Demonização da planta e imobilismo da política e mídia tradicionais são parte da explicação. Mas não descarte interesses comerciais da indústria farmacêutica…
Por Guilherme Scalzilli
Existe um consenso mundial de que o proibicionismo antidrogas fracassou e deve ser substituído por outro paradigma jurídico. Também já está bastante claro que o novo modelo jamais logrará êxito enquanto não incluir a legalização da maconha, isto é, a venda controlada e a permissão para o cultivo doméstico. Essas medidas retirariam do crime organizado o monopólio sobre uma planta que, ao contrário de outras substâncias ilícitas, o cidadão pode produzir a custo irrisório. Sem pagar um centavo a bandidos.
Só a perspectiva de reduzir os ganhos do tráfico deveria bastar para que a sociedade brasileira se mobilizasse em torno da questão. Acrescentando-lhe os desdobramentos positivos na área criminal (maior eficácia no combate à violência, alívio do sistema carcerário e da corrupção fardada), a causa ganha força inquestionável, dispensando os muitos alicerces filosóficos e doutrinários que a justificam.
Mas então de onde vem a curiosa antipatia que os nossos legisladores parecem nutrir por uma planta de uso disseminado, utilidades múltiplas e cultura milenar?
Primeiro do estigma criado pela propaganda estadunidense na eficaz demonização da maconha que se seguiu ao fim da Lei Seca e justificou décadas de programas intervencionistas de Washington na América Latina. Esse repertório de preconceitos foi assimilado e difundido com tamanha credulidade ao longo dos anos que sobrevive no comentarismo da imprensa até hoje.
Em segundo lugar vem a conveniência ideológica das autoridades políticas e da mídia que as apóia. A ilicitude de um produto consumido por milhões de pessoas ajuda a perpetuar as simplificações que atenuam a imagem do colapso das políticas de Segurança Pública. Além disso, a mitologia negativa dos entorpecentes compõe um leque mais amplo de princípios conservadores baseados no cerceamento dos direitos individuais e na criminalização da vida cotidiana.
Terceiro, e mais importante, porque o acesso legalizado à planta prejudicaria diversos interesses comerciais, principalmente os da indústria farmacêutica. Para entender esse impacto, basta consultar as muitas pesquisas sobre as propriedades medicinais da maconha e seu uso terapêutico em casos clínicos tratados por medicamentos onerosos e amiúde causadores de efeitos colaterais indesejáveis.
É fácil imaginar as fortunas que deixariam de fluir aos cofres dos laboratórios se os pacientes pudessem usar um remédio natural que ameniza inapetência, dor, náusea, insônia, depressão, ansiedade e até o vício químico em drogas letais. Que ninguém estranhe, portanto, o ressurgimento periódico de artigos e declarações de certos especialistas usando argumentos pseudocientíficos e dogmáticos que contrariam até as diretrizes de organismos internacionais voltados ao tema.
A prova de que esses profissionais seguem uma agenda suspeita é a insistência em reduzir o debate aos supostos malefícios da planta. Como se “fazer mal” fosse critério para proibir qualquer produto de uso cotidiano, começando pela química obscura dos próprios remédios. Como se a “perda temporária da memória de curto prazo” ou a “dependência psicológica eventual” estivessem de fato na origem de uma legislação inútil, dispendiosa e socialmente nociva.
A revisão do novo Código Penal representa uma chance histórica para o país abandonar essa excrescência, renegada inclusive nos EUA, seus maiores patrocinadores históricos. Tudo leva a crer, porém, que os juristas e parlamentares desperdiçarão a oportunidade, preservando o entulho repressor sob um verniz progressista, misturando abordagens igualmente punitivas para substâncias incomparáveis e apenas trocando a cadeia pelo tratamento psiquiátrico involuntário.
Afinal, é chique seguir os exemplos internacionais. Mas só os piores.
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