forma e função, estética e mecanismo, símbolo e técnica na concepção do produto. E em toda teoria projetual a produção é pensada privilegiando o produto como modelo da produção e da teoria. O objeto é pensado hilemorficamente como mistura das formas vivas com uma matéria inerte, ou então o é substancialmente como identidade entre forma e função cuja essência resiste em luta contra os acidentes de figura e confecção. A passagem da concepção do produto para sua efetivação viveria assombrada pelo abismo epistemológico entre teoria e prática gerados pelo pensamento hilemórfico ou substancialista. Por isto Simondon, quando se propõe a pensar o surgimento dos indivíduos desenvolve uma crítica rigorosa contra esta herança platônico-aristotélica de nosso pensamento. Nesta crítica ele revela o pressuposto comum às duas teorias: a individuação de algo precisaria de um princípio anterior a ela que a explicasse e a produzisse. Temos aí uma clara hierarquia que faz o gozo divino daquele que projeta, pois primeiro vem o princípio, a concepção de algo, que formal e racionalmente a determina, depois vem um processo concebido em termos da realização da coisa e, finalmente, vem a própria confecção. Desta forma o sentido das coisas é alheio a elas e depende daquele que as concebe. O indivíduo está alienado de sua própria individuação advindo a ela apenas como produto final e acabamento.
Simondon desenvolve uma teoria para pensar a individuação sem dar ao indivíduo o privilégio do modelo. Ele quer pensar uma produção ilimitada que caminhe por si própria, sem depender de princípios, onde os indivíduos surgem como fases expressivas da própria produção. A individuação não seria mecânica e sim maquínica pois sua força não viria do motor imóvel de uma idéia mas dos regimes de afecção, seu desenvolvimento seria feito pelo desejo e não pela compulsão do encontro com uma forma ou finalidade capaz de trazer-lhe uma quietude, e seu objeto não seria uma falta ou carência que precisasse preencher e sim os modos afetivos surgidos do encontro entre os regimes de afecção e os desenvolvimentos do desejo. O indivíduo para Simondon não é um objeto ou produto acabado, forma e finalidade de uma produção, pois a produção seria uma ilimitada máquina de conceber e gerar seres na mesma medida em que estes seres seriam máquinas desejantes de extrair e gerar afetos. O indivíduo de Simondon é a díada formada pelo indivíduo e seu meio associado e a individuação se conserva no devir da própria díada. A técnica é a realização da individuação, ao mesmo tempo sua interpretação e o que nela foi interpretado.
Celebra-se hoje no design brasileiro o produto e a comunicação como sua emancipação do pantanoso terreno das paixões e idiosincrasias. A crítica de Simondon nos permite colocar a questão sobre o produto e a comunicação como uma paixão a mais entre outras, escondendo velhas confusões entre preservação e eternidade, entre imobilidade e permanência; revelando velhos sonhos de onipotência divina nas formas de concepção. Permite-nos, também, postular um projeto voltado para a individuação onde a produção seja considerada em seus regimes de afecção, em seus desenvolvimentos de desejos e em seus modos afetivos. O designer é um produtor de sensibilidades, de modos de existência social, de práticas de expressão coletiva. O produto não é objeto, tampouco coisa. Ele é um germe em torno do qual um mundo começa a existir.
Bibliografia
SIMONDON, G. L'Individu et sa Genèse Physico-Biologique, Paris, PUF, 1964. . L'Individuation Psychique et Collective, Paris, Aubier, 1989.
. Du Mode d'Existence des Objets Techniques, Paris, Aubier, 1989.
buscado em: cooperação.sem.mando

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