por Antonio Lancetti
Enquanto no Brasil vem se expandindo a rede de CAPS, de Serviços Residenciais Terapêuticos e outros recursos territoriais para produção de saúde mental as Unidades Básicas de Saúde que praticam a denominada Estratégia da Saúde da Família desenvolveram grande expansão: aproximadamente metade dos habitantes do território brasileiro estão cobertos pelo Programa de Saúde da Família.
A relação entre a saúde mental e a saúde da família tem uma importância evidente e coloca questões não tão evidentes. Muitas vezes os Caps e os Serviços Residências Terapêuticas operam no mesmo espaço geográfico. A seguir levantaremos algumas que pretendem alimentar os debates que ocorrera na IVª Conferência Nacional de Saúde Mental.
A primeira questão deriva do conceito que denominamos complexidade invertida. Na Saúde os procedimentos de maior complexidade, como transplantes ou cirurgias extremamente complexas acontecem em centros cirúrgicos especializados e os de menor complexidade como tratamento do diabetes, hipertensão, aleitamento materno, vacinação etc. acontecem nas unidades básicas de saúde.
Na Saúde Mental a pirâmide é inversa: quando o paciente está internado em hospital psiquiátrico, quando está contido a situação se torna menos complexa e quando mais se opera no território, no local onde as pessoas moram e nas culturas em que as pessoas existem, quando há que conectar recursos que a comunidade tem ou se deparar com a desconexão de diversas políticas públicas, quando se encontram pessoas em prisão domiciliar ou que não procuram ajuda e estão em risco de morte, quando mais se transita pelo território a complexidade aumenta.
Decorrente dessa complexidade, as ações acontecidas no território são ricas em possibilidades e, quando operadas em redes quentes mostram maior potencialidade terapêutica e de produção de direitos.
A segunda questão é proveniente do fato do Programa de Saúde da Família ou Estratégia da Família ser, por assim dizer, já um programa de saúde mental. A diferença de outras modalidades com AMAS, ambulatórios de saúde mental, pronto atendimentos ou mesmo centros de saúde convencionais, os pacientes conhecem os médicos enfermeiros e agentes comunitários de saúde pelo nome e as equipes de saúde da família mantém um vínculo continuado com essas pessoas. Fazem acolhimento, que é uma maneira de escutar o sofrimento de quem precisa quando precisa, dispõem de diversos dispositivos coletivos como grupos de caminhada, grupos de reciclagem de lixo , de ações culturais diversas.
O fato das equipes estarem compostas por trabalhadores que são ao mesmo tempo membros da comunidade e membros da organização sanitária dotam o PSF de uma potente capilaridade. Os agentes comunitários de saúde visitam pelo menos uma vez por mês cada grupo familiar que habita na sua área. Dessa forma descobrem casos que não chegam à psiquiatria, como esquizofrênicos em prisão domiciliar ou crianças abusadas sexualmente, conhecem as tensões das bocas de fumo e sabem dos que estão ameaçados.
O fio condutor de uma pratica de saúde mental é a angústia que provoca o contato da loucura, da doença mental e da violência nas equipes de saúde da família. Daí que as equipes de profissionais que se propõem a fazer ou produzir saúde mental na atenção primária precisam priorizar os casos de maior gravidade, a risco de nunca conquistar as equipes de saúde da família.
A Organização Mundial da Saúde acaba de produzir um documento denominado “Integração da Saúde Mental nos cuidados primários – uma perspectiva global.
Nesse documento se preconizam princípios para interligar saúde mental e cuidados primários e são descritas boas práticas de diversas partes do mundo, incluído o Brasil com a experiência de Sobral, onde foi desmontado um manicômio e substituído pelo trabalho da saúde mental em parceria com saúde da família.
São várias as modalidades de operar em parceria e nenhuma delas retrocede á época do preventivismo, quando as equipes de saúde mental pretendiam prevenir as doenças mentais e acabavam aumentando o fluxo de pacientes graves para hospitais psiquiátricos.
Todas essas maneiras de fazer saúde mental na atenção primária têm em comum o fato de operar junto e não dividir o trabalho ou se recluir nos consultórios definindo o tipo de demanda que irão atender sem priorizar os casos em que agentes comunitários, médicos, enfermeiros e auxiliares de enfermagem mais precisam de cooperação.
Os Núcleos de Apoio á Saúde da Família deveriam ser núcleos de vanguarda e não de retaguarda. e a transformação de uma proposta tão inteligente, pensada para potencializar a Estratégia da Saúde da Família em atendimento ambulatorial. Seria um verdadeiro retrocesso, com a possibilidade de contribuir com a descaracterização da metodologia da Estratégia da Família.
Esta é uma das grandes dificuldades das práticas de saúde mental interligadas á atenção primária. É preciso de profissionais que estejam acostumados a operar em ambientes não protegidos. Na formação de equipes de saúde mental do Projeto Qualis/PSF contamos com profissionais que tinham passado pela experiência de desinstitucionalização de Santos e os que não possuíam experiência tiveram um fortíssimo investimento em
formação.
As equipes de saúde mental que operam na atenção básica realizam intervenções clínicas de maior complexidade que aquelas que acontecem nos CAPS e para tanto deveriam encontrar modos de capacitação em serviço que flexibilize a atuação, que permita trabalhar com pacientes difíceis nos CAPS, que saiba o que é uma enfermaria de hospital psiquiátrico e aprenda a atender crises.
No Brasil,os programas de saúde mental ligados a atenção básica, em grande medida, são filhos da desmontagem de hospitais psiquiátricos e da invenção institucional para prática da reabilitação psicossocial.
O objetivo central de uma prática de saúde mental é capacitar, autorizar, contribuir para que toda a organização de saúde possa fazer saúde mental. As vezes uma ida ao medição pode ter um sentido de intervenção de saúde mental, de rearranjo familiar. Outras a indicação de caminhadas periódicas pode ser uma medida fundamental no tratamento de alguém que esta deprimido.
Quando as equipes de saúde mental atendem e acompanham em parceria os casos mais difíceis, os que mais os angustiam e desafiam, podem atender sem participação de técnicos de saúde mental a inúmeras famílias.
As equipes de saúde mental e os NASFS podem atuar como conectores entre os CAPS e as Unidades Básicas de Saúde e como conectores com diversas ações informais que acontecem ou se inventam no seio da comunidade, ativando o comum, que é anterior ao conceito de comunidade (que como indicaram Antonio Negri e Michael Hardt a comunidade é uma unidade moral).
Daí a importância de dispositivos terapêuticos como o da Terapia Comunitária, que além de constituir uma possibilidade de elaboração coletiva do sofrimento empoderam agentes comunitários e técnicos. Mas esses não são os únicos.
Os operadores de saúde mental que atuam em atenção básica devem estar atentos aos conectores, que são vitais para constituição de redes quentes, redes tensas que gerem subjetividades cidadãs.
È fundamental a tensão constante da rede de cuidados, mas é fundamental a denominada advogacia.
Um exemplo disso é a necessidade constante de capacitação na operação do Estatuto da Criança e do Adolescente. As pessoas que assistem as equipes de saúde da família vivem um estado de estrutural déficit de direitos.
O Controle Social, no século XXI é cada vez menos praticado em instituições fechadas e mais ao ar livre, nos domicílios, e ali onde a saúde mental contemporânea deve livrar seu combate.
Hoje equipes de saúde da família estão conseguindo fazer experiências promissoras em diversas cidades brasileiras. A inserção nos bairros e nas vilas, a ascendência afetiva conquistada permite que agentes comunitários consigam suspender a ordem de fuzilamento de alguém que deve ao traficante. A ativação de recursos absolutamente informais para conter crises.
Porém na Conferência Nacional de Saúde Mental deve-se discutir o financiamento dessas práticas, como, aliás, sugere o citado documento da OMS.
A outra questão a ser discutida na IVª Conferência Nacional de Saúde Mental é que essas práticas podem e devem contribuir para o protagonismo dos usuários do SUS.
Consideramos que a saúde mental praticada na Atenção Básica, especialmente em parceria com as equipes de saúde da família é altamente promissora, ela pode contribuir com a diminuição da violência tanto a institucional psiquiátrica como a praticada nas periferias das grandes cidades e para construção de territórios de paz.
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