Segundo ele, "o cinismo é a complementaridade paradoxal e a solidariedade invisível existente entre as forças que escravizam e as forças que libertam".
"Se os movimentos sociais de esquerda não entenderem isso, - continua o escritor e filósofo - vão aos poucos se transformar em ilhas de ressentimento e melancolia, incrustadas em um oceano de guerras cínicas e de miragens cinéticas. Morrerão à margem da economia simbólica das comunidades midiáticas globais. Nas democracias pós-representativas, a divisão do poder tem deixado de se organizar a partir da político-partidária das siglas representativas, agrupadas sob as determinações ideológicas. A polarização do poder reside cada vez mais na capacidade maior ou menor, mais ou menos eficaz dos grupos de sanar problemas pontuais".
Eis o artigo.
Se recapitularmos a ordem das manifestações que se espalharam por todo Brasil, veremos uma mudança significativa na sua fisionomia. Paralelamente a essa guinada de orientação das manifestações, um aspecto ficou muito nítido: o repúdio dos movimentos sociais de esquerda e de todos aqueles que se autointitulam progressistas à feição genérica que os protestos assumiram. É compreensível que eles façam essa demarcação para não serem confundidos com os protagonistas de outras reivindicações que não são suas.
Mas uma pergunta não quer calar: os protagonistas do Movimento Passe Livre teriam mesmo conseguido a redução da tarifa se não fosse a avalanche de globais verde-amarelos e os centenas de milhares de manifestantes genéricos que se somaram ao núcleo duro do movimento original? A meta da redução tarifária teria sido alcançada se o MPLnão tivesse sido assimilado por diversos setores da sociedade com intenções inclusive golpistas e opostas à pauta ideológica das reivindicações iniciais? Esses paradoxos do mundo contemporâneo nos convidam a uma curiosa sintomatologia.
Não é apenas grande imprensa que vampiriza as manifestações de esquerda e as desvirtua. Não são apenas as massas anômicas genéricas que se valem das conquistas das pautas pontuais dos ativistas. Os próprios movimentos sociais de esquerda, ainda que o reneguem e ainda que isso ocorra à sua revelia, só se tornam eficazes quando são assimilados pelas estruturas midiáticas de poder e pelas massas sem orientação ideológica definida. Não por caso, da extrema direita à extrema esquerda, é preciso reconhecer que todos ficaram totalmente perdidos com os acontecimentos.
Esse diagnóstico nos deixa detectar uma mudança estrutural em franca expansão: a passagem das democracias representativas do século XX para as democracias pós-representativas do século XXI. Pois a questão não diz mais respeito aos governos, aos partidos ou a reivindicações específicas. Ela se refere a uma guinada do modo de organização da polis promovida pelas redes sociais. Por mais diversas que sejam as motivações dos protestos que se espalharam por vários países do mundo, a crise do sistema representativo e a emergência do ativismo digital são as matrizes que unificam fenômenos sociais de massa do Brasil, do Egito, da Síria e de outras localidades.
Boris Groys, Manuel Castells, Peter Sloterdijk, Michel Maffesoli, Francis Fukuyama, Paul Virilio, Jean Baudrillard,Pierre Lévy. A lista é grande. Os grandes comunicólogos, filósofos da tecnologia e pensadores da informação há tempos chamam a atenção para essa mudança de paradigmas. Finalmente ela começa a sair dos livros e tomar as ruas. A passagem das democracias clássicas às democracias midiáticas consiste em uma mudança no tipo de política a partir de novos suportes técnicos, criados pelas tecnologias da informação. Trata-se de uma transição de uma política ideológico-partidária a uma política cínico-cinética, baseada em jogos cínicos de poder e em estratégias de ilusionismo e cinetismo. Uma guerrilha virtual em constante oscilação entre o repouso e o movimento, entre a conservação e a transformação.
A diferença é que estes pares de opostos não designam mais atitudes estáveis diante do mundo. Tampouco se referem a aspectos substanciais de seus agentes. Toda a atividade política do último século foi parametrizada a partir de um dos mais potentes critérios estabilizadores criados pela filosofia política: o conceito de direita-esquerda. Essa visão substancialista forneceu as linhas de força da política ao longo do século XX e teve seu ápice na Guerra Fria. Hoje ela se encontra em pleno declínio e é absolutamente ineficaz para compreender o mundo ao redor.
Na política cínico-cinética que começa a vigorar, os opostos não descrevem propriedades de seus agentes. Descrevem, sim, o movimento por meio do qual, em dadas circunstância, determinados atores sociais refletem ou deixam de refletir as aspirações dos grupos que representam. Sejam esses atores jornalistas, governantes, senadores, deputados, sindicalistas, patrões ou qualquer outra liderança.
A atividade política, no sentido amplo do termo, está vivendo o início de um deslocamento tectônico de grandes ressonâncias. Uma mudança estrutural no modo como se organizam as relações sociais como um todo. Ou seja: uma passagem dos princípios de repouso aos princípios do movimento. Uma transição da estabilidade fornecida pelas grandes ideologias e das grandes estruturas verticais ao movimento horizontal, pulverizado, ubíquo e paradoxal do cinismo.
Quando falo em cinismo, não me refiro à acepção negativa que o senso-comum lhe atribui. Não designo uma falsidade que oculta uma motivação verdadeira, como o poderíamos definir em termos psicológicos.
Tampouco descrevo a afirmação de uma realidade amoral pessimista, sob o pretexto de crer que a vida é assim e assim sempre será. O cinismo é a estrutura universal difusa do capitalismo planetário em que nos encontramos. O cinismo representa a ambivalência própria do atual funcionamento das relações de troca do capital simbólico no plano mundial. Em outras palavras, o cinismo é a complementaridade paradoxal e a solidariedade invisível existente entre as forças que escravizam e as forças que libertam.
Se os movimentos sociais de esquerda não entenderem isso, vão aos poucos se transformar em ilhas de ressentimento e melancolia, incrustadas em um oceano de guerras cínicas e de miragens cinéticas. Morrerão à margem da economia simbólica das comunidades midiáticas globais. Nas democracias pós-representativas, a divisão do poder tem deixado de se organizar a partir da político-partidária das siglas representativas, agrupadas sob as determinações ideológicas. A polarização do poder reside cada vez mais na capacidade maior ou menor, mais ou menos eficaz dos grupos de sanar problemas pontuais.
Continuaremos a enfrentar a demarcação entre progressistas e conservadores. Mas essa demarcação dependerá muito mais de critérios pragmáticos do que de orientações ideológicas eletivas. Em outras palavras, a política da era pós-ideológica se alimenta de alguns consensos provisórios em torno das pautas que devem ser definidas. Não depende do conjunto de ideias e ideais de seus representantes, mas da eficiência cirúrgica dos seus gestos.
A guerra agora é de guerrilha, não uma guerra de grandes massas combatentes sob o cenário heroico de uma História rumo a um futuro escatológico redentor. Nesse sentido, as distinções políticas começam a abandonar as bandeiras divisórias entre esquerda e direita, entre partido e partido, entre sigla e sigla e entre movimento e movimento. As demarcações passam aos poucos a ser pensadas entre Governos e Movimentos e, acima de tudo, entre Repouso e Movimento.
Sejam quais forem os partidos que nos representem, a questão daqui para frente será sempre a qualidade de sua representação. Sejam quais forem nossos representantes, em uma era midiática a democracia global transnacional dependerá cada vez menos de saber se nossa bandeira é vermelha, preta ou a de um país. E dependerá cada vez mais de sabermos por quais centavos estamos dispostos a lutar. O ensinamento político que extrairemos dessa nova condição transcende o escopo político-partidário e um dia será revelado em toda sua profundidade. Provavelmente quando, para conseguirmos a maior de todas as nossas conquistas, tivermos que marchar nas ruas de braços dados com o nosso inimigo.
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