Na virada da década, os impasses sociais dos planos de estabilização econômica estão se traduzindo na volta poderosa das preocupações com as políticas públicas ativas de desenvolvimento. As reuniões das maiores instâncias de governo supranacional do mundo globalizado se tornaram, aos poucos, ocasiões de mobilização global de sujeitos novos e múltiplos, portadores de novas reivindicações e de novas práticas de luta. Entre Seattle e Gênova, um verdadeiro movimento dos movimentos se constituiu: em julho de 2001, dezenas e até centenas de milhares de manifestantes enfrentaram uma dura repressão policial para criticar a reunião do G8 e o governo bizantino[2] do Império[3]. No Brasil, as recentes eleições municipais foram um marco expressivo da vontade popular para uma “guinada social” da política econômica. O primeiro Fórum Social de Porto Alegre lhe forneceu um eco, uma visibilidade e articulação em níveis mundiais.
Mas, por trás dos horizontes novos que se abrem, os desafios que esta “inflexão social” enfrenta para se tornar espaço concreto de políticas públicas de desenvolvimento[4] constituem-se em enormes quebra-cabeças. Não poderíamos deixar de enfatizar as dimensões dramáticas desta fase e destes desafios.
O quadro internacional está sendo profundamente marcado pela tragédia do 11 de setembro de 2001[5] e uma guerra de dimensões e impactos dificilmente previsíveis está ocupando o horizonte de um mundo globalizado onde “a política se reduz à polícia” e, pois, “a diferença entre Estado e terrorismo tende a desaparecer”, formando “um sistema mortífero no qual eles justificam reciprocamente suas ações”.[6] Desenha-se um cenário de “oscilações caóticas” do sistema mundial sob os impulsos de uma guerra que “não pode ser ganha nem perdida, mas que apenas pode continuar”.[7] No nível nacional (e até regional), a acentuada instabilidade financeira mundial acelera o esgotamento das políticas de ajuste de tipo neoliberal que o dramático impasse argentino já evidenciava, anunciando um novo ciclo de constrangimentos econômicos e financeiros sobre a dinâmica industrial e as políticas públicas. Mas não se trata apenas disso. Aqui no Brasil, as apressadas análises das presumidas lógicas “criminosas” do PCC[8] não conseguirão escamotear o fato de que o Estado de São Paulo (maior região industrial do continente latino-americano, que já foi o berço das lutas operárias que sustentaram e sobretudo qualificaram o processo de abertura democrática do país[9]) hoje em dia é o teatro de movimentos de massa que têm suas bases materiais e sociais numa população e num drama carcerários assustadores.[10]
Nesta situação, feita de uma grande janela de oportunidades e de novos e velhos constrangimentos, precisamos não descaracterizar o diagnóstico da situação social (a exclusão) e dos desafios econômicos (as transformações do trabalho e a integração dos mercados) que caracterizam o Brasil em face das novas dimensões políticas de um mundo globalizado marcado, por um lado, pela redução geral do papel dos estados e, por outro, por um aprofundamento das dimensões unilaterais das políticas norte-americanas.
Podemos esquematizar este diagnóstico da situação brasileira da maneira seguinte: décadas de finalização autoritária e tecnocrática da economia aos interesses do Estado deixaram em herança um país recordista mundial pela desigualdade social e pela inflação. Uma década de finalização da sociedade aos imperativos econômicos juntou às gritantes desigualdades geradas pela gestão estatal dos interesses particulares as geradas pela gestão privada dos interesses públicos. A construção da esfera pública da cidadania, condição essencial para a redução das desigualdades e para a recomposição entre dinâmicas econômicas e emancipação social, fica (no caso do desenvolvimentismo) subordinada à constituição material das elites tecnocráticas de Estado ou (no caso da desregulamentação e privatização neoliberais) relegada às suas dimensões formais e ao jogo do poder de compra sancionado pelo mercado. Desta maneira, a gestão centralizadora, autoritária, tecnocrática do desenvolvimento pelo Estado constituiu-se paradoxalmente num custo pago pelas suas vítimas. A truculência do interesse nacional justificou qualquer meio para alcançar um fim que na realidade coincidia com os interesses dos corpos sociais que ocupavam e controlavam o Estado. O formalismo acético do mercado, de suas técnicas e de sua volatilidade submete e substitui os meios (de gestão dos grandes agregados macro-econômicos e financeiros bem como de gerenciamento das grandes firmas) aos fins. Num caso como no outro, setor Estatal e setor privado aparecem como as duas faces de uma mesma moeda, duas constituições materiais distintas de uma mesma apropriação privada do bem público. Nesta identidade monstruosa de Estado e mercado reconhecemos a urgência de uma abertura e de uma alternativa, além de um espaço público reduzido à lógica do mercado (quer dizer, do poder de compra) ou estilhaçado pelas lógicas corporativas (e muitas vezes criminosas) do centralismo estatal.
A incapacidade do Estado, em todos os seus níveis, de gerar e gerir reais processos de universalização dos direitos encontra hoje a incapacidade do mercado de se constituir numa dinâmica universalizadora alternativa ao passo que, no nível mundial, o movimento dos movimentos precisa saber colocar-se como a verdadeira alternativa à guerra que um poder imperial unilateral e seu duplo teocrático estão impondo ao mundo.
Em suma, dramaticamente, está aparecendo um tempo novo, feito de grandes incertezas e de grandes oportunidades. O que precisamos pensar é, exatamente, a transformação das incertezas em oportunidades. Isso significa, antes de mais nada, conseguir colocar uma série de questões adequadas às mudanças e aos conflitos em curso. Neste sentido, as reflexões sobre as relações ambíguas entre trabalho e exclusão num país cada vez mais intensa e violentamente inserido nos fluxos da globalização podem ser de grande utilidade.
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Se o projeto neoliberal está em crise, as políticas neoliberais permanecem e atravessam o tempo dos ciclos políticos e os espaços das diferentes coligações governamentais e/ou das diferentes trajetórias nacionais. Neste paradoxo, de um projeto neoliberal esgotado em face da continuidade das políticas neoliberais, cabe avançar algumas perguntas. Não será que, justamente no momento de esgotamento do neoliberalismo, estará se menosprezando a profundidade da crise do Estado? Não será que, desta maneira, perdemos de vista a correlação que liga a crise do Estado à crise da relação salarial moldada no chão fabril? Não será, enfim, que pela subestimação da crise do Estado e de sua ligação com a crise da relação salarial está se perdendo a capacidade de entender o papel que o novo regime de acumulação (baseado no conhecimento e na informação) está atribuindo ao mercado?
Nossa hipótese é que, por trás da velha retórica liberal (a sede de ganho individual como motor da produção de riqueza e a racionalidade pública como fruto dos egoísmos privados: a mão invisível de Adam Smith), o “neo” liberalismo tem objetivos e urgências de tipo novo, profundamente fincadas na materialidade do novo regime de acumulação. Em particular, o neoliberalismo constituiu-se numa resposta pertinente (fortemente menosprezada pela crítica) à crise do Estado. Uma resposta cuja potência estava (e ainda está) no entendimento das origens desta crise. Neste sentido, podemos dizer que “por trás do mercado do liberalismo (precisamos enxergar) a marcha da liberdade”.[11]
Ao longo dos anos 80 (primeira onda da ofensiva neoliberal nos países centrais) e dos anos 90 (período neoliberal no Brasil) a oposição de esquerda (incluindo as organizações sindicais) se juntava, paradoxalmente e mecanicamente, às tradicionais defesas do Estado[12] para, no fundo, defender o futuro do trabalho em função de uma impossível sobrevivência do emprego industrial e da relação salarial. No entanto, o pragmatismo neoliberal conquistava uma vantagem considerável apreendendo, em primeiro lugar, que a crise do emprego apenas constituía o fenômeno mais superficial da crise irreversível da própria relação salarial e, em segundo lugar, que esta determinava a crise do Estado e não vice-versa.
Com efeito, a tradicional crítica de esquerda ficou presa por mais de duas décadas (e ainda não dá para dizer se esta armadilha está sendo superada) em um duplo viés ideológico: trabalhista e “estatalista”. O Estado continuou a ser indicado como único ator capaz de regular o mercado, ao passo que as conquistas sociais do trabalho na sua forma assalariada se tornaram um horizonte insuperável das lutas sociais. O Estado do trabalho, codificado às vezes nas cartas constitucionais na forma de “direito ao trabalho”, em vez de ser encarado como o maior instrumento da ordem capitalista do trabalho, da disciplinarização da sociedade como um todo sob o regime de fábrica, tornou-se o baluarte de resistência. Da mesma maneira, o emprego industrial, forma mais sofisticada de controle (e da redução) da liberdade do trabalho vivo pelo seu assalariamento, tornou-se um valor em si.
Os paradoxos das posturas políticas derivadas destas posições ideológicas e cada vez mais absorvidas pela defesa de interesses corporativos são evidentes. O primeiro deles tem a ver com a “defesa do emprego” como emprego assalariado da grande indústria. A “maldição do trabalho assalariado” é desta maneira transformada, na melhor das hipóteses, num mal necessário, e, na pior das hipóteses, em uma “virtude”. O segundo, correlato deste, é a defesa da grande indústria, em seguida da grande indústria nacional e, algumas vezes, em tomadas de posição extremamente ambíguas sobre os fenômenos das migrações internacionais.[13] O terceiro paradoxo, mais geral, tem a ver com o fato de toda uma série de organizações da esquerda ser fortemente comprometida com a defesa de privilégios corporativos que, nas economias periféricas e no Brasil em particular, nem chegaram a ser objeto de um processo de universalização negociada. A partir do postulado de que tudo que é estatal é bom, defendem-se as empresas estatais pelo seu estatuto formal de propriedade, e não pelo que elas materialmente são. Em vez de denunciar na privatização uma mudança superficial do modo de apropriação privada do bem público, defende-se o estatuto do controle estatal das empresas porque haveria uma identidade imediata entre público e estatal. No mesmo sentido, mas de maneira ainda mais grave, mistura-se a defesa dos direitos adquiridos com a prática plurissecular de privilégios que o Estado desenvolvimentista soube manter e hibridar a partir da herança dos períodos colonial, imperial e republicano.
A crise da relação salarial como causa da crise do Estado
Como antecipamos, nossa hipótese é que a crise do Estado veio para ficar e não foi o fruto das políticas neoliberais. Ao contrário, essas encontraram sua força na crise do Estado e na interpretação correta de suas causas. Isto significa que a relação salarial não entra em crise por causa das reformas neoliberais de redução da regulação estatal do mercado, pois a crise do Estado é o fato da crise da relação salarial de tipo fabril.
Sabemos que, nos países centrais, as primeiras manifestações da crise do Estado keynesiano e fordista, nos anos 70, tinham a ver com os déficits estruturais e crescentes dos orçamentos públicos (dos Estados centrais bem como dos estados e/ou regiões provinciais e das grandes cidades). A análise pioneira de James O’Connor sobre a “crise fiscal” do Estado se tornou, justamente nessa época, uma referência.[14] A partir desta evidência, pareciam inevitáveis duas posições, opostas mas fundamentalmente atreladas a este mesmo diagnóstico: em face dos crescentes desequilíbrios das contas públicas era preciso fazer algo, ou no sentido de reduzir os gastos públicos (a posição de direita) ou de adequar a pressão fiscal de maneira a sustentar com recursos crescentes a expansão desses gastos. Mais de 30 anos depois, sabemos que as tentativas neokeynesianas dos anos 70 (de aprofundamento dos déficits para alavancar um novo ciclo de crescimento) terminaram abrindo um longo período de hegemonia neoliberal. Sabemos também que, contrariamente ao que prometiam, os governos de Mrs. Thatcher (na Grã-Bretanha) e de Ronald Reagan (nos Estados Unidos) não conseguiram reduzir os desequilíbrios das contas públicas. Isso porque os neoliberais trabalharam a crise do Estado do ponto de vista das transformações das relações entre capital e trabalho e tentaram construir um novo consenso social contra o pacto social corporativo de origem fordista. Indubitavelmente, eles conseguiram mobilizar neste sentido novas camadas sociais de classe média e de trabalhadores não estruturados dentro da relação salarial da grande fábrica, mas não conseguiram traduzir a extensão desta nova base social em uma força expressiva capaz de realmente comprimir os gastos públicos. O sistema de welfare mostrou seu chão de irreversibilidade e substituiu o conceito keynesiano de “rigidez dos salários a diminuir” por uma material “rigidez do sistema de welfare a diminuir”.[15] Com efeito, da mesma maneira que sua crise não era uma questão de equilíbrio contábil, apareceu com clareza que a própria mecânica do kenesianismo-fordismo não estava assentada em nenhum equilíbrio das contas públicas, mas na sua capacidade de encontrar, na relação salarial da grande fábrica, o padrão de referência para manter gastos e receitas proporcionais. Com outras palavras, podemos dizer que o keynesianismo era, pois, uma máquina de proporcionar (no sentido de tornar comensurável) a sociedade inteira em torno da relação salarial da grande fábrica.[16]
A crise do fordismo-keynesianismo é, pois, crise de proporções pela incapacidade da relação salarial em reproduzi-las. Em última instância, a crise é crise da relação salarial. A incapacidade da relação salarial para reproduzir as grandes proporções do welfare se traduziu na crise da constituição material que lhe era própria. Nesta, o fato de “ter direito aos direitos” estava completamente subordinado à integração produtiva dentro da relação salarial. A integração cidadã era segunda e derivada com relação à integração produtiva. Ter clareza com relação a isso permite desmontar um outro mito: a crença de que os desníveis em termos de universalização dos direitos entre as economias centrais e as periféricas fossem a conseqüência dos desníveis de democracia formal que caracterizariam os países do Norte (desenvolvidos) com relação aos do Sul (subdesenvolvidos). Muito pelo contrário, a universalização dos direitos era, antes de tudo, universalização da relação salarial e a clivagem entre o “Norte” e o “Sul” está inscrita, muito antes que na forma Estado, nas constituições materiais produzidas pelos processos de assalariamento constrangido que caracterizaram os países do Sul, e em particular o Brasil.
Isso significa que, para ter acesso ao conjunto de bens que constituíam a materialidade dos direitos (moradia, saúde e ensino públicos, bens de consumo duráveis e serviços públicos: o telefone por exemplo!), era preciso ser um trabalhador assalariado, antes nas camadas de trabalho intelectual de controle e, depois (isso apenas nos países centrais), no trabalho operário de produção.[17] Era porque se estava integrado a esta relação de produção que se tinha acesso aos bens e aos serviços. No Brasil (de maneira emblemática), houve sim um processo de industrialização e, com ele, a edificação de um complexo sistema estatal de serviços que abasteceram um consumo cada vez mais sofisticado por parte das classes médias e, no período mais recente, de porções restritas do operariado (que, aliás, chegou a constituir-se em maioria social apenas em algumas regiões da Grande São Paulo). Desta maneira, ao contrário dos países centrais onde o acesso a esses bens se universalizou, no Brasil eles ficaram restritos às classes médias e, às vezes, como no caso do telefone[18], às camadas mais privilegiadas da sociedade. A relação salarial de tipo fordista (formal, da grande fábrica, com negociação sindical) estruturava, pois, o acesso à cidadania material. Quando ela era limitada a uma porção da sociedade, seu sistema de consumo também se encontrava restrito e a intensa intervenção do Estado (na regulação dos mercados pela proteção da indústria nacional e pelo controle da produção e distribuição dos serviços) não mudava o quadro em absolutamente nada. Ou seja, o que fazia diferença não eram a constituição formal e o nível de intervenção estatal, mas a constituição material (as bases sociais da dita intervenção estatal).
A crise do Estado é crise desta constituição material e ela é o fato, antes de mais nada e para além das diferentes constituições formais (e dos níveis de desenvolvimento), das transformações do trabalho. Não devemos deixar que os neoliberais a interpretem melhor do que a crítica. A crítica da crítica se torna de extrema urgência.
Crise e nova centralidade do trabalho vivo
A “crítica da crítica” se torna urgente, em particular, no que diz respeito ao debate brasileiro sobre transformações do trabalho. Na realidade, este debate sobre reestruturação produtiva e globalização se faz no marco geral de uma crítica do trabalho bastante estanque e, paradoxalmente, “conservadora”. No Brasil, as causas destas resistências à inovação das ferramentas teóricas da crítica do trabalho são múltiplas. Boa parte delas é de origem ideológica, e outras – mais legítimas – estão inscritas nas específicas dimensões estruturais do mercado do trabalho e da relação salarial no Brasil.
No plano ideológico, há diferentes tipos de “resistências”, mas podemos facilmente atribuí-las (sem com isso querer reduzi-las a essa) à hegemonia de uma visão teórica, herdada de um certo marxismo ortodoxo e de uma certa tradição do “movimento operário organizado”, que vê a emergência da classe (e de suas organizações) como uma conseqüência da relação de capital e, pois, identificando os destinos dos trabalhadores com os da relação salarial, hipotecando a vitalidade das lutas ao andamento da curva do emprego (formal e preferivelmente de tipo industrial!). Como apontamos acima, de maneira paradoxal e grotesca, um batalhão de críticos ferrenhos do neoliberalismo acaba postulando que o horizonte das lutas precisa e depende da submissão à “maldição do trabalho assalariado”. Se esse é o pano de fundo geral, que obscurece qualquer possibilidade de pensar a constituição do trabalho (e portanto de sua crítica) “fora” da relação de capital (que tornaria a “maldição” do trabalho assalariado “dispensável”), há também outros vieses ideológicos que fazem do trabalho material um valor em si. Estes recusam a possibilidade de apreender a transformação da própria substância do trabalho pelo simples fato de que continuam repetindo o enredo de um “desenvolvimento das forças produtivas (que) possibilitou a ruptura com as antigas concepções religiosas”[19] e de uma noção de trabalho que, embora reivindicando-se do método marxiano (a centralidade ontológica do trabalho), o submete à instrumentalidade da dinâmica da técnica (e de sua “transformação da natureza”[20]).
No plano mais estrutural, o desenvolvimento “constrangido” (ou periférico) da relação salarial de tipo canônico[21] fez com que, no Brasil, o mercado do trabalho formal sempre convivesse com importantes bolsões de miséria e com um trabalho informal que lhe era (e ainda é) profundamente correlato. Ao mesmo tempo, a explosão da informalidade e de toda forma de precarização do trabalho (e da vida) acontece numa situação de ausência de um verdadeiro sistema de welfare e, pois, dos diversos dispositivos de cobertura social dos quais os trabalhadores precários podem dispor na Europa Ocidental (e também, embora em menor medida, nos EUA). Com efeito, a mistura de antigas e novas formas de informalidade e flexibilidade (e de exclusão) impõe, no caso brasileiro, oportunas traduções das contribuições teóricas baseadas nas transformações materiais das economias centrais.[22] Mas estas restrições soam de maneira ainda mais problemática para os defensores de uma centralidade do trabalho fundamentalmente ligada a seus moldes fabris: por um lado, porque a relação salarial de tipo fabril só envolve porções restritas da população brasileira; por outro, pelo fato de que, menos no caso (importantíssimo, porém restrito) do pólo automobilístico do grande ABC paulista, o acesso à relação salarial de tipo fabril não foi garantia de acesso material aos direitos, ou seja, de uma verdadeira inserção cidadã dos “trabalhadores”[23]. Enfim, a modernização dos processos de trabalho (acelerada de maneira irreversível pela abertura econômica do país ao longo dos anos 90) já aponta de maneira dramaticamente clara a divergência entre dinâmica industrial e dinâmica do emprego industrial.[24]
O desafio é, pois, o de ultrapassar estas limitações ideológicas e/ou estruturais, alcançar um novo patamar na reflexão crítica sobre as transformações do trabalho e enfrentar da maneira mais aberta possível o debate sobre a força de fragmentação social que o novo regime de acumulação acarreta. Isto significa abandonar, ao mesmo tempo, todo o saudosismo pelas grandes homogeneidades da época taylorista e todo o determinismo implícito nas análises que apontam, na emergência dos paradigmas produtivos do pós-fordismo, apenas os determinantes da reorganização, especializada e flexível, do capital e de suas firmas.
A reestruturação industrial, a emergência de um regime de acumulação globalizado, baseado na produção de conhecimentos e num trabalho vivo (cada vez mais intelectualizado e comunicativo) podem (e devem) ser pensados como processos contraditórios, nos quais a contradição não é a que os opõem ao passado das homogeneidades fabris, mas a que se encontra no presente das novas formas de exploração e da composição técnica do trabalho, nas novas lutas do proletariado e, em particular, do proletariado urbano. Isto passa, justamente, pela recuperação das dimensões constitutivas, e por isso revolucionárias, do trabalho vivo.
Nesta perspectiva, a literatura sobre emergência da nova centralidade do trabalho vivo e sobre trabalho imaterial representa uma contribuição de peso. Inicialmente limitada a círculos políticos e acadêmicos restritos, a abordagem em termos de trabalho imaterial acabou desbordando-os e se tornou, na virada desta década, um referente obrigatório.[25] O peso de suas implicações políticas se encontra no eco provocado pelo último livro de Antonio Negri sobre o “Império”[26] e na apresentação de suas teses na terceira página do Le Monde Diplomatique dedicado ao Fórum Social de Porto Alegre.[27]
À medida que a noção de trabalho imaterial encontra sua legitimidade de importante contribuição crítica ao novo regime de acumulação capitalista, esta literatura que finca suas origens no “operaismo”[28] italiano dos anos 60 começa a chegar ao Brasil e à América Latina. Muitas vezes se trata de uma abertura bem superficial, pois o imaterial é integrado só para reduzi-lo ao material.[29] É a operação que faz Ricardo Antunes: a apresentação das teses sobre desmaterialização do trabalho é finalizada à manutenção das duplas tradicionais que opõem “trabalho e interação, (…), práxis laborativa e práxis interativa ou intersubjetiva”[30] e, por final, destinada a poder afirmar que o “estranhamento (…) do trabalho encontra-se, em sua essência, preservado”.[31] No fundo, estes autores nos dizem que, na medida em que “a internet só é virtual até a venda das mercadorias, cuja produção e entrega seguem se dando no campo da <>”, podemos continuar confiando nas “leis básicas do sistema capitalista”.[32]
Mas, apesar destas resistências e destas operações, as contribuições teóricas em termos de trabalho imaterial estão se tornando cada vez mais importantes.
A passagem para o pós-fordismo indica, antes de tudo, a instalação de novas relações entre a fábrica e o território, entre as forças de trabalho e a sociedade, entre os serviços e os usuários. O paradigma fundamental do pós-fordismo como modo de produção largamente socializado, baseado portanto sobre a comunicação social (esta é que alimenta a inovação, as tecnologias da informação e a chamada economia do conhecimento) de atores flexíveis e móveis, é o do trabalho imaterial. O trabalhador do imaterial aparece como uma força de trabalho com novas características. Trata-se de um trabalhador dotado de uma capacidade de gestão das relações sociais que supera o perímetro da empresa; suas qualificações dependem diretamente da sua capacidade de desenvolver, ao mesmo tempo, atividades culturais (informacionais) e de tipo gerencial. Enquanto o trabalhador taylorista executava em silêncio as ordens hierárquicas encravadas no barulho da maquinaria, o trabalhador pós-fordista trabalha falando, comunicando. O trabalhador imaterial produz, inova, coordena e consome. Ele produz o conteúdo cultural e informacional da mercadoria e seu ciclo de produção e reprodução. A gestão da produção just in time, por exemplo, não depende de questões técnicas, mas dos resultados de uma gestão adequada da informação na produção e, fora dela, nas redes de distribuição-comercialização. O trabalhador imaterial produz também as condições de produção.
A emergência do trabalho imaterial determina, portanto, uma transformação radical dos papéis, das relações e das hierarquias que caracterizam e estruturam o sistema industrial e sobretudo sua inserção no espaço metropolitano. Pois é a tradicional separação entre produção e reprodução que entra em crise. O paradigma pós-fordista define-se como “paradigma social” exatamente porque o novo modo de produção integra estes dois momentos e faz com que a circulação e a comunicação se tornem imediatamente produtivas. O trabalho imaterial tira sua centralidade de sua ambivalência, ou seja, de seu funcionamento como interface entre esses dois momentos. Nele é que encontramos os elementos de superação da crise do modelo estético que a integração dos momentos de concepção, produção e consumo automaticamente implica.[33] O trabalhador imaterial é ao mesmo tempo produtor e consumidor das soluções estéticas. Ele é que pode e sabe, pelo agir comunicativo que sua socialização permite, produzir e reproduzir os estilos ao longo de uma trajetória infinita de hibridações[34] e proliferações[35] criativas. E, para que o trabalhador imaterial possa chegar a ter esse papel central na expansão da produção de riqueza, é preciso que ele consiga lidar com as dinâmicas de desterritorialização (e universalização) dos mercados. Figura de um intelecto que, generalizando-se, tornou-se público, o trabalho imaterial organiza sua potência criativa nos processos de reterritorialização que fazem das metrópoles (onde proliferam as Bacias de Trabalho Imaterial) os elos estratégicos das novas realidades produtivas e, ao mesmo tempo, dos novos conflitos sociais (como foi o caso da primeira grande greve metropolitana em Paris, em dezembro de 1995[36]). Como elemento qualificante e estruturador dos novos modos de produção, o trabalho imaterial envolve um processo de subjetivação do trabalhador imaterial[37] que só pode acontecer no quadro de um entrecruzamento do tempo de trabalho e do tempo da vida, cujo espaço é a cidade. A passagem de uma produção de grande escala e de um consumo de massa de produtos estandardizados a uma produção flexível como resposta a um consumo rearticulado (e diferenciado) pela comunicação implica a transformação da sociedade disciplinar e de suas balizagens institucionais. No fordismo, a valorização visava aos corpos disciplinados na fábrica taylorista (bem como nas outras instituições totais: escolas, hospitais, quartéis...) e implicava uma separação conseqüente da estrutura produtiva em face do território. Na sociedade pós-fordista, é a alma que se mobiliza no trabalho; a valorização não conhece mais limites, nem espaciais (a fábrica, o ateliê, o escritório...) nem temporais (pois ela envolve o tempo de vida como um todo). Nesta perspectiva é que temos que trabalhar as dinâmicas dos novos conflitos sociais e as novas figuras da subjetividade.
Trabalho imaterial, capitalismo cognitivo e espaço público
Em função desta centralidade do trabalho vivo, de “trabalho não materializado mas vivo, que existe como processo e como ato”, como dizia Marx, podemos entender a força do projeto neoliberal, bem como a lógica do capitalismo cognitivo e/ou da chamada economia do conhecimento. Não se trata de negar a retórica da New Economy, mas sim de ver se há algo novo do lado do antagonismo. O novo não está do lado do comando, mas nas conseqüências de uma centralidade do trabalho vivo que acaba recompondo tempo de vida e tempo de trabalho e tornando a cidadania uma condição a priori da mobilização produtiva.[38] Isso significa que a “constituição material” (o fato de “ter direito aos direitos”) pode virtualmente emancipar-se da subordinação à relação de capital e que a “maldição do trabalho assalariado” pode enfim se tornar “dispensável”.
No meado dos anos 80, tudo isso podia aparecer como uma antecipação extrema da tendência. Muito pelo contrário, na noção de trabalho imaterial já tínhamos todos os elementos para apreender as novas contradições e as determinações antagonistas e sociais dos processos de inovação ligados ao uso intensivo e extensivo das novas tecnologias da informação e da comunicação. Na figura do trabalhador imaterial, a máquina aparecia claramente como uma “máquina social”, ao passo que a produção de informação fugia a toda redução quantitativa ao estatuto de commoditie[39] para se qualificar em termos de singularidade criativa.
A dinâmica paradoxal do capitalismo cognitivo[40] é emblemática desta nova janela de luta e de seus desdobramentos. Com efeito, na era do conhecimento, a valorização do capital passa por um jogo de constituição do tempo que os economistas definem como o fato da oposição entre aceleração da difusão e desaceleração da socialização dos produtos do trabalho cognitivo. Por um lado, o capital pretende estabelecer o domínio do futuro, de um tempo constituído pela aceleração da difusão (que aumenta o valor). Pelo outro, o capital precisa enfrentar a potência do devir, desacelerar e fechar o tempo constituinte da socialização do trabalho vivo (que diminui o valor). Mais uma vez, o tempo constituído e fechado do trabalho morto se opõe ao tempo constituinte e aberto do trabalho vivo. Mas, desta vez, a oposição é substancialmente diversa, pois ela é improdutiva e implica na metamorfose da própria substância da riqueza.[41] Em sua forma tradicional, a riqueza e o valor coincidiam, ao passo que o tempo de trabalho e o de vida se separavam a até se opunham. O imaterial era um meio de produzir submetido ao material e constituía um mundo de produção composto de bens materiais e serviços reproduzíveis e substituíveis. A valorização alimentava-se pela vigência dos princípios de raridade e de utilidade marginal. Em sua nova substância, o aumento da riqueza implica na diminuição do valor. O material (o hardware bem como o software) é um meio de realização do imaterial (da criatividade livre do trabalho vivo)[42]. E isso na medida em que a aquisição de bens e serviços é um meio de se fruir da vida, de se criar um excedente de ser. O tempo de trabalho é recomposto em um tempo de vida, ou seja, na constituição de um “ser” singular e comum capaz de “criar configurações inusitadas”. A riqueza coincide, pois, com a própria vida e sua potência. Neste sentido é que podemos realmente “pensar pelo avesso”[43]: o capital é inútil à mobilização produtiva do trabalho vivo (da vida) e toda hierarquização deste às suas configurações mortas é, esta sim, fictícia e parasitária.
A equação capitalista entre uma difusão cada vez mais rápida em face de uma socialização que deveria ser cada vez mais lenta se faz a custos incalculáveis. Os produtos do trabalho cognitivo (ou imaterial) não precisam da relação de capital para ser produzidos e não pertencem mais ao capital, pois eles coincidem com as próprias relações sociais de cooperação. A dimensão privada da riqueza como valor se sustenta na base da afirmação abstrata e arbitrária do direito de propriedade. Esta “sustentação” privada da riqueza para manter a extração de valor acaba reduzindo dramaticamente o potencial produtivo de riqueza. Quando a lei do valor é reafirmada, ela se torna antiprodutiva.[44] Para se tornar valor, a riqueza deve ser difusa (pública), mas não pode ser socializada (comum). O público e o comum são mantidos separados. Esta é a força (o público, a difusão: os celulares para todo o mundo; a internet grátis; o baixíssimo custo dos hardwares e ainda mais baixo dos softwares) e a fraqueza (a discriminação na base do poder de compra do uso real dos serviços; os obstáculos à proliferação criativa dos usos das informações e de suas ferramentas impostos pela lógica proprietária do copyright) da proposta de universalização das condições de ter direito aos direitos via mercado. Mas isso não deve permitir que se esqueça o quanto o capitalismo cognitivo procura (e precisa) o/do público e como isso pode ser um vetor de inovação paradoxal naquelas situações, como a brasileira, em que os dispositivos de distribuição da riqueza e de acesso aos serviços eram e são, na base da mediação de um estado autoritário, burocrático, racista e tecnocrático, ainda mais atrasados (menos públicos e em nada comuns) do que os mecanismos que o mercado oferece.
A equação do capitalismo cognitivo é paradoxal e se reproduz a custos incalculáveis, pois a produção da riqueza não pode mais se separar das condições de sua fruição: produzir o mundo é a mesma coisa que fruí-lo. A substância da riqueza depende da relação íntima e inquebrável de suas dimensões públicas e comuns: é o que emerge nos primeiros passos de um novo direito público, em particular na lógica pública da proteção do trabalho comum (da socialização). A lógica pública (do copyleft[45]) se opõe à lógica proprietária (do copyright) à medida que ela se qualifica pela proteção do comum, ou seja, dos produtos da atividade humana (por exemplo, as externalidades positivas e os usos inovadores). Os novos territórios produtivos são justamente os desenhados pela convergência do público e do comum.[46]
Estado, mercado e constituição do comum: tornar públicas as universidades brasileiras
As relações entre Estado e mercado, bem como a dimensão do projeto neoliberal, aparecem numa luz nova. Não podemos nos limitar às interpretações exógenas (em termos de financeirização e de globalização). Devemos, pois, usar a crítica do projeto neoliberal apreendendo o fato de que ele encontra sua força constituindo-se como resposta a uma crise do Estado determinada pela crise da relação salarial.
Ou seja, devemos lembrar que a reorganização neoliberal do Estado (que é muito mais do que sua mera redução)[47] está ligada a um duplo fenômeno: por um lado, o esgotamento do processo de universalização das bases materiais da cidadania fundamentado na universalização da relação salarial; por outro, a afirmação paradoxal de um regime de acumulação no qual os serviços se tornam produtivos e, pois, a cidadania se torna a condição necessária à inserção produtiva. Contrariamente ao que se diz e ao que se pensa, o projeto neoliberal é muito mais ambicioso de que a mera procura da “privatização” dos lucros de algumas estatais (por importantes que eles sejam). A ambição dos neoliberais é de oferecer um projeto, de afirmar a desregulamentação e a privatização como mecanismos mais universalizadores do que aqueles que o Estado conseguia produzir. É nesta medida que o mercado é posto como o melhor mecanismo substitutivo da relação salarial.
A competição e a flexibilização pretendem se afirmar como os princípios mais eficazes de difusão e democratização dos bens que tornam as redes sociais produtivas. É, aliás, justamente nos países (como o Brasil) nos quais a relação salarial não tem se universalizado e a cidadania (para além os privilégios restritos de umas pequenas camadas do funcionalismo público[48]) é completamente subordinada ao arbítrio do Estado que a proposta neoliberal se traduz por contundentes políticas de universalização via mercado.[49]
É neste nível que devemos situar a crítica: entender os novos (e potenciais) movimentos antagonistas apreendendo as contradições novas que estes deslocamentos determinam. A nosso ver, isso significa abandonar definitivamente a velha perspectiva de uma reconstrução do público a partir do reforço do papel do Estado. Trata-se, ao contrário, de aproveitar as brechas ligadas a seu enfraquecimento, aprofundar o processo de libertação que os neoliberais tentam usar e canalizar para constituir o público. Os elementos potentes da nova contradição estão inscritos, de um lado, numa privatização que promove a apropriação restrita de bens cuja produtividade é diretamente proporcional ao nível de sua publicidade; e, de outro, numa desregulamentação que acaba substituindo aos monopólios estatais os dos grandes grupos multinacionais e que, pois, se mostra incapaz de sustentar um verdadeiro processo de democratização, ou seja, de construção do comum.
Desta maneira, a privatização reduz o “público” ao que pode ser comprado (e o cidadão, ao consumidor dotado de um poder de compra), ao passo que a desregulamentação limita-se à difusão (como no caso da lógica do copyright) e, opondo-se à socialização, fragmenta o “comum”. O projeto neoliberal não funciona porque ele é apenas superficialmente pós-estatal. Na realidade, o mercado reproduz o Estado pela separação do público e do comum e deve ser criticado porque se mostra claramente incapaz de produzir um novo regime de universalização dos direitos. Nele, a cidadania formal fica definitivamente separada da cidadania material (até porque ela não tem nem aqueles mecanismos integradores que a própria expansão industrial lhe garantiam) e se reproduz na forma de um poder transcendente sem mediações.
Só o movimento do trabalho vivo é capaz de afirmar a relação que liga, de maneira imanente, o público ao comum, a liberdade à igualdade. É nesta perspectiva que precisamos romper com a falsa alternativa “Estado versus mercado” e com sua imagem reflexa, a que opõe as políticas neoliberais às resistências corporativas.
Um locus estratégico deste embate é a universidade pública e, mais em geral, todo o sistema de ensino, geração e difusão do conhecimento no Brasil. As universidades públicas brasileiras, em geral, e as federais, em particular, estão atravessando uma fase particularmente difícil nesta virada de década. A cada ano greves prolongadas – dos professores, bem como dos servidores – tentam quebrar o arrocho salarial que praticamente vige desde a implementação do plano real. Mas, apesar de sua duração e repetição, estas greves nunca se desdobraram em um processo de mobilização expressiva das categorias envolvidas, ainda menos em mobilizações sociais de massa em torno das “lutas” das universidades. A cada ano, há um esboço de mobilização estudantil, mas sempre muito reduzida e fraca. Ela nunca ultrapassa verdadeiramente o estágio de iniciativa de apoio às reivindicações dos professores e de uma genérica defesa de uma universidade “pública, gratuita e de qualidade”.
Muito além de um rumo alternativo, aparece a desconfortável evidência de que o conjunto dessas mobilizações, sindicais e institucionais, acaba convergindo na defesa de algo que na realidade aparece ser um tipo de Status Quo. Cavando um pouquinho a linguagem superficialmente oposicionista, encontraremos comportamentos conservadores amarrados a objetivos profundamente não universalizantes e, o que é mais grave, fortemente aliados a teimosos privilégios corporativos. No nível dos objetivos, eles se resumem substancialmente a dois[50]: reivindicação de aumentos salariais lineares em percentual e de vagas para novos professores. Agora, o mais elementar dos cálculos aritméticos permite constatar que todo aumento salarial linear em percentual é profundamente injusto em si (pois ele privilegia os altos salários) e ainda mais iníquo numa grade salarial altamente desigual, como é o caso do Brasil em geral e do sistema público brasileiro em particular. Os aumentos lineares em percentual não reduzem as desigualdades, mas as confirmam[51] e aprofundam[52]. Qualquer seja a justificativa mobilizada[53], ela não saberá escamotear o fato de que este objetivo é profundamente corporativo e, pior, subordinado à lógica de segmentação e discriminação que caracteriza a pirâmide dos salários no serviço público.[54]
Mas, se analisarmos as plataformas dos sindicatos das universidades públicas do ponto de vista dos objetivos que faltam, os elementos de corporativismo aparecerão de maneira ainda mais impiedosa. A primeira série de objetivos que faltam tem a ver com a mais completa ausência de denúncias (e de reivindicações conseqüentes) do emaranhado de injustiças e privilégios que caracteriza a gestão estatal (federal e estadual) do funcionalismo público em geral e das universidades em particular: incorporação salarial das gratificações, acúmulo de aposentadoria (na maioria dos casos ainda “especial”) e outros cargos públicos (inclusive nas mesmas funções e eventualmente em vagas abertas por essas mesmas aposentadorias) tornam as remunerações salariais iníquas e absurdas. Mas a segunda[55] e mais grave série de objetivos que faltam tem a ver com a ausência do mínimo compromisso com as dimensões públicas da universidade, ou seja, com sua abertura para a sociedade, para que as populações excluídas tenham acesso ao ensino superior. É o mundo pelo avesso: o serviço público de qualidade e gratuito funciona sobretudo para as camadas mais privilegiadas da sociedade, pois o vestibular constitui uma barreira intransponível para os alunos egressos do sistema de ensino público secundário.
Em face deste verdadeiro drama, que aliás alimenta bons negócios para as universidades particulares,[56] as posições quase que unânimes dos sindicatos e da “comunidade” acadêmica nas universidades federais (e estaduais) são de tipo oportunista e conservador. Oportunistas, pois se escondem atrás das falhas do sistema de ensino público secundário, quando é evidente que, no curto e médio prazo, essa “dívida” social só pode ser enfrentada à medida que se mobiliza o que o setor público tem de melhor: suas universidades (submetidas, sim, a arrocho salarial e a problemas de infra-estrutura, mas onde os salários dos professores ainda são bons e sobretudo os níveis de capacitação do corpo docente permitem manter um bom patamar de qualidade), que deveriam ter programas e metas de aumento do tamanho das turmas de ingresso ao conjunto dos cursos (sem contar o que as universidades poderiam fazer para participar de programas de capacitação dos professores do secundário). Conservadoras, pois continuam usando aquele típico argumento da direita que consiste muito simplesmente em opor a quantidade à qualidade, quando todo projeto democrático e universalizador deveria visar à recomposição desses dois termos: ter o melhor para todo mundo.
Quando passamos estas avaliações ao crivo dos dados mais básicos sobre a estrutura do sistema universitário público, temos uma visão ainda mais nítida do bloqueio corporativo e das ambigüidades que caracterizam a questão do ensino no Brasil. A relação professor/aluno (1/10)[57] é baixíssima, ao passo que a taxa de evasão é elevadíssima (entorno de 50%). Se tomarmos o caso da UFRJ a exemplo (ou seja, da maior universidade federal do Brasil), os indicadores são assustadores e insustentáveis: em 2000, com 26.117 alunos de graduação (dos quais apenas 22.990 ativos, os outros tendo trancado), a UFRJ dispunha de 12.291 funcionários, dos quais 3.691 professores: o que significa uma folha de salário a cada 1,8 aluno ativo, um professor para cada 6,2 alunos ativos (a cada sete se integramos as matrículas trancadas)[58]. Todo esse batalhão de professores (e servidores) produziu, sempre em 2000, 3.691 formados, na proporção de pouco mais de um formado por cada professor![59]
Temos todos os elementos de um quadro de ambigüidades que se criou abrigando-se nas arbitrárias identificações entre dimensões estatais e vocações públicas das universidades federais e estaduais. A dimensão estatal não constitui nenhuma garantia da vocação pública da universidade, da mesma maneira que a dimensão privada e o mercado não garantem um acesso restrito a um público definido pelo seu poder de compra (e um ensino subordinado aos objetivos de lucro). Para o movimento dos movimentos, a questão é de uma crítica das políticas neoliberais que não se resolva em nenhum saudosismo da gestão estatal e saiba, pois, abrir o processo constituinte do espaço público do trabalho comum: no caso de nossas universidades, isso significa ligar explicitamente e diretamente os objetivos (igualitários) de seus trabalhadores (professores e servidores) aos dos excluídos e, nessa práxis, constituir a dimensão pública e comum do acesso ao conhecimento, universalizando as universidades.
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[1] Professor titular da Escola de Serviço Social e coordenador-geral do Programa Escola de Políticas Públicas e Governo da UFRJ.
[2] Cf. A. Negri & M. Hardt, “What the protesters in Genoa want?”.
[3] Cf. A. Negri & M. Hardt, Empire.
[4] Desenvolvimento entendido como processo material de redução expressiva das desigualdades e de geração e distribuição da riqueza.
[5] Estamos obviamente falando dos quatro seqüestros de aviões e dos ataques contra as torres do World Trade Center em Nova York e contra o Pentágono, em Whashington.
[6] Giorgio Agamben, On security and terror.
[7] Immanuel Wallerstein. September 11, 2001 – Why?.
[8] Estamos falando do Primeiro Comando da Capital, ou seja, da fração organizada de detentos que aparentemente liderou (com sucesso!) o maior motim carcerário da história do Brasil e um dos maiores do mundo nas últimas décadas.
[9] Às quais também a própria equipe de governo e o próprio presidente da República devem sua existência política.
[10] Cf. Larry Rohter, Brazil is getting a new political party: Its base is in state prison.
[12] O Estado sendo postulado como figura representativa de um improvável interesse geral e mandatário de uma regulação “social” do mercado.
[13] Cabe lembrar aqui, a título de exemplo não exaustivo, as posições mais infelizes do Partido Comunista Francês, nos anos 80, quando tentava defender seus baluartes operários reivindicando políticas que defendessem a produção francesa (“Produisons français!”) e desenvolvia em suas prefeituras municipais iniciativas discriminatórias contra famílias de imigrantes estrangeiros.
[14] James O’Connor, The fiscal crisis of state.
[15] Para uma discussão sobre crise e dinâmica do welfare state, vide Giuseppe Cocco & Maurizio Lazzarato, “Au-delà du welfare state”.
[16] Sobre esta análise do keynesianismo, vide o artigo clássico de Antonio Negri, “John Maynard Keynes e la teoria capitalistica dello stato nel’29”. Sobre a crise das proporções, vide Negri, Il comunismo e la guerra, p. 36 e seguintes.
[17] Fazemos referência ao fato de que só nos países centrais houve aquela dinâmica dos salários reais que uma série de teóricos definiu como “fordismo”. Para uma apresentação desta noção, vide Giuseppe Cocco, Trabalho e cidadania, p. 55 e seguintes.
[18] Até a privatização, uma linha de telefonia fixa tinha um custo superior ao de um computador e indiretamente proporcional à renda: quanto mais pobres os usuários potenciais, mais cara a linha.
[19] Sergio Lessa, “Serviço social e trabalho: do que se trata?”, p. 43.
[20] Sergio Lessa, ibid, p. 52. Nestas mesmas páginas, Sergio Lessa conclui, na mais tradicional das posturas, que o trabalho ligado à reprodução da vida e das relações sociais não é produtivo. O curioso está no fato de que este artigo foi escrito (e publicado) para um público de assistentes sociais de maneira a eles apreenderem que “(…) o Serviço Social não realiza a transformação da natureza nos bens materiais necessários à reprodução social.” E mais: “A práxis dos assistentes sociais (é) incompatível com a centralidade ontológica do trabalho (…)” Grifos nossos.
[21] Ou seja, formal e, justamente no caso do Brasil, com carteira assinada.
[22] No Brasil, “corrosão do caráter” é uma velha realidade e não apenas uma produção recente. Vide R. Sennet, The corrosion of character.
[23] Mesmo que pareça inútil, é preciso lembrar que a “carteira de trabalho” funciona (ainda) como um instrumento de controle (de identidade “caracterizada”: “sou trabalhador”) de populações marginalizadas dos direitos básicos, inclusive, às vezes, o de andar na rua. Sem citar a volumosa produção antropológica e sociológica a este propósito, vide o romance antropológico de Paulo Lins, Cidade de Deus.
[24] Vide Adalberto M. Cardoso, Trabalho, verbo transitivo.
[25] Encontramos o marco da força desta proposta teórica no espaço que lhe foi dedicado em livro de André Gorz, Misères du présent. Richesse du possible. Os artigos de Futur antérieur, de Negri, Lazzarato, Virno, Bologna, são largamente citados ao longo de todo o capítulo 2 (“Derniers avatars du travail”) e destrinchados no parágrafo nº 4 (“Autonomie et vente de soi”), pp. 70 a 77. No mesmo registro, o afresco monumental que Luc Boltanski e Ève Chiappello dedicaram à análise do “novo espírito do capitalismo”: Le nouvel esprit du capitalisme.
[26] Escrito com Michael Hardt, Empire.
[27] Negri. “L'<>, stade suprême de l’impérialisme”, p. 3.
[28] Usamos o termo italiano “operaismo” por não querermos confundi-lo com outras experiências tais como as do “ouvrierisme” francês. Por “operaismo” entendemos os trabalhos teóricos intimamente ligados ao neomarxismo italiano do final dos anos 50 e da primeira metade dos anos 70, cuja expressão foram as revistas Quaderni Rossi e Classe Operaia. O operaismo não se limita a uma escola de pensamento, uma vez que sempre contou com um importante envolvimento social e político dos “operaistas” nos movimentos dos anos 60 e 70 na Itália. Para uma apresentação mais aprofundada do “operaismo” italiano, ver Yann Moulier-Boutang, L'opéraisme italien: organisation, représentation et idéologie, ou la composition de classe revisitée; Sérgio Bologna, Qu'est-ce que l'opéraïsme aujourd'hui?; e Napolitano, Tronti, Accornero, Cacciari (a cura di), Operaismo e centralità operaia. Para uma apresentação mais em perspectiva ver também Nick Withford, “Autonomist marxism and information society”, in Capital & Class n° 52, e Paolo Virno and Michael Hardt (ed.), Radical thought in Italy.
[29] Vide Ricardo Antunes, “Material e imaterial”.
[30] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, p.134. Antunes dedica o capítulo VII (“Mundo do trabalho e teoria do valor”) à apropriação desta literatura (com citações de Lazzarato, Negri e Michael Hardt). Seja-me permitido anotar que o autor atribui a Francisco de Oliveira (na nota 55 da página 120) “a bela síntese (das) interações existentes entre a potência constituinte de que se reveste o trabalho vivo e a potência constitutiva do trabalho morto”. Não atribuindo o crédito ao verdadeiro autor desta síntese (eu mesmo, candidato a uma vaga de professor titular frente a uma banca composta pelo próprio Antunes, Francisco de Oliveira e outros), Antunes comete o grosseiro erro de uma oposição tautológica: constituinte versus constitutivo. Na minha conferência, eu usava Negri para opor a “potência constituinte do trabalho vivo (ao) poder constituído do trabalho morto”. Vide Giuseppe Cocco, Trabalho e cidadania, p. 54.
[31] Ricardo Antunes, Os sentidos do trabalho, p. 222. Grifos nossos.
[32] José Luis Fiori, “A idiotia da novidade”. No mesmo registro, vide M. Pochmann, “Mitos e realidades da <>”, onde podemos ler que “a expansão da riqueza nos EUA, entre 1984 e 1994, foi sustentada pela força da <>”. Note-se que nestes comentários que descobrem a força da velha economia norte-americana, nos anos 80 e no começo dos anos 90, ficavam, quase todos, empolgados com a decadência da economia dos EUA e o deslocamento de centro do mundo para o Japão e seu modelo toyotista de regime de crescimento neo-industrial. Pouco importa que este modelo, entretanto, tenha ido por água abaixo!
[33] A crise do modelo estético é implícita na superação da relação unívoca emettor-receptor que, ao nível da produção de massa fordista, se definia como separação hierárquica entre, por um lado, uma produção estandardizada e massificada e, por outro lado, um consumo de massa pouco diferenciado.
[34] Interessante a perspectiva aberta por Nestor G. Canclini sobre as hibridações culturais como bases de transformação dos mercados de bens “materiais” e culturais.
[35] Vide Michel de Certeau, La culture au pluriel.
[36] Essas problemáticas são desenvolvidas no paper apresentado na última Anpocs sobre a co-produção da greve e no artigo “Une journée particulière” publicado em Futur antérieur, 1994 (também em italiano).
[37] Cf. Philippe Zarifian, Le travail et l'événement.
[38] Vide Giuseppe Cocco, Trabalho e cidadania.
[39] Vide neste sentido o trabalho de Marcos Dantas, “O valor da informação: trabalho e apropriação no capitalismo contemporâneo”.
[40] Sobre o capitalismo cognitivo e a economia do conhecimento, vide o dossiê sobre “Nouvelle économie politique”. Em particular Yann Moulier-Boutang, “Éclats d’économie et bruits des luttes”, e Enzo Rullani, “Le capitalisme cognitif: du déjà vu?”.
[41] Utilizamos aqui a análise de Yann Moulier-Boutang em sua apresentação “O território e as políticas de controle do trabalho” no Seminário Internacional A mobilização produtiva dos territórios.
[42] Fala-se cada vez mais de netware, ou seja, de um espaço de ação que substitui e absorve o hardware, o software e o wetware (este último definindo a atividade cerebral de vida e de trabalho).
[43] Fazemos referência ao livro de Benjamin Coriat sobre toyotismo, Pensar pelo avesso.
[44] Para uma problematização da crise da lei do valor e da tautologia do capital no pós-fordismo, vide Giuseppe Cocco: “A nova qualidade do trabalho na era da informação”.
[45] O movimento do copyleft (que propõe o livre uso e reprodução dos produtos intelectuais à condição da atribuição do crédito ao original e do uso não comercial dos produtos derivados) representa um avanço significativo e concreto que encontra no software GNU-Linux (que permite sua reprodução e hibridação pelo acesso às fontes) uma experiência concreta (industrial e comercial) de grande porte. Vide R. Stalman, “Biopirataria ou bioprivatização?”.
[46] Interessantes as provocações de Richard Barbrook neste sentido, em particular quando ele reverte a ideologia californiana do “pontocom” na perspectiva do “cyber-comunismo”, ou seja, de uma situação na qual “owned by nobody, the web could come the common property of all”. Vide o paper “Cyber-comunismo” apresentado por Barbrook no Seminário Internacional A mobilização produtiva dos territórios.
[47] O mercado não existe sem o Estado, as firmas multinacionais não gerem sem o Império.
[48] Não estamos dizendo de todo o funcionalismo público, mas de uma parte deste.
[49] O caso das telecomunicações, com a popularização do telefone celular (inclusive como instrumento de organização dos presos), não saberia ser reduzido a um fenômeno marginal!
[50] Em muitos outros. Mas estes dois nos parecem ser com certeza os mais expressivos.
[51] Pensamos em dois salários, um de R$ 1 mil e um de R$ 2 mil. Se um aumento de 50% for concedido, o primeiro terá um aumento de R$ 500 e o segundo de R$ 1 mil, numa proporção igual ao nível de desigualdade inicial.
[52] Mas, sempre tomando o caso da nota acima, o aumento em percentual confirma as proporções de desigualdade e as aprofunda, pois a distância absoluta entre o salário menor e aquele superior aumenta: no caso invocado ela passa de R$ 1 mil para R$ 1,5 mil.
[53] A justificação mais comum invoca o fato de que esses aumentos apenas representariam a reposição das perdas salariais ligadas à inflação: mas, por que uma luta não deveria usar a reivindicação salarial para repor as perdas e também reduzir as injustiças? É nessa prioridade sistemática à reposição linear da posição ex ante que constitui um indicador nítido do corporativismo dos sindicatos das universidades públicas.
[54] E isso é agravado pelo fato de que não há sequer traço de um debate que indique a determinação de reivindicações salariais destinadas a reduzir as desigualdades.
[55] Há outros objetivos ausentes: por exemplo, sobre a qualidade dos serviços oferecidos em geral pelas universidades (no sentido mais amplo do serviço público), que deixa a desejar, em particular em função do baixíssimo nível de capacitação dos técnicos administrativos. O que abre para outro objetivo ausente: a mobilização dos professores para formar os servidores.
[56] O que mostra claramente a cumplicidade do estatal com o particular: é a inércia da universidade federal (e estadual) que alimenta o desenvolvimento das universidades particulares. A posição que consiste em dizer que é a falta de investimento nas universidades “públicas” é, no mínimo, cínica: a ideologia que identifica o público ao estatuto estatal permite não prestar contas quanto ao fato de que a maioria do público (inclusive aquele que tem uma demanda ativa de acesso aos estudos universitários) não tem acesso a um serviço que, pois, não é público!
[57] Dados de 1998. Nesse mesmo ano, esta relação era de 1/29 nas universidades italianas e de 1/17 nas universidades francesas.
[58] Se o indicador alunos/funcionário deveria ser ponderado pela eliminação do cálculo dos servidores dos hospitais universitários, a relação professor/aluno não deixa nenhuma margem de dúvida!
[59] A esta situação devemos em seguida juntar os professores visitantes, os bolsistas recém-doutores e, naturalmente, os aposentados (do serviço público e inclusive da própria universidade) que acumulam aposentadoria e salário. Como é possível que faltem professores para dar aula? Muito simplesmente porque, por um lado, as unidades têm uma política generosa de capacitação (um alto número de professores licenciados para cursar o doutorado ou realizar o pós-doutorado) e, por outro, justificam-se as vagas não na base do número de alunos e das metas de abertura da universidade ao público, mas no número de disciplinas.
cooperação.sem.mando
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